Eros Volusia e Luiz de Abreu

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Imagens do feminino e do nacionalismo nas danças solo no brasil: o bailado de Eros Volúsia e a performance de Luiz de Abreu 1 Sandra Meyer 2 Resumo O artigo discute a importância e o impacto das danças solos de Eros Volúsia chamando a atenção para a operação “antropofágica” que esta realizou em sua dança em relação às referências culturais estrangeiras e as nacionais. Além de analisar as danças solos de Volúsia e a construção de um “bailado nacional” a partir da mestiça- gem de elementos da cultura européia, negra e indígena, com ecos de uma ideologia política nacionalista vigente neste período histórico do Brasil, o artigo estabelece relações entre a pioneira solista moderna e o trabalho solo “Samba do crioulo doido”, de Luiz de Abreu, um artista brasileiro da atualidade na dança contemporânea, em sua crítica ao tema tão caro a Volúsia: brasilidade e, por extensão, a imagem da mulher brasileira relacionada à sensualidade e malevolência. Palavras-chave: Dança solo; Eros Volúsia; Luiz de Abreu; Nacionalismo; Feminino. Abstract The article discusses the importance and impact of the Eros Volúsia’s dance solos pointing to the “antropofágica” operation that held in their dance in relation to nationals and foreign cultural refe- rences. In addition to analyzing Volúsia’s solo dances and her goal of constructing a “national bailado” based on the miscegenation of Eu- ropean, black, and indigenous cultural elements, with echoes of the nationalist political ideology dominant in this historic period in Bra- zil, the article establishes a relationship between this pioneer modern soloist and the solo “Samba do crioulo doido”, by Luiz de Abreu, a Brazilian artist active in contemporary dance, who analyzes themes important to Volúsia: Brazilianness and, by extension, the image of Brazilian women related to sensuality and malevolence . Keywords: Solo dance; Eros Volúsia; Luiz de Abreu; Nationalism; Female. 1 texto originalmente publicado no livro On stage alone - Soloists and the Modern Dance Canon. Editado por Claudia Gitelman e Barbara Palfy. University Press of Florida, 2012. 2 Pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em teatro do Centro de Arte da UDESC. U rdimento ImAGENS Do FEmININo E Do NACIoNALISmo NAS DANçAS SoLo No bRASIL: o bAILADo DE ERoS VoLúSIA E A PERFoRmANCE DE LUIz DE AbREU N° 21 | Dezembro de 2013 128

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  • Imagens do feminino e do nacionalismo nas danas solo no brasil: o bailado de Eros Volsia e

    a performance de Luiz de Abreu1Sandra Meyer2

    Resumo

    O artigo discute a importncia e o impacto das danas solos de Eros Volsia chamando a ateno para a operao antropofgica que esta realizou em sua dana em relao s referncias culturais

    estrangeiras e as nacionais. Alm de analisar as danas solos de Volsia e a construo de um bailado nacional a partir da mestia-

    gem de elementos da cultura europia, negra e indgena, com ecos de uma ideologia poltica nacionalista vigente neste perodo histrico do Brasil, o artigo estabelece relaes entre a pioneira solista moderna e o trabalho solo Samba do crioulo doido, de Luiz de Abreu, um artista

    brasileiro da atualidade na dana contempornea, em sua crtica ao tema to caro a Volsia: brasilidade e, por extenso, a imagem da

    mulher brasileira relacionada sensualidade e malevolncia.

    Palavras-chave: Dana solo; Eros Volsia; Luiz de Abreu; Nacionalismo; Feminino.

    Abstract

    The article discusses the importance and impact of the Eros Volsias dance solos pointing to the antropofgica operation that held in their dance in relation to nationals and foreign cultural refe-

    rences. In addition to analyzing Volsias solo dances and her goal of constructing a national bailado based on the miscegenation of Eu-ropean, black, and indigenous cultural elements, with echoes of the

    nationalist political ideology dominant in this historic period in Bra-zil, the article establishes a relationship between this pioneer modern

    soloist and the solo Samba do crioulo doido, by Luiz de Abreu, a Brazilian artist active in contemporary dance, who analyzes themes important to Volsia: Brazilianness and, by extension, the image of

    Brazilian women related to sensuality and malevolence .

    Keywords: Solo dance; Eros Volsia; Luiz de Abreu; Nationalism; Female.

    1 texto originalmente publicado no livro On stage alone - Soloists and the Modern Dance Canon. Editado por Claudia Gitelman e Barbara Palfy. University Press of Florida, 2012.

    2 Pesquisadora e professora do Programa de Ps-Graduao em teatro do Centro de Arte da UDESC.

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    Nas primeiras quatro dcadas do sculo XX ocorreram inmeras transformaes na dana no oci-dente, especialmente na Europa e

    na Amrica do Norte, com reverberaes em outros pases da sia e da Amrica do Sul. Um dos fenmenos mais importantes desta nova dana situava-se na composi-o solstica de danarinas, marcada pelas contribuies que oscilavam entre a dan-a natural de Isadora Duncan, a dana de expresso de Mary Wigman, a dana espiritual de Ruth Saint Denis e a dana grotesca de Valeska Gert. Entre as contri-buies singulares das danas solo de cada uma destas mulheres criadoras ressalta-se a proposio de uma nova corporeidade e postura do feminino e o rompimento do discurso universal do corpo consolidado pela gramtica do bal.

    O ato de estar s em cena revela uma postura poltica, esttica e tica e visto co-mumente como uma figura prpria da mo-dernidade na dana (ainda que algumas sociedades arcaicas se utilizavam desta prerrogativa, como a balinesa). A dana in-dividualizada torna-se uma constante nas primeiras dcadas do sculo XX, sustenta-da por determinados pressupostos ticos e filosficos, fundados nos princpios de que qualquer pessoa pode e deve danar, sendo o movimento um caminho para con-quistar a unidade psicofsica e a liberdade, e de que cada danarino(a) pode encontrar sua dana natural e pessoal, dando forma auto-expresso pelo movimento e ritmo3.

    As propostas solsticas das primeiras danarinas modernas diferenciavam-se em sua viso de uma nova dana por meio da absoro de modelos estticos de ou-tras culturas, tais como a grega em Isadora Duncan, a oriental em Ruth Saint Denis e a africana em Katherine Dunham. A esti-lizao de danas no incio do sculo XX a partir de culturas africanas, diferente da al-teridade constituda por meio de um olhar utpico tardo-romntico para as culturas

    3 A expresso era um conceito revolucionrio para a poca, enquanto manifestao corporal de impulsos e sentimentos internos. Com o intuito de acessar a profundidade do corpo expressivo, Duncan renunciou ao espelho, prtica comum nas aulas de bal, porque este valoriza mais a imagem externa do que a interna (Daly, 1995, p.120).

    grega, indiana ou egpcia, possua uma im-plicao scio-poltica latente, por conta da formao recente e de maneira conflituosa da identidade de pases como o Brasil e os Estados Unidos.

    No Brasil dos anos 1930 e 40 os solos de dana de Eros Volsia (Rio de Janeiro, 1914-2004) afirmam-se numa mistura de nacionalismo e modernismo, imbudos em refletir sua prpria cultura, mais pre-cisamente, a vertente afro-brasileira. Neste perodo, a arte brasileira afirmava questes relativas cultura nacional, sem perder de vista o desejo de ser moderna. O movimen-to modernista desencadeado pela Semana de 22, realizada em 1922, na cidade de So Paulo, por uma nova gerao de intelectu-ais e artistas que criticavam as formas ar-tsticas e literrias pautadas nas tradies do academicismo, deixou como herana a busca por uma conscincia criadora na-cional preocupada em retratar a cultura brasileira, das caractersticas naturais crescente urbanizao das metrpoles, em conexo com os movimentos das vanguar-das europias.

    Neste contexto, a nova dana preconi-zada por Volsia volta-se para as matrizes afro-brasileiras, diferenciando-se de outras figuras da dana brasileira da poca, cujo imaginrio cintico ainda seguia a tradio do bal. No mesmo perodo - dcadas de 1930 e 40, a antroploga e bailarina ame-ricana Katherine Dunham (1909 - 2006) - conhecida como a me da dana negra e fundadora da primeira grande companhia de dana moderna negra nos Estados Uni-dos em 1930 - construa sua viso singular da dana afro-americana, na sincrtica, po-rm segregada cultura americana. Ambas trouxeram para a cena da dana moderna uma viso no eurocntrica, representando a cultura afro-americana e afro-brasileira, respectivamente, em seus pases de origem.

    A proposio de criao de um corpo nacional em Eros Volsia encontrava eco na ideologia poltica do governo brasileiro na poca do Estado Novo, em duas frentes de atuao fundamentais deste: a cultura e a educao, buscando assentar as bases

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    da nacionalidade, edificar a ptria, forjar a brasilidade (Pereira, 2003, p.275)4. Somen-te Eros Volsia, numa quase unanimidade entre artistas, polticos e crticos teatrais da poca, com seu corpo mestio, alcanava o sincretismo e alava o popular condio de arte erudita. Considerada como a in-ventora do bailado nacional, operou em suas danas solos e coletivas uma espcie de operao antropofgica em relao s referncias culturais estrangeiras e as na-cionais.

    Neste artigo destaco o incio dos solos de dana moderna no Brasil a partir do es-tudo de Roberto Pereira (1965-2009) sobre Eros Volsia e o bailado nacional dos anos 1930 e 1940, bem como da noo de mesti-agem formatada pela proposta antropof-gica filosfica e tica de Oswald de Andra-de (1890-1954). O termo bailado, traduo do francs ballet, se firmava no momento em que o bal era institucionalizado no pas, com a criao das primeiras escolas e companhias oficiais dos teatros das gran-des cidades brasileiras. As danas solo de Eros Volsia eram vistas pelos crticos te-atrais da poca como tipicamente brasilei-ras. A bailarina, coregrafa e pesquisadora inseriu as danas populares brasileiras nos espaos de elite, tais como o Theatro Muni-cipal do Rio de Janeiro, movendo partes do corpo intrnsecas cultura corporal afro-descendente, impensveis na estrutura do bailado acadmico vigente. Neste sentido, sua dana afirmava uma outra imagem da mulher por meio de referncias afro-brasi-leiras.

    A afirmao de uma cultura nacional

    A discusso sobre as questes naciona-listas no Brasil se intensifica no sculo XIX, quando se inicia a busca de uma identida-de nacional. O fator racial estava sendo am-plamente discutido, no momento em que ocorria um significativo contingente po-pulacional vindo da Europa. Entretanto, a viso de miscigenao herdada do roman-

    4 Para uma viso mais abrangente das relaes entre a dana e as polticas culturais do Estado novo, nome do regime poltico brasileiro fundado por Getlio Vargas em 1937, ver a obra de Roberto Pereira (2003).

    tismo idealizava a figura do ndio e prati-camente excluia o negro das formulaes tericas do pensamento brasileiro. Com o fim da escravido no Brasil, decretada ofi-cialmente em 13 de maio de 1888, atravs da Lei urea, o negro vai gradativamente aparecendo como personagem importante na dinmica social brasileira.

    A miscigenao brasileira ser entendi-da, a partir de ento, como o cruzamento da raa branca europia, do negro africano e do ndio autctone. No entanto, o euro-peu permanecia como o elemento civiliza-dor por excelncia. Segundo Renato Ortiz (1994), essa superao veio com o deslo-camento, nos anos 1930, da idia de raa para a de cultura, tese esta defendida na clebre obra do socilogo Gilberto Freyre, Casa grande e senzala, publicada em 19335. A consagrao do mestio como ente nacio-nal por excelncia ocorre, segundo Ortiz, a partir da reelaborao, feita por Freyre, das teses dos pensadores que o antecederam, entre eles Silvio Romero: [] A ideologia da mestiagem, que estava aprisionada nas ambiguidades das teorias racistas, ao se-rem reelaboradas passam a difundir-se so-cialmente e se tornar senso comum, ritual-mente celebrado nas relaes do cotidiano, ou nos grandes eventos como carnaval e o futebol. O que era mestio torna-se nacio-nal (Ortiz,1994, p.41).

    Na dcada de 1920, na ento capital do pas, o Rio de Janeiro, havia uma valoriza-o dos aspectos indicadores da identida-de nacional, num esforo de ruptura com o Brasil colonial atrasado. O pas ansia-va se fazer aceito no contexto civilizat-rio, empenhando-se em construir valores nacionais que respondessem ao mesmo tempo afirmao de sua identidade e ao imaginrio demandado pela modernidade, com seus referenciais de progresso urbano, interculturalidade e velocidade. Ser mo-derno, como detecta Velloso (1996, p. 31), era ser brasileiro.

    O gnero de teatro musical dominante

    5 Gilberto Freire (Recife, 1900 - 1987) assistiu a apresentao de Eros Vo-lsia pela primeira vez em Paris, numa apresentao desta no Cassino dEnghien, em 1948.

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    nos palcos brasileiros no perodo de 1910 a 1940, o Teatro de Revista, consolidava o tipo mestio da mulata. Os solos do Teatro de Revista eram danados pelas vedetes, junto aos bailados das coristas, e apresen-tavam aspectos vistos pela sociedade ca-rioca como modernos, buscando mesclar a tradio com ritmos brasileiros. Volsia, que danou no Teatro de Revista aos 35 anos, fez tambm o caminho inverso, le-vou as danas populares para os teatros da elite. Para aliar o popular e o erudito a artista realizou uma contundente pesqui-sa sobre danas populares brasileiras de diferentes regies. Nas inmeras confe-rncias-demonstraes voltadas para pes-quisadores, artistas e crticos, ela expunha de forma inovadora suas descobertas ba-seadas na pesquisa em museus e viagens de observao pelo pas aliando sua fala a apresentao de danas solo por ela cria-das.6

    As apresentaes de Volsia provoca-vam uma acalorada discusso nos jornais da poca no Rio de Janeiro, com questiona-mentos acerca da brasilidade de sua dana, a sensualidade dos seus movimentos, bem como as suas conexes com o bal. Contu-do, como salienta Roberto Pereira (2004), faltavam parmetros analticos para des-crever a brasilidade no corpo da danarina, para alm dos motivos brasileirssimos que tanto exaltava. Mario Nunes, em cr-tica endereada apresentao de Volsia no bailado Uirapuru, com msica de Villa-Lobos, questiona o ineditismo da mesma ao relacionar a dana desta a algo j cria-do o expressionismo, fazendo aluso aos movimentos da vanguarda europia recm assimilados pela cultura brasileira (Pereira, 2004, p.235).

    A ausncia de um acabamento tcni-co proveniente do bal - uma vez que este era a referncia de arte maior, um dos aspectos que dificultava o entendimento da proposio esttica de Volsia (Pereira, 2004). A diversidade das danas brasileiras

    6 Uma das conferncias mais marcantes foi a realizada em Paris, nos Archives In-ternationales de la Danse, a convite de seu diretor, Pierre tugal, em 1948. os jornais parisientes, como Le Matin, preconizaram: Eros ser a segunda Isadora Duncan do sculo (Pereira, 2004,p.104).

    pesquisadas por Volsia impressiona, de-vido extenso do pas e suas diferentes manifestaes culturais. Em seu livro Eu e a dana (1983) ela define suas coreografias como dramticas, simblicas e recreativas, estas impregnadas de uma grande dose de expressionismo. As recreativas teriam um carter de entretenimento, as dramticas teriam um viso trgico-satrica e as sim-blicas um apelo fetichista ou religioso, a exemplo das danas Macumba e Can-dombl. O termo expressionismo parece carregar a idia de uma viso subjetiva de Volsia na representao dos estados da alma do povo brasileiro por meio das dan-as populares, conectando a arte da dana uma modernidade recm-incorporada na cultura brasileira.

    Entretanto, era possvel perceber em algumas opinies crticas publicadas o quanto a cultura negra e indgena era su-bestimada pelas elites, quando se tratava de pensar uma dana nacional, tendo o modelo europeu da alta cultura como nor-te. Segundo Mario Nunes, a dana de Vo-lsia ainda estaria no plano de ensaio, a servio de uma representao primrio e grosseira, prpria dos pretos e ndios, carecendo de uma transposio de arte popular para arte erudita, algo que pas-saria do sensualismo puramente sexual para o plano espiritual (Apud Pereira, 2003, p. 235).

    Eros Volsia foi comparada no exterior a uma Isadora Duncan tropical ou a uma extica danarina folclrica do Brasil, a exemplo de quando foi apresentada aos norte-americanos em sua turn naquele pas7. A invs de estabelecer uma compara-o entre a danarina brasileira e Duncan, como ocorreu em suas viagens Frana e aos Estados Unidos, mais prudente pen-sar numa analogia entre a aventura esttica de Katherine Dunham e a de Eros Volsia. As reaes s coreografias de ambas, por parte do pblico e da crtica so, de cer-ta forma, equivalentes. Dunham tentava

    7 na ocasio, Eros Volusia foi capa da Revista LIFE (22/09/1941), tendo sido uma das primeiras artistas sul-americana com tal distino, antes mesmo de Carmem Miranda, a quem Volsia declara ter emprestado os movimentos sinuosos dos braos e mos.

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    educar os crticos e a audincia em seu pas sobre o significado social das dan-as africanas e caribenhas, especialmente quanto aos sinuosos movimentos plvicos. No era fcil argumentar para uma Am-rica puritana o significado simblico das tradies africanas, cujos movimentos so essencialmente provenientes da plvis. Ba-nes (1998, p.152-153) afirma que Rites de Passage, uma das obras mais emblemticas de Dunham, inclua danas sociais e rituais haitianos, cubanos e brasileiros, bem como danas das plantaes do sul dos Estados Unidos, que juntas formavam um caleidos-cpio etnogrfico.

    sabido que as sementes da nova dana do ocidente, a moderna, so lana-das principalmente por meio de uma al-teridade orientalista imaginada. A ideia de um exotismo e de um corpo natural na dana moderna requer cuidados para no se perpetuar em generalizaes. O imaginrio relativo ao corpo natural/cul-tural de Duncan diverge do proposto por Dunham. Volsia, por sua vez, tambm apresenta especificidades em sua cor-poreidade de inspirao afro-brasileira. Como observa Ann Dayle (1995), ainda que as danas de Isadora Duncan pro-pusessem espontaneidade e liberdade, estavam longe de serem selvagens ou viscerais, no sentido atribudo a culturas ditas primitivas ou arcaicas. Apesar de espontnea seu estilo de movimento ti-nha um sentido de fluxo, uma gentileza sem pressa, em comparao com os es-pasmos ou paroxismos das danas modernas de inspirao africana []8 (Daly, 1995, p.115). Dunham e Volsia buscavam manter em suas pesquisas de dana movimentos mais prximos aos impulsos cinticos e a visceralidade das danas africanas, mas, evidentemente, estilizando-as, cientes de que no seria possvel reproduzir no palco os rituais estudados em seus respectivos trabalhos de campo.

    8 Although spontaneous her movement style had a decided sense of flowing, unhur-ried gentility, compared with the spasms or paroxysms of the African-inspired mo-dern dances [] (Daly, 1995, p.115).

    Numa crtica ao espetculo Batuque, Jayme de Barros critica a bailarina clssi-ca Madeleine Rosay, visto que, embora com recursos tcnicos, ela no alcanava o sincretismo da dana de Eros Volsia. O gesto gracioso de Rosay seria uma ca-ricatura das danas brasileiras, pois teria faltado a estilizao, a integrao no mo-tivo musical e, finalmente, a intuio ar-tstica, o sangue, a alma, a cor morena de Eros (Barros Apud Pereira, 2003, p.249). As contores convulsivas, prprias do espasmdico xtase carnavalesco das ga-rotas do morro de Rosay no atingiam os nveis de abstrao conquistados por Vo-lsia (Pereira, 2003, p.249). O trnsito entre o erudito-nacional-popular efetuado por Volsia caracterizou um novo corpo para a dana em sua poca. Um corpo que se fez mestio precocemente, desde que Volsia frequentava na infncia os centros de um-banda no Rio de Janeiro. A artista iniciou os primeiros passos na dana, aos quatro anos de idade, em um terreiro localizado em frente sua casa. Ela descreve sua ini-ciao: Eu era garotinha quando entrei em contato com estranhas danas do ritual da macumba [...] Atrada por aqueles ritmos brbaros, acabei tomando parte no cerimo-nial. Os crentes da macumba descobriram em meus olhos, em minha fisionomia, em meus gestos, uma fora sobrenatural, e me submeteram ao batismo (Volsia apud Pereira, 2004, p. 22).

    As convulses epilticas da umban-da apresentados por Volsia, para crticos como Mrio Nunes, deveriam ser transfor-madas em passos de dana, elevando para o plano espiritual os impulsos sensuais das toadas e danas de origem africana, a fim de transform-la em arte superior. Em de-trimento de crticas redutoras como as de Nunes, a arte de Volsia comeava a ser vista como genuinamente brasileira. Ainda que no houvesse um consenso na poca que descrevesse o que seria esta brasilida-de ou nacionalidade de sua dana, ela esta-ria associada irremediavelmente compo-sio mestia da cultura brasileira.

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    Eros Volsia em No Terreiro de Umbanda, 1937. Foto de Raul.Cortesia da famlia de Eros Volsia

    Primeiros passos do bailado nacional

    A primeira grande apresentao da criadora do bailado nacional foi num vespe-ral no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o espao mais ilustre da cena brasileira, no dia 28 de setembro de 1929. Volsia leva-va quele palco nobre uma dana tipica-mente brasileira, onde descala, danava acompanhada de msicos tocando violo e batuques. O seu nmero apresentava um samba tpico baiano: Oia a fia no a., de autoria de Anbal Duarte de Oliveira. A ousadia da artista, ento incompatvel como as tradies elitistas daquele palco, teve o silncio inicial rompido pelo prprio presidente do pas na poca, Washington Luiz, que de p, comandou uma salva de palmas (Pereira, 2004, p.27).

    A comparao da proposta da dana-rina a formas codificadas de dana seria equivocada, na viso de alguns crticos da poca. Os bailados de Eros seriam para es-tes novidades, porque eram inditos. Ou seja, ela no danaria, segundo o crtico Int., do Dirio de Notcias, como os bailari-nos russos. Dana como sente a arte brasi-leira. No fica na ponta dos ps, mas seus gestos dizem tudo que pode dizer em ma-tria de arte (Apud Pereira, 2003, p.236). Em entrevista a jornais brasileiros, Volsia revela seu entendimento de arte como um processo hbrido, no qual referenciais ar-caicos, clssicos e modernos podem se fun-dir: [...] o clssico puro j no existe. Os bailarinos clssicos utilizam-se de todas as criaes modernas, desde o materialismo

    das acrobacias, at a espiritualidade do ex-pressionismo. A minha dana um misto de clssico, moderno e folclrico, como a dana universal atualmente, pois, como j disse, o bailado clssico j no existe mais depois de Isadora Duncan. (Apud Pereira, 2003, p.238).

    Ciente da renovao trazida por dan-arinas como Isadora Duncan, Volsia mis-cigena elementos codificados provenientes da dana clssica e das danas populares de diferentes regies do pas pesquisadas in loco, tais como o samba, o lundu, o ma-xixe, o maracatu e movimentos de algumas naes indgenas. A criao de uma nova dana por Volsia no ocorreu por conta de uma negao veemente do bal, como ocorreria com grande parte das danarinas cones da modernidade. Volsia se props a realizar um movimento de devorao in-tercultural de referncias tanto europias e americanas quanto brasileiras, tal qual a antropofagia oswaldiana enuncia, o que implica uma atitude de receptividade e de escolha crtica. Apesar de no utilizar estritamente passos de bal em seus so-los, Volsia valorizava seu aprendizado de quatro anos desta tradio na Escola de Bailados do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A tradio clssica funcionava como contraponto ao seu processo polif-nico de criao de uma nova dana, sendo que chegou a danar de forma pioneira nas pontas a coreografia Tico-Tico no fub, com a clebre msica homnima de Zequi-nha de Abreu. Mesmo diante dos elogios da grande dama do bal no mundo, Anna Pavlova9, Volsia no se restringiu ao am-biente acadmico, como declararia:

    Embora suas palavras fossem de grande estmulo para mim, consa-gradoras mesmo, eu sentia que no podia me restringir ao mtodo aca-dmico, j que meu temperamento, o amor ao ritmo brasileiro e s danas que exprimiam estados de alma exi-giam de mim maior campo de ao.

    9 o fato ocorreu no ano de 1928, ltima ocasio em que Ana Pavlova veio com sua companhia ao Brasil e ano que marca o ingresso da jovem Eros Volsia, ento com 14 anos, na Escola de Bailados do theatro Municipal do Rio de Janeiro (Pereira, 2004).

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    Seria absurdo cultivar uma arte de expresso internacional, quando toda uma raa esperava de meu cor-po a realizao de sua alma. Minha tendncia pelos ritmos brasileiros manifestou-se logo que iniciei meus primeiros passos de dana (Volsia Apud Pereira, 2004, p. 24).

    Publicado na Revista Antropofagia (1928), Manifesto Antropofgico pretendia recuperar metaforicamente uma crena de alguns povos indgenas antropfa-gos, que devoravam o inimigo supon-do que assim estavam assimilando suas qualidades. O manifesto considerado o mais radical de todos da primeira fase do Movimento Modernista, ao defender um projeto de resistncia s incorporaes feitas sem o devido senso crtico. A pro-posta era devorar a cultura e tcnicas estrangeiras e submet-las a uma diges-to crtica em nosso estmago cultural, de forma a assimil-las ou ainda vomit-las, se fossem consideradas imprprias ou indesejveis. O conceito de antropofa-gia era uma maneira de reagir no s ao confronto constante com a cultura coloni-zadora, mas com processos de hibridiza-o cultural no Brasil, provocados pelas sucessivas ondas de imigrantes durante sua histria (Rolnik, 2005, p.57).

    O escritor modernista Mrio de An-drade, que se dedicou a pesquisar a m-sica e a dana brasileira10, em sua crtica do trabalho de Volsia, chama a ateno para a originalidade de sua dana, apar-tada do velho classicismo com suas po-ses acadmicas ou os pinotes vulgares da coreografia lrica (apud Pereira, 2003, p. 126). A dana de Volsia estava prestes a realizar a to sonhada proposio an-tropofgica. A pesquisa de Volsia no se enquadraria na noo de resgate cul-tural, a exemplo dos registros de Mrio de Andrade em sua tentativa de garantir a originalidade das manifestaes popu-lares, como o prprio escritor ressaltara.

    10 Mrio de Andrade entre 1934 e 1944 escreveu a obra Danas Dramticas do Bra-sil, dividida em trs volumes que rene os seus estudos em relao msica popular, s danas e ao folclore brasileiro.

    A artista buscava a transformao deste material em matria prima para bailados nacionais, aliando o popular e o erudito, estilizao esta cara poca e adotada pela msica e pela literatura brasileira (Pereira, 2004, p.47)11.

    Em um de seus solos mais emblemti-cos, Cascavelando, Eros Volsia realiza uma trans-criao12 do poema Samba da escritora Gilka Machado, sua me, cujos elementos poticos foram inspirados nas danas de terreiro brasileiras. Nessa core-ografia a bailarina, na parte superior do tronco, faz gestos ondulantes que lem-bram o movimento das cobras ou das on-das do mar por meio de gestos sinuosos. Na parte inferior do tronco, nos quadris e nos ps, o movimento marca o ritmo do samba, compondo uma movimentao muito sensual (Silva, 2002). Cascavelan-do nos faz lembrar a visionria obra A serpentina, de Loie Fuller, no que diz respeito recriao da metfora do mo-vimento fludo relacionando-o ao de uma cobra, no caso daquela, a uma cascavel, natural do continente americano. O nome atribudo nova dana de Fuller por seu empresrio, Rud Aronson, no poderia ser mais significativo. O termo serpentina remonta meados do sculo XVIII, como uma nova teoria esttica para as especi-ficaes dos caracteres de representao da paisagem, falando de uma linha on-dulosa, ou linha de beleza, ou linha serpentina, igualmente chamada de li-nha da graa, por onde a pintura pode-ria organizar o espao visual da natureza (Lista,1994, p. 88). O termo cascavelan-do, anlogo serpenteando, cujo traa-do lembra os movimentos das serpentes, permeia o poema da me, Gilca, e a dana da filha, Eros. O poema enfatiza o ritmo e a corporalidade da mulher brasileira a partir de seus elementos mestios e da

    11 Como aponta nestor Canclini (2003, p.218), preciso situar a cultura popular dentro das relaes sociais permanentemente mutveis, em face das novas intera-es com a modernidade, numa crtica os aspectos ideolgicos conservacionistas que buscam resgatar tradies supostamente inalteradas.

    12 o escritor Haroldo de Campos levantou a impossibilidade de uma traduo literal de um sistema simblico para outro usando o conceito de trans-traduo, ou trans-criao, como uma forma de traduo criativa, uma reinveno da cultura do outro, aproximando a antropofagia oswaldiana da poesia concreta.

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    ondulao de seus movimentos de tronco e de plvis, cadenciados por uma movi-mentao firme dos ps13.

    Eros Volsia em Cascavelando, Fotgrafo desconhecido. Cortesia da famlia de Eros Volsia.

    E exatamente a crtica esta imagem - cristalizada e extenuante - da sensualidade da mulata brasileira, bem como questes sociais e polticas ligadas a negritude que motivar, seis dcadas mais tarde, a pes-quisa de um artista da dana contempor-nea brasileira: Luiz de Abreu14. A apologia a esta identidade corprea sinuosa e sen-sual da mulher brasileira, especialmente a da negra e da mestia, propiciou a longo prazo o surgimento de padres que limi-taram a leitura da complexidade cultural brasileira e os processos de subjetivao da mulher.

    A desconstruo no Samba do crioulo doido

    Samba do crioulo doido uma cria-o solo de 2004 onde Luiz de Abreu dis-cute a forma com que a sociedade brasilei-ra v o negro na construo da identidade

    13 Mexendo com as ancas, batendo com os ps, trementes os seios, virados os olhos, os dentes espiando a todos e a tudo, brilhantes, brilhantes, por dentro dos l-bios; creoula ou cafuza, cabocla ou mulata, mestia ou morena no te ama smente quem nunca te viu danando, sambando, nas noites de lua, mulher do Brasil! (Macha-do. Sublimao, 1938).

    14 nasceu em Araguar em 1963, onde realiza seu primeiro contato com a dana por meio da umbanda; vive e trabalha entre So Paulo e Salvador. Em meados dos anos 90 viaja a So Paulo, onde comea sua carreira solista. Atualmente aprofunda suas investigaes sobre corpo negro.

    brasileira. Ele retoma um antigo samba homnimo criado em 1968, em plena dita-dura militar, de autoria do escritor Srgio Porto, que mistura ironicamente fatos da histria, respondendo a um antigo decreto governamental, dos tempos de outra dita-dura, a de Getlio Vargas, o qual obrigava os compositores a criarem sambas sempre de cunho histrico sobre o Brasil.

    No solo com durao de vinte e cin-co minutos, Abreu ataca frontalmente os discursos nacionalistas que permitem um entendimento da corporeidade negra bra-sileira por meio da representao de certos esteretipos, como a comercializao de seu erotismo. A bandeira do Brasil expos-ta todo o tempo, assim como o corpo nu do intrprete. No caso de Abreu, a criao do trabalho no se destina a perseguir uma dana nacional, mas a trabalhar criticamen-te com a noo de brasilidade e negritude.

    A questo mais eminente de artistas na contemporaneidade parece no se voltar criao de uma dana nacional, mas, como salienta Micheline Torres, de pensar como fazer dana contempornea no Brasil, de como criar suportes para criao, circula-o, pesquisa e formao de platia15. No texto Cinco questes para pensar nas dan-as contemporneas brasileiras como anti-corpos categoria tradicional de corpo bra-sileiro, Christine Greiner chama a ateno para o fato de que as prticas instigantes dos artistas da dana contempornea mais atuantes no pas funcionam como anti-corpos noo de dana brasileira como um conceito em geral ou um bloco mono-ltico referencial (Greiner, 2007, p.14). A marca de brasilidade que muitos destes artistas por ventura apresentem, grande parte inseridas em trabalhos solos, estaria mais voltada aos fluxos de sentido que se organiza nas experincias estticas destes do que a regras a priori e coerentes com a imagem que se faz da dana brasileira ou do corpo brasileiro, seja no Brasil ou fora deste, conclui Greiner.

    15 Entrevista revista americana Scene4. Micheline torres atuou por 12 anos na Lia Rodrigues Companhia de Danas como danarina e assistente. Desde 2000 ela assu-miu seu prprio trabalho solo, situado entre a dana, a performance e as artes visuais.

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    A investigao de Volsia traduzia o pensamento de dana e de cultura co-nectado sua poca, com noes ao mesmo tempo romnticas e nacionalis-tas do corpo e do bailado que preten-diam ser brasileiros (Pereira, 2004, p. 46). Sua ideologia era um manifesto ra-dical legtimo e legitimado contra o vo-zerio estrangeiro que abafava o verbo da nacionalidade das recm-descobertas artes brasileiras:

    Passar do aparente imaterialismo dos bailados clssicos s humansticas danas brasileiras, sangrentas ainda das tragdias do cativeiro e do exlio, quentes ainda do contato com a terra, sem dvida chocante sensibilidade de qualquer pblico, principalmente quando este se encontra turbado de preconceitos que deseja ocultar para esquecer, quando este age sugestio-nando pelo nacionalismo cosmopo-lita, quando este se encontra viciado comodidade de assistir ou reprodu-zir as velharias importadas. [] O Brasil est descobrindo a si mesmo, est finalmente se encontrando16.

    O contato de muitos artistas brasilei-ros de dana contempornea com certa produo estrangeira, especialmente a europia, tem reaquecido o debate acer-ca das implicaes de um discurso colo-nizador-colonizado, mais do que a preo-cupao em buscar uma identidade cujo parmetro seja a afirmao da cultura bra-sileira. Num contexto dito globalizado, estes artistas tm exercitado criticamente a apropriao de procedimentos artsti-cos de sua prpria cultura e da cultura de outros pases, desenvolvendo pesquisas mediadas por questes prprias, cientes dos inevitveis processos de mestiagem e hibridizao de nosso tempo.

    Serge Gruzinski, em O pensamen-to mestio (1999), reconhece a impos-sibilidade de distinguir uma cultura pura. Segundo ele, todas as pocas de-

    16 Conferncia - manifesto realizada em 1939, no teatro Ginstico, onde iniciaria sua atuao como professora (Pereira, 2004, p.46).

    ram lugar mistura de culturas, sendo esta mesclagem um elemento constitu-tivo que enriquece, dinamiza e funda a criatividade das culturas, ao contrrio da hegemonia ou imperialismo cultu-ral. Os inevitveis rasgos de fronteiras e suas conseqentes hibridaes levaram Canclini (1997) a concluir que todas as culturas, de certa forma, hoje (ou des-de sempre), so de fronteira, a partir da idia de que as artes se desenvolvem em relao com outras artes. O hibridismo opera enquanto deslocamento de valor, levando o discurso dominante a descen-traliza-se e desviar-se (Bhabha, 2003). No possui necessariamente uma pers-pectiva de profundidade ou verdade, a diferena das culturas no resultante de um jogo dialtico, mas construda agonisticamente na fronteira.

    Luiz de Abreu em Samba do crioulo doido.Foto: Gil Grossi. Cortesia do autor.

    O olhar tico e poltico para o seu pr-prio pas uma constante da produo mais recente da dana contempornea bra-sileira, ausente, contudo de uma utopia na-cionalista. Sendo uma ptica diferenciada para a relao entre o local e o universal, a devorao intercultural, tal qual a antro-pofagia pensada por Oswald de Andrade, no seria uma atitude passiva ou imposi-tiva do colonizado, mas uma escolha cr-tica. Na obra O samba do crioulo doido a devorao se d por meios das imagens impostas aos negros em anos de histria, estas facilmente consumidas pelo olhar es-trangeiro. A operao antropofgica se faz presente em Abreu (2006):

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    Eu acredito na mestiagem da dana. Acho que impossvel estar no mun-do e ter um trabalho completamente original, de voc s na sua cultura. No Brasil temos um termo que a an-tropofagia que vem dos ndios. Eles achavam que se se comesse a pes-soa, pegar-se-ia o poder dessa pes-soa. No era para se alimentar mas para ficar com o esprito e a ideia. A gente traz isso na cultura desde que o Brasil Brasil. Ns desde sempre que estamos globalizados. Como no pensar isso se ns temos cultura vin-da dos ndios, da frica, de Portugal, alemes Eu acho que no tem que ter fronteira. O meu trabalho do tamanho do meu corpo. A fronteira est em mim. [...] Tudo bem, mas h a questo da experincia que im-possvel passar. pessoal, est flor da pele. da pele. O limite do meu trabalho o meu corpo, com todas as informaes que esto no mundo.

    Em Cascavelando, Eros Volsia, samba sensualmente revelando as formas do corpo com um vestido colante que imita o couro de uma cobra. pura exaltao uma recm-descoberta identidade brasilei-ra. No Samba do crioulo doido, Luiz de Abreu samba nu portando somente botas prateadas de saltos e cano alto. Abreu no reivindica uma dana nacional. Trata-se de outro contexto representacional, onde a mimises desta dana sinuosa e serpente-ada tipicamente brasileira - utilizando um termo frequente na leitura da obra de Eros Volsia - subvertida. Flertando com a performance o samba de Abreu denuncia a banalizao do corpo, um corpo-objeto que se fez produto de exportao mady in Brazil. O espetculo trata da resistncia do negro e dos significados do seu corpo na construo de sua identidade na histria brasileira. Em Samba do crioulo doido as ondulaes abdominais e os volteios do quadril que dana samba so performados ao som da voz rouca da cantora brasilei-ra Elza Soares, cuja letra repete exausti-vamente o seguinte refro: a carne mais

    barata do mercado a carne negra. Nas palavras de Abreu (2006): [...] Eu falo de mim mas tambm do ser humano, porque o gesto uma coisa comum. Mas eu tam-bm no quero fazer uma dana nacional. Eu uso smbolos nacionais porque talvez o Brasil seja um dos poucos pases em que o assunto do dia, tanto na Academia como no botequim, o Brasil, a identidade.

    Luiz de Abreu em Samba do crioulo doido.Foto: Gil Grossi. Cortesia do autor.

    O samba do crioulo doido critica a reifica-o da figura da mulata. A ironia fina e a agudeza da performance de Luiz de Abreu dispositivo poltico potente, fazendo-nos perceber nosso olhar enviesado, como declararia o socilogo Milton Santos (2000),17

    17 Ser negro no Brasil , pois, com frequncia, ser objeto de um olhar enviesado. A chamada boa sociedade parece considerar que h um lugar predeterminado, l em baixo, para os negros e assim tranquilamente se comporta. Logo, tanto incmodo haver permanecido na base da pirmide social quanto haver subido na vida (Santos, 2000).

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    O solo discute a inter-relao entre o corpo-objeto construdo pela dispora e o corpo-sujeito que transgride, afir-ma e resiste, cria uma corporeidade que devolve ao corpo-objeto o sujeito que lhe foi extirpado ao longo da his-tria, junto com sentimentos, valores, crenas, a palavra e suas singularida-des estticas. Samba, carnaval e ero-tismo constituem elementos aos quais o corpo negro brasileiro geralmente associado.18

    Num ponto de vista ideolgico, o solo de dana, como aponta Cassini Ropa (2009), o lugar irrenuncivel e urgente da pessoa e da personalidade, em toda a sua singula-ridade; o lugar da revelao do imaginrio e das memrias e sentimentos individuais. Esta postura pode ser entendida como uma crtica ideologia social e poltica da corali-dade induzida e uniformizada das massas. Mas as escolhas aparentemente individuais de Volsia, assim como de outras figuras da modernidade, potencializa foras coleti-vas. Um solista age como se estivesse s ou separado, mas sua aparente solido ecoa conexes mltiplas, a sua subjetividade se converte em um eco do coletivo. A subjeti-vidade nunca solitria (Schneider, 2002, p.86). O solo seria como se fosse o mltiplo do uno, a incarcanao da multiplicidade por um s corpo. Se Duncan evocava em si o esprito do coro grego, sustentado por princpios universais, Volsia, por sua vez, entendia sua arte como a essencializao da alma mestia do povo brasileiro. Luiz de Abreu, por outro lado, em um cenrio com-posto por bandeiras brasileiras, constri imagens que questionam o corpo objetifi-cado. Trata-se de dois momentos distintos da dana solo no Brasil, cuja relao com o tema nacionalismo, gnero e brasilidade diferem, mas que se encontram legitima-dos, em suas devidas pocas e contextos, a partir de uma digesto crtica da sociedade brasileira.

    18 Email de Luiz de Abreu Victoria noorthoorn, em 26 de maio de 2009. http://www.fundacaobienal.art.br/7bienalmercosul/pt-br/subversao-de-estereotipos-e-convencoes.

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    REFERNCIAS

    ABREU, Luiz de. Entrevista para Victoria Noorthoorn, 16 de maio de 2009. Disponvel em http://www.fundacaobienal.art.br/7bienalmercosul/pt-br/subversao-de-estereoti-pos-e-convencoes. Acesso em 10 jan. 2011.

    ABREU, Luiz de. O meu trabalho do tamanho do meu corpo. Entrevista Tiago Bar-tolomeu Costa em 06/06/2006. Disponvel em http://omelhoranjo.blogspot.com/2006/06/na-primeira-pessoa-ii-luiz-de-abreu.html Acesso em 10 jan. 2011.

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    FREIRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadncia do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 2 ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1951.

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