A festa de babette (karen blixen)

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A festa de Babette t. Duas senhoras de Berlevaag Na Noruega, existe um fiorde - um brago longo e estreito de mar entre montanhas altas - chamado Berlevaag' No sop6 das montanhas a cidadezinha de Berlevaag parece uma cidade de brinquedo feita com pequenas peEas de madeira pintadas de cinza' amarelo' rosa e muitas outras cores. H6 sessenta e cinco anos, duas senhoras idosas moravam em uma das casas amarelas. Outras mulheres dessa epoca usavam anquinhas e as duas irmds poderiam t€-las usado com tanta graga quanto qualquer uma delas, pois eram altas e esbeltas' Mas jamais possufram artigo al- gum da moda; haviam se vestido com recato em cinza ou preto por toda a vida. Seus nomes de batismo eram Martine e Philippa' em ho- menagem a Martinho Lutero e seu amigo Philipp Melanchthon' O pai delas fora deSo e profeta, fundador de algum Srupo ou seita eclesiSstica devota, conhecida e respeitada em toda a Noruega' Seus membros re- nunciavam aos prazeres deste mundo, pois a terra e tudo que continha para eles ndo constitufam senSo um tipo de ilusdo' e a verdadeira rea- lidade era a Nova Jerusal6m d qual aspiravam' Jamais pragueiavam' sua comunicaqSo se dava com sim sim e ndo ndo e tratavam-se uns aos outros por irmSo e irmd. 25

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A festa de Babettet. Duas senhoras de Berlevaag

Na Noruega, existe um fiorde - um brago longo e estreito de mar

entre montanhas altas - chamado Berlevaag' No sop6 das montanhas

a cidadezinha de Berlevaag parece uma cidade de brinquedo feita

com pequenas peEas de madeira pintadas de cinza' amarelo' rosa e

muitas outras cores.

H6 sessenta e cinco anos, duas senhoras idosas moravam em uma

das casas amarelas. Outras mulheres dessa epoca usavam anquinhas e

as duas irmds poderiam t€-las usado com tanta graga quanto qualquer

uma delas, pois eram altas e esbeltas' Mas jamais possufram artigo al-

gum da moda; haviam se vestido com recato em cinza ou preto por

toda a vida. Seus nomes de batismo eram Martine e Philippa' em ho-

menagem a Martinho Lutero e seu amigo Philipp Melanchthon' O pai

delas fora deSo e profeta, fundador de algum Srupo ou seita eclesiSstica

devota, conhecida e respeitada em toda a Noruega' Seus membros re-

nunciavam aos prazeres deste mundo, pois a terra e tudo que continha

para eles ndo constitufam senSo um tipo de ilusdo' e a verdadeira rea-

lidade era a Nova Jerusal6m d qual aspiravam' Jamais pragueiavam' sua

comunicaqSo se dava com sim sim e ndo ndo e tratavam-se uns aos outros

por irmSo e irmd.

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O deSo casara-se em idade provecta e por essa 6poca havia muitojii morrera. Os cliscfpulos minguavam ano ap6s ano, assim como a corde seus cabelos, os pr6prios cabelos, a audigdo; tornavam-se at6 mesmoum pouco chorosos e briguentos, de modo que pequenos cismas sur-giam na congregagAo. Mas continuavam a se reunir para ler e interpretara Palavra. Todos haviam conhecido as filhas do de6o desde garotinhas;para eles, continuavam a ser duas irm5s pequenas, preciosas por causa

do pai querido. Na casa amarela sentiam que o espfrito do Mestre es-tava entre eles; ali encontravam-se em casa e em paz.

Essas duas senhoras tinham uma criada francesa, pau para toda a

obra, Babette.

Era uma coisa estranha para uma dupla dc mulheres puritanasnuma pequena cidade norucguesa; ao que tudo indica chegou-se at6 a

exigir uma explicaqio. O povo de Berlevaag encontrou a explicagio nossentimentos piedosos e na bondade de coragdo das irm6s. pois as filhasdo velho de6o gastavam o tempo e os pequenos rendimentos em obrasde caridade; nenhuma criatura infeliz ou aflita batia d sua porta em vdo.E Babette chegara dquela porta doze anos antes como uma fugitiva semamigos, quase enlouquecida de dor e medo.

Mas o verdadeiro motivo para a presenEa de Babette na casa das

duas irm6s estava para ser descoberto buscando-se um pouco maisfundo no passado e nos dominios do corag6o humano.

tI. O namorad,o de Martine

Na juventude, Martine e Philippa haviam sido extraordinariamentc be-las, com a beleza quase sobrenatural das flores de 6rvorcs frr.rtfferas oudas neves perp6tuas. Nunca eram vistas nos bailes ou nas {bstas, mas as

pessoas viravam a cabega quando passavam na rua e os rapazes de Ber-levaag iam d igreja para v€-las caminhar pela nave lateral. A irmd maisjovem era ainda dona de uma voz adordvel, que aos domingos enchia a

igreja com sua graqa. Para a congregagdo do de5o, o illnor lt'rrt'tto t'o itlttde desposS-lo constitufam assuntos triviais, em si mt:srn(ls lla<lit s<'tt,itr

ilus6o; mesmo assim 6 possfvel que mais de um dos vclhcls irtnitos,tlt

dasse cobiqando as jovens como rubis e que tal o dessem a t'tr[<'tttlt'r,lo

pai delas. Mas o deSo declarara que para ele e sua vocaqAo as f illtits cl'itttt

sua m6o direita e esquerda. Quem quereria privii-lo clelas? ll as lilrtttosits

garotas haviam crescido sob o ideal do amor celeste; clcle cstavitrll rr'plt'

tas e ndo se deixavam ser tocadas pelas chamas deste mtttr<l<1.

E mesmo assim perturbaram a paz de espfrito dc tltlis t'itv.tlltt'itrrs

provenientes do vasto mundo fora de Berlevaag.

Havia um jovem oficial chamado Lorens Loewcnhiclrl, tlttc rk's

frutara de uma vida de dissipaqoes na cidade para on(lc frtra tlt'sl.lt,trkr

e contraira dfvidas. No ano de 1854, quando Martine tinha a irlirrk,rk'

dezoito, e Philippa, dezessete, um indignado pai obrigt-ru-tl a litzt't' ttttt,t

visita mensal d tia em sua velha casa de campo em ['-ossLlm, pt't'lo rlt'

Berlevaag, onde teria tempo de refletir e melhorar seus hlillitos. ('t't'lrr

clia, cavalgou at6 a cidade e avistou Martine na praqa clo nr<'rtitrlo. l)rr

alto da montaria, fitou a linda moga, que devolveu o olh,ilr ao ltt'lo r,t

valeiro. Depois que ela passou e desapareceu, ficou sem sallt'r st'rk'vi,r

acreditar nos pr6prios olhos.

Na famflia Loewenhielm havia algo como uma lenda tlt't;ttt' rtlrrilrr

tempo antes um dos ancestrais desposara uma huldre, ttm csll(rilo rl,rs

montanhas norueguesas, tAo bela que o ar a seu redor cirltila t' st' itgil,t

Desde entAo, de tempos em tempos, alguns membros da familitr [orltitl'itttt

se clarividentes. O jovem Lorens atd o momento ndcl tom.lril tii'ttri,l rlt'

nenhum dom espiritual particular em sua pr6pria natureztt. Mits ttittlttck'

preciso instante saltou diante de seus olhos uma visdo sr,hbita, llotlt'trrs,t,

de uma vida mais elevada e pura, sem credores, cartas de ctl[riytr;it ott

serm6es paternos, Sem desagraddveis e secretas dores de ctiust'i.rtt i,r t'

com um gentil anlo de cabelos dourados a gui6-lo e recompcrlsii-lo

Por interm6dio da tia devota conseguiu ser admitid<) Ild (ilsil (l()

deSo e viu que Martine era ainda mais adorSvel scm a touctl. Scg,tri,r str,r

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figr-rra csguil (r)nt ollrirr'<k'vcncragAo, mas abominava e desprezava a

{igrrra rlrrt'r'lt' prtiprio fazia em sua presenEa. Ficava atdnito e chocado( or1r () lat<t de n5o conseguir encontrar absolutamente nada para dizer

c nenhuma inspiragSo no copo d'iigua pousado diante dele. 'A mise-

ric6rdia e a verdader caros irmdos, encontraram uma e outra'i dizia o

dedo.'A retidSo e a bem*aventuranqa beijaram uma d outral'E os pen-samentos do jovem estavam no momento em que Lorens e Martine es-

tariam beijando um ao outro. Repetia sua visita regularmente, e a cada

vez sentia-se meno4 mais insignificante e desprezfvel.

Quando voltava A noite para a casa da tia, chutava as paredes do

quarto com as reluzentes botas de montaria; chegou atd a deitar a ca-

beqa na mesa e chorar.

No tiltimo dia de sua estadia fez uma fltima tentativa de comu-nicar os sentimentos a Martine. At6 entdo, sempre fora f6cil para

ele dizer a uma garota bonita que a amava, mas as palavras ternas

ficaram presas em sua garganta quando fitou o rosto da donzela.

Ap6s se despedir dos demais, Martine o acompanhou d porta com

um castigal na mdo. A luz brilhou em seus liibios e projetou-lheno rosto as sombras de seus longos cilios. Estava prestes a sair em

mudo desespero quando ali na soleira subitamente agarrou sua mdo

e apertou-a contra os liibios."Vou partir para sempre!", gemeu. "Nunca, nunca mais a vereil Pois

aprendi aqui que o destino 6 severo e que neste mundo hii coisas im-possiveisl"

Ao ver-se de volta d cidade com sua guarnigSo acreditou que a

aventura terminara, descobrindo que n6o gostava nem um pouco de

pensar naquilo. Enquanto os outros jovens oficiais contavam seus casos

amorosos, permanecia silencioso a respeito do seu. Pois, visto do ran-cho dos oficiais, o que equivale a dizer, visto aos olhos deles, a hist6riaera deplorSvel. Como fora acontecer de um tenente dos hussardos se

deixar derrotar e frustrar por um punhado de sect6rios melanc6licos,

nas austeras depend€ncias sem tapetes da casa de um velho deSo?

Entdo teve medo; o pAnico se abateu sobre ele. Seria a loucura lanri-

liar que o levava a continuar carregando consigo a imagem sonha(lorit (l('

uma jovem tAo bela que fazia o ar em tomo brilhar de pureza e santi<lirtk'/

Ndo queria ser um sonhador; queria ser como seus irmSos de armas.

Assim, procurou se controlar e, no maior esforqo de sua juvt'ntrrtk',

determinou-se a esquecer o ocorrido em Berlevaag. Dali em (liartl(', r('-

solveu, olharia para a frente, n6o para o passado. Iria se conccrtlritr ('rll

sua carreira e logo chegaria o dia em que faria uma fi6lura lrrilhirrrlc

num mundo brilhante.

Sua mde ficou satisfeita com o resultado da estadia em l;ossutn t't'trt

suas cartas expressava toda a gratidSo d tia. Mal sabia ela por rlut't'slritnhos, tortuosos caminhos o filho alcangara aquela feliz perspectiva tnoritl.

O ambicioso jovem oficial em pouco tempo chamou a atenqiio tlos

superiores e foi promovido com rapidez extraordiniiria. Enviaram-rlt) l)rtnr

Franga e Rfssia e ao regressar casou-se com uma dama de comparrlriu rlir

rainha Sofia. Nesses altos cfrculos movia-se com graqa e leveza, satisfi'ilo

com seu meio e consigo mesmo. Chegou at6, com o correr do tempo, a tirirr

beneficio das palavras e atos que ficaram gravados em sua mente rt<r ( asrr

do de6o, pois o comportamento devoto agora estava em moda na turlt'.

Na casa amarela de Berlevaag, Philippa ds vezes desviava a ('()r'r'.

versa para o belo e silencioso jovem que tdo subitamente apar('('('rir

para do mesmo modo tornar a desaparecer. A irmd mais velha t'rtti-ro

respondia delicadamente, com o rosto sereno, imperturbdvel, e <'tr<rrn-

trava outros assuntos para discutir.

ilL O namorado d.e Philippa

Um ano mais tarde uma pessoa ainda mais notiivel do que o tenctrlt.

Loewenhielm foi a Berlevaag.

O grande cantor Achille Papin, de Paris, cantara por um ano na 6pcra

Real, em Estocolmo, e lii, como em toda parte, arrebatara seu pfibli<'o.

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Certa .oite, uma dama da corte, que sonhava em ter um romance com oartista, descrevera-lhe a paisagem selvagem e grandiosa da Noruega. suapr6pria natureza romantica foi agitada pelo rerato e ele incluiu no trajetode volta d Franga uma passagem pela costa norueguesa. por6m, sentiu-sepequeno'aquele cendrio sublime; sem ningudm com quem conversalmergulhou numa melancolia em que via a si mesmo como um velho, emfim de carreira, at6 que num domingo, quando n6o conseguia imaginaroutra coisa para faze4 foi A igreja e ouvilr philippa cantar,

fnt6o, num lampejo, percebeu e compreendeu tudo. pois ali esta_vam os picos nevados, as flores selvagens e as brancas noites n6rdicastraduzidas em sua pr6pria linguagem musical e revadas at6 ere pera vozde uma jovem. Como Lorens Lowenhielm, teve uma visio.

"Deus Todo-poderoso,,, pensou, ,,Vosso poder ndo conhece limites evossa miseric6rdia ereva-se at6 as nuvens! E aqui estii uma prima-donada 6pera que vai deixar paris a seus pdsl,

Achille Papin, nessa 6poca, era um belo quarent5o, com cabelospretos encaracolados e boca vermelha. A icrolatria de naq6es nao o es_tragara; era uma pessoa de bom coragdo e honesto consigo mesmo.

Foi direto d casa amarela, deu seu nome _ que para o dedo n6odizia nada - e expricor que passava uma estadia em Berlevaag paracuidar da sar_ide e, enquanto isso, ficaria feliz em ter a jovem clamacomo slla pupila.

NAo mencionorr a 6pera de paris, mas descreveu minuciosamentecomo seria lindo o canto da senhorita philippa na igreja, para a gl6riado Senhor,

Em cleterminado momento cometeu um deslize, pois quando ode6o perguntou se era um catrilico romano, respondeu segundo a ver-dade, e o velho cl6rigo, que jamais vira um cat6lico romano, ficou umtanto p6lido' Mesmo assim, o de6o alegrou-se de pocrer exercitar o fian-cds, que o lembrava seus dias de juventude, quando estudara as obrasdo grande escritor luterano franc€s Lefevre d'Etaples. E, como ningu€mera capaz de fazer frente a Achille papin quando de fato punha todo seu

empenho num assunto, no fim o pai acabou concordando, e obscrvorr

para a filha: "Os caminhos do Senhor correm pelo oceano e pelas m()lrt(r*

nhas nevadas, onde o olhar do homem nAo enxerga nenhum rastru".

Assim, o grande cantor llancds e a jovem aprendiz norueguesa pus('-

ram*se a trabalhar juntos. As expectativas de Achille tornaram-se uma (('r-

teza e a certeza transformou-se em €xtase. Pensava: "Errei em pcnsi)r (pr('

estava ficando velho. Meus maiores triunfos encontram-se diante tk' rrirrrlO mundo vai voltar a acreditar em milagres quando cantarmos juntos!'i

Ap6s algum tempo, ndo conseguiu mais guardar seus st-rnhos llil'irsi mesmo e contou a Philippa sobre eles.

Ela iria, disse, subir como uma estrela acima de que qtralqr-rt'r rliv,r

do passado ou do presente. O imperador e a imperatriz, os prin< i1lcs, irs

nobres damas e bels esprits de Paris iriam ouvi-la e verter l6grirnls. As

pessoas comuns tamb6m iriam vener6*la e levaria consolo c lor(,ir iros

injustigados e oprimidos. Quando deixasse a Grand Op6ra rk' Irrirr.os

clados com o mestre, a multiddo a tiraria do cavalo e a contlrrz.ir"i,r rros

ombros ao Caf6 Anglais, onde uma ceia magnifica a ag;uardava.

Philippa nio repetiu essas expectativas para seu pai ou srrrr ilnra r'essa foi a primeira vez em sua vida que guardava um segredo tlck's.

O professor agora dava A pupila o papel de Zerlina na ti;lt'rl l)olGiovanni, de Mozart, para estudar. Ele pr6prio, como tantas vt'zt's irnlcs,

cantaria o papel de Don Giovanni.

Iamais em sua vida cantara como agora. No dueto do se'gLtn<lo itlo

- chamado o dueto da sedugSo - flutuava de emoqSo com a mrisir.r tt'lestial e as vozes celestiais. Quando a fltima nota comoventc agonizott,

agarrou as mdos de Philippa, puxou-a para junto de si e bcijou-a solt'

nemente, como um noivo beijaria a noiva diante do altar. Errtio a sollorr.

Pois o momento era sublime demais para quaisquer outros g,cslos orr

palavras; Mozart em pessoa olhava os dois lii do alto.

Philippa foi para casa, disse ao pai que n5o queria mais sllrt'r'de aulas de canto e pediu-lhe para escrever e dizer tal coisa a Mott'

sieur Papin.

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O dedo disse: ,,E os caminhos do Senhor corremcrianga'i

pelos rios, minha

Quando Achille recebeu a carta do deAo, sentou_se imovel por umahora' Pensou: "Eu me enga'ei. Meu dia chegou. Nunca mais serei o di-vino Papin. E este pobre jardim inculto do mundo perdeu seu rouxinol'i

Um pouco depois, pensou: ,,Fico me perguntando qual serii o pro_

blema com aquela diabinha? Serd que por acaso a beijei?,iNo fim, pensou: ,,perdi minha vida por um beijo e ndo guardo amenor lembranqa desse beijol Don Giovanni beijou Zerlinae Achille

Papin 6 quem paga! Tal 6 o destino do artista!,iNa casa do deAo, Martine pressentia que a questAo era mais pro_

funda do que parecia e perscrutava o rosto da irm'. por um momento,com um ligeiro tremo4 tamb6m imaginou que o cavalheiro cat6licoromano tarvez houvesse tentado beijar philippa. Mas nao imaginavaque a irmS pudesse ter ficado surpresa e aternorizada com algo de suapr6pria natureza.

Achille papin tomou o primeiro barco que saiu de Berlevaag.Sobre o visitante do grande mundo, as irm5s falaram muito pouco;

faltavam-lhes as palavras com que discuti_lo.

IV. Uma carta de paris

Quinze anos depois, numa noite chuvosa de junho, em r87r, a cordada campainha da casa amarela foi puxacra rriolentamente tr6s vezes.As donas da casa abr''lram a porta para uma rnulher robusta, morena,mortalmente p.ilida, com um pacote no brago, que as litou com olhosarregalados, deu um passo adiante e tombou sem sentidos sobre o li-miar da porta' Q'ando as senhoras assustadas trouxeram-na de novo dconsci€ncia, ela se sentou, langou-lhes mais um relance com seus olhosfundos e, o tempo todo sem dizer palavra, tateou as roupas rimidas eapareceu com uma carta, qne lhes estendeu.

A carta era de fato enderegada a elas, mas escrita em francOs. As

irm6s encostaram a cabega uma na outra e a leram. Dizia o seguintt':

Senhoras!

Lembrl.m se de ninr? Ah, quando penso nas senhoras tneu corngdo st' t'trtltr

de l{rios do vale! Serd a lembranEa d,a d-evoEdo de um francts cnpuz lt to

fltover seus coragdes a ponto dt salvar a vida de uma t'rurcesa?A portadora desta carta, Madame Babette Hersant, como nrinht lirrdt

inrperatriz em pcssoa, teve rle J'ugir de Paris. A guena civil as.solrr rrrrssrrs

ruas. Mdos de Jranceses t?m d,erranndo sangu( t'ranc?s.0.s rrubrrs r.orrr

munards, em deJesa dos Direitos do Homem, loram esnrnrludos t'nrtirlttiIados. O marido e o Jilho de Madame Hersanl, anrbos turiuttrlts rnltrlrirriros ftmininos, t'orarn t'uzilados. Ela ntesma foi presa como unil pttlrolrtrtr(palrLvra rlue ( usada para ntulheres que aleiarn fogo is casns rotrr yrtrrilr'o)

e escapou por poltco das mdos sanguiniirias do genernl Gulli.fJtl. l,crilrrt

todas suas posses e nio ousa permanccer nn Franqa.

Um sobrinho dela f cozinheiro a bord,o do Anna Colhiorrnssort, corrr

destino a Cristifinia (que (, segund,o ueio, a capital da Norucgn), r, tottst:rluirr

uma oportunid.ade de ernbarcar sua lia. E ogora seu tihirro c lristt rrtrrrso!

Sabendo rpe Jui outrora unt visitante de seu maqn(fito puls, vtttt tlrmim, perguntando se tenho con'hecimento de algunm bott qtnlr lrr Nor.lr'4rr,

e me suplica que, se tal Jor o caso,lhe t'orneed uma ctrln pnrt r.s.sr,s 1rrrr(,/ls.Estas duas palavras, "boo. gente", inrcdiatanrcnte trouxcrum nrr ditttlr losolhos sua imagem, sagradtr pota nrcu coragdo. Eu n conJio ris srrrIrrlrrs.

Como fardpara chegar de Cristifrnia aBerlevtag, ndo Ir:nho idtiu, tr'rrlo rs

quecido o mapa LIa Noruega. Mas ( uma t'rancesa e tlest'obririio tltu,, nrt'snto

em sua misfria, aind-a encontrn desentbarago, granrleza r r.sloicislrro.

lnvejo-a etn seu desespero: ela se verd diantr tlt sal.$ ro.rlo.5.

Quand.o a receberent ntisericordiosantente , tnvitnt ntn yt'ttsnrnrttlo rtti

sericordioso para mim na Franga.

Por quinze anos, senhorila Philippa, lamentei qu( suil vnz, utio lolylssr'

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enchido a Grand, Optra de Paris. euand,o, esla noite, penso na senhora,sern divida cercad.a por uma fam{lia t'eliz e amorosa, e em min, velho,

solitdrio, esquecid,o pelos que outrora me aplaudiram e adoraram, sintoque deve ter escolhid.o a melhor parte d.a vid.a. O rpe ( a t'ama? O que ( a

gl6ria? O trtmilo nos aguarda a tod.os!

E aind,o. assim, minha Zerlina perditla, e ainda rcsirn, soprnno das

rtgiies gelad,as!, i med.ida que escrevo, sinto que o timulo ndo f o t'im.No Para{so, ouvirei sua voz novamente. Ld a senhora cantard., senr med.os

ou escrrtpulos, como Deus quis que canttsse. Ld serd a grande o.rtista que

Deus planejou. Ah, como encsntari os anjos.

Babette sabe cozinhar.

Dignem se receber, minhas senhoras, a humild.e homenagem rlo anrigode outrora,

ACHILLE PAPIN

No p6 da p6gina, a titulo de p.s., iam desenhados com capricho os dois pri-meiros compassos do dueto entre Don Giovanr-ri e Zerlina, assim:

As duas irm6s, at6 o momento, contavam apenas com uma p('(ltl('llil

empregada de quinze anos para ajudS-las na casa e sentiam tlttt'tti'ttr

podiam se dar ao luxo de contratar uma governanta mais vt'lha t't'xpr'riente. Mas Babette afirmou que serviria a boa gente de MotrsicLtr l)itpitt

de graga e que n6o aceitaria trabalhar para mais ningu6m. St'a mitlttlits

sem embora, provavelmente morreria. Babette permaneceLl tla (itsit (l(ts

filhas do dedo por doze anos, at6 a 6poca desta hist6ria.

v. I\atureza-morta

Babette chegara exaurida e com olhar esgazeado, como tttn itttitlt,tlsendo caqado, mas em seu novo ambiente de cordialidacle log,<t rr<k;trilirr

a apar€ncia de uma criada confiiivel e respeit6vel. Antes, pilr('('t'l"il (tlttrt

mendiga; agora, mostrava-se uma conquistadora. As feiq6cs s('r('ttits (' ()

olhar firme e profundo tinham qualidades magn6ticas; sob st'tts olltos,

as coisas se moviam, sem fazer rufdo, para o lugar apropriado.

As donas da casa, no inicio, estremeceram levemente, tal t<lttttt tt

dedo, no passado, ante a id6ia de acolher uma papista sob selt [<'[o. Mirs

n5o lhes agradava aborrecer sua semelhante, uma criatura QUC [)rrss<rrir

por t6o duras provaq6es, com catequizaq6es; tampouco estavam tll(lil(l

seguras do pr6prio franc6s. Tacitamente concordaram que o cxcrllllo rlt'uma boa vida luterana seria o melhor meio de converter a criada. l)t'sst'

modo, a presenqa de Babette na casa tornou-se, por assim clizcr, ttrtt

aguilhdo moral para suas moradoras.

Desconliaram da afirmativa de Monsieur Papin de que Babcttt' prr

dia cozinhar. Na Franga, elas sabiam, as pessoas comiam rds. Mostritritttt

a Babette como preparar o bacalhau seco e uma sopa de cerveja tortl

pdo; durante a demonstragSo, o rosto da francesa ficou absolutdDt('tllt'

impassfvel. Mas em uma semana Babette preparava bacalhar-r s('(() ('

sopa de cerveja com pdo t6o bem quanto qualquer um nascido e criatltr

em Berle-vaag.

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A id6ia do luxo e da extravagAncia dos franceses foi o ponto se_guinte a causar alarme e apreensao as filhas do dedo. No primeiro diaem que Babette ficou a seu serviqo, chamaram-na e expricaram-rhe queeram pobres e que, para elas, comicras sofisticadas eram pecado. A ali-mentagao delas tinha de ser o mais simples possivel; eram os paner6es cresopa e cestas para os pobres que importavam. Babette balangou a cabeqa;quando menina, informou ds senhoras, fora cozinheira de um velho pa-dre que era um santo' Ao ouvir isso, as irmds resorveram suplantar opadre franc€s em ascetismo. E logo descobriram quc, d partir do dia emque Babette encarregou-se da administraqS0 da casa, seus gastos forammilagrosamente reduzidos e as paneras de sopa e cestas adquiriram umpoder novo e misterioso de estimular e fortarecer os pobres e enfermos.

o mundo do rado de fora da casa amarela tamb.m tomou conhe-cimento dos dotes de Babette. A refugiada jamais aprendeu a falar a lin-gua de seu novo pafs, mas com seu noruegu.s estropiado pechinchavapreqos com os mais empedernidos comerciantes de Berlevaag. Era tidacom admirag6o no cais e na praqa do mercado.

Os velhos irmAos e irm6s, que de infcio olharam com desconfiangapara a estrangeira em seu meio, perceberam a feriz mudanqa na vidadas irmazinhas e rejubilaram-se com isso e disso tiraram proveito. Des-cobriram que os problemas e preocupag6es haviam desaparecido comoque por encanto da exist€ncia deras e que agora tinham dinheiro paradar, tempo para as queixas e confid€ncias dos velhos amigos e pazpara meditar sobre assuntos cerestiais. com o correr do tempo, n50foram poucos os irmaos e irm5s que inclufram o nome de Babette emsuas oragoes, agradecendo a Deus pera sirenciosa estrangeira, a trigueiraMarta na casa das duas craras Marias. A pedra que os construtoresquase recusaram tornara_se a pedra angular.

As senhoras da casa amarela eram as fnicas a saber que suapedra fundamental apresentava uma caracterfstica misteriosa e alar_mante, como que de certo modo relacionada d pedra preta de Meca, dpr6pria Caaba.

Dificilmente Babette fazia ref'er€ncia d sua vida pregressa. Qr.rantkr,nos primeiros dias, as irmds gentilmente prestaram-lhe as condol0tr<,iirs

por suas perdas, tiveram contato com aquela grandeza e estoicisnro so

bre os quais Monsieur Papin havia escrito. "O que as senhoras qut'riirrrr/'irespondera, dando cle ombros. "E o destinoi'

Mas um dia, inesperadamente, informou-as que por muilos ,rrros

tivera um bilhete da loteria francesa e que um amigo fiel cm l)aris rrrn

tinuava a renovS-lo para ela todos os anos. Uma hora, podia gunltirl ogrand.prix de dez mil francos. Ao ouvir isso, sentiram que a vellr.r llolsir r lt.

tapete de sua cozinheira era feita de um tapete mSgico; num <lit<lo nro

mento, ela poderia montS-la e ser levada para Ionge, de volta a l)irlis.

E acontecia de Martine ou Philippa falarem com llabt'ttc t. rrilr olr

terem resposta e ficarem se perguntando se ao menos ela orrvirir o r1rrr.

haviam dito. Encontravam-na na cozinha, os cotovelos fincatlos nir nl(. ,r

e as t€mporas nas m6os, perdida no estudo de um pesado livro ncgrrr

que secretamente suspeitavam ser um livro de oraq6es paltislir. ()rr t.rr

t6o ela se sentava im6vel na cadeira tle tr6s pernas da cozirrhir, (()nl (t\fortes mAos no colo e os olhos escuros bem abertos, t6o r.nigrruilitir r,

fatal quanto uma pitonisa em sua tripode. Em momentos r'onlo r.sscs

percebiam que Babette era profunda e que no abismo clc st'rr st'r' lrirvi,r

paix6es, havia lembranqas e desejos sobre os quais nada sabilrn.

Um pequeno calafrio percorreu-as e bem lii no fr-rnrlo [)('r)sinilnr:"Quem sabe afinal de contas ndo tenha sido de fato uma pilrolursr".

vt. A boa sorte de Babette

O dia r5 de dezembro teria sido o cent6simo aniversiirio clo <l<'iio.

Suas filhas havia muito ansiavam por esse dia e desejavlrrr rtlt'lrriilo, como se seu estimado pai estivesse ainda entre os discflltrl<ls. Assirrr,

foi triste e incompreensivel que naquele ano a disc6rclia t' a <lissr.rrs,io

houvessem surgido entre o rebanho. Envidaram esforqos 1lar,r olrlt'l' p,rz,

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mas estavam cienles de que haviam fracassado. Era como se o admiriivele afetuoso vigor da personalidade de seu pai tivesse evaporado, assimcomo o analg.sico de Hoffrnann se deixado na prateleira numa garrafbsem rolha. E sua partida deixara a porta entreaberta para coisas at6 en_tdo desconhecidas das duas irm6s, muito mais jovens do que os firhosespirituais de seu pai. De um passado meio s.culo distante, quando asovelhas sem pastor haviam se extraviado pelas montanhas, hispedes si-nistros, nos calcanhares dos devotos, aproveitaram a brecha po.o p"r-,"-trar sem serem convidados e lanqaram sobre os pequenos c6modos frioe escuridSo. Pecados dos verhos irmaos e irmds vieram d tona com umremorso tardio e excruciante como dor de dente, e pecados de outroscontra eles com o ressentimento amargo do sangue envenenado.

Havia na congregaqdo duas verhas senhoras que antes da conver-s50 haviam se difamado mutuamente, tendo assim arruinado os respec-tivos casamentos e uma heranga. Agora, eram incapazes de se lembrarde acontecimentos do dia anterior ou de uma semana antes, mas naoesqueciam esse agravo de quarenta anos no passado e continuavama remoer antigas hist6rias, rosnando uma para a outra. Havia um ve_lho irm'o que subitamente se lembrou de como outro irmdo, quarentae cinco anos antes, o tapeara num neg6cio; talvez houvesse desejadoapagar o assunto de sua mente, mas aquilo permanecia cravado alicomo uma ferida purulenta. Havia um velho e honrado comandantede navio e uma vifva enrugada e devota que, na juventude, quandoela era esposa de outro homem, houveram sido amantes. Urtimamente,ambos comeqaram a se afligi4, enquanto tiravam o fardo da culpa dospr6prios ombros e o jogavam um sobre o outro, para depois assumi*lonovamente, preocupando-se com as possiveis conseqtiencias terrfveis,por toda a eternidade, para si mesmos, provocadas pela pessoa que nopassado jurararam amar. Ficavam muito p.ilidos durante as reuni6es nacasa amarela e evitavam o olhar um do outro.

A medida que a comemoraqAo se aproximava, Martine e philippasentiam cada vez mais o peso da responsabilidade. Iria o pai que sempre

lhes fora fiel olhar para as filhas l5 de cima e considerii-las anfitrir'is

injustas? Discutiam o assunto bastante entre si e repetiam as palavras

de seu pai: que os caminhos do Senhor correm at6 pelo mar strlgatkr

e pelas montanhas cobertas de neve, onde o olhar do homem nio t'rr-xerga nenhum rastro.

Certo dia, nesse verdo, o correio trouxe uma carta da Frang:a pirrrr

Madame Babette Hersant. Era uma coisa em si mesma surprec'rr<lcrrlt',

pois ao longo de doze anos Babette jamais recebera carta algtrml. As

senhoras perguntavam-se o que poderia ela conter? Levaram-rra ir t'o

zinha para v6-la abrir e ler a carta. Babette a abriu, leu, ergueu os ollros

do papel para o rosto das duas mulheres e disse-lhes que safra scrr rrri

mero na loteria francesa. Ela havia ganho dez mil francos.

A notfcia causou tal impressSo nas duas irmds que ao krngo rk'

todo um minuto foram incapazes de dizer palavra. Elas mcsnrls csl,r

vam acostumadas a receber sua pensSo modesta em pequc'nils l)ilr(('l(rs;era lhes clificil at6 imaginar a quantia de dez mil francos clt'ulrrir vt'2.

EntSo apertaram a m6o de Babette, suas pr6prias mSos ligeiramt'rrlc lrr:mulas. Nunca haviam apertado a m6o de uma pessoa que um ntirrrrlo

antes entrara em posse de dez mil francos.

Ap6s alguns instantes deram-se conta de que aquele acorrlt'r irlrcrrlo

dizia respeito tanto a elas quanto a Babette. A nagSo francesa, s<'rrliirrrr,

assomava lentamente no horizonte da criada e, de modo (()rr('sl)()rl

dente, a pr6pria exist€ncia delas afundava-lhes sob os p6s. Os <lt'z rrril

francos que a tornaram rica... quSo pobre n5o tornaram o Crts<l nir {luirl

servira! Uma a uma, antigas ansiedades e preocupag6es esquccitlirs t o

meqaram a botar as cabecinhas para fora e espiS-las dos quatro <irrrlos

da cozinha. As felicitaq6es morriam em seus l6bios e as dutls st'rrlrorirs

devotas envergonhavam-se do pr6prio sildncio.

Ao longo dos dias seguintes, anunciaram a notfcia para os arnigos

com alegria estampada no rosto, mas fazia-lhes bem ver o roskl tk'sscs

amigos ganhar uma expressSo triste d medida que a escutavam. Nirrgutirrr,

era o sentimento geral da irmandade, podia realmente p6r a cullxt r.nl

Page 9: A festa de babette (karen blixen)

Babette: piissaros rcgressam a seus ninhos e seres humanos ao pais ondenasceram' Mas serS qr,re a boa e fler criada se dava conta de que partindode Berlevaag estaria deixando tanta gente velha e pobre mergulhada emafligao' Suas caras irm'zinhas ndo teriam mais tempo para os enfbrmos edesvalidos' Sem sombra de drrvida, roterias eram uma coisa blasfema.

No devido tempo o dinheiro chegou por escrit6rios de CristiAnia eBerlevaag' As cruas senhoras ajudaram Babette a contii-ro e deram_rheuma caixa para guard.i-lo. Manusearam e ganharam familiaridade comos agourentos maqos de papel.

NAo ousavam perguntar a Babette sobre a data de sua partida. Ou_sariam esperar que permanecesse com clas ate o dia 15 cle clezembro?As donas da casa nunca sabiam muito bem at6 que ponto a cozi_nheira acompanhava ou compreenclia sucrs conversas particulares. As-sim' ficaram surpresas quancro, numa noite de seternbro, Babette entrouna sala de visitas, mais humilde ou submissa do que jamais a viram,para pedir'm lavor. Rogava, rlisse, quc a rleix,rssem prcpardr um janlar

de comemoragAo para o aniversiirio do cleao.Ndo fora inteng5o das senhoras que hor:vesse jantar algum. Umaceia muito simples com uma xfcara de cal€ era a refeigao mais suntuosad qual jii haviam levado qualquer convidtrdo a sentar. Mas os olhosnegros de Irabette eram ansiosos e supricantes como os de um cachorro;

concordaram em que fizesse as coisas do seu jeito. Ao ouvir isso, o rostoda cozinheira se iluminou.fulas tinha mais a dizer. eueria, disse, fazer um jantar franc6s, umaut€ntico jantar franc€s, dessa r-inica vez. Martine e philippa olharam

uma para a outra. NAo gostaram da icl6ia; pressentiam que ndo strbiamo que aquilo poderia implicar' Mas a pr6pria estranheza do pedido asdesarmou. NAo tivcrarprepaiar um aut6nticffi?:.T.:t::rt*

que fazer frente d proposta de

Babette soltou um profundo suspiro de feliciclade, mas conti'uouim6vel' Tinha ainda uma prece a fazer. Rogava as donas da casa que lhepermitissem pagar o jantar francds com o pr6prio dinheiro.

"N5o, Babette!", exclamaram as senhoras. Como podia imag,irr,rr'

uma coisa dessas? Acreditava ela que lhe permitiriam gastar s('u l)1.(.

cioso dinheiro com comida e bebida... ou com elas? Ndo, Babttlr', rk'jeito nenhum.

Babette deu um passo d frente. Havia algo de formiddvt.l rrcsst'

movimento, como uma onda se avolumando. Teria ela arremcti<lo rlcssir

forma, em r87r, para fincar uma bandeira vermelha numa lrarririrrl,r','

Falou, em seu esquisito noruegu€s, com a clSssica eloqiidncia [i'irn<t's;r.

Sua voz crd (omt-l uma cangio.

Senhoras! Alguma vez, nesses doze anos, pedira algtrm lavor/ N,iol

E por que ndo? As senhoras, que elevam suas preces toclos os rli,rs, rrrn

scguem imaginar o que significa para um coraq6o hurnano rriio lcr'pn.rr.alguma a fazer? Para o qu6 Babette oraria? Nada! Esta noitr', linlrir rrnr,r

prece a faze4 do fundo de seu coragSo. Ndo sentem esta noitt', rrrirrlr,r.,

senhoras, ser sua incumb€ncia condescender-lhe com it n1('slnil irlcgli,r

com que o bom Deus tem condesccndido a elas?

As mulheres, por um minuto, nada disseram. Babcttt' lirrlrir nrziro;

era a primeira coisa que pedia em doze anos; muito provirvr.lrrr.rrlr.

seria a fltima. Refletiram um pouco. Afinal, disseram il si nrcsrrr.rs, ,r r o

zinha deles era melhor que a delas e um jantar ndo ltrria <lili'rcn<;ir p,rr',r

uma pessoa que possufa dez mil francos.

Seu conscntimento enfim mudou Babette complclamcrrl<.. l,r.rr r.l rr.

ram que na juventude fora uma linda mulher. E ficaraur irrirgirrirrrrlo st.

nessa hora elas pr6prias ndo haviam, pela primeira vcz, s<'[orrrir<Lr p,rr,r

ela a "boa gente" da carta de Achille Papin.

vtt. A tartaruga

Em novembro, Babette saiu de viagem.

Disse ds donas da casa que tinha alguns prcparativos pirrir lirzcl r.

precisaria de uma folga de uma semana ou dez rlias. O solrrirrlro, tlrrc

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outrora a levara at6 Cristiania, continuava a passar pela cidade em seunavio; tinha de v6-ro e conversar arguns assuntos com ele. Babetteera p.ssima marinheira; contava sobre sua fnica viagem maritima, daFranEa A Noruega, como a e.xperi€ncia mais terrivel de sua vida. Agoraestava estranhamente controrada; as mulheres sentiam que seu coraqdoj6 se achava na FranEa.

Dez dias depois, voltou a Berlevaag.Conseguira fazer os arranjos conforme clesejara?, perguntaram asduas' sim' respondeu, havia se encontrado com o sobrinho e rhe pas-

sado uma lista de artigos para trazer da Franqa. para Martine e philippa,aquilo era uma decraragdo obscura, mas n50 queriam se afligir em ralarde sua partida, de modo que nAo fizeram mais pergr-rnras.

o -

Babette ficou um pouco nervosa ao longo das semanas seguintcs.Mas' certo dia, em dezembro, anunciou triunfante as pat.nus',rue osartigos haviam chegado em cristidnia, dc 16 foram balcreados c, nesseexato clia, tinham chegado a Berlcvaag. E, acrescentou, havia combi_nado com um velho senhor corn Llm carri.ho de m50 para transportS-los do porto at6 a casa.

Mas que artigos, Babette?, perguntaram as senhoras. Ora, mada_mes, replicou Babette, os ingredientes cro jantar de anivcrs.irio. Louvadoseja Deus, chegaram todos em bom estado de paris.

A essa altura, Babette, como o g€nio engarrafado do conto de fadas,inchara e crescera numa dimensao tar que as donas da casa sentiram-se pequenas diarrte dela. viam agora o jar-rtar frances vincro em suadiregSo' uma coisa de natureza e arca'ce i.contror6veis. Mas jamais emsuas vidas haviam quebraclo uma promessa; entregaram-se as m50s desua cozinheira.

Mesmo assim, quando Martine viu um carrinho cre m60 abarro-tado de garrafas entrando pela cozinha, ficou pararisada. Tocou-as eergueu uma delas. ',O que 6 isto na garrafa, Babette?,i perguntou em vozbaixa. "Seria vinho?,, ,,Vi^ho,

madame!?,,, retrucou Babette. ,,NAo, ma_

dame. E um Clos Vougeot 1846l,,Ap6s um minuto, acrescentou: ,,De

Philippc, na Rue Montorgueil!'i Martine jamais suspeitara que vinltos

pLrdessem ter nome, ent5o ficou em sildncio.

Mais para o final da tarde, abriu a porta ao ouvir o sino rla <irrtt

painha e novamente viu-se diantc do carrinho de mdo, desstr vt'z t'ont

um peqLleno marujo ruivo atriis clele, como se o velho houvesst' a t'ssit

altura ficado exausto. O jovem sorriu para ela conforme ergtria ttt.tt olr

jeto grancle, indefinfvel, do carrinho. A luz do lampi6o, paret:ia rrrrt lipo

cle pedra vercle-escura, mas ao ser pousada no chSo da cclzirrhl, sulrr

tamente pds para fora uma cabcga cm forma cle serpente c nrov('u s('

ligeiramente de um laclo a outro. Martine j.i vira desenhos clt' litrlitt'ttgits

e chcgara at6 a possuir uma ttrrtaruga dc cstimag.lo, qlratt<lo tri,ttrt,,t,

mas aquela coisa era de um tamanho monstruoso, terrivcl <l<' st' ollrirt:

Retrocedeu cltr cozinha sem cmitir uma palavra.

N5o ousava contar d irm6 o que vira. Passor-r a noitc pritti<ittttcrtlr'

insone; pensava no pai e sentia quc justo na noite cle seu attivt'rsiit'io cl,r

c a irmd cediam sua casa para um sabir dc bruxas. Qr-ranclo t'ttIint ;rcgottno sono, teve um sonho tcrrivel, em que via Babette cttvt't.tt'ttittttlrt os

vclhos irmSos e irmds, Philippa e ela pr6pria.

Bem cedo de manhA cla se levantou, vestiu slla capa tit.tztt t's,tittpara a rlra escrura. Caminhou cle casa em casa, abriu cl cora{.io l)iuil ()s

irmSos e irm6s e confessou stta culptr. Ela e Philippi'r, dissc, rli() ll,rvi,url

tido md intenqdo; tinham condescendido com uma prece rlt'suir r t'iirrll

e ndo previram o que poderia advir daquilo. Agclra nio sallt'riir rlizt'r'

o qlle, no aniversdrio do pai, seria servido aos convidtrclos pitrit (()rlr('r'

e beber. N6o mencionou de fato a tartaruga, mas cra alg,o prt's<'ttlt't'rtt

seu rosto e sua voz.

A gente mais velha, como j5 se crontou, conhecia Mtrrtirrt' t' l'lrili;r1r,r

desde garotinhas; haviam-nas visto chorar amargamcntt' p<lr tittts,t rlt'

uma boneca quebrada. As lSgrimas de Martine trouxeram l.igrinrits ir sctts

pr6prios olhos. Reuniram-se d tarde e conversaram s<-rbrc o prolllt'tttit.

Antes de se separar outra vcz, promcteram uns i)cts <ttrtros (lu(', ('llt

nome de suas irmdzinhas, iriam, no grande dia, manter sil0rrt'io (luirlt() ,r

Page 11: A festa de babette (karen blixen)

qualquer tipo de comida ou bebida. Nada que pudesse ser posto diantedeles' fossem r's ou lesmas, arrancaria uma palavra de seus liibios.

"Mesmo assim", disse um irm'o de barbas brancas, ,,a lingua 6 umpequeno membro e jacta-se de grandes coisas. Nao nasceu homem ca_paz de domS-la; 6 um dem.nio rebelde, cheio de veneno mortffbro. Nodia de nosso mestre, limparemos nossas rfnguas de todo paladar e aspurificaremos de todo prazer ou aversS0 dos sentidos, resg.rurdundo-ase preservando-as para coisas mais elevadas de louvor . urao de graqasl,

Tdo poucas coisas j5 haviam acontecido na tranqri'a exist€nciada irmandade de Berlevaag que se sentiram nesse momento profunda-mente comovidos e elevacros. Apertaram as m50s sobre sua promessasolene e foi como se o estivessem fazendo diante do rosto do mestre.

vul O hino

No domingo de manha, comeqou a nevar, os alvos flocos cafam r'pidos eespessos; as pequenas vidragas da casa amarera ficaram forradas de neve.Mais cedo nesse dia um cavalarigo vindo de Fossum trouxe umbilhete ds duas irm5s. A velha senhora Loewenhielm ainda residia emsua casa de campo. Estava agora com noventa anos de idade e surdacomo uma porta, e perdera todo o sentido do olfato ou do paladar, Maslora uma das primeiras seguidoras do deio e nem sua enrermidadc,

nem a viagem de tren6 impediriam-na de honrar sua mem6ria. Agora,escrevia, o sobrinho, general Lorens Loewenhielm, aparecera inespera_damente para uma visita; farara com profunda veneraqao cro dedo e amulher rogava permissao para levii-lo junto. Fhria-lhe bem, pois o carorapaz parecia um pouco deprimido.

Martine e philippa, ao ler isso, lembraram_se do jovem oficial ede suas visitas; era um alivio para sua ansiedade presente falar a res-peito dos velhos dias felizes. Escreveram de volta para dizer que o ge_neral Loewenhierm seria bem-vindo. Tamb6m chamaram Babette para

informii-la que agora seriam doze para o jantar; acrescentaram qrl(' ()

tiltimo convidado vivera em Paris por v6rios anos. Babette parect'tr [i'liz

com a noticia e assegurou-lhes que a comida seria suficiente.

As anfitriSs fizeram seus pequenos preparativos na sala dc visilirs.

N6o ousavam pdr o p6 na cozinha, pois Babette arranjara misl<'rios,r

mente um ajudante de um navio do porto - o mesmo rapaz, 1tt'r<r'lrt'tt

Martine, que trouxera a tartaruga - para auxiliii-la na cozinha t' st'rvir imesa, de modo que agora a mulher morena e o rapaz- ruivo, cotno tttttit

bruxa com seu demdnio familiar, haviam tomado posse daqLrt'lits pitt^it

gens. As duas senhoras ndo saberiam dizer que chamas qtteimttvitttt tttt

que caldeirdes borbulhavam ali desde antes do amanhecer.

Toalhas e guardanapos e jogos de pratos haviam sido mitgit;tlttt'rtlt'

passados pela calandra uns e polidos outros, trouxeram-sc ('ol)()s ('llitt'

rafas para servir licores, s6 Babette sabia de onde. A casa <kl tlt'ilo tt,to

possufa doze cadeiras na sala de janta4 entAo o compriclo solli tlt'r rirr,rde cavalo fora trazido da sala de estar, que, sempre escassam('tltt'tttolri

liada, agora parecia estranhamente grande e desguarnecida st'nr clt'.

Martine e Philippa fizeram o melhor possivel partr embt'l<'zitr os tlo

minios deixados a elas. Fossem quais fossem os apertos tlttt'lltttlt'sst'tlt

eslar ) espera de seus convidados, em lodo cdso do menos lli() l)(l\s(tli,lltlfrio; por todo o dia, as irmAs alimentaram o imenso aqueccdtlr tollt lttt os

de bdtula. Penduraram uma coroa de zimbros em torno do rt'tritlo rlo 1r,ti

na parede e puseram castiqais na pequena mesa de costura <lt' stt,t ttl,tt',

sob ele; queimaram ramos de zimbro para espalhar um tlcl<lr ogrirrliivt'l

pelo ambiente. Nesse interim, perguntavam-se se com trqr-rclt' [t'tttlro rr

tren6 vindo de Fossum conseguiria chegar. No fim, arrumaralr-s(' (()ltr

seus melhores vestidos pretos velhos e os crucifixos de ouro tlit tt'isttr,t

Sentaram-se, cruzaram as m6os no colo e se consagraram a [)ctrs.

Os velhos irmSos e irm6s chegaram em pequenos SrLlP()s t't'ttltitram na sala lenta e solenemente.

O c6modo baixo com seu piso nu e mobflia parca era t:aro aos tlist i

pulos do de5o. AI6m de suas janelas ficava o vasto mundo. Visto <lo l.rtIr

Page 12: A festa de babette (karen blixen)

cle dentro o vasto muncftr em sll. arvura Jriber'al era sempre li^damentedelineado em rosd, nzul e vermelho pela lileira de jacintos nos peitoris.E no verro, qr'rando as janeras estavam abertas, o vasto mu'do era emol*durado por cortinas levemente esvoagantes cle branca musselina.

Nessa noite, os convidados foram acolhidos na soJeira pero calor eo cheiro agracldvel e fitaram o rosto clo estimado mestre engrinaldadopor sempre-vivas. seus corag6es, assim como os credos adormecidos, seaqueceram.

Um irmAo muito idoso, apcis alguns minutos de sil6.ci', com a voztr.mula comeqou a entoar um dos hinos escritcls pelo pr6prio mestre:

Jerusalint, mirha terra feliz,trontc para nrirtr senrpre qurrido...

Uma a Llma, as demais vozes se ju^taram, finas e alquebradas vozcs clemulheres, guturais vozeir6es de velhos confrades e lobos_do_mtr4, c acimacle toclas o lfmpicro soprano de philippa, Lrm pouco abaticro pela idade,mas ainda angclicar. Involuntariamente, o coro dera-se as mdos. cantaramo l.rino atd o fim, rnas ndo conscguiram parar e emendaram mtris um:

De scuida tle roupa ou alimento,Zeloso, e ttnla angristia...

As cl0nas da casa tranqiiilizaram-se um pouco ao ouvi-lo, e as paravrasda lerccira eslrole

Darias umn pedrn, unt r(ptil,De alimenlo a ten t'ilho suplicante.l ...

calaram fundo no coraqdo de Martine, enchendo_a de esperanga.Na metade desse hino sinos de tren6 foram ouvidos do la<io de

fora; os convidados de Fossum haviam chegado.

Martine e Philippa foram receb€-los e os acompanharam at(. tt sirlir

de visitas. A senhora Loewenhielm, com a idade, ficara um tanto rnirirl,t,

com um rosto pSlido como pergaminho e bastante impassivt'|. A st'rr

lado, o general Loewenhielm, alto, largo, rubicundo, com s('Ll rlltilirlrttt'

brilhante, o peito coberto de condecoraqdes, empertigavtr-sc t' t irtlil,rv,r

como uma ave ornamental, um fais6o dourado ou um pavito, t'ttt tttt'io

ao austero grupo preto de corvos e gralhas.

u. O general Loewenhielm

O gcneral Loewenhielm percorrera o trajeto de Frlssttm a llt'rlt'vir,rg rtttrtr

estranho eslado de espfrito. NAo visitava trquela partc <ltl llitfs ll.rviir llirtl,r

anos. Viera agora para um descanscl dc sua atribtrlada vi<ltt ttit trtt"lt', ltt,tt,

n6o encontrara descanso algum. A velha casa de Fosstttn t'rit lltsl,tltlt'

tranqr-iila e parecia de ccrto mcldo pateticamente peq[lcllil ('rll (t)llll),ll'rr

qdo as Tr-rlherias e ao Palticio cle Inverno. Mas havia ali utna Iigttt'it tt,trl,t

tranqtiila: o jovem tenente Loewenhielm passcava por s('tls itllost'ttlos.

O general Loewenhielm via a figura bela e csb<llta [)tlssilr tliitttlt'

dele. E, ao fazerisso, o jovem langava ao homem mais vc'lllo ttttt r,'t;titlo

relance de olhos e um sorriso, o sorriso altivo e arrogan[('t;ttt'it jttvt'rl

tude langa d idacle. O general poderia ter sorrido dc volta, gt'nlil t'trrtr

pouco triste, como a idade sorri para a juventude, n5o firsst'o lirlo rlt'

que nAo estava com a menor disposigSo para sorrisos; estava, trrttto ir li,t

escrevera, deprimido.

O general Loewenhielm conseguira tudo pelo qual altnt'iitt',t tt,t

vida e era admirado e invejado por todos. Somente elc tinha totlltt'ri

mento de um fato esquisito, que trazia inquietaqdo d sua pr<isllt'tir r'ris

tdncia: o de que nAo era perfeitamente feliz. Alguma coisa eslavit t't'tit<l,t

em algum lugar e ele cuidadosamente apalpava o pr6prio cr-t t'spililrr,rl

aqui e ali, assim como algu6m aperta com o dedo para dt'lt'rttritr,rt'rr

local de um espinho profundamente encravado, invisivel.

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cozava dc gra.cle favor ju.t, ) rcalerza, safrd_se bem em sua vo_cag50' tinha amigos por t'da parte. o espinh. nao estava em nenhumdesses lugares.

Sua esposa era uma mulher inteligente e ainda bonita. Tarvez ne-gligenciasse um pouco a casa em prol das visitas e festas; trocava decriados de tr6s em tr6s meses e as refeig6es d'general na casa careciamde pontualidade. o generar, que tinha a boa comida em alta conta navida, sentia por isso uma certa amargura contra a mulher e secrcta-mente a culpava pela dispepsia de que ds vezes sofria. Ainda assim, oespinho ndo estava ai tampouco.

NAo, mas uma coisa absurcra vinha acontecendo ultimamente como general Loewenhielm: pegava-se preocupado com sua alma imortal.Flaveria alguma razao para que o fizesse? Era uma pessod cle moral, leala seu rei, sua esposa e seus amigos, um exemplo para todos. Mas haviamomenlos cm que o munclo lhe parecia n6o uma questAo mora[, masmfstica' olhava-se no espelho, examinava o monte dc condecorac.esem seu peito e suspirava: "vaidacle, vaiclade, tudo 6 vaidadel,i

o estranho encontro em Fossum impelira-o a fazer o balango desua vida.

o Lorens Loewenhielm jovem atrafra sonhos e fantasias como umaflor atrai abelhas e borboletas. Lutara para se libertar deres; fugira c eleso seguiram. Tivera medo cra hurdre da lenda familiar e decrirara de seuconvite para acompanh,-la A montanha; rejeitara firmemente o domda clarivid6ncia.

O Lorens Loewenhielm velho pegou_se a desejar que um pequcnosonho cruzasse seu caminho e uma cinzenta mariposa do creptisculo fossevisit6-lo antes que a noite caisse. pegou-se cresejando a faculdade da crari_vicldncia, assim como lrm cego almeja a faculdacle normal da vis5o.

Pode a soma de inr-imeras vit6rias em muitos anos e em muitospaises constituir uma aerrota? o general Loewenhielm cumprira os de-sejos do tenente Loewenhielm e mais do que satisfizera suas ambig6es.Podia-se dizer que ganhara o mundo todo. E acontecia agora que o im_

ponente e vivido homem mais velho virava-se para a jovem e ingC'nrrir

figura a fim de lhc perguntar, gravemente e at6 com amargura, ('oln (lu('

proveito? Em algum lugar alguma coisa se perdera.

Quando a senhora Loewenhielm contara ao sobrinho tr rt'spt,ilo

do aniversiirio do dedo e ele resolvera acompanhS-la a Berlevailfi,, rrrr

decisdo n6o se resumira a aceitar um convite para jantar.

Estava determinado, nessa noite, a fazer um ajuste de contas ('()nl ()

Lorens Loewenhielm jovem, qlle se mostrara uma fi5lura timirla r. llislcna casa do deSo e que, no fim, sacudira o p6 das botas ck'('(luil(r(",r().

Deixaria o jovem lhc prova4 de uma vez por todas, que trinta <. ult) iln()r,

antes lomara a escolha acertada. Os c6modos baixos, o lrarlorlrr.r'ocopo d'6gua na mesa diante dele seriam chamados todos a [<'slt'lrtunlr,rr'

que em seu meio a exist€ncia de Lorens Loewenhielm tcria st. lonl,rrloem pouco tempo pura infelicidade.

Deixava sua mente divagar para longe. Em Paris, ganharir t crlir l,r'u

um concoilrs hippique e fora aclamado por altos oficiais da cavalirriir lrirrr

ccsa, entre eles, principes e duques. Um jantar em sua honrcrrirg<'rrr lirrir

dado no restaurante mais elegante da cidade. A sua frenlc, nir nl(.s(r, (.

tava uma dama da nclbreza, uma famosa beldade a quem ltlvi.r Ir'rrrlros

cortejava. Na metade do jantar, ela erguera os olhos nt.g,ros uvt'lrrtlirrLrs

acima da borda de sua taga de champanhe e sem clizcr [)ill(lvrirs l)rr)metera-lhe a felicidade. No tren6 elc agora de repcntc k.llbrirvir st'tk'que, por um segundo, vira o rosto de Martine diante dck'<.o rt^jcil,rnr.

Por uns instantes ficou ouvindo o tilintar dos sininhos d<l lrr.lrti, rk.pois

sorriu ligeiramente ao refletir como iria nessa noite cionrirrlr irs ( ()n\/(.r'

sas em torno daquela mesma mesa onde o jovem Lorerrs l.ot'wcrrlrit.lru

se sentara mudo.

Grandes flocos de neve caiam densamente; na cstcira rlo (n'rtri,rs

marcas sumiam rapidamente. O general Loewenhielm pt'rman<'t iir st.rr

tado im6vel ao lado da tia, o queixo afundado no espcsso t<llirrilrlto tk'p€lo de seu casaco.

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x. O jantar d.e Babette

Quando o diabinho ruivo de Babette abriu a porta para a sala de jantare os convidados vagarosamente cruzaram a soleira, soltaram as mdosuns dos outros e ficaram em sildncio. Mas o sildncio foi agraddvel, poisem espirito continuavam de m6os dadas e cantando.

Babette dispusera uma fileira de veras no centro da mesa; as peque-nas chamas lanqaram um furgor sobre os casacos e vestidos prctos e so-bre o fnico uniforme escarlate, refletindo-se nos olhos claros e timidos.

o general Loewenhielm viu o rosto de Martine a luz das velasassim como o vira qua^do os dois se separaram, trinta anos antes.Que sinais trinta anos da vida em Berlevaag teriam deixado sobre ele?o cabelo dourado entremeava-se agora com fios prateados; o rostocomo dc uma flor transformara-se lentamente em alabastro. Mas quaoserena era sua fro.te, quao tranqriilamente confi6veis aqucles cllhos,qu6o pura c doce a boca, como se jamais uma palavra intempestivahouvesse deixado aqueles Itibios.

Quando todos estavam sentados, o membro mais velho dtr congre-gaq5o disse a oragdo nas pr<iprias paltrvras do cie6o:

Que nrcu alinrento susfenfe meu corpo,

qLte nteu corpo sustentt minhn nlma,

clue minha alma em gestos t palavrns

d? graqas por todns as coisas ao Senhor.

A palavra "alimento'i os convidados, com as cabegas velhas inclinadassobre as mSos cruzadas, lembraram-se de como haviam feito a promessade n5o pronunciar uma palavra sobre o assunto e em seu intimo reforqa-ram-na: ndo lhe dedicariam nem mesmo um pensamento! Estavam sen-tados para fazer uma refeigdo, certo, assim como as pessoas haviam feitonas bodas de canaa. E a graqa divina escolhera se manifestar ali mesmo,no pr6prio vinho, tAo plena quanto em qualquer outra parte.

O assistente de llabette encheu um pequeno copo diante clc ta<lit

membro do grupo. Ergueram-nos para os lSbios com ar grave, r'oltlit'-

mando sua resoluqdo.

O general L<lewenhielm, Llm pouco dcsconfiado de seu vitrho, rk'tt

um gole, sobressaltou-se, ergueu o copo primeiro at6 o nariz <'<lt'pois

na altura dos olhos e o pousou at6nito. "Isto 6 muito estranho!", pt'rrsotr'

"Antontilladot. E o melhor amonlillado que j5 provei em minha vi<lal' APrts

Llm momentcl, a {im de testar scus setntidos, tomou umtr collrt'rittlit rlt'

sopa, depois uma segunda colherada, e baixou a colher. "lsLo tl irtt |ivt'l

mente estranhol", disse de si para si. "Pois sem dr.ivida estott lottr,lttrlo

sopa de tartaruga... c que sopa de tartaruga!" Foi presa clc rtnr liPtl cs

qrrisilo de pdrrico e csvazit.ru o (opo.

Geralmente, cm Berlcvaag, aS pessoas nAO ftrlam muitO r;Utttltl0 r's

[5o comcndo. Mas de algum modo, ncssa noitc, as lingtlas st' sollitt'ilttr.

Um velho irm6o contou a hist6ria de seu primeiro cncotrtro ('ottl o tlt',to.

Outro, falou sobre o sermio que Sessenta anos an(es levara-o i't totlvt't'

s6o. Uma senhora idosa, aquela a quem Martinc primciro t'ottIiilrit stl,t

preocupaqao, lembrotr irs amigas como, em todas as aflig6cs, rltrirklrrt'r'

irmSo ou irmd estava pronto para compartilhar o fardo alhcitl.

o gencral Locwenhielm, que deveritr dominar it ctonvcrsil ir r.rrcs,r

do jan1a4 relatou que a colegSo de serm6es do de6o cra o livr<l lilvo|ilrr

dtr rainha. Mas quando um novo prato {bi servido, ficor-r ctl sili'rrr io.

"lncrivel!", disse para si mesmo. "E Bllt"tis Demicloffl" Olhou em [ortlo pitt',t

os comensais. Todos comiam tranqiiilamente seu Blinis Demi<ltlll, scrlr o

menor traqo de Surpresa ou aprovaqao, como se houvessem f<'ito ltltrilo

todos os dias por trinta anos.

Uma irmd do outro lado da mesa introduziu o assunto tlt't'slrir

nhos acontecimentos que tiveram lugar quando o deio aintla st't'lt

contrava entre seus filhos e que se poderia ousar chamar de milirgrt's.

Acaso se lembravam, perguntou, da vez em que prometera Iitzt'r trrtt

scrmdo de Natal na cidade do outro lado do fiorde? Por duas sclllilll(ts,

o tempo estivera tdo ruim que nenhum capitao ou pescador arris<ttriit

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Lllfia travessia. os moracr'res da cidarrezinrra jii haviarn perdido a es_peranEa' mas o cre60 lhes disse que se nenhum barco o l..rurr., iria at6eles caminhando por sobre as ondas. E nao 6 que tr6s dias antes do Na_tal a tempestade amainou e uma densa camada de gelo cobriu as Sguasdo fiorde de costa t

at6 onde todos se,ffi*J,isso foi algo que jamais acontecera antes,

O rapaz mais uma vez encheu os copos. Dessa vez, os irmaos eirm5s sabiam que aquilo que lhes era servido n6o era vinho, pois bor_bulhava' Devia ser argum tipo de limonada. A limonada harmonizou-secom o estado de espirito exaltado de todopara uma esfera mais elevada e pura.

s e pareceu ergu€-los do solo,

O general Loewenhielm mais uma vez baixou o copo, virou_separa o vizinho da direita e disse: "Mas sem drivida trata-se cle um veuveCliquot 1860' ndo?"' o homem langou-rhe um olhar ben.volo, sorri' efez uma observag5o sobre o tempo.O ajudante de Babette tinha suas instrug6es; enchia os copos dairmandade apenas uma vez, mas vortava a encher o copo do generalassim que esvaziava. O general o esvaziava rapidamente vez ap6s ou_tra. Afinal, como deve se portar um homem de bom ,".,ro q..rur_rio ,_,Aopode confiar em seus sentidos? Melhor ficar b€bado do que louco.

Na maioria das vezes, os moradores de Berlevuug, ,ro transcorrerde uma boa refeig'o, sentiam-se um pouco pesados. Nessa noite nao lbiassim' os convivas sentiam-se cada vez mais leves, e de espirito maisleve, quanto mais comiam e bebiam. J6 ndo precisavam mais lembrar_se de sua promessa. Era, percebiam, quando o homem nEo s6 esqueciacompletamente, como tamb6m reieitava firmemente toda id6ia de ali_mento e bebida que ele comia e bebia no espfrito certo.

O general Loewenhielm parou de mastigar e ficou im6vel. Maisuma vez viu-se levado de volta dquele jantar em paris do qual selembrara no trenti' Um prato incrivelmente refinado e saborosofora servido na ocasiAo; ele perguntara o nome para um colega aolado, o coronel Galliffet, e o coronel explicou_lhe sorridente que se

chamava "Cailles en Sarcophage". Posteriormente, contou-lhc (lu(. ()

prato fora criado pelo chef daquele mesmo caf6 onde jantavam, trrrr,rpessoa conhecida por toda Paris como o maior g6nio culinlrrio rlir6poca, e - o mais surpreendente - uma mulher! "E de fato] tliss<' ocoronel Galliffet, "essa mulher estii transformando um jantar rro ('irliiAnglais numa esp6cie de envolvimento amoroso - num envolvirrrr,rrl,amoroso daquela categoria nobre e romantica na qual a p('ss()ir lr(r()

mais distingue entre apetite, ou saciedade, corporal e espiri trrirl! l,itive oportunidade, certa feita, de duelar em nome de uma bclir rl,rrrr,r.

Por nenhuma mulher em toda Paris, meu jovem amigo, eu (l('rr,rrlr,rri,r

meu sangue de mais boa vontadel" O general Loewerihielm virorr s<.

para o comcnsal h esquerda e disse: "Mas isto 6 Cailles en Sar<.oplrirlir'1",

O vizinho, que estivera escutando a descrig5o de um milagrr', lilou odistraidamente, balanqou a cabega e respondeu: "Sim, si'r, rl.r r.r,l',O que mais poderia ser?'i

Dos milagres do mestre a conversa em torno da mesa t'rrvcr.r'rl,rrirpara os milagres menores de bondade e obsequiosidade rcaliza<lirs Pt'l,rssuas filhas. o velho irmao que entoara o hino primeiro ciknr rl rk',ilr rlizendo: 'As fnicas coisas que devemos levar conosco desta vi<lir lr,r'rr.rr,r

s5o as que doamos!'i os convivas sorriram - que ricagas rrio str.i,rrrr ,rs

pobres e simples donzelas no pr6ximo mundo!O general Loewenhielm ndo se espantava mais <,orn rr,rrlir.

Quando, poucos minutos depois, viu uvas, p€ssegos e figos Ir.<,sr os

diante de si, riu para o comensal do outro lado da mcsa ('.lrst.r.v,rr:"Que uvas lindas!'i O vizinho replicou: "'E chegaram ao valt'rlr. l,,srol;

l;i cortaram um ramo de videira com um cacho de uvas qll(. lcvirr.irrrsobre uma vara"'.

EntSo o general sentiu que era hora de fazer um disctrrso. liir,orr rk.pd e aprumou-se todo.

Ningu6m mais d mesa do jantar se levantara para [alar. A gr,rrlt.velha ergueu os olhos para o rosto lii no alto com umil <'xPcclirliv,rgrande e feliz. Estavam acostumados a ver marinheiros e' vugirlrrrrrrlos

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caindo de b€bados com o grosseiro gim da terra, mas n6o reconhe-ciam num guerreiro e cortesdo a intoxicaqAo provocada pelo vinhomais nobre do mundo.

xt. O discurso do general Loewenhielm

'A miseric6rdia e a verdade, meus amigos, encontraram uma d ou-tra", disse o general. 'A retid5o e a bem-avcnturanqa devem beijaruma d outra."

Falava com uma voz lfmpida que fora exercitada em campos detreinamernto militar e ecoara agraclavelmente em salOes da realeza e,

mesmo assim, falava de uma maneira t5o nova p.rra si mesmo e t5oestranhamente comovente qtre ao final da primeira frase tevc de fa-zer uma pausa. Pois era seu hSbito formar os discursos com cuidaclo,consciente de scu prop6sito, mas aqui, em mcio d cor-rgregagAo simplesdo detio, era como se toda a figura do general Loewenhielm, o peil.ocoberto de condecorag6es, n6o fosse senEo a porta-voz de uma mensa-gem destinada a vir a priblico.

"O homem, meus amigos", disse o general Loewenhielm, ,,6 frdgile tolo. A todos jii nos foi dito que a graqa divina encontra-se por todoo universo. Mas em nossa tolice e miopia humanas, imaginamos ser agraga finita. Por esse motivo, trememos..." Nunca, at6 aquele mo-mento, o general afirmara que tremia; ficou genuinamente surpresoe at6 chocado de ouvir a pr6pria voz proclamar o fato. "Trememosantes de fazer nossas escolhas na vida e ap6s t6-las ltito trememos demedo de ter escolhido errado. Mas eis que chega o momento emque nossos olhos est6o abertos e vemos e percebemos que a graqa6 infinita. A graga, meus amigos, n6o exige nada de n6s sendo que a

aguardemos com confianqa e a reconhegamos com gratiddo. A graqa,irmSos, n5o imp6e condiq6es e ndo escolhe nenhum de nos em par-ticular; a graqa nos toma a todos em seu seio e proclama anistia

geral. Vejaml Aquilo que escolhemos nos 6 dado e aquilo que rc('tl-

samos nos 6 igualmente, e ao mesmo tempo, concedido. Sim, quc tr

que rejeitamos seja copiosamente vertido sobre n6s. Pois que a rni-

sericdrdia e a verdade encontraram uma d outra e a retiddo e il [)('lll-

aventuranEa beijaram uma aI outra!"

Os irmios e irm5s nAo compreenderam inteiramente o tlistttrstr

do general, mas seu rosto sereno e inspirado e o som de palavras lrcrrr

conhecidas e estimadas capturou e comoveu todos os coraqocs. l)('ssir

mancira, ap6s trinta e um anos, o general Loewenhielm triull[a|it t'ttt

dominar a conversa d mesa de jantar do dedo.

Sobre o que aconteceu mais tarde nessa noite, nada coucrt'lo Potlt'

ser afirmado. Nenhum dos convidados dali em diante guarclotr rlttitltltlt't'

lembranqa clara disso. 56 sabiam que os aposentos da casa se ett<llt'titttl

Com uma luz celestial, como Se infmeroS pequenos halos holrvt'ss('llt s('

misturado numa irnica e gloriosa radiancia. Um bando clc vclhos lilci

turnos adquiriu o dom cla glossolalia; ouvidos que por anos (.stiv('l'illtl

quase surdos abriram-se para ela. o pr6prio tempo fundiu-sc' rril r'lcI

nidade. Muito depois da meia-noite as janelas da casa brilhavarn c0rrro

ouro e canq6es douradas llufam atrav6s da janela invernal.

As duas senhoras idosas que outrora haviam se difamado rntrlrrir

mente agora em SeuS espiritos retrocediam muitos anos no passarlrl,

al6m do periodo mal6volo ao qual estavam presas, aos dias tla tt.titis

tenra infAncia quando, juntas, preparavam-se para a crisma er <lt' nriros

dadas haviam enchido as ruas de Berlevaag com cantorias. Um irrr.rilr

na congregagSo deu em outro um soco nas costelas, como um llrttt<r

afago entre rapazes, e exclamou: "Voc€ me tapeou com aquela matlt'irir,

seu patife!". O irmSo assirn abordado quase desmaiou numa sr-rlllirtlr'

explosSo de risadas, mas as liigrimas corriam-lhe dos olhos. "Sim, t'tl f iz

isso, amado irm6o", respondeu. "Ewfiz issoi'O Comandante Halvors<'tt t'

Madame Oppergaarden de repente viram-se bem juntos um cl<l tltltrtr

num canto e trocaram um longo, longo beijo, para o qual o roln(lll(('

incerto e secreto da iuventude jamais lhes dera tempo.

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C) rcbirnlro rlo vt:lho de6o era genlc Iturlikk.. (Jrr.rndo, mais tardeem sltats virl,rs, Jtcrtsaram nessa n.il<., rrrr'<,,r llr.s.cclrreu, a nenhumdelcs' r;rrr' lludessem ter sc <'xirrr;rrl, ,,r. 'rtlrito pr6prio. percebiamqr('. r-if(lqa infinita sorr^,ir rlrrirr . g<,rr.ral Loewenhierm falara fora_l'r's,trtorgada e n<'r-r-r ,r(''l() s(,(.spantaram com o fato, pois se tra_lara da concretizirt,,i. rr. rrrr.rir "rp".u.rru sempre prc.sente. As v's iru_s6es deste murr<r., rrirvi,rr.n ,. d.smor-,chudo cliante de seus olhos comofumaq,r t' vinrrtr o trnivt,rscl r omo rcolm

Llma h()r.r tr. r'ire^io. ente 6. Foram agraciados com

A vt'rrra senhora Loewenhielm foi a primeira a sair. o sobrinhoa ac,clmpanhou e suas anfitri6s iluminarquanto phirippa ajudava a velha ,"r_rnortu-

o caminho para eres. En-

o general tomou a md' dc Martine " u ,u

to^ os infmertls agasalhos,

dizer palavra. Finarmente, falou: egurou por longo tempo sem

"Tenho estado com voc6 todos os dias de minha vida. Sabe, ndosabe, que tem sido assim?,i"Sei'i disse Martine, ,,sei que tem sido assim.,"E'i prosseguiu ele, ,,estarei

com voc6me restarem. Todasnada significu-,

"-u' noites me sentarei' iJ:i:t'"i::'i::i::'Ti:

esta noite pois esta "il? illJJ.l ;::lt:il,i*lilll il.li;l:T:6 possivel.,,

"Sim, assim 6, quericlo irmAo,i disse Martine. ,,Neste munclo, tudo 6possfvell'

Com isso, separaram_se.

Quando enfim c

m o n r a n h a s exi b i a m :il':il:::i.J:ff ff .T::I:, 1.:. ::: :,::tilava com milhares de estrelas. Na rua aficava dific' .u-i,.,r,u. t,;;;.; ." .J:""_*,ff#il:llTseus p6s, cambaleavas ob re os j o er h o s

" ", ?i;?:;-:.;?:lii:T:Til: :ff I ; .,"::sem de fato lavado os pecados e os deixado brancos como 15, e nesse

inocente traje recuperado saltitassem como cordeirinhos. Foi um jtibikr,

para cada um deles, ter se tornado uma crianga pequena. Foi larnllrlrrt

uma abengoada piada observar os velhos irmSos e irmds, quc sc lcvir

vam t6o a serio, naquela esp6cie de segunda infAncia celeste. 'liopt'

qavam e ficavam de p6, seguiam caminhando ou estacavam, ils rlr,i()s

dadas no corpo e no espfrito, por alguns momentos formantlo a g,ritttrk'

corrente de lanciers beatfficos.

"Deus abenqoe, Deus abenqoe, Deus abengoe", como ttm.t rt'vt't'lrc

raq6o da harmonia das esferas, ecoava cle todos os lados.

Martine e Philippa permaneceram por um longo tt'rn1lo tttts tlt'

graus de pedra do lado de fora da casa. N6o sentiam frio. "As t'slt,cl,ts

estio mais pr6ximas", disse Philippa.

"E v5o ficar todas as noites", disse Martine, calmatrt'trlt. "li lrtrrrpossivel que n6o neve nunca maisl'

Nisso, contudo, estava enganacla. Uma hora mtris tartlt'(()tll('(.,()(l rl

nevar outra vez e fbi uma nevasca forte como jamais st'vir,r t'rtt lit'tlr'

vaag. Na manhd seguinte, as pessoas mal conseguiram allrir its llot'lits r lr'

t6o altos que estavam os montes de neve. As janelas (l.ts t,tsits lirrlr,rrrr

uma camada tio espessa, como se contou por allos a Iio tlr'pois rlisso,

que muitos pacatos cidaddos do lugar n6o percc'bt'riltll () itlvtttt'tt't t'

continuaram a dormir at6 bem tarde nesse dia.

xtt. A grande artista

Quando Martine e Philippa trancaram a porta lembrararn-st'rk' llitlrlllt',

Uma pequena onda de ternura e compaix6o as percorrcrl: sti li.tIlt'llt' lt,ttr

compartilhara nem um pouco do €xtase daquela noitt'.

Assim, foram atd a cozinha, e Martine disse para llirllt'llt': "liri ttrtr

jantar muito bom, Babette".

Seus coraq6es subitamente enchitrm-se tlt' gritlitliro. l't't'< t'lrt'

ram que nenhum dos convidados dissera uma [tt-ti<'a llalavrir stt[trt' it

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comida' Na verdade, por mais que tentassem, eres mesmos nao conse-guiriam se lembrar de nenhum dos pratos que fora ser-vido. Martinerecordou-se da tartaruga. N50 era o que pareceu ent50 e agora rheparecia muito vago e distante; era bem possivel que tudo n5o passassede um pesadelo.

Babette estava sentada no cepo de corta4, cercada por mais pane_las escuras e engorduradas do que as donas da casa jii haviam vistoem toda a vida' Estava tao pdlida e morta de cansago quanto na noiteem que apareceu pela primeiravez, desmaiando na soleira da porta.

Ap6s um longo tempo, fitou-as diretamente e disse: ,,Eu fui cozi-nheira no Cafe Anglais,i

Martine disse outra vez: ,,Todos acharam o jantar muito bom,iE quando Babette nao disse uma palavra, acrescentou: ',vamos nos rem-brar desta noite quando voc6 tiver ido embora para paris, Babettc,i

Babette disse: "NAo vou para paris'i

"Ndo vai voltar para paris?,,, exclamou Martine."N6o'i disse Babette. "o que vou fazer em paris? fodo mundo se foi.

Perdi todos eles, madamesl,

os pensamentos das irmds dirigiram-se a Monsieur Hersant c seufilho, e disseram: 'Ai, pobre Babette,i

"E, todo mundo se foi,i disse Babette. ,,O duque de Morny, o duquede Decazes, o prfncipe Narinshkine, o generar Galliffet, Aur6lian Scholl,Paul Daru, a princesa pauline! Todos eles!,,

os estranhos nomes e tftulos de pessoas perdidas para Babetteconfundiram ligeiramente as duas senhoras, mas havia uma tal pers-pectiva i'finita de tragddia no anincio que, em seu estado de espfritoreceptivo, sentiram as perdas como se fossem pessoais e seus orhosencheram-se de ldgrimas.

No fim de outro longo s'€ncio Babette de repente soltou um leve sor-riso e disse: "E como eu iria vortar a paris, madames? Estou sem dinheiro,i

"sem dinheiroz'i exclamaram as irmds como se fossem uma so."Isso", disse Babette.

"Mas e os dez mil francos?", perguntaram as irm6s, ofegarrtcs rlchorror.

"Os dez mil francos foram gastos, madames'i disse Babette.

As irmds se sentaram. Por um minuto, ficaram sem fala.

"Mas dez mil francos?", sussurrou lentamente Martine."O que queriam, madames", disse Babette com gran<k' tligrrirlirrlr.,

"Um jantar para doze no Caf6 Anglais custaria dez mil franrrlsj'

As senhoras continuavam sem Llma palavra para dizer. A rtovirlirrlcera-lhes incompreensivel, mas jri entdo muitas coisas nt'ssa rroil<., rlt'

uma forma ou de outra, estavam al6m da compreensSo.

Martine lembrou-se da hist6ria contada por um amigo rl<.sr.rr p,ri

que fora missioniirio na Af.ica. O homem salvara a vitla cla r.sJrosir lirvorita de um velho chefe e, para mostrar sua gratidAo, o chcfi' llrt' oli'rr.r r.u

uma lauta refeiqSo. Somente muito depois 6 quc o missi<lrriirio litousabendo por seu pr6prio servigal negro que aquilo quc (om('rir ('lr unr

gordo netinho do chefe, preparado em honra do granrle ctrrirrrrlcirrr r list6o. Sentiu um calafrio.

Mas o coragdo de Philippa se desmanchava em scLr p<.ito. llucri,rlhe que uma noite inesquecivel estava destinada a lcrmirrur (,()nr unlrr

prova inesquecivel de lealdade e auto-sacrificio de Lrm s(.r lrrrrrrirrro.

"Querida Babette'i disse, delicadamente, "ndo devcrio tt'r girslo trrrLr

que tinha por nossa causai'

Babette langou um olhar penetrante d sua patroa, trr-n ollrirr.r'slr,,t

nho. N5o haveria compaixdo, at6 mesmo desd6m, ncl ftrrr<lo rk'k./"Por sua causa?", retrucou. "Nio. Foi por minha causal'

Ergueu-se do toco e ficou de pd diante das duas intriis.

"Sou uma grande artista!", disse.

Esperou um minuto e entSo repetiu: "Sou umu grarrrlc irll isl,r,

madames".

Mais uma vez, por um longo tempo houve sil€ncio na < ozirrlr,r.

Depois Martine disse: "EntAo vai ser pobre o resto da virlir, llirlrr.ttt./"."Pobre?'i disse Babette. Sorriu para si mesmil ao orrvir isso. "N,ro,

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nunca vou ser pobre. 16 lhes disse que sou uma grande artista. Umagrande artista, madames, nunca 6 pobre. Temos algo, madames, a res_peito do qual as outras pessoas n6o fazem a menor iddiaj,

Embora as duas senhoras idosas ndo encontrassem mais nacra quedizeri no coragdo de philippa vibraram cordas profundas, esquecidas.Pois outrora ouvira falar, muito tempo antes, do Caf6 Anglais. Outroraouvira fala4 muito tempo antes, dos nomes na tr6gica lista de Babette.Levantou-se e deu um passo na diregdo da criada.

"Mas todas essas pessoas que mencionou,,, disse, ,,esses principese gente importante de paris cujos nomes disse, Babette? voc€ mesmalutou contra eles. voc€ foi uma communardet o generar que mencionoumandou matar seu marido e seu firhor como pode sofrer por eles?,,

Os olhos negros de Babette fitaram os de philippa."Sim'i disse ela, ,,eu fui uma communarde. Gragas a Deus, eu fiui uma

communqrd.e! E as pessoas que mencionei, madames, eram mds e cru6is.Deixaram o povo de paris passar fome; levaram opressao e injustiqa aospobres' Gragas a Deus, eu fiquei numa barricada; crescarreguei minhaarma por meus concidadS0sr Mas mesmo assim, madames, n50 voltareia Paris, agora que as pessoas de quem falei jd n6o est6o mais por liil,

Ficou im6vel, perdida em pensamentos."Vejam, madames,,, disse, finalmente,,,essas pessoas me pertenciam,

eram minhas. Foram criadas e educadas, a um custo tdo elevado queas senhoras, minhas queridas, jamais poderiam imaginar ou acreditalpara compreender a grande artista que sou. Eu era capaz de torn6-losfelizes. Quando dava o melhor de mim. era capaz de tornd_los perf.ei_tamente felizesl'

Fez uma pausa.

"Foi assim tamb6m com Monsieur papin,i disse."Com Monsieur papin?", perguntou philippa."Sim, com seu Monsieur papin, minha pobre senhora", disse Ba_

bette' "Ele mesmo me contou: 'E terrivel e insuport6vel para um artistaidisse, 'ser encorajado a fazer, ser aplaudido por fazer, quase o melhor,.

Disse: 'No mundo todo, um longo lamento 6 emitido pelo coragSo <kr

artista: Permitam*me dar o miiximo de miml'j'

Philippa foi at6 Babette e envolveu-a em seus braqos. Sentiu <r

corpo da cozinheira como um monumento de m6rmore contra <l scrr,

mas ela mesma tremia muito dos p6s d cabega.

Por alguns instantes n6o conseguiu falar nada. Ent6o sussurrou:

"Contudo, sinto que n5o € o fim! Sinto, Babette, que isto n6o (' o [irrr,

No Paraiso, ser6 a grande artista que Deus planejoul Ah!", acres<r'rrlou,

lSgrimas escorrendo-lhe pelo rosto. 'Ah, como encantarii os anjos!"