A ficção do amanhã no mercado de hoje

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

    ESCOLA DE COMUNICAÇÃO 

    A ficção do amanhã no mercado de hoje:Os esforços de publicação de ficção científica no mercado editorial brasileiro

    contemporâneo  

    Bruno Alves da Silva

    Rio de Janeiro / RJ

    2016 

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

    ESCOLA DE COMUNICAÇÃO 

    A ficção do amanhã no mercado de hoje:Os esforços de publicação de ficção científica no mercado editorial brasileiro

    contemporâneo  

    Bruno Alves da Silva

    Monografia de graduação apresentada a Escolade Comunicação da Universidade Federal do

    Rio de Janeiro, como requisito parcial paraobtenção do título de Bacharel emComunicação Social, Habilitação em ProduçãoEditorial.

    Orientador: Prof. Dr. Octavio Carvalho Aragão Júnior

    Rio de Janeiro / RJ2016 

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    A ficção do amanhã no mercado de hoje:Os esforços de publicação de ficção científica no mercado editorial brasileiro

    contemporâneo  

    Bruno Alves da Silva

    Trabalho apresentado à Coordenação de Projetos Experimentais da Escola de

    Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a

    obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social, Habilitação em Produção

    Editorial.

    Aprovado por

     ________________________________________

    Prof. Dr. Octavio Carvalho Aragão Júnior –  orientador

     ________________________________________

    Prof. Dr. Mário Feijó Borges Monteiro

     ________________________________________

    Prof. Dr. Amaury Fernandes da Silva Junior

    Aprovada em:

    Grau:

    Rio de Janeiro

    2016

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    S586 Silva, Bruno Alves da.A ficção do amanhã no mercado de hoje: os esforços de

     publicação de ficção científica no mercado editorial brasileirocontemporâneo / Bruno Alves da Silva. 2016.

    83f. : il.

    Orientador: Octavio Carvalho Aragão Júnior.Monografia (Graduação) - Universidade Federal do Rio de

    Janeiro, Escola de Comunicação, Habilitação em ProduçãoEditorial, 2016.

    1. Mercado editorial. 2. Ficção científica. 3. Livros - Comércio. I.Aragão Júnior, Octavio Carvalho. II. Universidade Federal do Riode Janeiro. Escola de Comunicação.

    CDD: 070.5

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    AGRADECIMENTOS

    Agradeço a todos que, de uma forma de outra, me ajudaram a chegar até aqui:A meus pais e minha irmã, por terem sido fundamentais na pessoa que me tornei.

    À família Vasconcellos, a qual, ao me acolher, permitiu que eu pudesse cursar essa

    faculdade.

    À minha esposa, Cláudia, que além de impulsionar meu interesse por ficção

    científica e, lógico, me dar seu amor, me ajudou e me ajuda a construir uma vida carioca.

    A todos os colegas e amigos, do Ciclo Básico e de Produção Editorial, que me

    acompanharam durante esses quatro anos.

    Ao meu orientador, Octávio, por toda atenção, apoio e boas conversas durante esse

     processo.

    Ao Erick Cardoso e Bráulio Tavares, por terem cedido seu tempo para responder a

    algumas perguntas de um estudante preocupado.

    Ao Pedro, por ter revisado essa monografia e me ajudado nesses passos finais.

    A todos os autores e leitores de ficção científica, por inspirar a mente de milhares

    de pessoas e, mesmo sem saber, tornar esse trabalho possível.

    E a quem estiver lendo esse trabalho, por justificar sua existência.

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    A ficção do amanhã no mercado de hoje: Os esforços de publicação de ficçãocientífica no mercado editorial brasileiro contemporâneo 

    SILVA, Bruno Alves da. A ficção do amanhã no mercado de hoje: Os esforços de

     publicação de ficção científica no mercado editorial brasileiro contemporâneo. Orientador:Octavio Carvalho Aragão Júnior. Rio de Janeiro, 2016. Monografia (Graduação emProdução Editorial) —  Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

    RESUMO 

    O presente trabalho se propõe a analisar os principais esforços de publicação de ficção

    científica no mercado brasileiro contemporâneo, para tal dando enfoque às editoras que se

     propõem divulgadoras do gênero. O Brasil, tendo historicamente pouca publicação em

    ficção científica no mercado mainstream, deve precisar da atuação destas editoras para

    uma possível popularização do gênero que, apesar de fazer sucesso em sua vertente

    audiovisual, é visto com hesitação no campo da literatura. Através da análise comparativa

    das estratégias editoriais e produtos finais de editoras como Aleph, Devir e Draco, as quais publicam ficção científica com grande foco, poderá se ter noção dos caminhos que o

    gênero poderá trilhar a partir de agora e tomar ciência dos campos inexplorados e

    oportunidades existentes neste nicho do mercado e averiguar seu possível crescimento. 

    Palavras-chaves

    Mercado editorial, ficção científica, publicação, editoras.

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    The fiction of tomorrow on the market of today: The science fiction publishing effortson the contemporary Brazilian book market 

    SILVA, Bruno Alves da. The fiction of tomorrow on the market of today: The science

    fiction publishing efforts on the contemporary Brazilian book market.  Advisor: OctavioCarvalho Aragão Júnior. Rio de Janeiro, 2016. Monograph (Editorial Production)  —  Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

    ABSTRACT 

    The current work proposes an analysis of the main efforts of science fiction publishing on

    the contemporary Brazilian book market, focusing thus on publishing houses that market

    themselves as genre divulgators. Brazil’s mainstream book market, historically lacking in

    science fiction, needs these houses’ action for a potential  popularization of the genre,

    which, despite performing well on audiovisual media, is still seen tentatively in the literary

    field. Through comparative analysis of the editorial strategies and final products of houses

    as Aleph, Devir and Draco, which focuses primarily on science fiction, we may get thenotion of the pathways that the genre may trail from now on, gaining knowledge of still

    untapped fields and opportunities of this market niche and ascertaining its possible growth.

    Keywords 

    Book market, science fiction, publishing, publishing houses

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    LISTA DE IMAGENS 

    FIGURA 1 Capas da editora Hemus 40

    FIGURA 2 Capa de Neverness  41

    FIGURA 3 Capas da série O jogo do exterminador   43

    FIGURA 4 Edição especial de Neuromancer   44

    FIGURA 5 Capas de Encontro com Rama. Gollancz (1973); Aleph, 2011; Aleph,2015 45

    FIGURA 6 Capa de Eu sou a lenda  46

    FIGURA 7 Projetos gráficos de Herdeiro do Império  47

    FIGURA 8 Capas da editora Draco: Space Opera, Solarpunk  e E de Extermínio48

    FIGURA 9 Capas da revista Trasgo  49

    FIGURA 10 Posts das editoras Devir e Aleph no Facebook 57

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    SUMÁRIO 

    INTRODUÇÃO  9 Processo metodológico

     

    12 A ficção científica  13

     

    1  A PUBLICAÇÃO DE FICÇÃO CIENTÍFICA NO PASSADO: UM GUETOLITERÁRIO  17

     

    1.1  Breve histórico da criação e da publicação de ficção científica  17 1.1.1  Na Europa e nos Estados Unidos  17 1.1.2  No Brasil   24 1.2 O menor desenvolvimento da FC no mercado brasileiro  30 

    2  A PUBLICAÇÃO DE FICÇÃO CIENTÍFICA NO PRESENTE: OSJOGADORES NO MERCADO  35 2.1  O “renascimento” do cenário da FC: as empreitadas no nicho  35

     

    2.2 Capas: o embate da iconografia tradicional contra a modernização conceitual  39 2.3 Escolhas de catálogo: qual ficção científica publicar  50

     

    2.4 Posicionamento e comunicação  55 

    3 A PUBLICAÇÃO DE FICÇÃO CIENTÍFICA NO FUTURO: O QUEESPERAR   60 

    3.1 O crescimento da ficção especulativa no Brasil do século XXI 

    60 

    3.2 Novos horizontes à vista  64 3.2.1 E-books e autopublicação: oportunidade ou ameaça  67 

    CONSIDERAÇÕES FINAIS  70 

    REFERÊNCIAS  73 

    ANEXO A: ENTREVISTA COM BRÁULIO TAVARES 

    76 

    ANEXO B: ENTREVISTA COM ERICK SANTOS CARDOSO  81 

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    INTRODUÇÃO 

    Ao entrarmos em uma livraria em qualquer momento do ano, podemos ver

    configurações das mais diversas quanto ao tipo de livro exposto. Se em parte de 2015 asgôndolas principais eram tomadas pelo polêmico fenômeno do qual se trataram os livros de

    colorir, ao fim do ano tal tendência já caminhava a passos rápidos em direção ao esquecimento.

    Da mesma forma, no ano anterior, os chamados  sex-sellers, sucessos da literatura erótica, não

    mais relegada às bancas, dominaram as gôndolas por um tempo e hoje, apesar de ainda terem

    certo destaque na livraria, não mais protagonizam os palcos do varejo. 

    Como um mercado relativamente concentrado — principalmente em relação ao setor

    das grandes livrarias e das redes de e-commerce —, as tais “tendências” têm sempre sua vez. Omercado editorial continua a ser uma máquina em constante movimento. Em seus períodos de

    contração e expansão e em um país de leitura tão volátil quanto o Brasil, tendências se instauram

    vez ou outra para ditar os rumos da publicação em seu território. Seja época dos juvenis, das

    distopias, dos livros de colorir ou dos vampiros, também são refletidos no mercado editorial

    aspectos da cultura popular que provocam rebuliço nos demais ramos da arte e do

    entretenimento, aqui e no exterior — no cinema, na televisão, na música e, por fim, nos livros. 

    Pode-se, assim, justificar com volatilidade e adaptabilidade do mercado o nichoincipiente que foi — tornou-se ou continua sendo — um ramo da literatura tal qual a ficção

    científica? Pois aqui vê-se certa dificuldade em encontrar certa reciprocidade da cultura popular

     para a indústria do livro. A literatura da FC, por maior que tenha sido o sucesso de determinados

    expoentes midiáticos, seja nos filmes ou nos seriados, raramente faz números e sucesso em seu

    “estado puro” no território brasileiro — aqui executando-se, por exemplo, seus híbridos com a

    categoria Young Adult , tal como Jogos Vorazes, que muitas vezes não são considerados ficção

    científica pelo próprio público leitor. Se acompanharmos os dados estatísticos da publicação do

    gênero no Brasil tomando como contraste por exemplo seu gênero irmão e assemelhado — a

    fantasia —, podemos aferir um tanto melhor a disparidade: segundo o  Anuário brasileiro de

    literatura fantástica 2013 (BRANCO; SILVA, 2014, p. 89), enquanto o mercado da fantasia

     publicou 358 livros no ano de 2013, a FC acompanhou com menos da metade de livros, 163 —

    a maioria dos quais, em ambos os casos, por editoras de pequeno porte. 

    E, no entanto, o mercado continua crescendo — segundo os dados do  Anuário, se em

    2013 a publicação foi de 168 obras distintas, entre estrangeiras e nacionais, supera ainda assim

    o cenário de quatro anos antes, 2009, quando o número de obras foi 100. Em fantasia, a mesma

    coisa, pois antes dos 358 fora 240 nos quatro anos anteriores — um número absoluto bem maior

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    mas um crescimento percentualmente menor que o da FC (BRANCO; SILVA, 2014, p. 89).  

    Seria, no entanto, uma evidência de um crescimento geral do mercado editorial? Mesmo

    que o seja, ainda assim nota-se uma disparidade no crescimento entre dois gêneros de público

    supostamente similar — a fantasia e a ficção científica, ambas geralmente encaixadas no mesmo

    guarda-chuva literário, seja rotulado como “literatura fantástica” ou como “ficção

    especulativa”. Há razões para que a ficção científica seja um gênero muitas vezes considerado

    “menor” ou com pouca exposição para publicação, principalmente no caso das grandes

    editoras? 

    Alguns autores apresentam explicações históricas que resultaram em uma espécie de

    “defasamento” entre o desenvolvimento do mercado editorial de FC no Brasil e, por exemplo,

    no mundo anglo-saxão — causas como, principalmente, o nível de desenvolvimento ementalidade científica do Brasil na época abundante de criação deste tipo de literatura que foi

    a primeira metade do século XX. “Nenhuma sociedade pode desenvolver uma ficção científica

    até que ela alcance um certo estágio de inquirição científica e desenvolvimento tecnológico”

    (CLARESON, s/d apud CAUSO, 2003, p. 57). 

    Outros apontam para, além disso, uma preferência literária que prioriza realismo e

    nacionalismo, rotulando a FC como narrativa escapista e muitas vezes imperialista (GINWAY,

    2005, p. 29). O ramo acadêmico não a lia por não ser de seu interesse, e mesmo os leitores populares, em um país de público leitor incipiente como o Brasil, foram aproximando-se, com

    sua indisposição para com a ciência no geral, a outros tipos de literatura (CAUSO, 2003, p.

    235). Alguns, também, defendem que a fantasia tenha alcançado o estrelato mainstream a partir

    de obras eminentemente famosas que vêm conseguido seu lugar na cultura pop, como

     produções audiovisuais que impulsionaram o consumo de livros (PIAZZI apud BRANCO;

    SILVA, 2014, p. 249). 

    Mas, no fim das contas, parece que a FC nunca deixou verdadeiramente seu espaço denicho. 

    Certas editoras fazem carreira em publicá-los, porém. Há um trabalho por sua parte de

    fomentar o mercado editorial de FC — e, se não o tirar do nicho, ao menos fazê-lo crescer —

    com diferentes estratégias editorias, escolhas de catálogo, métodos de divulgação e material

     publicado. O que as une é a filosofia de agir como divulgadoras do gênero, o que gera um

     pensamento que tende à inexistência em editoras de publicação de ficção no geral. Quando se

     publica apenas FC ou ficção especulativa, deve-se pensar no gênero como um todo; mais, como

    um projeto e um processo. 

    Já há alguns anos estas editoras atuam no mercado. Editoras como Aleph, Draco, Devir

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    e outras indicam um interesse no gênero, e as cifras reunidas no Anuário brasileiro de literatura

     fantástica 2013 (BRANCO; SILVA, 2014) levam-nos a crer que a posição do mercado neste

    começo de década pode estar sofrendo alguma alteração. Será? Como as editoras que se

     propõem divulgadoras da FC no Brasil contemporâneo estão trabalhando o gênero de forma a

    aumentar a sua expressividade no mercado editorial nacional? E, a despeito disso e devido a

    isso, qual é o estado atual da publicação de ficção científica em terras brasileiras? 

    Este trabalho surge deste questionamento, focando-se em levantar e caracterizar essas

    abordagens relativas à ficção científica com base no realizado e proposto pelas editoras que se

     propõem editoras “de” ficção científica ou especulativa. Tal escolha é feita com base na

    constatação de que este tipo de editora terá um pensamento por trás de suas diretrizes editoriais

    ao tratar deste mercado específico, o que pode de maneira eficiente expor o que aqueles queestão inseridos nesse segmento do mercado têm como filosofia em relação ao presente e ao

    futuro do gênero no Brasil: a que pé o gênero está e aonde se pretende chegar.  

     No capítulo um, faz-se o prelúdio a essa análise: aborda-se brevemente os primórdios

    da escrita e do consumo do que veio a se considerar ficção científica no mundo e no Brasil,

    levantando os antecedentes históricos do gênero como mercado e como item literário

    reconhecido. Como o fenômeno FC surgiu no mundo e como ele foi transliterado para o Brasil,

    como a defasagem entre tal fenômeno aqui e lá fora resultou numa maior “guetificação” da FCem terras tupiniquins, apontando os motivos para esta visão do gênero por aqui em detrimento

    do relativo sucesso comercial de que goza em terras anglo-saxãs. 

     No capítulo dois, faz-se a análise das abordagens editoriais de fato das empreitadas que

    atuam nesse segmento de mercado. São essas editoras que, por meio de determinados critérios,

     podem fazer esforços de fato em construir uma imagem da FC para o público leitor, haja vista

    que raramente mantêm um projeto igual, digamos, aos de suas editoras estrangeiras adaptados

     para o Brasil, mas sim pensam nesses projetos em relação ao público brasileiro e à imagem quequerem passar de seu catálogo para tal público. 

    A partir daí, aponta-se os principais publicadores da FC no Brasil de hoje e percorre-se

    alguns pontos principais que moldam a percepção dos leitores e passam efetivamente a

    “imagem” do gênero: escolhas como as capas, a comunicação e o catálogo, que são a face

    externa dessa abordagem editorial e que influenciam diretamente como o leitor verá a ficção

    cientifica. Conhecerá a FC de hoje ou a de outrora? Estrangeira ou brasileira? Capas que

    remetem a uma tradição do gênero, correndo o risco de parecer antiquadas, ou que passaram

     por uma modernização conceitual para ficar mesmo parecendo livros de arte? Editoras que

     passam uma impressão mais geek  ou descolada do que o gênero tem a oferecer?  

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    A FC tem um grande histórico de contar com a contribuição de seus principais leitores

    na formação de seu mercado, desde o grande movimento em suas origens com as revistas pulp

    da primeira metade do século XX, nas quais surgiram, dentre os leitores, aqueles que se

    tornariam seus nomes mais influentes — como, por exemplo, Asimov, Pohl, entre outros. Por

    isso, é natural que os grandes responsáveis por trás das editoras que hoje se comprometem com

    o futuro do gênero sejam, antes de tudo, leitores e fãs da FC — e, mais que outros, apreciem e

     pensem sobre o que colocam à venda. 

     No terceiro e último capítulo, então, aborda-se o panorama mais geral do mercado de

    ficção especulativa no Brasil. A partir de verificação numérica e acesso a um debate entre

    especialistas, levanta-se a questão: entre os gêneros atualmente à venda no Brasil, a ficção

    científica ficou para trás? Como o sucesso midiático dos filmes derivados de obras literárias podem impulsionar um gênero ao estrelato? E quais são as tendências atuais do mercado e como

    elas podem influenciar nesse cenário? Ainda é cedo para se estabelecer quais são os resultados

    concretos em uma escala maior no mercado o resultado do trabalho das editoras de ficção

    científica, mas já se é possível ter indícios de em que sentido o mercado está caminhando: se

     para um crescimento, uma estagnação ou um contínuo minguar de expressividade.

     Neste capítulo, portanto, levanta-se esse potencial futuro para esta situação, sem

     procurar incorrer em futurologia, voltando-se para o presente e observando quais são os principais indícios de um porvir. 

    Processo metodológico 

    Para atingir o objetivo deste trabalho, pesquisar a situação do gênero no mercado

    editorial brasileiro, procurou-se estabelecer um breve histórico da publicação do gênero no

    mundo e no Brasil, tomando como referência autores que estudaram essa progressão do gêneroem seus determinados meios de publicação, de revistas a livros, passando por distintos

    momentos históricos ligados à produção desse gênero. 

    Após isso, foi feito o levantamento dos motivos de uma possível evolução defasada do

    apelo do gênero ao público brasileiro em relação às suas contrapartes anglo-saxãs, procurando

    elencar análises e motivos expostos por especialistas que possam justificar a colocação da

    ficção científica no que é conhecido como um “gueto literário”, tanto acadêmico quanto

    mercadológico. Aqui foram consultados tanto bibliografia estrangeira e brasileira, obras de

    referência em um mercado onde a produção de conhecimento, principalmente nacional, é tão

    escassa, além da condução de entrevistas para ajudar a tapar os vãos deixados pela

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    descontinuidade presente de um catálogo bibliográfico sistematizado. 

    Em um segundo momento, ocorreu a análise do material editorial que pode ajudar a

    entender a proposta de trabalho das editoras “de” ficção científica no mercado nacional.

    Dividiu-se o capítulo por temática abordada, mais do que por editora, focando nos aspectos

    dessas propostas, escolhidos por sua relevância para a construção da imagem do gênero: a capa

    e a escolha de catálogo, por exemplo, além das estratégias comunicacionais dessas editoras;

    aspectos que influenciam na perspectiva do gênero pelo público e pode propiciar mudança na

    relação do mercado para com a ficção científica. Coletou-se, portanto, amostras de trabalho

    efetivo de tais editoras, como exemplos de capas, escolha visível de catálogo e explicações em

    entrevistas de representantes das empresas, além de textos institucionais e interações na internet

    e na mídia. 

    A partir desse momento, foram feitas análises comparativas entre os trabalhos de tais

    editoras, levando em consideração suas ideias relacionadas ao futuro da publicação de FC e

    suas respectivas filosofias editoriais. Além disso, foram conduzidas ou coletadas entrevistas

    com os representantes dessas editoras, de modo a averiguar de fato essa política editorial e como

    ela se reflete em seu trabalho e na imagem pretendida e efetiva que fazem do gênero. 

    Em um momento seguinte, fez-se uma análise menos particular e mais abrangente sobre

    o estado do mercado da ficção especulativa, de forma a verificar a condição da FC frente aotrabalho das editoras e levantar elementos que podem causar mudanças, como a autopublicação,

    cada vez mais popular, e o mercado crescente de e-books. Neste momento, é de suma

    importância o trabalho mais completo de catalogação e coleta de dados de dado segmento: o

     Anuário brasileiro de literatura fantástica, que reúne não apenas resenhas como também dados

    numéricos relativos à publicação de livros de ficção científica e horror, e cuja última edição,

    feita em 2014 em relação a 2013, apresenta um debate e entrevistas com diversas figuras de

    relevância no mercado nacional a respeito de assuntos pertinentes a esse trabalho. Como não é possível averiguar tendências futuras em um mercado tão segmentado somente com

     bibliografia, as entrevistas, conduzidas especificamente para esta pesquisa e por outros

    veículos, também se mostram de grande valia nesse momento da pesquisa. 

    A ficção científica 

    Dito tudo isso, é necessário antes conceituar o objeto de estudo que o trabalho aborda.

    A despeito de sua história corrente durante todo o século XX, desde que Hugo Gernsback

    cunhou o termo “Science-fiction”, em 1929 (ASIMOV, 1981, p. 27), jamais conseguiu-se entrar

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    em um consenso definitivo a respeito do que o gênero abarca ou não. Como diz Asimov em um

    texto introdutório ao seu ensaio “My Own View”, “um dos jogos favoritos dos entusiastas da

    ficção científica é tentar definir exatamente o que é ficção científica; e como, por exemplo, ela

    se diferencia da fantasia” (ASIMOV, 1981, p. 17, tradução livre). 

    O próprio Asimov, em tal ensaio, joga o jogo, conceituando a ficção científica como

    histórias e atitudes que transcorrem em ambientes sociais inexistentes no presente ou no

     passado, distinguindo-a da fantasia através dessa mesma ambientação, a qual 

    se diferencia da nossa própria por mudanças apropriadas no nível de ciência etecnologia[, podendo representar] um avanço, como em um desenvolvimento decolônias em Marte, ou [...] um retrocesso, como um estudo na destruição de nossacivilização tecnológica por um desastre nuclear ou ecológico. (ASIMOV, 1981, p. 18,

    tradução livre) 

    L. David Allen, em seu ensaio “Uma tentativa de definição da ficção científica”, em No

    mundo da ficção científica, descreve-a como um subgênero da prosa que pressupõe um “ponto

    de vista particular ou um tratamento da ciência” (1974, p. 225). Faz a diferenciação entre as

    necessidades do enredo em relação à ciência corrente e uma ciência extrapolada ou imaginária,

    que diferencia fundamentalmente a ficção científica de, diga-se, um livro-texto sobre ciência

    ou uma ficção normal onde a ciência atual seja aplicada em uma situação atual, mesmo que, na

    FC, haja uma fundamentação científica que possa ser baseada em correntes de conhecimentocontemporâneas. Mas tais definições já excluem a ficção de história alternativa, também

     popularmente conhecida e definida como ficção científica por entusiastas do gênero. Dadas

    estas desavenças, é apenas natural, além de um passatempo, que outros autores também

     procurem conceituar uma visão mais própria da ficção científica como gênero. 

    Autores como o brasileiro Bráulio Tavares, por exemplo, partem de uma premissa mais

    imagética: a formação do gênero se daria a partir não de conceitos, mas de convenções

    estabelecidas no gênero. 

    As imagens típicas da FC são claras [...]: espaçonaves, mutantes, cidades submarinas, pistolas desintegradoras [...], é através desses elementos que o leitor casual, numalivraria, consegue identificar com nitidez a estante de obras de FC [...]. Enquantocategoria literária, a expressão ‘ficção científica’ é meio difícil de manejar; masfunciona perfeitamente como categoria de mercado. Todo mundo sabe intuitivamenteque Guerra nas estrelas é FC, sem necessidade de uma definição acadêmica a respeito”(TAVARES, 1986, pp. 7-8) 

    Para Tavares, nem mesmo a ciência é fundamental, o que deixa claro quando diz que

    “grande parte da FC está mais voltada para a magia do que a ciência” (TAVARES, 1986, p. 8)ao descrever os aparatos milagrosos dos personagens presentes. 

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    O também brasileiro Fábio Fernandes amplia a definição para além dos gadgets para falar

    um tanto da noção de estranhamento, o  sense of wonder  presente nas histórias: “situações

    adversas à nossa realidade cotidiana e nem sempre vinculadas diretamente ao uso de tecnologia

    [...], criando na mente do leitor uma sensação simultânea de familiaridade e de estranhamento”

    (2006, p. 32). Em um segundo momento, elenca certos arquétipos da FC originalmente

    levantados por Raul Fiker, de maneira não muito diferente da de Tavares no começo de seu

    livro. 

    Esses arquétipos são elementos fundamentais para compor a especificidade danarrativa de ficção científica, mas não são os únicos. Segundo Muniz Sodré [...], adificuldade de definir esse tipo de narrativa é semelhante ao problema semântico daelucidação dos significados das palavras. Sodré considera que a identificação se dá na

     prática (FERNANDES, 2006, p. 34) 

    Ou seja: ficção científica se reconhece mais pelo  feeling , pela familiaridade, do que por

    alguma definição conceitual como a de Allen ou Asimov. No entanto, uma de tais definições

    mais conceituais que poderia abarcar também os tipos de histórias excluídas por outros autores

    seria a do estudioso e crítico Darko Suvin, elencada por Cláudia Vasconcellos em sua

    monografia sobre a americanidade em Caves of Steel , de Isaac Asimov: “A definição de Suvin

    é uma baseada principalmente na teoria literária, e o autor afirma que não é possível obter uma

    definição da FC pelos textos considerados FC, já que o resultado seria um conceito ‘primitivo,subjetivo e instável’” (VASCONCELLOS, 2014, p. 10). Isso cria um contraponto à ideia tanto

    de Sodré apontada por Fernandes quanto a do gênero comercial levantada por Tavares. 

    Suvin (apud KLÉIN, 2000, pp. 67-8) define a FC como uma literatura diferenciada pela

    introdução de um “novum” validado pela lógica cognitiva, definido por ele como “inovação

    cognitiva, um fenômeno ou relacionamento totalizante que desvia da realidade normativa do

    autor e do leitor potencial”, uma cognição que pode ser “desenvolvida metodicamente contra o

     pano de fundo de cognições já existentes, ou ao menos como um ‘exercício de pensamento’,segundo uma lógica científica, ou seja, cognitiva, correntemente aceita” (SUVIN apud KLÉIN,

    2000, p. 70). 

    Seria, portanto, uma FC baseada na mudança — e não necessariamente no futuro ou

    desenvolvimento linear tecnológico — que ainda assim exigiria um grau de verossimilhança de

    acordo com a realidade do autor e do leitor em questão, fundamentando, quiçá, uma

    conceituação abrangente, mas firme, da ficção científica. 

     Não se planeja esgotar um aparato conceitual ou definitivo a respeito da conceituação da

    FC — como todo autor não deixa de frisar, esta é uma tarefa complicada, recheada de polêmica

    e de suas próprias contradições, com cada definição pretendida excluindo alguns e incluindo

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    outros, causando a inevitável controvérsia. Apesar dessas definições e deste trabalho árduo

    empreendido por alguns dos estudiosos da FC, quando tratamos de mercado, o que importa de

    fato não é tanto uma conceituação acadêmica do que é a ficção científica — é mais importante

    o que o público vê e compreende como ficção científica. 

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    1 A PUBLICAÇÃO DE FICÇÃO CIENTÍFICA NO PASSADO: UM GUETO

    LITERÁRIO 

    1.1 Breve histórico da criação e da publicação de ficção científica 

    1.1.1 Na Europa e nos Estados Unidos 

    Tomando como ponto inicial a invenção da prensa móvel de Gutenberg, em meados do

    século XV — tornando possível o desenvolvimento de um mercado editorial —, a ficção

    científica como gênero é relativamente recente nos anais da produção literária e editorial

    mundial. Isaac Asimov, um de seus expoentes mais conhecidos, afirma em seu artigo “ThePrescientific Universe”, republicado no livro  Asimov on Science Fiction (ASIMOV, 1981, p.

    99) que a FC não poderia ter existido em sua concepção clássica antes da Revolução Industrial,

     pois, sendo uma literatura voltada para o futuro, só é passível de surgimento quando começa a

    haver um pensamento estabelecido do porvir.

    Tal pensamento, por sua vez, existiria tão somente quando há alguma projeção de

    mudança, ou seja, quando as transformações no modo de vida do mundo — através de algum

    desenvolvimento tecnológico — acontecessem de forma rápida o bastante para serem sentidase percebidas no tempo de vida de um indivíduo qualquer. “Então não havia, até os tempos

    modernos, qualquer literatura que lidasse com o futuro, já que parecia que não havia algo sobre

    o futuro que não pudesse ser tratado nos termos do presente” (ASIMOV, 1981, p. 103). Somente

    com a Revolução Industrial essas mudanças começam a acontecer em ritmo acelerado,

     projetando imagens do futuro e tornando possível, então, o surgimento da ficção científica

    (ASIMOV, 1981, p. 104). 

    E, no entanto, cada obra que trata da história do gênero faz questão de estabelecer as obras

    de “proto” ficção científica, precursores que tomaram as rédeas de situações análogas à FC

    antes que o gênero surgisse como algo identificável e, portanto, estabelecido. Muitas vezes,

    essas mesmas obras não concordam entre si em quais são “proto” FC e as que já são

     propriamente ficção científica. André Carneiro, em sua  Introdução ao estudo da “science-

     fiction” (1968, pp. 27-30), elenca vários destes precursores, datando de épocas longínquas:

    desde Plutarco e Cyrano de Bergerac a Jonathan Swift e seu Gulliver , passando pelas utopias

    de Platão e Thomas More e repousando, enfim, sobre o  Frankenstein, de Mary Shelley. Todas

    histórias fantásticas com elementos que se apresentaram mais tarde na ficção científica: as obras

    citadas por Carneiro em sua introdução frequentemente tratam do tema de viagem à Lua, que

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     parece recorrente desde a Antiguidade — obras que já apresentavam convenções que mais tarde

    viriam a se tornar comuns na ficção científica, mas ainda sem o estabelecimento das condições

     propícias ao seu desenvolvimento. Asimov, por sua vez, já considera Shelley — que Carneiro

    considerou uma precursora, apesar de bem mais próxima ao gênero do que seus antepassados

     — a autora do primeiro livro de fato que pode ter fundado o gênero como o conhecemos; fruto,

    sem dúvida, de sua visão da Revolução Industrial britânica como o berço do gênero (ASIMOV,

    1981, p. 105). 

    Carneiro rotula  Frankenstein de “romance fantástico” (CARNEIRO, A.,1968, p. 33),

    categoria à qual relega também Robert Louis Stevenson e Edgar Allan Poe, entre outros, ao

    afirmar que há menos de uma justificação propriamente científica, não obstante as vagas

    observâncias de ciência (com resquícios de ocultismo) que o doutor Frankenstein não deixa deestudar durante o primeiro pedaço do romance. “Poder-se-ia caracterizar a diferença entre a

    literatura fantástica e a [FC] pela impressão de arbitrário geralmente colocado pela primeira, a

    sensação pela sensação, sem nenhuma tentativa de situar possibilidades reais, embora

    longínquas” (CARNEIRO, A., 1968, p. 32). Ainda assim, Carneiro concede que Shelley está

    mais para a FC do que para o romance fantástico: “Predecessora marcante (que, aliás, melhor

    se ajusta na ‘science-fiction’ do que no romance fantástico) é Mary Godwin Shelley, criando o

    cientista Frankenstein [...]” (CARNEIRO, A., 1968, p. 32). Apesar disso, não cita por queexatamente o enquadra em um e não em outro. 

    Há consenso se tratar de ficção científica — ainda que em uma forma mais originária —

    a obra de dois europeus que escreviam ao fim do século XIX, pouco depois da publicação de

     Frankenstein: Júlio Verne, autor das mais famosas “viagens extraordinárias” como Vinte mil

    léguas submarinas e Viagem ao centro da Terra, e Herbert George Wells, vulgo H. G. Wells,

    cujos trabalhos fundariam grandes temas do gênero, como o seu Guerra dos mundos, primeiro

    livro a tratar de guerra interplanetária (ASIMOV, 1981, p. 106), ou  A máquina do tempo,introduzindo à ficção científica o campo da viagem temporal. 

    Verne foi o primeiro do que se poderia chamar de “escritor de ficção científica”, no

    sentido de que a maior parte de seus dividendos com o passar dos anos foi fruto da escrita de

    tais obras (ASIMOV, 1981, p. 105). Tomou seu tempo em fabricar histórias a ser consideradas

    o instilador de “maravilha” em gerações a fio: “Todo mundo leu Júlio Verne e experimentou

    esta capacidade prodigiosa de fazer sonhar, que foi o quinhão do seu gênio erudito e ingênuo”

    (BUTOR apud CARNEIRO, A., 1968, p. 39). Hoje em dia, seus livros são considerados de teor

    mais juvenil, com uma abordagem mais didática e banal da ciência (CARNEIRO, A., 1968, p.

    39), mas ele se orgulhava de, ao contrário de Wells, justificar cientificamente todos os seus

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     preceitos. Chegou a criticar o contemporâneo por seu uso de artifícios tecnológicos

    extrapolativos — ao contrário da ciência de que dispunham na época — quando Wells

    introduziu em seu O primeiro homem na lua o “metal antigravidade” que permitia a viagem

    espacial: “Eu faço uso da física. Ele a inventa.” (VERNE apud CARNEIRO, A., 1968, p. 41) 

    André Carneiro, sobre tal polêmica, afirma que isso mostra bem a diferença sobre o que

    Verne fazia e o que viria a se tornar a FC estabelecida — a extrapolação, o uso do verossímil e

    do plausível de forma a ressoar como artifício da história para permitir os desenvolvimentos

    desejados, focando em relevo psicológico e vivência dos personagens em vez de uma

    autolimitação às ciências disponíveis na época (CARNEIRO, A., 1968, p. 41). É o recurso de

    extrapolação futura da tecnologia que tão fortemente marca o gênero em seus preceitos. 

    Leo Godoy Otero, em sua Introdução a uma história da ficção científica (1987, p. 82),denomina este período antes do boom das pulps, durante o século XIX e começo do XX, de

    “período primitivo” da ficção científica. Segundo Otero (1987, p. 82-83), sem forma definida,

    o gênero era publicado de maneira irregular e sem linha firme, publicando-se tudo o que se

    assemelhava a seus temas de antecipação, mesmo quando escritos sob uma base gótica ou

    aventuresca. 

    Era publicado para a juventude, sem uma tentativa de amadurecimento do gênero —

    como viria mais tarde — e ao lado das incipientes histórias em quadrinhos, as comicsamericanas, a partir de 1895, que viriam a se tornar o que Otero chama de “os paradigmas da

     juventude de uma vigorosa nação”. “Até aí, editava-se uma miscelânea de prosa antiga,

    fantástica, terrorífica, ombreando-se agora com aqueles ‘designs’, os quais [...] serviam à

    imaginação dos forjadores do futuro” (OTERO, 1982, p. 83). Alguns anos se passariam neste

     período — espaçado e irregular para o gênero — antes que começasse a publicação sistemática

    da FC. 

     Na passagem para o começo do século XX começaram a surgir nos Estados Unidos o quese caracterizou como o fenômeno da pulp fiction: revistas feitas a partir de um papel de baixa

    qualidade, da polpa da madeira — ao contrário das de boa qualidade, as  slick magazines —,

    vendidas a preços módicos e repletas da ficção dos “subgêneros”: suspense e horror, mistérios

    e grandes aventuras, que chamavam a atenção dos jovens e vendiam altas tiragens em seu

    momento de maior alcance. 

    Hugo Gernsback, imigrante luxemburguês, é até hoje lembrado como o pioneiro que deu

    início à publicação de FC em revista nos Estados Unidos (ASIMOV, 1981, p. 107). Com sua

     Amazing Stories, principiada em 1926, propôs-se a alavancar o gênero, preenchendo seus

    exemplares com reimpressões de histórias de Verne e Wells para não deixar espaços em branco.

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    O surgimento do fandom1 — o grande corpo de leitores e contribuintes que se seguiriam —, no

    entanto, fez com que a produção original começasse a se multiplicar e o material original

    deslanchasse, geralmente se focando em aventuras sensacionais ou na mera invenção de

     gadgets especiais para atrair um público maior (ASIMOV, 1981, p. 107). 

     Não demorou para que outras revistas seguissem o modelo, sendo lembrada como uma

    das mais icônicas a  Astounding Science Fiction,  anteriormente  Astounding Stories, que,

    chefiada pelo escritor John W. Campbell Jr., em 1938, subiu o nível da produção literária e

    estabeleceu um marco inicial do que viria a ser considerada a “Era de Ouro”, ou Golden Age,

    da ficção científica americana (ASIMOV, 1981, p. 137), revelando autores como Isaac Asimov

    e Frederik Pohl, além de contar em seus exemplares com histórias de Robert A. Heinlein e

    Arthur C. Clarke. 

    Segundo Asimov, nessa época, as histórias ainda tinham um teor otimista para com a

    ciência: o protagonista era geralmente um cientista ou um engenheiro — alguém de

    envolvimento direto com a ciência — que inventava e usava a tecnologia para a solução de

     problemas específicos. “Não havia nada que os americanos não pudessem fazer na grande

    década de 1920, e as ‘histórias de superciência’ se originaram em consequência disso”

    (ASIMOV, 1981, p. 107). Cabe lembrar que, em um panorama editorial, a publicação de ficção

    científica em livros era virtualmente inexistente — os romances, as novelas e as histórias maislongas, nessa primeira metade do século antes da Segunda Guerra Mundial, eram serializados

    nas revistas e dividiam seu espaço com os contos, as short stories que popularizaram o gênero. 

    Por isso, o panorama editorial era majoritariamente efêmero. Nas palavras de Asimov

    (1981, p. 121, tradução livre), que começou lendo e passou a escrever para estas revistas —

    majoritariamente a  Astounding de Campbell: “Uma história estaria disponível por um mês e

    então desapareceria para sempre, exceto pelos sótãos de alguns colecionadores das revistas.”

    Como seus autores eram pagos por palavra, através de pagamento via cessão de direitos autoraisna data de publicação, e não recebiam royalties, os que quisessem dali tirar certo sustento

    deveriam estar sempre escrevendo novas histórias e ser capazes de vendê-las para as revistas

    do momento.

    Livros de ficção científica, encadernados em brochuras ou exemplares de capa dura, só

    viriam a se tornar uma realidade após a Segunda Guerra Mundial e durante a Guerra Fria. Pode-

    se apontar alguns motivos para isso, entre eles o primeiro a queda das bombas atômicas, artefato

    “previsto” pela FC antes de sua concepção — desde a descoberta da fissão do átomo, escritores

    1 Termo comumente usado para se referir a uma subcultura de fãs, organizados ou não, reunidos em torno de seuobjeto de interesse comum. 

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    extrapolaram para este fim lógico da capacidade científica da invenção.

    Um exemplo claro deste fenômeno foram certos contos publicados entre as décadas de

    1930 e 1940 cujo diferencial era descrever algo similar ao que viria a se tornar a bomba atômica.

    Otero (1982, p. 117), cita a novela publicada ainda durante a execução do projeto Manhattan,

    “Solution Unsatisfactory”, escrita por Robert A. Heinlein sob o pseudônimo de Anson Mac

    Donald. Na história, “o governo dos [EUA] deveria estudar um plano visando à fabricação de

    uma arma baseada na energia nuclear, a partir do urano 235 [e] essa arma, assim produzida,

    seria capaz de destruir uma cidade inteira”. Enquanto no conto de Heinlein a guerra acaba

    imediatamente após a queda da bomba em Berlim, em nossa história tal fato se daria com

    similaridade nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. Publicando a história em 1940, Heinlein

    teria de enfrentar uma investigação do FBI, que acabou resultando em nada, já que o autor denenhuma forma estava relacionado ao Projeto Manhattan. Segundo Otero (1982, pp. 117-118), 

    caso idêntico ocorreu com outro romancista americano, Cleve Cartmill, ao publicar,em 1944, [...] um conto intitulado “Deadline”, no qual descreve um artefato atômico,com pormenores suficientes para tentar construí-lo. A impressão produzida nos meiosespecializados foi tão estarrecedora que o indefectível FBI, cercando policialmente asede do periódico, inquiriu o autor e o redator da revista, na época John Campbell. 

    Tais acontecimentos subitamente permearam o gênero de uma nova autenticidade antes

     pouco desfrutada. Ao mesmo tempo que o gênero repentinamente ganhava certa “credibilidade”com o feito — deixando parcialmente de ser motivo de desdém por parte da população —,

    iniciava-se o período em que se veria um grande e rápido desenvolvimento científico e que

    culminaria na corrida espacial. Esse fator viria a ser importante para o desenvolvimento do

    gênero no Brasil, quando — como veremos mais à frente — escritores foram influenciados pelo

    lançamento do satélite Sputnik a se aventurar na ficção científica pela primeira vez. 

    O fim da chamada “era Campbell” viria na passagem para os anos 1960, quando o mundo

     parecia se tornar um tanto mais desiludido com a ciência, por causa dos rumos que tomava,com a ameaça atômica propiciada pela mesma Guerra Fria que impulsionava a FC com sua

    corrida espacial (OTERO, 1982, p. 115). Desde o fim da guerra, a tecnologia lentamente

    adquiria uma aura de desconfiança, utilizada com propósitos militares, que substituía o

    otimismo regado por gadgets imaginado pelos escritores dos primórdios da Era de Ouro. Cabe

    lembrar que a conhecida e renomada distopia de George Orwell, 1984, foi escrita pouco depois

    do fim da guerra, em 1948, como uma reação ao regime stalinista. Orwell postulava a ciência

    como propiciadora da vigilância constante e, portanto — embora não o colocasse nessas

     palavras —, uma inimiga em potencial, mesmo que o problema fosse mais político do que

    efetivamente tecnológico: a crítica recaía menos sobre a ciência e mais sobre o regime que a

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    utilizava. Não obstante, trazia à tona seu potencial como instrumento de opressão, já visto antes

    em outras obras como o Admirável Mundo Novo, de Huxley, publicado antes mesmo da Era de

    Ouro, em 1932. 

    Simultaneamente, a popularização da televisão diminuía o consumo de literatura no geral:

    “Muitos abandonavam seus vícios em ficção popular em livros e revistas para assistir à ficção

    televisiva — os faroestes, programas criminais,  sitcoms” (ASIMOV, 1981, p. 125, tradução

    livre). Para Asimov (1981, p. 125), parecia que apenas a ficção científica — recentemente

    imbuída de sua aura de credibilidade — continuava a vender exemplares, o que levou a

    escritores mais liberais, pouco acostumados ou até mesmo hostis ao gênero, a se aventurar em

    seu meio. Escreveriam FC por falta de opção. Ao mesmo tempo, juntavam-se a eles membros

    do mesmo  fandom, um pouco mais recentes, mas ainda assim entusiasmados pelo gênero,influenciados pelo seu convívio e crescimento em uma época de diferente apelo da ciência a

    escrever outro tipo de FC.

    A essa mistura, mais liberal em termos de violência e sexo, mais pessimista em relação à

    tecnologia da qual tratavam, mais experimental em estilos e temas, foi dado o nome de new

    wave, a “nova onda”, movimento deflagrado por Brian Wilson Aldiss. Segundo o movimento,

    Otero explica: “a Nova Onda é mais um fato isolado que propriamente uma escola, mais uma

    vocação desse ou daquele ficcionista, curiosamente, entretanto, cultuada por intelectuaiscapacitados” (OTERO, 1982, p. 150). 

    A recepção da new wave, com todas as mudanças que trazia para o gênero, foi mista.

    Asimov a encarava como benéfica para o campo, “quebrando o molde Campbell que estava

    começando a limitar a ficção científica, e propiciando uma maior liberdade de expressão maior

     para até mesmo aqueles que continuavam a escrever a ficção científica hard ” (ASIMOV, 1981,

     p. 126, tradução livre). E não apenas isso: gerou a entrada mais livre de mulheres no gênero,

    que, antes da new wave, escreviam com pseudônimos em um campo tomado pelo sexomasculino (ASIMOV, 1981, p. 127).

    O escopo maior que a FC tomava a aproximava da literatura mainstream.  Nessa época

    viriam grandes nomes que marcariam o gênero na segunda metade do século na América e na

    Inglaterra, como Anthony Burgess, Ben Bova, Harlan Ellison, Philip José Farmer, Frank

    Herbert, e entre os nomes antigos A. E. Van Vogt, Robert Heinlein, Poul Anderson, entre outros.

    Esta FC possuía uma exploração mais aprofundada dos aspectos sociológicos e psicológicos de

    suas ideias; um aspecto mais humano, menos tecnológico, reforçado para os leitores do gênero. 

    Com essa produção, mais fácil de ser deglutida pelas pessoas de fora do  fandom,

    combinada ao declínio do fenômeno pulp e o aumento da publicação de FC em livros de fato

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     — como a maioria da bibliografia de alguns dos escritores citados acima —, o fenômeno

    editorial da ficção científica, popular no começo de segunda metade do século XX, tirou a

    efemeridade característica do gênero durante a Era de Ouro. Agora não se precisavam mais

    forçar contos e contos para ter um magro sustento como escritor — era possível se focar em

    romances e publicá-los. Ao mesmo tempo, pouco a pouco estrear como escritor tornava-se

    difícil, pois os padrões de qualidade haviam crescido: “Não seria possível que eu vendesse o

    equivalente a minhas primeiras histórias no mercado de hoje em dia” (ASIMOV, 1981, p. 116,

    tradução livre). A ficção científica se tornava um fenômeno de livros — de histórias impressas,

    encadernadas, distribuídas e vendidas, separadamente e em suas respectivas antologias.

    Otero (1982, p. 132) chama esse período após 1958 de “Período Sincrético”. Segundo ele,

    há uma miscelânea de assuntos, com um pouco de cada período — “a paz, a concórdia e o bem-estar” dos primeiros tempos com “a cibernética rebelde” das linhas mais pessimistas convivem

    entre si: “uma busca objetiva de interpretação de inúmeras fontes científicas” (OTERO, 1982,

     p. 132), com certo foco e abertura para ciências como cosmologia e antropologia em convívio

    com a parapsicologia e a física, não mais “balbuciantes como em ‘períodos passados’, mas

    ousadas e vitoriosas” (OTERO, 1982, p. 133). 

    Ciro Flammarion Cardoso (1998, p. 26) afirma, sobre a tendência que viria mais tarde —

    o cyberpunk dos anos 1980 — que a estética teria sido antes inaugurada no audiovisual do quena literatura: o filme Blade Runner , de Ridley Scott, de 1982, baseado no romance  Androides

     sonham com ovelhas elétricas?,  de Philip K. Dick. Cardoso apresenta o período como

    caracterizado pelo transmídia e entrecruzamentos no gênero: “filmagens de romances [...],

    romances derivados dos roteiros de filmes, séries de TV engendrando histórias em quadrinhos,

    romances ou filmes” (CARDOSO, C. F., 1988, p. 26), que não eram novidade, mas uma

    tendência em crescente intensificação, culminando nessa década. 

    O cyberpunk teria sido um termo cunhado pelo editor Gardner Dozois para caracterizaruma tendência vista em autores como William Gibson e Bruce Sterling — cyber da cibernética

    e punk das tendências tomadas da cultura do rock da década anterior: 

    Futuro quase sempre próximo, dominado por grandes corporações capitalistas, seja naTerra, seja no espaço, globais mais do que nacionais, as quais controlam redesmundiais de informação; as possibilidades do corpo humano aumentadas porimplantes de elementos mecânicos e cibernéticos, pela engenharia genética ou pelouso de drogas; a realidade virtual como uma espécie de mundo à parte, ao mesmotempo simulacro e realidade alternativa em que se movem as personagens; bandos derua rivais, hostis aos poderes estabelecidos, agressivos (há um verdadeiro culto à

    violência, embora mais sistematicamente no cinema), agindo em cidades cheias delixo e sucata; desilusão e alienação: uma estratégia narrativa típica do cyberpunk é ado desvelamento, camadas sucessivas de engodo, falsas aparências e falsasinformações sendo sucessivamente removidas diante dos olhos de um herói muitas

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    vezes frágil e perplexo. (CARDOSO, C. F., 1998, pp. 26-27) 

    Assemelhando-se desta forma à distopia da new wave, adaptada para um período mais

    moderno, com o uso mais corriqueiro de elementos da cibernética, o cyberpunk também se

    caracteriza por, apesar de ter criado tendência, não ter extinguido as formas anteriores de se

     produzir e publicar FC — a mesma coisa que a onda anterior. “Na verdade, a new wave e mais

    ainda o cyberpunk, apesar de sua novidade, foram movimentos influentes, mas minoritários”

    (CARDOSO, C. F., 1998, p. 27). 

    Até o cyberpunk , essa é geralmente a linha do tempo montada pelos livros que se propõe

    a esta historiografia da ficção científica, com as obras mais recentes, do século XXI em diante,

    ainda fora de um espectro preciso, como ainda o estamos vivendo. É o tempo, talvez, que dará

    continuidade a essa história, catalogando a produção contemporânea tanto possivelmente em

    uma espécie de nova escola (como o vem fazendo em relação aos gêneros correlatos como o

    new weird ) ou o reconhecendo em uma saudável multiplicidade de produções que, mesmo

     potencialmente existente naquela época, geralmente é ignorada em prol das tendências mais

    expressivas. 

    1.1.2 No Brasil  

     No Brasil, embora tenha havido tentativas, o fenômeno pulp para a ficção científica não

    vingou. Revistas foram publicadas aqui e acolá, como a Galáxia 2000  e a  Isaac Asimov

     Magazine (versão brasileira de outra que já existia em território americano), com um atraso de

    algumas décadas, mas raras vezes elas duraram mais do que poucos anos (ver Anexo A). Os

     percalços da publicação desse gênero no país seguiram outros caminhos, embora não raramente

    influenciados pelas “casas” principais da FC no mundo: os Estados Unidos — principalmente

     — e a Europa. E, no entanto, aparentemente também começamos na mesma época. Alguns estabelecem

    como um dos primeiros livros de FC no Brasil a obra de Augusto Emílio Zaluar, português

    radicado no país, publicada no fim do século XIX — O doutor Benignus. Divide bem as

    características com os precursores dessa época, mais especificamente Júlio Verne, em sua

    situação de livro de viagem extraordinária: uma espécie de primeira precursão da ficção

    científica no Brasil.

     No romance, o protagonista cientista, com espírito desbravador; o aspecto algo didáticoda obra, já que Benignus vai explicando diversos fatores geográficos e biológicos que encontra

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     pelo caminho; a grande romantização da viagem, tomada aqui como ponto de partida para a

    descoberta de algo grandioso, uma odisseia por si só. É bastante reminiscente, nesse sentido,

    dos romances dos já citados pioneiros da FC mundial, Verne e Wells, dividindo consigo

    características do chamado “scientific romance” (CAUSO, 2003, p. 128). 

    Se  Benignus  passa em grande parte despercebido pela história e pela crítica, talvez

     possamos ver isso como um presságio de como se desenvolveria, em grande parte, este começo

    da história da ficção científica no Brasil: publicações “pingadas”, de autores já consagrados que

    se aventuram pelo gênero uma vez (parte das vezes mesmo de forma inconsciente) para então

    retomar sua produção literária distinta. Talvez seja o caso com contos únicos como os de

    Machado de Assis (“O imortal”) e de Aluísio de Azevedo (“Demônios”), além do posterior

    romance de Monteiro Lobato O presidente negro ou O choque das raças. 

    Fausto Cunha aponta a existência de histórias esparsas publicadas em revistas nas décadas

    de 1930 e 1940 no Brasil: “revistas de contos policiais como  X-9 e  Detective, que incluíam

    histórias de ficção científica, embora naquela época não fossem reconhecidas como tais”

    (CUNHA, 1974, p. 6) — só seriam identificadas como gênero, que aliás variou de nome entre

    ciência-ficção e  science-fiction, mesmo, nos fins da década de 1950 (CUNHA, 1974, p. 7).

    Cardoso enxerga em tudo antes dos anos 1960 uma “proto” ficção científica brasileira, “mesmo

    admitindo que Jerônimo Monteiro fosse, já um autor do gênero: um caso único não muda deverdade o panorama” (CARDOSO, C. F., 1998, p. 83).  

    Enquanto a FC nos Estados Unidos começaria seu grande boom nos anos 1920, com o

    surgimento de Gernsback no mercado da  pulp fiction, teríamos a publicação sistemática de

    ficção científica no país apenas com o trabalho de Gumercindo Rocha Dorea, com sua editora

    GRD, na década de 1950. Dorea se destacaria pela sua publicação de FC a partir de 1958 e nos

    anos de 1960 adentro — não apenas em obras estrangeiras do gênero, importadas de países que

    tiveram sua produção sistemática, mas também de autores nacionais. 

    Aparece, ainda em 1961, a primeira antologia de autores brasileiros de S.F. editada pela G.R.D. Chamava-se Antologia brasileira de ficção científica e trazia um prefácio[...], bom artigo de crítica de João Camilo de Oliveira Torres. [...] No princípio de1962 a G.R.D. lançava a segunda antologia de contistas brasileiros de S.F., com otítulo Histórias do acontecerá, título dado por Rachel de Queiroz. (CARNEIRO, A.,1968, p. 114) 

    Também dessa época viriam alguns livros editados pela Edart, escritos por nomes como

    André Carneiro e Jerônimo Monteiro (CUNHA, 1974, p. 11). Embora se tenha convencionado

    mais tarde chamar por alguns autores esta época de “Primeira Onda” da ficção científica brasileira (GINWAY, 2005, p. 25), talvez inspirados pela nomenclatura trazida pela new wave

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    americana (a ela contemporânea), é visível que a produção e publicação brasileira neste tempo

    era tão ou mais espaçada e menos numerosa no Brasil do que a publicação sistemática mensal

    de contos, por anos, que caracterizou a Era de Ouro e, mais tarde, a new wave nos Estados

    Unidos e na Inglaterra. 

    Desta época despontaram alguns autores, não exclusivos de FC, mas que contribuíram

    sua parcela no gênero, como o próprio André Carneiro, Rubens Teixeira Scavone, Fausto Cunha

    e Dinah de Queiroz (CARNEIRO, A., 1968, p. 114). No entanto, como os autores de antes, eles

     participaram do gênero uma vez, fizeram sua contribuição e voltaram à escrita

     predominantemente realista: “Para muitos desses escritores a escrita de ficção científica era um

    experimento, e com o fim da coleção de ficção científica de Dorea, a maioria deles

    simplesmente abandonou o gênero” (GINWAY, 2005, p. 32). 

    Bráulio Tavares atribui, em entrevista, esse abandono ao fato de que a iniciativa por trás

    dessa publicação e produção de FC vinha do próprio Dorea, e que, feito esse “favor”, a maioria

    dos escritores não tinha interesse em continuar no gênero: “Passado o entusiasmo inicial,

     publicado o conto ou o livro, depois de atendido o pedido do amigo editor, o autor voltava às

    suas atividades habituais, Gumercindo ia tentar convencer outros escritores, e a participação

    daquele ficava por isso mesmo.” (Ver Anexo A) E, no entanto, houve suas exceções, como

    Dinah Silveira Queiroz, que, segundo Tavares, voltaria repetidamente a escrever FC. Para Cunha, “numa história tão pobre como a da ficção científica e mesmo da fantasia no

    Brasil, há que usar uma rede muito larga e de malha muito fina para não perder nenhum peixe,

     por menor que seja” (CUNHA, 1974, pp. 9-10). Ao citar Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Coelho

     Neto, Augusto dos Anjos e outros como possíveis participantes em uma antologia de ficção

    científica brasileira, admite implicitamente que sua produção e publicação era distinta da dos

     países anglo-saxões no sentido de que era raro haver um escritor de ficção científica em terras

    tupiniquins — como, podemos citar, Jerônimo Monteiro —, mas apenas eventuaiscolaboradores dos nomes já firmados nas letras brasileiras (CUNHA, 1974, pp. 9-10). 

    A despeito de tudo, houve uma tentativa por parte de alguns entusiastas para a publicação

    de versões brasileiras das revistas de FC americanas. Fausto Cunha narra sua epopeia para

     publicar uma dessas revistas: “assinei contrato com Frederik Pohl para lançar no Brasil uma

    revista [...] aproveitando material de Galaxy,  de  If e do  Magazine of Fantasy and Science

     Fiction.  Não encontrei editora interessada na joint-venture” (CUNHA, 1974, p. 13). 

     Não obstante, mais tarde a Cruzeiro e a Globo assumiriam encargos de publicá-las: a

    Galáxia 2000 e a Magazine de Ficção Científica não duraram muito tempo; a primeira pouco

    mais de três exemplares e a última, cerca de vinte, sendo cancelada por venda média

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    insatisfatória (CUNHA, 1974, p. 13). Mais tarde, a Isaac Asimov Magazine do Brasil também

    renderia algumas dezenas de número nos anos 1990, apenas para também ser extinguida. 

    Bráulio Tavares correlaciona a falta dessa existência de um mercado pago de publicação

    em contos por revista com a falta histórica de uma maior profissionalização do gênero no país,

     pois “priva a FC brasileira de uma importantíssima antecâmara existente na Europa: as revistas

    especializadas, em que os escritores tornam seu nome conhecido e conseguem uma

    remuneração capaz de fazê-los dar com segurança o passo seguinte” (TAVARES, 2011, p. 16),

    transformando a carreira literária — já de segundo plano, mesmo no mainstream, no mercado

    nacional — de FC em uma “carreira secundária não remunerada, que mesmo quando cercada

    de aparato profissional [...] não tem como constituir uma profissão” (TAVARES, 2011, p. 17).  

    Por outro lado, o fenômeno da pulp fiction, segundo Tavares, parece ter deslanchado coma ficção policial, enquanto que a ficção científica teria ficado limitadas a um formato digest, de

    dimensões menores: 

    Houve no Brasil um movimento editorial de  pulp fiction, mesmo que sua escala não possa ser comparada à do fenômeno equivalente nos EUA. Mas essas revistas ou eramde gêneros variados ou eram (a maioria) de contos policiais. Não tivemos (ao que eusaiba) pulp fiction de FC no Brasil. Isto, a meu ver, reflete a lentidão com que o gênerofoi assimilado entre nós. O sucesso das pulp magazines policiais, entre nós, era muitogrande. (Ver Anexo A) 

    Mas com a extinção das poucas revistas que surgiram no Brasil, a FC ficou resumida a

    livros e antologias. No panorama editorial da época, Cunha aponta, além da GRD e da Edart, a

    editora Bruguera, mais tarde Cedibra, com dois selos, Urânia e Ficção Científica, “sob os quais

    saíram perto de 100 títulos [...], foram duas coleções que não pegaram” (CUNHA, 1974, p. 14).

    Aponta um motivo para isso: “O problema com as editoras de grande porte é que elas adquirem

    direitos autorais em grosso [...] de forma que a média é quase sempre de medíocre para baixo.

    As traduções [...] nem sempre ajudam” (CUNHA, 1974, p. 14). As editoras misturavam material

    de qualidade, segundo ele, como um Bradbury, a obras de qualidade duvidosa, em suas

    coleções, de forma que o sucesso das coleções era, no mínimo, irregular, o que prejudicava o

    gênero como um todo em terras nacionais. 

    O que sucederia essa produção só viria muitos anos depois, nos anos finais da ditadura,

    durante a qual a produção de FC deu lugar às distopias, sem dúvida influenciadas pelo panorama

     político do país e pelo contexto ideológico no qual os escritores estavam inseridos. “No caso

    do Brasil, onde um processo de modernização forçada aconteceu de mãos dadas com um regime

    militar repressivo e tecnocrático, obras distópicas demonstraram a relevância do gênero para a

    realidade brasileira” (CUNHA, 1974, p. 33). Mesmo tomando a distopia como subgênero

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    necessariamente de ficção científica — o que alguns, como Ginway (2005, p. 93), concordam;

    mas outros, como Asimov, em sua crítica a 1984 (ASIMOV, 1981, pp. 275-289), parecem

    discordar —, os autores que escreveram estas obras não pareciam ter o pensamento e a ideia de

    que produziam para o gênero, mas apenas criavam uma versão alegorizada da realidade, “com

    claras alusões ao uso calculado [...] de censura, controle da mídia, tortura [...] dos militares”

    (GINWAY, 2005, p. 94). No final, era apenas o método mais claro de extravasar seu ideário.

    Como diz Ginway, sobre o uso de utopia e distopia por autores desacostumados com o gênero

     — do mainstream, como podem ser considerados alguns dessa geração, como Chico Buarque:  

    Por causa da longa tradição literária da ficção utópica, e de suas ligações com a sátira,muitos autores mainstream contemporâneos, quando tentam se envolver com a ficçãocientífica, acabam escrevendo obras que caem dentro dos parâmetros da ficçãoutópica. Isto é claramente o caso de vários autores brasileiros escrevendo durante o

     período autoritário e que, em seu esforço em criticar as políticas de modernização erepressão da ditadura, usam clássicos conhecidos como  Admirável Mundo Novo [...]e 1984 [...] como modelos para suas próprias criações literárias. (GINWAY, 2005, p.94) 

    Gary Wolfe (apud GINWAY, 2005, p. 94) também afirma, sobre o caso: “autores

    mainstream, embora sua ficção possa frequentemente ser superior em termos de estilo e

    caracterização, reciclam enredos costumeiros e falham em oferecer aos leitores de ficção

    científica o reforço de sua subcultura”. Nessa tentativa, criou-se então uma “versão brasileira”

    dos clássicos distópicos, com todos os mesmos tropos — a revolução, a tecnocracia burocrática

    e destrutiva. Bráulio Tavares descreve, também, essa produção como descentralizada e

    individual: “esforços isolados de escritores que na maior parte dos casos estavam apenas

    escrevendo histórias que lhes vinham à cabeça, sem ideia de estar participando de um

    movimento coletivo.” (Ver Anexo A) 

    Mais uma vez, enfim — no panorama editorial —, temos ficção científica publicada,

     porém, dessa vez, sem a intenção ou mesmo a consciência de que se tratem de obras do gênero.

    Autores mainstream escreveram seus livros distópicos — Chico Buarque, Herberto Sales,

    Ignácio de Loyola Brandão —, tratando de temas como controle de mídia, domínio da

    reprodução, exploração da natureza. 

    Sobre a publicação dos anos 1970, nos quais escrevia seu ensaio, Cunha caracterizou o

     panorama que presenciava: 

    [T]em havido lançamentos avulsos, quase sempre sem indicação de tratar-se de ficçãocientífica [...] por editoras [...] distintas [...]. Nota-se, por parte das principais editoras,

    o simples interesse de capitalizar o sucesso momentâneo de filmes ou de nomes, comoé o caso de Arthur C. Clarke depois de 2001, ou do prolífico Asimov. É inegável queesses nomes constituem um forte chamariz para o leitor brasileiro, que ainda está presoà ficção cientifica dos anos 40 e 50. (CUNHA, 1974, p. 16) 

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    Sobre a ficção científica efetivamente brasileira deste período e do pós-ditadura, a

     produção parece ter sido retomada no começo dos anos 1980 — pulando a geração ditatorial de

    escritores literários e retornando a uma ficção mais enraizada no que fazia sucesso no exterior.Como um “renascimento”, Ginway traça a mudança: escritos de FC por escritores que

     pretendem escrever FC, frequentemente inspirados pelo contato crescente com as obras de

    literatura e audiovisual — séries televisivas e filmes — de origem anglo-americana, como Star

    Trek e Blade Runner, o Caçador de Androides. “Assim, ao contrário das circunstâncias políticas

    que levaram muitos escritores mainstream a usar o gênero [...] nos anos setenta, foi a cultura

     popular americana que inspirou a maioridade de escritores e fãs de [FC] dos anos oitenta”

    (GINWAY, 2005, p. 142).Assim, houve um retorno à produção. No entanto, como da outra vez, alguns sucessos

    iniciais não garantiram a entrada da produção nacional no mainstream literário. Ginway (2005

     p. 142) afirma que ela “geralmente permanece às margens do establishment literário[,

    florescendo] por causa da atividade de fã-clubes de ficção científica e do advento da mídia

    eletrônica”. Como no exterior, o  fandom teve importância para a manutenção do gênero,

    mantendo a chama acesa por meio da produção de  fanzines,2 já que o mercado editorial não

    estava aberto à produção nacional de gênero. Cita-se como relevantes a  fanzine Somnium e,

    como uma espécie de marco, ou pelo menos episódio pitoresco, a publicação por Ivan Carlos

    Regina do Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira, que, em uma espécie de

    resgate modernista, propunha o assimilar crítico da arte estrangeira, “canibalizando-a” para a

    criação de novas formas de arte nacional (GINWAY, 2005, 143) e a “firmação da criatividade

     própria brasileira” (MONT’ALVÃO, 2009, p. 385). 

    Os tempos andam: nessa entrada ao século XXI, volta-se a presenciar tanto a publicação

    de ficção científica no Brasil por parte das grandes editoras quanto a transição do  fandom de

     zines e cartas para os domínios da internet. Fábio Fernandes, membro do fandom há longa data,

    tem a dizer:

    O começo do novo milênio marcou a transição definitiva para a web. A coisa começoudevagar, com um blog ou outro, e estourou mesmo por volta de 2004, quando surgiuo Orkut, ferramenta de relacionamento do Google, que permitia a criação decomunidades. Isto facilitou em muito a comunicação com pessoas do mundo inteiro(muito embora o Brasil tenha invadido de forma um tanto visigoda o Orkut, a pontode os americanos e a maioria esmagadora dos falantes de língua inglesa simplesmentecometerem orkuticídio e partirem dessa para melhor [...]) (FERNANDES, 2008). 

    2 Revista independente e de cunho amador, composta e produzida por fãs. “ Fan” de “fã”, “ zine” de“magazine”, revista. 

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    E aponta, por outro lado, o surgimento de novos escritores dissociados tanto do  fandom

    dos anos 1980 e 1990 quanto de qualquer publicação prévia do universo das zines, fazendo sua

    estreia diretamente nos livros. Os nomes citados são Ana Cristina Rodrigues, Flávio Medeiros,

    Tibor Moricz e outros, que, segundo ele, geraram “um grande burburinho e debates envolvendo

    os grupos da chamada Segunda Onda e desta que já foi batizada de Terceira Onda”

    (FERNANDES, 2008). 

    Como será explorado no capítulo 2, vê-se que, nesta última década, vem surgindo alguns

     jogadores — antigos e novos — no mercado editorial relativo à ficção científica; brasileira e

    estrangeira. Embora o  fandom ainda seja importante para a manutenção, principalmente da

    ficção nacional, pode-se ver algumas empreitadas de publicação no mercado editorial

     profissionalizado. 

    1.2 O menor desenvolvimento da FC no mercado brasileiro 

    Uma breve comparação entre as duas retrospectivas acima indica a falta de uma amplitude

    na edição sistemática, perene, da ficção científica como gênero estabelecido em nosso país.

    Enquanto houve anos de publicação desenfreada — ainda que de qualidade irregular — nas

    revistas da época  pulp e, mais tarde, em edições hardcover e  paperback nas livrarias norte-

    americanas e europeias ao longo do século XX, o mesmo não pode ser dito da recepção da FC

    no incipiente mercado editorial brasileiro: aqui, como visto anteriormente, tal publicação foi

    esparsa, irregular e eventual, com contribuições esporádicas de uns no começo e o investimento

    do fandom mais do que do mercado profissional mais tarde — com o hiato presente durante

     parte do regime militar, durante o qual a ficção científica mal parecia ser reconhecida como tal. 

    Quando se tenta averiguar os motivos para isso, algumas questões sociais, históricas e

    mercadológicas surgem à vista. Acontece que, como um gênero literário baseado em ciência,

    tecnologia e seu efeito na vida de pessoas pelo mundo, é apenas natural que surja uma

    disparidade em relação à produção e à recepção de ficção científica em países de

    desenvolvimentos científicos e tecnológicos distintos, considerando o nível dessa ciência e a

    visão de determinada sociedade relativa a tal ciência. 

    Sobre tal disparidade, diz Ginway (2005, p. 16): 

    A ficção científica, como um gênero associado ao Primeiro Mundo, torna-se umamistura curiosa, no Brasil. Ao mesmo tempo como resistência a, e aceitação do

     processo de modernização, ela com frequência projeta mitos brasileiros de identidadeherdados do passado para uma sociedade do futuro, como forma de oposição culturalà tecnologia percebida como ameaça, especialmente antes do final da ditadura, em

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    1985. No mundo pós-ditadura, os escritores contemporâneos de ficção científica,tendo experimentado duas décadas de modernização, começam a abordar os efeitosdíspares do desenvolvimento e as implicações da tecnologia em questões como gênerosexual, raça e classe na sociedade brasileira contemporânea. 

    Associa-se, portanto, a ideia da produção e da recepção do gênero com sua relação ao

     processo de modernização. O gênero “de Primeiro Mundo” torna-se, em um país emergente na

    segunda metade do século, uma espécie de demonstração sociológica dessa relação: o senso de

    desconfiança, a tecnocracia associada ao regime militar — vide os romances distópicos do

     período —, o desenvolvimento tecnológico e o processo acelerado de modernização como

     possível ameaça aos meios de vida e mesmo à liberdade do indivíduo, o “recorrente senso de

     perda causado pelo processo” (GINWAY, 2005, p. 16). Ao associar modernização e perda,

    Ginway cita Berman, segundo o qual, com o avanço da industrialização, todas as camadas da

    vida se cobrem de ambiguidades, angústia e desunidade (1982 apud GINWAY, 2005, p. 17).

    Assim, uma vida regada de tecnologia, ao menos durante o período ditatorial, ao contrário de

    otimista, parecia lançar uma relação duvidosa para com o futuro, ecoada por esses romancistas. 

    Antes desse processo de modernização e industrialização enfrentado pelo Brasil, no

    entanto, o que parece acontecer é uma inadequação do gênero à realidade cotidiana. Ao menos

    é o que defendem alguns dos críticos ferrenhos da FC, como Otto Maria Carpeaux que, já na

    virada para os anos 1960, parece excluir o gênero de possíveis méritos por uma supostasuperficialidade: 

    A  science-fiction  faz questão de não tocar nunca em problemas psicológicos ouquestões sociais. Ao embarcar para o espaço, perdeu o contato não só com a Terra,mas também com a realidade. Evasão? Mas essa evasão tem objetivo bem definido:cancelar um processo histórico. (CARPEAUX, 1959) 

    Sendo um crítico literário de renome, a opinião de Carpeaux é, no entanto, mais

    representativa dos defensores do cânone do que do público brasileiro em geral. Ginway cita odiagnóstico de Flora Süssekind em relação à “preferência canônica por textos que retratem um

    senso de identidade literária e nacionalismo”, criando uma ficção majoritariamente realista e

    nacionalista e, no caso de algo mais fantástico, “altamente alegórica, referindo-se

    especificamente a uma dada situação política” (GINWAY, 2005, p. 29). Assim, para a literatura

     brasileira no geral, a FC passa a ser vista pelo mainstream como “‘inautêntica’, ou seja, não

    representativa da cultura brasileira” (GINWAY, 2005, p. 30) — no mínimo, uma falsidade; no

    máximo, importação cultural e, portanto, desprezível. Como a ficção científica surgiu como umfenômeno majoritariamente americano — apesar de suas raízes remontarem a outras épocas e

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    lugares —, para a academia ela pode ter ficado com o estigma do estrangeiro. 

    Fábio Fernandes (2006, p. 34) define determinados arquétipos catalogados Raul Fiker —

    viagens espaciais, robôs, mutantes; em suma, as imagens clássicas associadas ao gênero —

    como “elementos fundamentais para compor a especificidade da narrativa da ficção científica”,

    mas que não bastam para definir o gênero — tarefa que até hoje desafia acadêmicos. Ao

     perceber tais arquétipos, no entanto, pode-se entender que tais elementos são associados

    imediatamente à ficção científica, passando a impressão equivocada de que o gênero é

    “universal”, independente de cultura, história e contexto, subjugada a apenas um punhado de

    elementos recorrentes e tecnológicos. De tal assunção — a estereotipização do gênero em

    categorias de histórias e eventos clichê — pode-se derivar a ideia de uma FC inautêntica, que

    em nada se relaciona à vivência de uma cultura como a brasileira. 

    Bráulio Tavares, ainda, complementa em relação ao perfil do literato brasileiro, que pode

    ter servido como um empecilho adicional à aceitação do gênero pelo leitor nacional: 

     No Brasil, ademais, não temos no meio uma tradição de informação científica etecnológica. Nossos escritores, críticos, ficcionistas, são de formação humanista,artística, são formados em letras ou direito, filosofia etc. Isso é o perfil típico doliterato brasileiro. Não temos (ou temos apenas de forma incipiente) uma culturatecnológica — em todo caso, não temos uma que possa se comparar com a dos EUA.(Ver Anexo A) 

    Sua falta de encaixe no modelo canônico nacional, pode-se argumentar, colocou mais

    uma vez a ficção científica no que foi apelidado exteriormente como o sci-fi ghetto. O website 

    de cultura popular TVTropes o define como 

    o estigma duradouro que vem sido aplicado sobre o gênero da ficção científica, o quefrequentemente leva criadores a desprezar rótulos [de FC] o máximo possível, mesmotendo elementos [que se encaixam no gênero]. Também reflete a tendência de críticos,acadêmicos e outros criadores a quase que automaticamente desdenhar ou desprezar

    obras que não possam escapar da aplicação desse rótulo, independentemente dequalidade relativa ou mérito. [Se] estes críticos [...] considerarem que tal obra possuimérito por seus padrões, espere que insistam que a obra não é ficção científica.(TVTROPES, tradução livre) 

    O gueto da ficção científica, aplicado também lá fora, é o que parece impedir grande parte

    das vezes o reconhecimento do mérito literário e acadêmico nas obras as quais eles se aplicam.

    Carneiro, em seu livro, afirma que há a tendência preocupante de se avaliar o gênero pelos seus

     piores representantes, que ele define com o rótulo genérico de “space opera”: 

    É inegável a tendência de se atribuírem à ‘ science-fiction’ em geral os piores defeitose limitações dos livros menos importantes do gênero, feitos com intenção comercial

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    [...]. Não é esse critério de nivelar por baixo e de condenar pelo que há de pior que seusaria para classificar o romance brasileiro, citadino, regionalista... (CARNEIRO, A.,1968, p. 16) 

    Quando trata da crítica de Carpeaux, o escritor diagnostica bem os sintomas relacionadosà definição do “gueto”: o crítico despreza o gênero por seus piores trabalhos e reconhece os

    méritos em obras que julga, então, não pertencerem mais à ficção científica. Carneiro, ainda,

    associa esse tipo de crítica como sinal de uma leitura muito pouco atenta, “talvez porque os

    reviewers não consideravam digna de leitura atenta uma obra tão fantástica, que se lhes afigura

    ‘thriller’  pseudocientífico” (CARNEIRO, A., 1968, p. 19). 

    Entretanto, deve-se notar que o pensamento de Carpeaux, embora representativo, não era

    unânime — ora, grande parte dos escritores da “geração GRD”, a chamada “Primeira Onda”,eram escritores já respeitáveis de outras formas de literatura antes de serem ficcionistas da FC,

    como André Carneiro, Rachel de Queiroz ou Fausto Cunha. E, no entanto, mesmo suas

    incursões no gênero, incentivados pela euforia pós-Sputnik , não foram o bastante para

    impulsionar uma produção mais expressiva.

     No entanto, retomando as origens históricas da FC como nicho de mercado popular, deve-

    se também levar em consideração as condições de mercado díspares entre ambos os países,

    reconhecendo a diferença nas taxas de alfabetização e amplitude do público leitor. Secco (2009,

     p. 31) defende que “as classes sociais mais abastadas [no Brasil] — responsáveis, inclusive, por

    sustentar o mercado do livro — viam na França racionalista o modelo de pensamento a ser

    seguido, em contraposição ao empirismo inglês”, responsável por dar origem à FC. Nesse caso,

    na ausência de um mercado propriamente de massa, é possível que as classes responsáveis pelo

    setor editorial simplesmente carecessem de interesse pelo gênero, brevemente amplificado

     pelos desenvolvimentos da Guerra Fria, mas majoritariamente inexistente. 

    Pode-se então deduzir que, nesse momento, há uma maior força da literatura comumente

    aceita pelo cânone no gosto das classes letradas, que formava, mesmo fora de um âmbito

    “popular”, o grosso do mercado editorial da época? Pois, se a ficção científica é colocada no

    gueto pelo academicamente aceito, e o gosto mais “popular” também diverge de uma narrativa

    fantástica, talvez isso justifique a história de que se tem notícia: um processo editorial pingado

    e esparso, com um crescimento maior apenas quando o fandom — a geração que se interessou

     pelos modelos de FC com base na cultura pop inspirada na geração que surge a partir do fim da

    ditadura — consegue manter o gênero de pé com suas produções amadoras, como as fanzines

    e o material postado na internet. 

    É o que defende Ginway (2005, p. 143), quando trata de produção nacional, ao citar as

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     fanzines  que publicam os escritores de ficção científica brasileira mais conhecidos, com o

    Somnium e o Megalon e cita as iniciativas de prêmios para estas empreitadas, como o Nova e o

     Argos. Também diagnostica uma vertente com constante vontade de se imergir ao meio do

    establishment literário, mencionando iniciativas como o  Manifesto Antropofágico da Ficção

    Cient�