A Forma Espacial Na Literatura Moderna - Joseph Frank

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    REVISTA USP, So Paulo, n.58, p. 225-241, junho/agosto 2003 225

    a

    r

    q

    u

    i

    v

    oNota da edio norte-americana:Spatial Form in Modern Literatureapareceu na The Sewanee Review,edies de primavera, vero e outo-no de 1945. Joseph Frank (nascidoem 1918) gentilmente revisou econdensou seu ensaio para a pre-sente publicao, encontrando-se oraimpresso em sua nova forma com asua permisso e com a permissodo editor de The Sewanee Review.

    A publicao deste ensaio umaindicao do Programa de Ps-Gra-duao em Teoria Literria e Litera-tura Comparada da FFLCH-USP.

    JOSEPH FRANK

    Traduo de Fbio Fonseca de Melo

    Extrado de The Foundations ofModern Literary Judgement, NovaYork, Harcourt, Brace and Company(editores: Mark Schorer, JosephineMiles & Gordon McKenzie, da Uni-versidade da Califrnia), 1948,pp. 379-92.

    A forma

    espacialna

    literatura

    moderna

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    Laocoonte de Lessing, notou certa

    vez Andr Gide, um daqueles li-

    vros que bom reiterar ou con-tradizer a cada trinta anos anos.

    Apesar desse excelente conselho, nenhu-

    ma dessas atitudes para comLaocoonte foi

    adotada pelos escritores modernos (1).

    A tentativa de Lessing de definir os li-

    mites da literatura e das artes plsticas tor-

    nou-se questo encerrada qual ocasio-

    nalmente feita uma referncia respeitosa,

    mas que no suscita mais influncia fecun-

    dante ao pensamento esttico. Podemos en-tender como isso se sucedeu no sculo XIX,

    com sua paixo pelo historicismo, mas no

    de entendimento muito fcil no presente,

    em que tantos escritores dedicados aos pro-

    blemas estticos tm se ocupado das ques-

    tes da forma. Para um historiador da lite-

    ratura ou das artes plsticas, o esforo de

    Lessing em definir as leis inalterveis des-

    ses veculos pode bem ter parecido quixo-

    tesco; mas crticos modernos, que j no se

    assustam com o fantasma do mtodo hist-

    rico, comeam a considerar novamente os

    problemas que ele tentou resolver.

    As solues dadas por Lessing a esses

    problemas parecem, primeira vista, ter

    pouca relao com o pensamento esttico

    moderno. Os argumentos do Laocoonte

    direcionavam-se contra a poesia pictrica

    de seu tempo, que desde h muito deixou

    de interessar a sensibilidade moderna; e

    muitas de suas concluses acerca das artesplsticas originaram-se de uma arqueolo-

    gia hoje antiquada, que, para piorar ainda

    mais as coisas, Lessing conheceu, princi-

    palmente, de segunda mo. Mas foi preci-

    samente sua tentativa quixotesca de supe-

    rar a histria, para definir as leis inalter-

    veis da percepo esttica, antes que para

    atacar ou defender qualquer escola em par-

    ticular, que deu a seu trabalho o frescor

    perene a que aludiu Andr Gide. Uma vez

    que a validade de sua tese central no de-

    pende de sua relao com os movimentos

    literrios de seu tempo, nem da extenso de

    sua experincia direta com as obras de arte

    da Antigidade, ela pode ser tomada par-

    te dessas circunstncias e utilizada na an-

    lise de desenvolvimentos posteriores.

    No Laocoonte , Lessing funde duas

    correntes de pensamento que eram de

    grande importncia na histria cultural deseu tempo. As pesquisas arqueolgicas de

    Winckelmann, seu contemporneo, estimu-

    laram um interesse apaixonado pela cultu-

    ra grega entre os alemes. Lessing voltou a

    Homero, a Aristteles e aos trgicos gre-

    gos, usando seu conhecimento direto para

    atacar as teorias crticas distorcidas, supos-

    tamente baseadas na autoridade clssica,

    que haviam se infiltrado na Frana atravs

    de comentadores italianos e s posterior-mente empossadas na Alemanha. Ao mes-

    mo tempo, como aponta Wilhelm Dilthey

    em seu famoso ensaio sobre Lessing, Locke

    e a escola emprica de filosofia inglesa ha-

    viam dado um novo impulso especulao

    esttica. Locke tentara resolver o problema

    do conhecimento, partindo idias comple-

    xas em elementos simples de sensao, para,

    em seguida, examinar as operaes da

    mente e verificar como essas sensaes

    eram combinadas para formar idias. Esse

    mtodo foi rapidamente adotado pelos

    estetas, que, em vez de deitar regras para a

    beleza, comearam a analisar a percepo

    esttica. Escritores como Shaftesbury,

    Hogarth, Hutcheson e Burke, para citar

    alguns poucos, interessaram-se pelo car-

    ter e pela combinao de impresses preci-

    sos que deram prazer esttico sensibilida-

    de. Mendelssonhn, amigo e aliado crtico

    de Lessing, popularizou esse mtodo detratar os problemas estticos na Alemanha;

    o prprio Lessing era um estudante ntimo

    dessas obras e de muitas outras com o

    1 Irving Babbitt, em 1910, es-creveu O Novo Laocoontecoma inteno de fazer artemoderna o que Lessing fez arte de seus dias. Em suma, atese de Babbitt era a de que,assim como a confuso degneros poca de Lessingpde ser atrelada a uma falsateoria da imitao, tambm asaberraes artsticas de nossotempo poderiam ser atreladasa uma falsa teoria da esponta-neidade. O argumento deBabbitt, contudo, no tem ne-nhuma relao com as teoriasde Lessing. A discusso deLessing na primeira metade dolivro refora, meramente, aanalogia entre os propsitosde Lessing e os de Babbitt.

    O

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    mesmo esprito geral.Laocoonte, por con-

    seguinte, encontra-se na confluncia des-

    sas correntes intelectuais: Lessing analisa

    as leis da percepo esttica, mostra como

    elas prescrevem limitaes necessrias

    literatura e s artes plsticas e, ento, de-

    monstra como os escritores e pintores gre-

    gos, especialmente Homero, criaram obras-

    primas obedecendo a essas leis.

    Seu argumento parte da simples obser-

    vao de que a literatura e as artes plsti-

    cas, trabalhando atravs de veculos senso-

    riais diferentes, devem, portanto, diferir nas

    leis fundamentais que governam sua cria-

    o. Se verdade, escreveu Lessing, que

    a pintura e a poesia, em suas imitaes,

    fazem uso de meios ou smbolos inteira-mente diferentes a primeira, a saber, de

    forma e cor no espao, e a segunda, de sons

    articulados no tempo , se esses smbolos

    requerem, indissoluvelmente, uma relao

    condizente com a coisa simbolizada, ento

    est claro que os smbolos arranjados em

    justaposio podem expressar somente ma-

    trias cujas totalidades e partes sejam, elas

    mesmas, consecutivas. Lessing, obvia-

    mente, no inaugurou essa distino, quevem sendo traada desde as distncias da

    Antigidade clssica. Sua contribuio foi

    ter retirado tal distino de um discerni-

    mento isolado e a alado a princpio crtico

    universal, levando, dessa forma, sua con-

    cluso lgica os esforos dos crticos cls-

    sicos franceses em definir as leis imutveis

    da arte conforme estabelecidas pela raison.

    A forma nas artes plsticas, de acordo

    com Lessing, necessariamente espacial,

    pois o aspecto visvel dos objetos melhor

    apresentado pela justaposio em um ins-

    tante do tempo. A literatura, por outro lado,

    faz uso da linguagem, composta de uma

    sucesso de palavras que prosseguem atra-

    vs do tempo; e da segue que a forma lite-

    rria, para harmonizar com a qualidade

    essencial de seu veculo, deve se basear pri-

    mariamente em alguma forma de seqn-

    cia narrativa. Lessing usou este argumento

    para atacar dois gneros artsticos altamentepopulares em seus dias: a poesia pictrica

    e a pintura alegrica. A poesia pictrica

    tentava pintar com palavras, e a pintura

    alegrica contar uma histria em imagens

    visveis; ambas estavam fadadas ao fracas-

    so, porque seus objetivos contradiziam as

    propriedades fundamentais de seus vecu-

    los. No importava quo acurada e vvida

    uma descrio verbal pudesse ser, argumen-

    tava Lessing, ela no poderia dar a impres-

    so unificada de um objeto visvel; no

    importava quo habilmente as figuras fos-

    sem escolhidas e arranjadas, uma pintura

    ou pea de escultura no teria sucesso em

    narrar os diversos estgios de uma ao.

    Lessing desenvolve seu argumento ten-

    tando provar que os gregos, com um infa-

    lvel senso de propriedade esttica, respei-

    tavam os limites impostos aos diferentes

    veculos artsticos pela condio da per-cepo humana. A importncia da distin-

    o de Lessing, contudo, no depende des-

    sas ramificaes de seu argumento, nem

    mesmo de seus julgamentos especficos

    deste ou aquele escritor ou artista. Diver-

    sos crticos se engalfinharam com um ou

    outro desses julgamentos, achando que, as-

    sim fazendo, estariam de alguma forma

    minando a posio de Lessing; mas tal cren-

    a se baseia em uma m compreenso daimportncia do Laocoonte na histria da

    teoria esttica. Os discernimentos de

    Lessing podem ser usados unicamente

    como instrumentos de anlise, sem avan-

    ar em julgamento de valor de obras indi-

    viduais, considerando quo proximamente

    elas aderem s normas por ele estabelecidas;

    e, a menos que isso seja feito, para dizer a

    verdade, o real significado doLaocoonte

    no pode ser compreendido. Pois o que

    Lessing nos ofereceu no foi um novo con-

    junto de opinies, mas uma nova concep-

    o de forma esttica.

    A concepo de forma esttica herdada

    da Renascena pelo sculo XVIII era pura-

    mente externa. Presumia-se que a literatu-

    ra clssica ou o que conhecemos dela

    tivesse alcanado a perfeio, e tudo o que

    os escritores subseqentes podiam fazer no

    ia muito alm de imitar seu exemplo. Uma

    horda de comentadores e crticos deduziucertas regras das obras-primas clssicas

    regras como as unidades aristotlicas, das

    quais Aristteles jamais ouvira falar e os

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    escritores modernos foram advertidos a

    obedecer essas regras se desejassem agra-

    dar a um pblico cultivado. Gradualmente,

    essas regras se enrijeceram num molde ex-

    terno no qual o material de uma obra lite-

    rria devia ser vertido: a forma de uma obra

    no passava de um arranjo tcnico ditado

    pelas regras. Tal noo mecnica de forma

    esttica, todavia, levou a srias perverses

    do gosto Shakespeare foi considerado um

    brbaro mesmo por escritores to sofisti-

    cados quanto Voltaire, e Pope achou ne-

    cessrio us-la na traduo de Homero para

    fazer um bom negcio editorial. O ponto

    de vista de Lessing, rompendo agudamen-

    te com essa concepo externa de forma,

    demarca a via para a especulao estticaseguir no futuro.

    Para Lessing, como vimos, a forma es-

    ttica no um arranjo externo provido por

    um conjunto de regras tradicionais: a re-

    lao entre a natureza sensorial do veculo

    artstico e as condies da percepo hu-

    mana. Assim como o homem natural do

    sculo XVIII no tinha af pelas formas

    polticas tradicionais, mas dedicava-se a

    cri-las de acordo com sua prpria nature-za, tambm a arte devia criar suas prprias

    formas a partir de si mesma, em lugar de

    aceit-las sem originalidade da prtica do

    passado. A crtica no tinha que prescrever

    regras para a arte, mas explorar as leis ne-

    cessrias pelas quais a arte governa a si

    mesma. A forma esttica no devia mais

    ser confundida com meras externaes da

    tcnica no era uma camisa-de-fora den-

    tro da qual o artista, a contragosto, tinha

    que forar suas idias criativas, mas sim

    emanava espontaneamente da organizao

    da obra de arte como ela se apresentava

    percepo. Tempo e espao eram os dois

    extremos a definir os limites da literatura e

    das artes plsticas em sua relao com a

    percepo sensorial; e possvel, seguindo

    o exemplo de Lessing, traar a evoluo

    das formas artsticas por meio de suas os-

    cilaes entre esses dois plos (2).

    O propsito do presente ensaio apli-car o mtodo de Lessing literatura moder-

    na para traar a evoluo da forma na

    poesia moderna e, mais particularmente,

    no romance moderno. As primeiras duas

    sees tentaro mostrar que a literatura

    moderna, exemplificada por escritores

    como T. S. Eliot, Ezra Pound, Marcel Proust

    e James Joyce, est se movendo na direo

    da forma espacial. Isso significa que cabe

    ao leitor apreender suas obras espacialmen-

    te, em um momento do tempo, antes que

    em uma seqncia. At onde concerne ao

    romance, essa tendncia alcana seu apo-

    geu no notvel livro de Djuna Barnes, O

    Bosque da Noite, que nunca recebeu a aten-

    o crtica que merece (3). Finalmente, uma

    vez que as mudanas na forma esttica sem-

    pre envolvem mudanas maiores na sensi-

    bilidade de um perodo cultural em parti-

    cular, ser feito um esforo de delinear asatitudes espirituais que levaram predo-

    minncia da forma espacial.

    1

    A poesia anglo-americana moderna re-

    cebeu seu mpeto inicial do movimento

    imagista dos anos diretamente precedentes

    e consecutivos Primeira Guerra Mundial.O Imagismo foi importante no devido a

    alguma poesia efetiva escrita por poetas

    imagistas ningum sabe bem ao certo o

    que era um poeta imagista mas, antes,

    porque abriu o caminho para desenvolvi-

    mentos posteriores, devido a seu honesto

    rompimento com a verbiagem sentimental

    vitoriana. Os escritos crticos de Ezra

    Pound, o terico liderante do Imagismo,

    constituem uma assombrosa farragem de

    aguadas percepes estticas jogadas no

    meio de uma srie de observaes traves-

    sas pueris, cujo principal propsito, pode-

    ria parecer, pater le bourgeois chocar

    os engomadinhos. Mas a definio de ima-

    gem de Pound, talvez a mais aguada de

    suas percepes, de importncia funda-

    mental para qualquer discusso da forma

    literria moderna. Uma imagem, escre-

    veu Pound, aquilo que apresenta um com-

    plexo intelectual e emocional em um instan-te do tempo. As implicaes dessa defini-

    o devem ser notadas uma imagem de-

    finida no como uma reproduo pictrica,

    2 A crtica de arte alem, nestasltimas dcadas, vem experi-mentando um verdadeirorenascimento ao longo das li-nhas demarcadas por Lessing.Seguindo a direo de AloisRiegl, o predecessor imediatodaqueles escritores que, maistarde, se ocupariam em traara histria da forma nas artesplsticas, os acadmicos ale-mes traaram as cambiantesapreenses do espao queobservaram na raiz das mudan-as na forma esttica. O prxi-mo passo foi conectar a mu-dana na apreenso do espa-

    o com mudanas mais amplasna histria da cultura. Finalmen-te, a investigao foi ampliadapara incluir no apenas as ar-tes plsticas, mas tambm a li-teratura e a msica introdu-zindo, assim, a categoria dotempo e mesmo as concep-es variveis de espao e tem-po do pensamento filosficocomo desenvolvimento parale-lo s mudanas nas formas ar-t s t icas. A tentat iva maisabrangente de tamanha snte-se foi feita por Dagobert Freyem seu brilhante e sugestivo li-vro Gotik und Renaissance, pu-blicado em 1929. Uma brevee excelente exposio dessemovimento encontra-se em DiePhilosophie der Kunstgeschichtein der Gegenwart, de WalterPassarge.Neste ponto, devemos mencio-nar ainda Structure of the Novel,de Edwin Muir, a nica obraem ingls, at onde sabe opresente autor, que tenta discu-tir a forma na literatura em ter-mos de espao e tempo.

    3 No formato em que foi original-mente publicado, este ensaiocontinha uma anlise detalha-da de O Bosque da Noite(Nightwood), eliminada na pre-sente verso. Os leitores inte-ressados devem consultar a TheSewanee Review, edio devero de 1945.

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    mas como a unificao de idias e emoes

    dspares em um complexo apresentado es-

    pacialmente em um instante do tempo. Tal

    complexo no deve proceder discursivamen-

    te, segundo as leis da linguagem, mas deve,

    antes, fisgar a sensibilidade do leitor com

    um impacto instantneo. Pound salienta esse

    aspecto, acrescentando, em uma passagem

    posterior, que somente a apresentao ins-

    tantnea de tais complexos d aquela sen-

    sao de liberao repentina; aquela sensa-

    o de libertao dos limites do tempo e do

    espao; aquela sensao de crescimento re-

    pentino que experimentamos na presena

    das maiores obras de arte.

    Desde o princpio, portanto, a poesia

    moderna defendeu um mtodo potico emdireta contradio com o modo pelo qual,

    de acordo com Lessing, a linguagem tinha

    que ser percebida. Comparando a defini-

    o de imagem de Pound com a famosa

    descrio da psicologia do processo poti-

    co de Eliot, podemos ver claramente quo

    profundamente essa concepo influenciou

    nossa idia moderna da natureza da poesia.

    Para Eliot, a qualidade distintiva de uma

    sensibilidade potica sua capacidade deformar novas totalidades, de fundir apa-

    rentemente experincias dspares em uma

    unidade orgnica. O homem ordinrio, es-

    creve Eliot, se apaixona, ou l Spinoza, e

    essas duas experincias no tm nenhuma

    relao entre si, ou com o barulho da m-

    quina de escrever ou com o cheiro de comi-

    da cozinhando; na mente do poeta, essas

    experincias esto sempre formando no-

    vas totalidades. Pound, para se assegurar,

    tentou definir a imagem em termos de seus

    atributos estticos, ao passo que Eliot, nes-

    sa passagem, est descrevendo suas origens

    psicolgicas; mas o resultado em um poe-

    ma era provavelmente muito parecido.

    Essa viso da natureza da poesia ime-

    diatamente fez brotar inmeros problemas.

    Como poderia ser includa mais de uma

    imagem em um poema? Se o valor essen-

    cial de uma imagem era sua capacidade de

    apresentar um complexo intelectual e emo-cional simultaneamente, associar imagens

    claramente destruiria grande parte de sua

    eficcia. Ou era o poema ele mesmo uma

    vasta imagem, cujos componentes indivi-

    duais deviam ser apreendidos como uma

    unidade? Mas, nesse caso, seria necess-

    rio superar a consecutividade inerente

    linguagem, frustrando a expectativa nor-

    mal de uma seqncia do leitor e foran-

    do-o a perceber os elementos do poema

    como justapostos no espao, em lugar de

    desdobrando-se no tempo.

    Foi isso, precisamente, que Eliot e Pound

    tentaram em suas maiores obras. Ambos os

    poetas, em suas primeiras obras, ainda re-

    tinham alguns elementos da estrutura con-

    vencional. Seus poemas eram apreciados

    como ousados e revolucionrios essencial-

    mente por questes tcnicas, como o afrou-

    xamento do padro mtrico e a manipulaode assuntos ordinrios que no eram consi-

    derados poticos. Talvez isso seja menos

    verdade para Eliot que para Pound, especi-

    almente o Eliot das obras iniciais mais com-

    plexas, como Prufrock, Gerontion e

    Retrato de uma Dama; mas mesmo ne-

    las, embora as sees dos poemas no se-

    jam governadas por lgica sinttica, o es-

    queleto de uma estrutura narrativa

    implicada est sempre presente. O leitor dePrufrock arrebatado por um movimen-

    to narrativo logo nas primeiras linhas:

    Vamos ento, tu e eu/ Quando a tarde.

    E o leitor, acompanhando Prufrock, final-

    mente chega a seu mtuo destino: As

    mulheres na sala vm e vo caminhando/

    De Miguel ngelo falando. Neste ponto,

    o poema inicia uma srie de fragmentos

    mais ou menos isolados, cada um expondo

    algum aspecto do dilema emocional de

    Prufrock; mas os fragmentos esto agora

    localizados e focalizados em um conjunto

    especfico de circunstncias: o leitor pode

    organiz-los por referncia situao

    implicada. O mesmo mtodo empregado

    em Retrato de uma Dama, ao passo que

    em Gerontion dito especificamente ao

    leitor que ele est lendo idias de mente

    rida em rida estao a corrente de

    conscincia de um homem velho em ms

    seco, ouvindo a leitura que um jovem mefaz, e a esperar pela chuva (4). Em ambos

    os casos, h uma armao perceptvel em

    torno da qual as passagens aparentemente

    4 T. S. Eliot; E. Dickinson; R.Depestre, Seleo, t rad.Idelma Ribeiro de Faria, SoPaulo, Hucitec, 1992 (N.T.).

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    desconexas do poema podem ser organiza-

    das. Esta foi uma das razes por que

    Mauberly, de Pound, e as primeiras obras

    de Eliot foram vistas no como precursoras

    de uma nova forma potica, mas como vers

    de socitcontemporneos espirituosos,

    desiludidos, com um certo charme frgil,

    mas aos quais faltava aquela alta serieda-

    de que Matthew Arnold havia seleciona-

    do como pedra de toque da excelncia po-

    tica. Esses poemas foram considerados

    inusuais principalmente porque os vers de

    socithaviam h muito sado de moda;

    havia um pouco de dificuldade em aceit-

    los como uma abertura ao entretenimento,

    ao grande estilo do sculo XIX. Nos Can-

    tos e em A Terra Devastada, todavia,devia estar claro que uma transformao

    radical estava tendo lugar na estrutura es-

    ttica; mas essa transformao foi tratada

    apenas perifericamente pelos crticos mo-

    dernos. R. P. Blackmur chega mais perto

    do problema central ao analisar o que ele

    chama de mtodo anedtico de Pound. A

    forma especial dos Cantos, explica

    Blackmur, aquela da anedota iniciada

    em um lugar, continuada em um ou maisespaos diferentes e concluda, se absolu-

    tamente concluda, em ainda outro lugar.

    Essa desconexo deliberada, essa arte de

    algo continuamente aludindo a si mesmo,

    continuamente separando-se em retalhos

    menores, o mtodo pelo qual os Cantos

    os amarra juntos. To logo a mente do lei-

    tor concertada com o material do poema,

    o Sr. Pound deliberadamente a desconcer-

    ta, seja por introduzir um material novo e

    desconjunto, seja por reverter a um materi-

    al anterior e, aparentemente, igualmente

    desconjunto. As observaes de Blackmur

    se aplicam igualmente bem a A Terra

    Devastada, em que a seqncia sinttica

    abandonada por uma estrutura dependen-

    do da percepo das relaes entre grupos

    de palavras desconexos. Para serem bem

    compreendidos, esses grupos de palavras

    devem estar justapostos uns aos outros e

    serem percebidos simultaneamente; somen-te quando isso se d que podem ser ade-

    quadamente entendidos; pois embora eles

    sigam um ao outro no tempo, seu significa-

    do no depende dessa relao temporal. A

    dificuldade desses poemas, os quais nenhu-

    ma quantidade de exegese textual conse-

    gue vencer inteiramente, o conflito inter-

    no entre a lgica temporal da linguagem e

    a lgica espacial implcita na concepo

    moderna da natureza da poesia.

    A forma esttica na poesia moderna,

    portanto, se baseia em uma lgica espacial

    que demanda uma completa reorientao

    da atitude do leitor frente linguagem. Uma

    vez que a referncia primria de qualquer

    grupo de palavras algo interno ao prprio

    poema, a linguagem na poesia moderna

    realmente reflexiva: a relao de significa-

    o completada somente pela percepo

    simultnea no espao dos grupos de pala-vras que, quando lidos consecutivamente

    no tempo, no tm relao compreensvel

    entre si. Em lugar da referncia instintiva e

    imediata das palavras e grupos de palavras

    aos objetos e eventos que simbolizam, e a

    construo do significado a partir da se-

    qncia dessas referncias, a poesia mo-

    derna pede a seus leitores que suspendam o

    processo de referncia individual tempora-

    riamente, at que todo o padro de refern-cias internas possa ser apreendido como

    uma unidade. Essa explicao, obviamen-

    te, a afirmao extrema de uma condio

    ideal, antes que de um estado de coisas

    realmente existente; mas a concepo de

    forma potica que corre por Mallarm a

    Pound e Eliot, e que deixou seus traos em

    toda uma gerao de poetas modernos, pode

    ser formulada apenas em termos do princ-

    pio da referncia reflexiva. E esse princ-

    pio a ligao que conecta o desenvolvi-

    mento esttico da poesia moderna a expe-

    rimentos similares no romance moderno.

    2

    Para um estudo da forma potica no

    romance moderno, a famosa cena do com-

    cio da feira de exposies em Madame

    Bovary um ponto de partida conveniente.Essa cena foi louvada justamente por sua

    caricatura mordaz da pomposidade burgue-

    sa, seu retrato inusualmente simptico

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    para Flaubert do velho criado aturdido, e

    sua pardia da retrica pseudo-romntica

    pela qual Rodolfo corteja a sentimental

    Emma. No presente, suficiente notar o

    mtodo pelo qual Flaubert manipula a cena

    um mtodo que poderamos muito bem

    chamar de cinematogrfico, j que essa ana-

    logia vem imediatamente mente. Da

    maneira como Flaubert estabelece a cena,

    h ao acontecendo simultaneamente em

    trs nveis, e a posio fsica de cada nvel

    um bom indicador de sua significncia

    espiritual. No plano mais baixo, h a mar

    esbarrante da turba na rua, misturando-se

    ao gado em exposio; ligeiramente acima

    da rua, sobre uma plataforma, encontram-

    se os oradores oficiais, bombasticamentedesfiando lugares-comuns para as multi-

    des atentas; e no nvel mais alto, obser-

    vando o espetculo de uma janela, Rodolfo

    e Emma assistem aos prosseguimentos e

    levam sua conversa amorosa em frases to

    empoladas quanto aquelas que regalam a

    massa. Albert Thibaudet comparou essa

    cena pea de mistrio medieval em que

    diversas aes relacionadas ocorrem simul-

    taneamente em nveis diferentes do palco;mas essa comparao aguda se refere

    inteno de Flaubert, mais que a seu mto-

    do. Tudo devia soar simultaneamente,

    escreveu Flaubert mais tarde, comentando

    essa cena; devia-se ouvir o berro do gado,

    os sussurros dos amantes e a retrica das

    autoridades, tudo ao mesmo tempo.

    Mas como a linguagem procede no tem-

    po, impossvel abordar essa simultaneida-

    de de percepo, exceto pelo rompimento

    da seqncia temporal. E exatamente isso

    o que faz Flaubert: ele dissolve a seqncia,

    indo e vindo em cortes entre os diversos

    nveis de ao em um crescendo que vai

    lentamente acelerando at que no clmax

    da cena as frases chateubriendescas de

    Rodolfo so lidas quase no mesmo instante

    que os nomes dos ganhadores dos prmios

    de melhor cultura de porcos. Flaubert tem

    o cuidado de sublinhar essa similaridade

    satrica pela descrio, bem como pela jus-taposio, como se temesse que as relaes

    reflexivas das duas aes no fossem cap-

    tadas: Do magnetismo, Rodolphe passou,

    pouco a pouco, s afinidades e, enquanto o

    senhor presidente citava Cincinato empu-

    nhando seu arado, Diocleciano plantando

    suas couves e os imperadores da China

    inaugurando o ano para as sementeiras, o

    rapaz explicava jovem senhora que as

    atraes irresistveis tinham sua causa

    numa existncia anterior (5).

    Esta cena ilustra, em pequena escala, o

    que queremos dizer pela espacializao da

    forma em um romance. Pela durao da

    cena, pelo menos, o fluxo de tempo da narra-

    tiva detido; a ateno posta na interao

    das relaes dentro da rea de tempo de-

    limitada. Essas relaes so justapostas

    de forma independente do progresso da

    narrativa; a total significncia da cena dada somente pelas relaes reflexivas en-

    tre as unidade de significao. Na cena de

    Flaubert, entretanto, a unidade de signifi-

    cao no , como na poesia moderna, um

    grupo de palavras ou um fragmento ou uma

    anedota; a totalidade de cada nvel de ao

    tomada em conjunto: a unidade to gran-

    de que a cena pode ser lida com a iluso de

    completo entendimento, ainda que com uma

    total inconscincia da dialtica do lugar-comum (Thibaudet) entrelaando todos os

    nveis e, finalmente, ligando-os conjunta-

    mente em ironia devastadora. Em outras

    palavras, a luta pela forma espacial em Pound

    e Eliot resultou no desaparecimento da se-

    qncia coerente aps algumas poucas li-

    nhas; mas o romance, com sua maior unida-

    de de significao, consegue preservar a

    seqncia coerente dentro da unidade de sig-

    nificao e quebrar apenas o fluxo de tempo

    da narrativa. (Devido a essa diferena, os

    leitores de poesia moderna so praticamen-

    te forados a ler reflexivamente para apa-

    nhar algum sentido literal, enquanto os lei-

    tores de um romance como O Bosque da

    Noite, por exemplo, so levados a esperar

    uma seqncia narrativa dentro da unidade

    de significao.) Mas isso no afeta o para-

    lelo entre a forma esttica na poesia moder-

    na e a forma da cena de Flaubert: ambas s

    podem ser bem compreendidas quando suasunidades de significao so apreendidas re-

    flexivamente, em um instante do tempo.

    A cena de Flaubert, embora interessan-

    5 G. Flaubert, Madame Bovary,trad. Arajo Nabuco, SoPaulo, Crculo do Livro, s/d.(N.T.).

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    te nela mesma, de menor importncia para

    seu romance como um todo, e habilidosa-

    mente reincorporada na estrutura narrativa

    principal aps cumprir sua funo satrica.

    O mtodo de Flaubert, contudo, foi em-

    prestado por James Joyce e aplicado em

    escala gigantesca na composio de Ulisses.

    Joyce comps seu romance com um nme-

    ro infinito de referncias e referncias cru-

    zadas que se relacionam independentemen-

    te da seqncia de tempo da narrativa; es-

    sas referncias devem ser conectadas pelo

    leitor e visualizadas como um todo para

    que o livro possa caber em algum padro

    significativo. Em ltima anlise, se quiser-

    mos acreditar em Stuart Gilbert, esses sis-

    temas de referncia formam uma figuracompleta de praticamente tudo sob o sol

    dos estgios da vida do homem e dos r-

    gos do corpo humano s cores do espec-

    tro; mas essas estruturas so muito mais

    importantes para Joyce, como observou

    Harry Levin, do que jamais poderiam ser

    para o leitor. Os estudiosos de Joyce, fasci-

    nados por sua erudio, vm normalmente

    se dedicando exegese, negligenciando,

    infelizmente, o problema da forma com queestamos lidando.

    A inteno mais bvia de Joyce em

    Ulisses dar ao leitor uma figura de Dublin

    vista como um todo para recriar as vistas

    e sons, as pessoas e os lugares de um dia

    tpico em Dublin, tanto quanto Flaubert re-

    criou sua feira de exposies provinciana.

    Como Flaubert, Joyce queria que sua re-

    presentao tivesse o mesmo impacto uni-

    ficado, a mesma sensao de atividade si-

    multnea ocorrendo em diferentes lugares.

    Joyce, para dizer a verdade, faz uso, com

    freqncia, do mesmo mtodo de Flaubert

    indo e vindo em cortes entre diferentes

    aes que ocorrem ao mesmo tempo e,

    normalmente, o faz para obter o mesmo

    efeito irnico. Mas Joyce tinha o problema

    de criar essa impresso de simultaneidade

    para a vida de uma cidade prolfica inteira,

    e de mant-la ou, antes, de fortalec-la

    por centenas de pginas que devem ser li-das em seqncia. Para resolver esse pro-

    blema, Joyce foi forado a ir muito alm do

    que fora Flaubert: enquanto Flaubert man-

    teve uma linha narrativa com cortes claros,

    exceto pela cena da feira de exposies,

    Joyce quebra sua narrativa e transforma a

    prpria estrutura de seu romance em um

    instrumento de sua inteno esttica.

    Joyce, sabemos ns, concebeu Ulisses

    como um pico moderno. No pico, como

    nos diz Stephen Dedalus em Retrato do

    Artista Quando Jovem, a personalidade

    do artista, no comeo um grito, ou uma ca-

    dncia e depois uma fluida e radiante nar-

    rativa, acaba finalmente se clarificando fora

    da existncia, despersonalizando-se, por

    assim dizer [] o artista, como o Deus da

    criao, permanece dentro, ou junto, atrs

    ou acima da sua obra, invisvel, clarifica-

    do, fora da existncia, indiferente, raspan-do as unhas dos seus dedos (6). O pico,

    para Joyce, , destarte, sinnimo do com-

    pleto auto-apagamento do autor; e com seu

    usual rigor intransigente, Joyce leva essa

    implicao mais longe do que algum ja-

    mais ousara antes. Ele assume, em primei-

    ro lugar, que seus leitores so dublinenses,

    intimamente familiarizados com a vida em

    Dublin e a histria pessoal de seus persona-

    gens. Isso lhe permite abster-se de dar qual-quer informao diretiva sobre seus perso-

    nagens, pois tal informao delataria ime-

    diatamente a presena de um autor onisci-

    ente. O que Joyce faz, em vez disso, apre-

    sentar os elementos de sua narrativa as

    relaes entre Stephen e sua famlia, entre

    Bloom e sua esposa, entre Stephen e Bloom

    e a famlia de Dedalus em fragmentos,

    medida que so lanados sem explicao

    no curso da conversao casual, ou medi-

    da que eles vo sendo embutidos nos diver-

    sos estratos de referncia simblica; e o

    mesmo verdade tambm para todas as

    aluses vida e histria de Dublin e aos

    eventos externos das vinte e quatro horas

    durante as quais o romance tem lugar. Em

    outras palavras, todo o plano de fundo

    factual to convenientemente resumido

    para o leitor em um romance ordinrio

    deve ser reconstrudo a partir de fragmen-

    tos, por vezes distantes centenas de pgi-nas, dispersados pelo livro. Como resulta-

    do, o leitor forado a ler Ulisses exata-

    mente da mesma maneira que l poesia

    6 J. Joyce,Retrato do Artista Quan-do Jovem, trad. Jos GeraldoVieira, 4a ed., Rio de Janeiro,Civilizao Brasileira, 1998(N.T.).

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    moderna montando os fragmentos conti-

    nuamente e guardando as aluses na mente

    at que, por referncia reflexiva, ele possa

    lig-las a seus complementos.

    Joyce tencionava, dessa forma, criar na

    mente do leitor uma sensao de Dublin

    como uma totalidade, inclusive todas as

    relaes dos personagens entre si e todos

    os eventos que adentram suas conscincias.

    medida que o leitor progride no roman-

    ce, conectando as aluses e referncias

    espacialmente, tomando gradual conscin-

    cia do padro de relacionamentos, essa

    sensao devia ser imperceptivelmente ad-

    quirida; e, na concluso do romance, po-

    der-se-ia quase dizer, Joyce literalmente

    queria que o leitor se tornasse um dubli-nense. Pois isso o que demanda Joyce:

    que o leitor tenha mo o mesmo conheci-

    mento instintivo da vida em Dublin, a mes-

    ma sensao de Dublin como um enorme

    organismo circundante, que o dublinense

    possui de bero por direito. Tal conheci-

    mento, em qualquer momento do tempo,

    lhe d um conhecimento do passado e do

    presente de Dublin como um todo; e s

    por esse conhecimento que o leitor, comoos personagens, consegue colocar todas as

    referncias em seus contextos apropriados.

    Isto, deve-se imaginar, praticamente equi-

    vale a dizer que Joyce no pode ser lido

    pode apenas ser relido. Um conhecimento

    do todo essencial para a compreenso de

    qualquer parte; porm, a menos que se seja

    um dublinense, tal conhecimento s pode

    ser obtido depois da leitura do livro inteiro,

    estando todas as referncias ajustadas em

    seus locais apropriados e apanhadas como

    uma unidade. Embora os fardos confiados

    ao leitor por esse mtodo de composio

    possam parecer insuperveis, o fato ainda

    que Joyce, em sua inacreditvel fragmen-

    tao laboriosa da estrutura narrativa, pro-

    cedeu assumindo que uma apreenso espa-

    cial unificada de sua obra, em ltima an-

    lise, poderia ser possvel.

    De uma maneira muito mais sutil que

    em Flaubert e Joyce, o mesmo princpio decomposio est presente em Marcel

    Proust. Uma vez que o prprio Proust nos

    diz que, antes de mais nada, seu romance

    O escritor

    James Joyce

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    ter impresso em si uma forma que, nor-

    malmente, permanece invisvel, a forma do

    Tempo, pode parecer estranho falar de

    Proust em conexo com a forma espacial.

    Quase sem exceo, ele tem sido conside-

    rado o romancista do tempopar excellence,

    o intrprete literrio daquele tempo real

    bergsoniano que, quando intudo pela sen-

    sibilidade, nos pe em contato com a reali-

    dade ltima. Parar nesse ponto, entretanto,

    perder o que o prprio Proust considerava

    a mais profunda significncia de sua obra.

    Obsessivo pela inelutabilidade do tempo,

    Proust era visitado sem sobreaviso por cer-

    tas experincias msticas que ele descreve

    em detalhe em O Tempo Reencontrado, o

    ltimo volume de sua obra de vrios volu-mes. Essas experincias, proporcionando-

    lhe uma tcnica para transcender o tempo,

    pareciam libert-lo da dominao do tem-

    po; e, escrevendo um romance, no qual ele

    traduziria as qualidades extratemporais des-

    sas experincias no nvel da forma esttica,

    ele esperava revelar sua natureza ao mundo.

    Pois, como verdadeiro artista, ele no dese-

    java apenas explic-las conceitualmente

    ele queria que o mundo sentisse o impactoemocional exato que ele prprio sentira.

    Para definir como isso se d, necess-

    rio primeiro compreender claramente a

    natureza precisa da revelao proustiana.

    Cada experincia dessas, conta-nos Proust,

    marcada por um sentimento de que a

    essncia permanente das coisas, normal-

    mente encobertas, libertada, e nosso ver-

    dadeiro Eu, que parecera longamente mor-

    to, mas no estava morto de outras formas,

    desperta, respira vida nova medida que

    recebe o alimento celestial que lhe trazi-

    do. Esse alimento celestial consiste em

    algum som, ou odor, ou outro estmulo

    sensrio, sentido de maneira nova, simul-

    taneamente no presente e no passado. Mas

    por que esses momentos deveriam parecer

    to assoberbantemente valiosos para Proust

    cham-los celestiais? Porque, observa

    Proust, a imaginao s consegue operar

    no passado; ao material apresentado ima-ginao falta, portanto, qualquer imediao

    sensorial. Mas, em certos momentos, as sen-

    saes fsicas do passado retornavam trans-

    bordantes para fundir-se com o presente; e

    nesses momentos, acreditava Proust, ele

    apanhava uma realidade real sem ser do

    momento presente, ideal mas no abstra-

    ta. Somente nesses momentos ele atingia

    sua ambio mais fundamental apossar-

    se, isolar-se, imobilizar-se pela durao de

    um lampejo luminoso, o que, de outro

    modo, ele no poderia apreender, a saber:

    um fragmento de tempo em seu estado

    puro. Para uma pessoa que experimenta

    esse momento, acrescenta Proust, a pala-

    vra morte deixa de ter significado. Situa-

    da fora do escopo do tempo, o que ela po-

    deria temer do futuro?

    A significncia dessa experincia, em-

    bora obscuramente insinuada por todo olivro, explicitada apenas nas pginas con-

    clusivas que descrevem a aparncia final

    do narrador na recepo da princesa de

    Guermantes. O narrador decide dedicar a

    recordao de sua vida recriao dessas

    experincias em uma obra de arte; e essa

    obra diferir essencialmente de todas as

    outras porque, em sua fundao, estar uma

    viso de realidade refratada atravs de uma

    perspectiva extratemporal. Muitos crticos,considerando Proust como o ltimo e mais

    debilitado de uma longa linha de estetas

    neurastnicos, acharam meramente, nessa

    deciso de criar uma obra de arte, a etapa

    final de seu vo para longe dos fardos da

    realidade. Edmund Wilson associa essa

    viso com a ambio de Proust de conquis-

    tar o tempo, assumindo que Proust espera-

    va se opor ao tempo estabelecendo algo

    uma obra de arte imprvio a seu fluxo;

    mas isso mal faz justia prpria convic-

    o de Proust, expressada com especial

    intensidade no ltimo volume de sua obra,

    de que cumpria uma misso proftica. No

    era a obra de arte qua obra de arte com que

    Proust se preocupava (seu desdm pela

    horda de escrevinhadores novidadeiros era

    desmedido), mas com uma obra de arte que

    pudesse permanecer como um monumento

    a sua conquista pessoal do tempo. Sua pr-

    pria obra, contudo, podia fazer isso, nosimplesmente por ser uma obra de arte, e,

    como todas as obras de arte, presumi-

    velmente intemporal, mas por ser uma obra

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    que comunicava a viso proustiana por um

    mtodo a compelir o leitor a experimentar

    sua total significncia emocional.

    O prottipo desse mtodo, como a an-

    lise do momento revelador, ocorre durante

    a recepo da princesa de Guermantes.

    Aps passar anos em um sanatrio, per-

    dendo quase que completamente o contato

    com o mundo elegante dos volumes anterio-

    res, o narrador sai da recluso para acom-

    panhar a recepo. Sua primeira reao

    de atordoamento diante das espantosas

    mudanas na posio social e das mudan-

    as ainda mais espantosas no carter e per-

    sonalidade de seus antigos amigos. Na opi-

    nio de alguns crticos de inclinao para o

    social, a inteno de Proust nessa cena eraretratar a invaso da sociedade aristocrti-

    ca francesa pela alta burguesia, e a queda

    gradual de todos os padres sociais e mo-

    rais provocada pela Primeira Guerra Mun-

    dial. Provavelmente, esse processo des-

    crito incidentalmente em alguma extenso;

    porm, medida que o narrador toma as

    grandes dores para nos contar, est longe

    de ser esse o significado mais importante

    da cena para ele. O que surpreende o narra-dor, quase que com a fora de um golpe,

    isto: ao tentar reconhecer os velhos amigos

    sob as mscaras que, da maneira como ele

    sente, os anos soldaram neles, ele atirado

    pela primeira vez na conscincia da passa-

    gem do tempo. Quando um rapaz se dirige

    respeitosamente ao narrador, antes que com

    familiaridade, como se fosse ele um cava-

    lheiro de avanada idade, o narrador perce-

    be repentinamente que se tornou um cava-

    lheiro de idade avanada; mas para ele a

    passagem do tempo esteve imperceptvel

    at aquele momento. Para se tornar cnscio

    do tempo, comea a compreender o narra-

    dor, foi necessrio primeiro remover a si

    mesmo de seu ambiente costumeiro ou, o

    que acaba por dar no mesmo, do fluxo de

    tempo que age naquele ambiente e, ento,

    arremeter de volta ao fluxo aps um lapso

    de anos. Assim fazendo, o narrador achou-

    se a si mesmo presenteado com duas ima-gens o mundo como ele antes o conhece-

    ra, e o mundo, transformado pelo tempo,

    que agora via diante de si; quando essas

    duas imagens so justapostas, descobre o

    narrador, a passagem do tempo subita-

    mente experimentada atravs de seus efei-

    tos visveis. O hbito, esse soporfico uni-

    versal, acoberta ordinariamente a passagem

    do tempo daqueles que esto acostumados

    com suas maneiras, pois, em qualquer

    momento do tempo, as mudanas so to

    diminutas que se tornam imperceptveis.

    Outras pessoas, escreve Proust, nunca

    param de trocar de lugar em relao a ns

    mesmos. Na marcha imperceptvel, porm

    eterna, do mundo, ns as vemos como iner-

    tes em um momento de viso, curto demais

    para percebermos o movimento que as vai

    arrastando. Mas basta que selecionemos em

    nossa memria duas imagens tiradas delasem diferentes momentos, todavia prximos

    o suficiente entre si para que no tenham se

    alterado perceptivelmente, quero dizer e

    a diferena entre eles ser uma medida do

    deslocamento que sofreram em relao a

    ns. Comparando essas duas imagens em

    um momento do tempo, a passagem do tem-

    po pode ser experimentada concretamente

    atravs do impacto de seus efeitos visveis

    sobre a sensibilidade; no mais meramen-te uma lacuna contada em nmeros. Essa

    descoberta proporciona ao narrador um

    mtodo que, na expresso de T. S. Eliot,

    uma objetiva correlativa que lhe permite

    evocar, atravs do veculo de uma obra de

    arte, a apreenso visionria do fragmento do

    tempo puro intudo no momento revelador.

    Quando o narrador descobre esse mto-

    do de comunicar sua experincia do mo-

    mento revelador, ele decide, como j disse-

    mos, incorpor-lo em um romance. Mas o

    romance que o narrador decide escrever j

    foi concludo pelo leitor; e sua forma

    controlada pelo mtodo que o narrador

    delineou em suas pginas conclusivas. O

    leitor, em outras palavras, foi substitudo

    pelo narrador, e foi colocado pelo autor,

    em todo o livro, na mesma posio que o

    narrador ocupa antes de sua prpria expe-

    rincia na recepo da princesa de Guer-

    mantes. Isso se d pela apresentao des-contnua do personagem um dispositivo

    simples que, no obstante, a chave para a

    forma da vasta estrutura de Proust. Cada

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    leitor logo nota que Proust no segue ne-

    nhum de seus personagens durante todo o

    curso de seu romance: eles aparecem e re-

    aparecem em diversos estgios de suas vi-

    das, mas, por vezes, vo centenas de pgi-

    nas entre o tempo em que so vistos pela

    ltima vez e o tempo em que reaparecem;

    e quando eles se apresentam novamente, a

    passagem do tempo, invariavelmente, os

    modificou de alguma maneira decisiva. Em

    lugar de submergir o leitor no fluxo do tem-

    po, isto , apresentar-lhe personagens que

    se desenvolvem progressivamente, em uma

    linha contnua de desenvolvimento, Proust

    o confronta com diversos instantneos dos

    personagens inertes em um momento de

    viso em diferentes estgios de suas vi-das; e o leitor, justapondo essas imagens,

    experimenta os efeitos da passagem do tem-

    po exatamente como o fizera o narrador.

    Conforme prometera, portanto, Proust sela

    seu romance indelevelmente com a forma

    do tempo; no entanto, encontramo-nos ago-

    ra em uma posio que nos permite enten-

    der exatamente o que ele queria dizer com

    sua promessa.

    Para experimentar a passagem do tem-po, aprendeu Proust, era necessrio elevar-

    se acima dela, e apanhar passado e presente

    simultaneamente em um momento do que

    ele chamou tempo puro. Mas tempo

    puro, obviamente, no tempo, em abso-

    luto a percepo em um momento do

    tempo, ou seja, espao. Pela apresentao

    descontnua do personagem, Proust fora o

    leitor a justapor imagens dspares de seus

    personagens espacialmente, em um mo-

    mento do tempo, para que a experincia da

    passagem do tempo seja completamente

    comunicada a sua sensibilidade. H, aqui,

    uma notvel analogia entre o mtodo de

    Proust e aquele de seus to amados pinto-

    res impressionistas que vai profundamente

    alm dos comentrios usuais sobre o

    impressionismo do estilo de Proust. Os

    pintores impressionistas justapunham tons

    puros na tela, em vez de mistur-los na

    paleta, para deixar a tarefa de mesclagemdas cores ao olho do espectador. Similar-

    mente, Proust nos d o que poder-se-ia

    chamar de vises puras de seus persona-

    gens vises deles inertes em um mo-

    mento de viso em diversas fases de suas

    vidas e permite sensibilidade do leitor

    fundir essas vises em uma unidade. O

    propsito de Proust alcanado, portanto,

    apenas quando essas unidades de signifi-

    cao so referidas umas s outras reflexi-

    vamente em um momento do tempo. isso,

    provavelmente, que Ramn Fernandez ti-

    nha em mente quando, em uma nota de

    rodap admirvel para um ensaio sobre

    Proust, lanou a seguinte observao: Em

    geral, a maneira de [Proust] fazer contato

    com sua dure bastante bergsoniana

    (vide episdio da madeleine), mas as rea-

    es de sua inteligncia sobre sua sensibi-

    lidade, que determinam a curva de sua obra,o orientariam, antes, em direo espacia-

    lizao de tempo e memria. (Itlico do

    texto.) Conseqentemente, assim como em

    Joyce e nos poetas modernos, vemos que a

    forma espacial tambm a armao estru-

    tural da obra-prima labirntica de Proust.

    3

    Consentindo que as obras j considera-

    das so similares em sua estrutura, que to-

    das tm em comum a qualidade da forma

    espacial, surge imediatamente a pergunta:

    a que podemos atribuir esta surpreendente

    unanimidade? Para responder satisfatoria-

    mente a essa questo, devemos primeiro

    ampliar os limites de nossa anlise e consi-

    derar a questo mais geral da relao das

    formas artsticas com os climas culturais

    em que so criadas. Essa ltima questo

    tem atrado estudantes das belas-artes des-

    de, pelo menos, a poca de Herder e

    Winckelmann; porm, no foi seno na

    virada do ltimo sculo que um estudo sis-

    temtico do problema se iniciou. Estimula-

    dos pela anlise magistral de Hegel dos es-

    tilos de arte como objetificao sensorial

    de diversas atitudes em relao ao univer-

    so, um grupo de acadmicos e crticos de

    arte alemes se concentrou sobre o proble-ma da forma nas artes plsticas, elaboran-

    do diferentes categorias da forma, traan-

    do em detalhe a mudana de um tipo de

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    REVISTA USP, So Paulo, n.58, p. 225-241, junho/agosto 2003 237

    forma para outro, e tentando considerar

    essas mudanas em termos culturais gerais.

    T. E. Hulme, um dos poucos escritores de

    lngua inglesa a se interessar seriamente

    por esses problemas, seguiu a direo des-

    se grupo de acadmicos e crticos alemes;

    e no podemos fazer nada melhor do que

    seguir seu exemplo.

    H um escritor em particular que exer-

    ceu uma forte influncia sobre Hulme e,

    atravs de Hulme e por meio de Eliot, pos-

    sivelmente sobre toda a escritura crtica

    moderna em lngua inglesa. Esse autor

    Wilhelm Worringer, o autor de um livro

    intitulado Abstraktion und Einfhlung

    traduzindo literalmente, Abstrao e

    Empatia subtitulado Uma Contribuio

    Psicologia do Estilo; e no livro de

    Worringer que vamos encontrar a chave

    para nosso prprio problema da forma es-

    pacial (7). Originalmente publicado em

    1908, como tese de doutorado do autor, o

    livro teve inmeras edies um fato que,

    como reivindica Worringer no prefcio da

    terceira edio, prova que seu assunto no

    era meramente acadmico, mas tocava em

    problemas vitais sensibilidade moderna.Uma outra prova desse ponto, observa ain-

    da Worringer, que, enquanto ele e outros

    acadmicos examinavam e reavaliavam

    estilos negligenciados, artistas criativos

    voltavam-se a esses estilos em busca de

    inspirao, encontrando neles uma forma

    esttica melhor adaptada s necessidades

    de sua sensibilidade do que o naturalismo

    convencional do sculo XIX. Embora a

    obra de Worringer seja impecavelmente

    acadmica, confinando-se estritamente ao

    passado e excluindo qualquer referncia,

    exceto algumas breves, s obras contem-

    porneas, sua reivindicao bastante jus-

    tificada: um leitor no pode evitar ser sur-

    preendido pela relevncia das teorias de

    Worringer acerca dos problemas mais fun-

    damentais da arte moderna. sua rele-

    vncia, junto com um estilo vigoroso e

    incisivo, que d ao livro sua notvel at-

    mosfera de excitao e descoberta inte-lectual um ar que faz de sua leitura, ain-

    da hoje, uma experincia animadora.

    Em seu livro, Worringer se prope a

    explicar por que, ao longo da histria das

    artes plsticas, tem havido uma alternao

    contnua entre estilos naturalistas e no-

    naturalistas. Durante perodos de natura-

    lismo a Idade Clssica da escultura e ar-

    quitetura gregas, a Renascena italiana, a

    arte da Europa Ocidental ao final do sculo

    XIX o artista empenha-se em representar

    o mundo objetivo e tridimensional da ex-

    perincia ordinria e em reproduzir com

    dedicada acurcia os processos da nature-

    za orgnica, na qual est includo o homem.

    Por outro lado, durante perodos de no-

    naturalismo a arte dos povos primitivos,

    a escultura monumental egpcia, a arte

    oriental, a arte bizantina, a escultura gtica,

    a arte do sculo XX o artista abandona omundo tridimensional e retorna ao plano,

    reduz a natureza orgnica, inclusive o ho-

    mem, a formas geomtricas lineares, e

    freqentemente abandona o mundo orgni-

    co completamente por um outro de linhas,

    formas e cores puras. Embora, obviamente,

    existam vastas diferenas entre os produtos

    artsticos dos diversos perodos aglomera-

    dos sob essas duas categorias, as similarida-

    des bsicas entre as obras de uma categoria,e sua oposio bsica, tomadas como um

    grupo, a todas as obras da outra categoria,

    no so menos notveis e instrutivas. Te-

    mos aqui, de acordo com Worringer, uma

    polaridade fundamental entre dois mtodos

    distintos de criao nas artes plsticas; e

    nenhum deles pode ser estabelecido como

    norma qual o outro deve aderir.

    Da Renascena aos fins do sculo XIX,

    contudo, era costumeiro aceitar o natura-

    lismo, entendido nesse sentido amplo, como

    o padro para as artes plsticas. O no-na-

    turalismo era visto como uma aberrao

    brbara causada por incapacidade tcnica:

    era inconcebvel que os artistas pudessem

    ter violado os cnones do naturalismo se

    no tivessem sido forados a tanto por um

    baixo nvel de desenvolvimento cultural.

    Franz Wickhoff, um famoso historiador da

    arte austraco da velha escola, chamou de

    arte no-naturalista o encantador balbuci-ar das crianas; e essa opinio, embora

    tivesse perdido todo seu poder de convic-

    o entre os artistas, provavelmente acha-

    7 Embora dois dos l ivros deWorringer tenham sido tradu-zidos para o ingls, Abstraktionund Einfhlung, infelizmente, spode ser lido em alemo. Noentanto, a segunda seo doensaio de Hulme sobre ArteModerna, pp. 82-91 de Es-peculaes , , como dizHulme, praticamente um resu-mo das vises de Worringer.Trata-se das vises apresenta-das em Abstrakt ion undEinfhlung.

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    ria alguma aceitao entre o pblico edu-

    cado mesmo nestes dias atuais. Para com-

    bater essa elevao hostil do naturalismo

    como padro esttico eterno, Worringer faz

    uso do conceito de Kunstwollen, vontade-

    para-arte, originalmente empregado por

    outro famoso acadmico austraco, Alois

    Riegl. O impulso de criao nas artes pls-

    ticas, acreditava Riegl, no era primaria-

    mente uma urgncia em imitar objetos na-

    turais; pois, fosse isso verdade, o valor es-

    ttico seria idntico habilidade na repro-

    duo naturalista, e as melhores obras de

    arte seriam aquelas que mais habilidosa-

    mente duplicassem as aparncias do mun-

    do natural. Em vez disso, Riegl postulava

    o que ele chamava de vontade-para-arteabsoluta, ou, ainda melhor, vontade-para-

    forma; essa vontade-para-forma absoluta

    o elemento comum a toda atividade nas artes

    plsticas, mas no pode ser identificada em

    nenhum estilo em particular. Todos os es-

    tilos so, para dizer a verdade, modifica-

    es dessa vontade-para-forma absoluta na

    medida em que encontram expresso de

    maneiras diversas em todo o curso da his-

    tria. A importncia desse conceito, apon-ta Worringer, que ele transferiu o centro

    de gravidade no estudo dos estilos de uma

    causao puramente mecnica o estado

    do conhecimento tcnico artstico no mo-

    mento em que o estilo floresceu para uma

    causa baseada no emprego proposital da

    vontade-para-forma. As peculiaridades de

    estilo nas eras passadas, escreve

    Worringer, podem ser investigadas, no

    em questo de deficincia no conhecimen-

    to, mas em vontades-para-arte diversamen-

    te direcionadas. Desse ponto de vista,

    impossvel olhar o no-naturalismo como

    uma tentativa grotescamente malsucedida

    de reproduzir as aparncias naturais: ele

    no tem interesse em tal reproduo, e no

    pode ser julgado como se tentasse compe-

    tir com o naturalismo em seus prprios ter-

    mos. Ambos os tipos de arte, criados para

    satisfazer diferentes necessidades espiritu-

    ais, s podero ser compreendidos se exa-minarmos os climas de sentimentos que

    levaram predominncia de uma ou de

    outra forma em tempos diferentes.

    Uma vez aceita essa concluso, est-se

    a um pequeno passo do cerne do livro de

    Worringer sua discusso das condies

    espirituais que tm impelido a vontade-

    para-arte a mover ou na direo do natura-

    lismo ou na direo do no-naturalismo.

    Quando o naturalismo o estilo de arte

    reinante, de acordo com Worringer, temos

    que ele criado por culturas que alcana-

    ram um equilbrio com o ambiente natural

    de que fazem parte. Como os gregos do

    perodo clssico, elas se sentem parte da

    natureza orgnica, ou, como o homem

    moderno da Renascena aos fins do sculo

    XIX, esto convencidas de sua capacidade

    de dominar o mundo natural. Em todo caso,

    o mundo orgnico da natureza no guardaterrores para elas: elas tm o que Worringer

    chama de Vertraulichkeitsverhltnis uma

    relao de confiana e intimidade com o

    universo; e o resultado, na arte, um natu-

    ralismo que se deleita em reproduzir as

    formas e aparncias do mundo orgnico

    objetivo e tridimensional. Acompanhando

    Riegl, entretanto, Worringer nos adverte a

    no confundir esse deleite pelo orgnico

    exibido pelo naturalismo com um meroimpulso imitao. Embora a imitao das

    formas e objetos naturais seja um subpro-

    duto do naturalismo, o que apreciamos no

    a imitao per se, mas nossa sensao

    exaltada de participao ativa no orgnico;

    e essa sensao que, demandando satisfa-

    o, vira a vontade-para-arte na direo do

    naturalismo quando o homem e o universo

    esto em relao harmoniosa.

    Por outro lado, quando a relao entre

    homem e universo de desarmonia e

    desequilbrio, temos que aqueles estilos

    abstratos no-naturalistas so sempre pro-

    duzidos. Para os povos primitivos, o mun-

    do exterior um caos incompreensvel, uma

    confuso absolutamente sem sentido de

    ocorrncias e sensaes. Claramente, os po-

    vos nesse nvel de desenvolvimento cultu-

    ral no obteriam nenhum prazer em uma

    apresentao objetiva do orgnico: o mun-

    do de sua experincia ordinria um mun-do de medo, e a representao desse mun-

    do na arte meramente intensificaria seu

    terror. Sua vontade-para-arte, em lugar de

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    voltar-se para o naturalismo, vai na direo

    oposta: ela reduz as aparncias do mundo

    natural a formas geomtricas lineares

    formas que tm a estabilidade, a harmonia

    e a sensao de ordem que o homem primi-

    tivo no consegue encontrar no fluxo dos

    fenmenos medida que, para citar Hart

    Crane, eles submergem no silncio. Os

    estilos no-naturalistas tambm so pro-

    duzidos, em um nvel mais alto de desenvol-

    vimento cultural, em perodos que, como o

    bizantino e o gtico, so dominados por uma

    religio que rejeita completamente o mundo

    natural, por consider-lo o reino do mal e da

    imperfeio. Em lugar de representar as

    aparncias naturais em toda a sua pujante

    vitalidade, a vontade-para-arte se volta parasua espiritualizao, para a eliminao da

    massa e da corporeidade, para uma aproxi-

    mao da eterna e etrea tranqilidade da

    existncia em outros mundos. Em ambos os

    casos o primitivo e o transcendental a

    vontade-para-arte, em conformidade com o

    clima de sentimentos que prevalea, diver-

    ge do naturalismo para criar formas estti-

    cas que satisfaam as necessidades espiritu-

    ais de seus criadores; e, em ambos os casos,essas formas se caracterizam por uma nfa-

    se em padres geomtricos lineares, em uma

    eliminao dos formatos objetivos

    tridimensionais e do espao objetivo

    tridimensional, em uma dominao do pla-

    no em todos os tipos de arte plstica (8).

    No difcil aplicar as observaes de

    Worringer aos desenvolvimentos moder-

    nos nas artes plsticas. Em uma poca como

    o presente, um tempo em que, como nos

    disse o psiclogo Erich Fromm, o homem

    est tentando escapar da liberdade por j

    no se sentir capaz de lidar com as comple-

    xidades atordoantes da existncia

    megalopolitana, no deve ser de surpreen-

    der que os artistas sempre os barmetros

    mais sensveis da mudana cultural te-

    nham se voltado, em busca de inspirao,

    aos estilos dos perodos regidos por climas

    de sentimentos similares; e os resultados

    desse processo nas artes plsticas so tam-bm bvios demais, dispensando comen-

    trios mais detalhados. Porm, como T. E.

    Hulme foi um dos primeiros a perceber,

    podia-se esperar que a forma esttica na

    literatura moderna passasse por uma mu-

    dana similar em resposta ao mesmo clima

    de sentimentos. O ensaio mais interessante

    de Hulme, Romantismo e Classicismo,

    uma tentativa de definir essa mudana da

    maneira como ela afetou a forma literria.

    Infelizmente, faltou a Hulme um conceito

    adequado de forma esttica na literatura, e

    ele equivocadamente tentou compensar

    essa deficincia adotando idias usadas

    pelos crticos franceses Pierre Lasserre e

    Charles Maurras em sua investida contra o

    Romantismo. Por razes polticas e liter-

    rias, esses escritores criticaram amargamen-

    te os romnticos franceses em todo terreno

    concebvel, mais ou menos como IrvingBabbitt faria com o Romantismo em geral

    alguns anos depois; mas o que mais im-

    pressionou Hulme na obra dos crticos fran-

    ceses foi sua denncia da subjetividade

    romntica, da emotividade irrestrita que o

    Romantismo s vezes impingia como lite-

    ratura. A arte no-naturalista, notou Hulme,

    em sua supresso do orgnico, tambm

    suprimia o subjetivo e o pessoal da maneira

    como o homem moderno os entendia; oestilo correspondente na literatura tambm

    seria impessoal e objetivo, ou, pelo menos,

    no seria como derramar um pote de me-

    lao sobre a mesa de jantar; ela teria uma

    seca rigidez, a rigidez de Pope e Horcio,

    em oposio pieguice que no considera

    que um poema um poema a menos que ele

    esteja lastimando e se queixando de uma

    ou outra coisa. E, conclui Hulmes, eu

    professo que um perodo de verso clssico

    seco e rgido se aproxima. Embora essa

    profecia possa parecer ter chegado notoria-

    mente muito perto do alvo, sabemos, dos

    poemas do prprio Hulme, que ele pensava

    em algo semelhante ao Imagismo, antes que

    na influncia tardia de Donne e os meta-

    fsicos; mas, independentemente da acur-

    cia de sua predio, sua adoo da anttese

    clssico-romntico poderia apenas confun-

    dir a questo. Em vez de seguir a direo de

    Worringer e tentar elaborar alguma nooprecisa da forma literria que pudesse ir

    paralela s mudanas que estavam tendo

    lugar na arte moderna, Hulme nos d uma

    8 Para prevenir objees, poder-

    se- ia apontar que nemWorringer, nem o presenteautor vem essas distinescomo absolutas em nenhumoutro sentido que no o teri-co. Esses diferentes estilos soconstrues ideais, s quais aarte dos diversos perodos temse aproximado em maior oumenor grau. Elementos deambos os estilos podem ser en-contrados em todos os pero-dos; diz-se que as culturas cri-am uma ou outra com base napredominncia, e no na ex-cluso absoluta. Toda a segun-da parte do livro de Worringer,que est fora do escopo denossa discusso, traa o ver-dadeiro grau de dominncia einterpenetrao de ambos osestilos nas artes plsticas dasculturas selecionadas.

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    vaga descrio dessa forma literria como

    sendo seca e rgida em qualidade, pre-

    gando essa descrio adiante a um conjun-

    to totalmente diferente de problemas, ao

    invocar igualmente a forma clssica. O

    grande mrito de Hulme reside em estar

    entre os primeiros a perceber que a forma

    literria passaria por uma mudana similar

    s mudanas ocorridas nas artes plsticas;

    mas ele falhou em definir essa forma lite-

    rria com o mnimo de exatido. Para tan-

    to, devemos voltar a Worringer e compre-

    ender onde a feliz, mas fragmentria, intui-

    o de Hulme cessou.

    Porque a literatura uma arte do tempo,

    Hulme poderia ter feito de seu ponto de

    partida, como faremos ns, a discusso deWorringer sobre o desaparecimento da pro-

    fundidade na arte no-naturalista. As razes

    gerais para esse desenvolvimento j foram

    explicadas; mas Worringer analisa esse pon-

    to com grande particularidade e, assim fa-

    zendo, lana uma observao de primeira

    importncia para o entendimento da forma

    espacial na literatura moderna. Espao pre-

    enchido com luz atmosfrica, escreve

    Worringer, que aglutina os objetos e abolesuas autocontinncias individuais, confere

    um valor intemporal (Zeitlichkeitswert) s

    coisas, desenhando-as no carrossel csmi-

    co das aparncias. Apresentar os objetos

    em profundidade lhes d um valor tempo-

    ral, ou talvez devamos dizer que acentua

    seu valor temporal, por conect-las com o

    mundo real no qual ocorrem os eventos; e

    uma vez que o tempo a prpria condio

    daquele fluxo e mudana de que, como

    vimos, o homem tenta escapar quando se

    encontra em uma condio de desequilbrio

    com a natureza, os estilos no-naturalistas

    esquivam-se da dimenso de profundidade

    e preferem o plano. Pois quando a profun-

    didade desaparece e os objetos so apre-

    sentados em um nico plano, sua apreen-

    so simultnea como parte de uma unidade

    intemporal , obviamente, facilitada. Em-

    bora, para retornarmos a Lessing, as artes

    plsticas sejam absolutamente espaciaisquando comparadas literatura, vemos

    agora que ambas foram mais ou menos

    espaciais no curso de sua evoluo interna,

    dependendo da extenso na qual a repre-

    sentao da tridimensionalidade era favore-

    cida ou evitada. Isso significa, paradoxal-

    mente, que as artes plsticas foram mais

    espaciais quando no representaram a di-

    menso da profundidade, e menos espaci-

    ais quando o fizeram, j que um grau maior

    de valor temporal sempre acompanha a

    apresentao da tridimensionalidade (9).

    Em um estilo no-naturalista, ento, a

    espacialidade inerente das artes plsticas

    acentuada pelo esforo em remover todos

    os traos de valor temporal; e, uma vez que

    a arte moderna no-naturalista, podemos

    dizer que ela est se movendo na direo de

    uma espacialidade cada vez maior. A

    significncia da forma espacial na literatu-ra moderna se torna clara agora: o com-

    plemento exato na literatura, no plano da

    forma esttica, aos desenvolvimentos que

    tiveram lugar nas artes plsticas. A forma

    espacial o desenvolvimento literrio que

    Hulme procurava, mas que no sabia como

    encontrar. Em ambos os veculos artsti-

    cos, um naturalmente espacial e o outro

    naturalmente temporal, a evoluo da for-

    ma esttica no sculo XX tem sido absolu-tamente idntica: ambos tm agido no sen-

    tido de vencer, na medida do possvel, os

    elementos temporais envolvidos em sua

    percepo; e a razo para essa identidade

    que ambos encontram-se enraizados no

    mesmo clima espiritual e emocional um

    clima que, na medida em que afeta a sensi-

    bilidade de todo artista, deve tambm afe-

    tar as formas que eles criam em cada vecu-

    lo. Em um plano puramente formal, por-

    tanto, ao demonstrarmos a completa con-

    gruncia da forma esttica na arte moderna

    com a forma na literatura moderna, ns des-

    nudamos o que Worringer chamava de razes

    psicolgicas da forma espacial na litera-

    tura moderna. Mas, para uma verdadeira psi-

    cologia do estilo, como Worringer nos ad-

    verte nas observaes citadas no incio des-

    ta seo, o valor formal deve ser de-

    monstrado como uma expresso precisa

    do valor interno, de tal maneira que adualidade de forma e contedo deixe de

    existir. Que elementos podem ser desco-

    bertos no contedo das obras que discuti-

    9 Dagobert Frey, cujo livro Gotikund Renaissancej menciona-mos, toma as categorias deespao e tempo de Lessing edemonstra em detalhe que, doponto de vista da percepo,as artes plsticas podem sermais ou menos espaciais, e aliteratura para no mencio-nar a msica mais ou menostemporal. Frey, todavia, chamatemporal a arte planimtricano-naturalista da Idade Mdiaporque, para entender o signi-ficadodos smbolos comprimi-dos no plano-figura, o olho deveir de um a outro no tempo e l-

    los como se fossem letras deuma palavra ou partes de umasentena.Apesar de isso ser inquestio-navelmente verdadeiro, resta ofato de que, ao lado da ques-to de contedo, a arte plani-mtrica da Idade Mdia criouformas geomtricas no planodo qual foi removido todo tra-o de valor temporal. Eventosda vida de Cristo, por exem-plo, embora possam ter ocorri-do em tempos diferentes, sojustapostos no mesmo plano-fi-gura e apreendidos simultanea-mente como parte de um pa-dro visual estilizado. Por essarazo, no podemos aceitar aterminologia de Frey comoadequada para descrever aqualidade de percepo maisimportante da arte medieval.

  • 7/28/2019 A Forma Espacial Na Literatura Moderna - Joseph Frank

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    mos para resolver essa dualidade?

    No caso de Proust, j respondemos a

    essa questo, mostrando que seu uso da

    forma espacial adveio de uma tentativa de

    comunicar a qualidade extratemporal de

    seus momentos reveladores. Ernst Robert

    Curtius, na concluso de seu penetrante

    estudo de Proust, chama a este platonista;

    e esse termo se revelar bastante acurado

    se acharmos que Curtius quer dizer que,

    como Plato, Proust encontrou seu valor

    ltimo em uma existncia que se livrou de

    toda submisso ao fluxo do temporal.

    Proust, geralmente no se percebe, era um

    aluno ardente de filosofia, bem como esteta

    neurastnico; tinha inteira conscincia das

    implicaes filosficas de suas prpriasprodues literrias. Ao conceitualizar es-

    sas implicaes para ns em sua anlise

    dos momentos reveladores, o prprio Proust

    explicou ao leitor a unidade entre forma e

    contedo em sua obra-prima.

    Com nossos outros escritores, contudo,

    o problema um bocado mais complexo.

    Onde Proust se preocupava com uma reve-

    lao individual, restrita, em sua obra,

    esfera da experincia pessoal do narrador,os outros escritores se moviam, todos, para

    alm do pessoal, em direo aos mbitos

    mais largos da histria: tudo tratava, de uma

    maneira ou de outra, do embate das pers-

    pectivas histricas, induzido pela identifi-

    cao das figuras e eventos contempor-

    neos com prottipos histricos variados.

    Isso fica evidente nos Cantos, em A

    Terra Devastada e em Ulisses, pois a prin-

    cipal fonte de significao em todos os trs

    a sensao de irnica dissimilaridade e,

    ainda, de profunda continuidade humana

    entre os protagonistas modernos e seus mo-

    delos h tempos falecidos. Um efeito simi-

    lar de palimpsesto acha-se em O Bosque da

    Noite, em que o Dr. OConnor est conti-

    nuamente desenhando imagens e metfo-

    ras em sua memria pr-histrica, costu-

    rando o passado com o presente e identifi-

    cando os dois. Allen Tate, falando dos

    Cantos, escreve que as vigorosas justa-posies dos mundos antigo, renascentista

    e moderno de Ezra Pound reduzem todos

    os trs elementos a uma miscelnea anti-

    histrica, intemporal e sem origem; e isso

    chamado a qualidade peculiarmente

    moderna do Sr. Pound. Mas , igualmen-

    te, a qualidade peculiarmente moderna de

    todas as obras que temos diante de ns

    todas elas conservam uma justaposio

    contnua entre aspectos do passado e do

    presente, de tal modo que ambas so fundi-

    das em uma viso abrangente; e tanto

    Tirsias quanto o Dr. OConnor as figu-

    ras centrais das obras em que aparecem

    so o foco de conscincia nessas obras pre-

    cisamente porque transcendem os limites

    histricos e abarcam todas as pocas.

    (Leopold Bloom, obviamente, faz o mes-

    mo; mas Joyce, mantendo as tradies do

    naturalismo, faz de Bloom o portador in-consciente de sua prpria imortalidade.)

    Atravs dessa justaposio de passado e

    presente, como percebeu Allen Tate, a his-

    tria se torna anti-histrica: j no mais

    vista como uma progresso objetiva e cau-

    sal no tempo, com diferenas distintamen-

    te marcadas entre cada perodo, mas sen-

    tida como um continuum em que as distin-

    es entre passado e presente esto oblite-

    radas. Assim como a dimenso de profun-didade foi se esvaecendo das artes plsti-

    cas, ela tambm foi se esvaecendo da his-

    tria medida que formava o contedo

    dessas obras: passado e presente so vistos

    espacialmente, encerrados em uma unida-

    de intemporal que, embora possa acentuar

    diferenas de superfcie, elimina qualquer

    sentimento de seqncia histrica por meio

    do ato mesmo da justaposio. A imagina-

    o histrica objetiva, da qual o homem

    moderno tanto se orgulhava e a qual culti-

    vou to cuidadosamente desde a Renascen-

    a, transformada, nesses escritores, na

    imaginao mtica para a qual o tempo his-

    trico no existe a imaginao que v as

    aes e os eventos de uma poca em parti-

    cular meramente como novo corpo dado a

    prottipos eternos. Esses prottipos so

    criados transmutando-se o mundo tempo-

    ral da histria no mundo intemporal do mito.

    E esse mundo intemporal do mito, for-mando o contedo comum da literatura

    moderna, que encontra sua expresso est-

    tica apropriada na forma espacial.