A FORMAÇÃO DO EMBU NO PERÍODO COLONIAL: … · das reduções jesuíticas. À medida que a...

Click here to load reader

Transcript of A FORMAÇÃO DO EMBU NO PERÍODO COLONIAL: … · das reduções jesuíticas. À medida que a...

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC/SP

    IVAN BARBOSA MARTINS

    A FORMAO DO EMBU NO PERODO COLONIAL:

    INTERSECO ENTRE A AO EVANGELIZADORA DOSJESUTAS NO MBITO DA POLTICA COLONIAL E AS

    DECORRNCIAS SIMBLICAS E CULTURAIS DO ENCONTRO DEMISSIONRIOS E INDGENAS

    DISSERTAO DE MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO

    SO PAULO

    2007

  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO

    PUC/SP

    IVAN BARBOSA MARTINS

    A FORMAO DO EMBU NO PERODO COLONIAL:

    INTERSECO ENTRE A AO EVANGELIZADORA DOSJESUTAS NO MBITO DA POLTICA COLONIAL E AS

    DECORRNCIAS SIMBLICAS E CULTURAIS DO ENCONTRO DEMISSIONRIOS E INDGENAS

    DISSERTAO DE MESTRADO EM CINCIAS DA RELIGIO

    Tese apresentada Banca Examinadora daPontifcia Universidade Catlica de So Paulo,como exigncia parcial para obteno do ttulo deMESTRE em Cincias da Religio, sob aorientao do Prof., Doutor nio Jos da CostaBrito.

    SO PAULO

    2007

  • BANCA EXAMINADORA

    ___________________________________

    ___________________________________

    ___________________________________

  • Dedicatria

    memria de Ansia que, com o seu amor de me, foi meu porto seguro,

    fonte de estmulo e coragem, fez-me saber e acreditar que tudo possvel

    quando nos dispomos a fazer.

    Aos meus filhos, Bruna e Guilherme, que sempre estiveram ao meu lado,

    muitas vezes percebendo a ausncia, no cobraram, compreenderam a

    necessidade.

    Aos meus irmos e amigos que sempre me incentivaram.

  • AGRADECIMENTOS

    Necessrio se faz, mais do que a lembrana, o agradecimento a tantas mos

    que significaram apoio, impulso e segurana nesta tarefa:

    A Joo e Ansia, meus pais, que nunca deixaram de buscar entender e

    incentivar os caminhos que procurava.

    Ao professor Dr. nio Jos da Costa Brito que, com sua paciente orientao,

    contribuiu de forma significativa para o desenvolvimento e a concluso desta

    dissertao e, acima de tudo, pela luz que sem perceber deixou em meu trabalho e

    em minha vida.

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES,

    pelo apoio e financiamento da pesquisa, sem os quais no seria possvel

    transformar o sonho em realidade.

    Aos professores do Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias da

    Religio, pela acolhida e pelo apoio neste caminhar, em especial ao professor Dr.

    Jos J. Queiroz.

    A Arlete, amiga e colega de trabalho, que sempre prestativa pde dar o

    caminho inicial do meu trabalho, ao emprestar as obras originais dos autores que

    primeiro escreveram sobre Embu. Sem estas obras meus caminhos seriam mais

    rduos.

    Aos amigos do programa de Cincias da Religio, pelos momentos srios,

    porm, descontrados, vividos durante todos esses anos.

    Aos amigos, que estiveram ao meu lado, demonstrando solidariedade, dando

    bons conselhos e ajudando a amenizar as dificuldades e os problemas que o mundo

    nos coloca.

    A Bruna e Guilherme, meus filhos, os ltimos, por serem os primeiros em

    minha vida.

  • RESUMO

    O processo de colonizao do Brasil se deu aps Portugal constituir-se como

    Reino, cuja vocao para a expanso martima, alinhada aos os interesses de

    nobres e membros da Igreja Catlica, transformou a colonizao em um projeto

    nacional, com impulsos comerciais e religiosos.

    O vnculo entre a Companhia de Jesus e Portugal fato que se estrutura

    logo aps a sua fundao por Incio de Loyola. Os jesutas formavam uma

    corporao religiosa destinada a constituir uma milcia de elite no combate Contra-

    Reforma, na luta em prol da religio liderada pelo Papa.

    O surgimento do Embu (MBoy) est atrelado a esses interesses, por isso

    fazemos uma anlise do processo de seu surgimento. Buscamos compreender o

    papel dos missionrios quanto ao ideal de f, colonizao catequista e s

    estratgias empregadas no processo de converso dos nativos.

    O encontro entre jesutas e indgenas foi cercado de expectativas e

    descobertas em relao ao processo cultural de universos que divergiam e se

    ressignificavam. O resultado deste encontro foi uma religiosidade popular marcada

    por um sincretismo, manifestado atravs de festas religiosas.

    Portanto, o objeto de pesquisa a formao de Embu, municpio da regio

    metropolitana de So Paulo. Pesquisamos a ao jesutica, o processo de

    catequizao dos guaranis e as relaes culturais resultantes de uma

    ressignificao religiosa que produziram na sociedade de Embu um catolicismo

    tipicamente popular. Analisaremos o perodo colonial, especificamente aquele

    referente a So Paulo, entre 1554 e 1700, no qual se consolida o papel do padre

    Belchior Pontes, considerado ento o fundador dessa cidade.

    Palavras-chave: Colonizao, Jesuta, Indgena, Ressignificao, Embu.

  • ABSTRACT

    The process of settling of Brazil IF gave Portugal after to consist as Kingdom

    and transforming into maritime country, searched the interests of the classrooms

    noble and members of the Church Catholic, transforming into a national Project with

    commercial impulses ando f religious mission.

    The entailing enters the Company of Jesus and Portugal is fact that if

    structure, then after its foundation for Incio de Loyola, the Jesuits formed a religious

    corporation destined to constituent of the elite military service to be used in the

    Against-Reformation, in the fight in favor of the religion undertaken for the Pope.

    The sprouting of the Embu (MBoy), is atrelado in this interest, therefore we

    make na analvsis of the process f itssprouting. We search to understandthe paper of

    the missionaries, how much the ideal of the faith and the catequista settling, that the

    activity of the Company evidences, and the strategies articulated in promoting its

    facts to keep the cultural monopoly and to lead the sheep.

    The meeting between Jesuits and aboriginalds, was to sth by expectations

    and dicoveries in relation to the cultural process of universes that divergiam and

    ressignificavam, but that it was necessary for the social maintenance. The resulto of

    this meeting was, a popular religiousing marketing by a revealed religious

    sincretismo through religious parties.

    Therefore, the research object is the formation of Embu, city of the region

    metropolitan of So Paulo. We search the jesutica action and the process of

    catequizao of the guarani, and the cultural relations resultant of a religious

    ressignificao that resulted in the society of Embu a typically popular catolicismo. I

    Will be analyzing the colonial period, specifically that referring of So Paulo, even

    enter 1554 for 1700 return, in which if it consolidates the paper of the Pe. Belchior

    Pontes, then considered the founder of this city.

    Key-words: Settling, Jessuit, Aboriginal, Ressignificao, Embu

  • SUMRIO

    Introduo ................................................................................................................. 9

    Captulo I: Antecedentes histricos da formao colonial do Brasil ................ 14

    1.1 - Processo de colonizao ............................................................................. 14

    1.2 - O Imprio Teocrtico - Misso Jesutica no Brasil ....................................... 21

    1.3 - Fundao e desenvolvimento das Redues .............................................. 30

    Captulo II: Formao do aldeamento de Embu: reduo jesutica de MBoy .. 54

    2.1 - Fundao de Piratininga .............................................................................. 54

    2.1.1 - A Fundao da aldeia de MBoy ........................................................... 56

    2.1.2 - Origem do nome .................................................................................... 66

    2.1.3 - A importncia econmica de Embu para So Paulo ............................. 67

    2.2 - O ideal da f catlica .................................................................................... 69

    2.2.1 - Colonizao catequtica ....................................................................... 70

    2.2.2 - Converso do gentio ............................................................................. 74

    Captulo III: Ressignificao simblica religiosa ................................................ 83

    3.1 Cultura guarani ............................................................................................ 84

    3.2 A viso do colonizador ................................................................................ 95

    3.3 Ressignificao simblica ........................................................................... 97

    3.4 A cristandade e a religiosidade popular .................................................... 104

    3.5 Religiosidade popular no Embu ................................................................ 106

    Concluso ............................................................................................................. 113

    Bibliografia ............................................................................................................ 118

  • LISTA DE FIGURAS

    Captulo I: Antecedentes histricos da formao colonial do Brasil

    Figura 1 .................................................................................................................... 39

    Captulo II: Formao do aldeamento de Embu: reduo jesutica de MBoyFigura 2 .................................................................................................................... 58

    Figura 3 .................................................................................................................... 60

    Figura 4 Padre Belchior de Pontes ....................................................................... 63

    Figura 5 Convento e Igreja de Nossa Senhora do Rosrio, hoje Museu de Arte

    Sacra ........................................................................................................................ 65

    Captulo III: Ressignificao simblica religiosa

    Figura 6 Festa de Santa Cruz em Embu ............................................................ 109

    Figura 7 - Festa de Santa Cruz em Embu ............................................................. 111

  • 9

    INTRODUO

    Compreender o processo colonizador um desafio para aqueles que se

    interessam pela formao do Brasil.

    Uma questo me incomodava, desde que comecei a dar aulas nas escolas da

    regio do Embu: como esta regio foi colonizada?

    A motivao para realizar esta pesquisa partiu, pois, de uma atividade sobre a

    histria de Embu, com os alunos do ensino mdio da rede pblica estadual. O grupo

    chegou a uma primeira hiptese: o padre Belchior de Pontes teria sido o fundador da

    cidade. Muitas lendas e mitos envolviam a fundao da aldeia de MBoy, que no

    futuro tornar-se-ia Embu.

    A partir de tais indagaes, procurei ampliar a pesquisa e melhor fundament-

    la. Tarefa rdua, pois no havia quase nada escrito sobre o Embu. Acrescente-se a

    isso a falta de documentao disponvel.

    Uma das lendas sobre a fundao da cidade, apresentada em flderes

    tursticos sobre o municpio, relata que o jesuta Belchior de Pontes, vindo de

    Itanham para So Paulo se perdeu e, exausto, desfaleceu.

    Foi salvo por um ndio, que mais tarde seria engolido por uma cobra. No

    entanto, foi encontrado pelo padre, pois sua cabea pendia visvel da boca da cobra.

    O missionrio o sepultou nos padres cristos e neste lugar foi fundada uma aldeia

    para catequizar os indgenas que recebeu o nome de MBoy.

    Desejava na pesquisa encontrar novos caminhos para explicar a fundao da

    cidade e como se deu o seu desenvolvimento.

    Embu preserva ainda hoje caractersticas do perodo colonial na arte e na

    religiosidade popular, frutos do intenso processo de simbiose ocorrido nesse

    perodo.

    Esperamos que esta pesquisa possa contribuir para um estudo histrico e

    antropolgico, oferecendo sociedade e aos pesquisadores de diferentes reas

    subsdios histricos e culturais que possibilitem novos pesquisas com perspectivas

  • 10

    diversas, de tal forma que a histria da cidade possa ser reinterpretada sob outro

    olhar.

    Nosso objeto de pesquisa a formao de Embu. Pesquisaremos a ao

    jesutica e o processo de catequizao dos guarani, tendo presente as relaes

    culturais que se deram nesse encontro. Um intenso processo de ressignificao

    ocorreu com reflexos na vida social e religiosa do Embu de ontem e de hoje. Nossa

    anlise revisitar So Paulo entre 1554 e 1700. Nesse perodo, padre Belchior

    esteve presente realizando trabalhos na regio.

    Comearemos pela anlise do processo de formao colonial do Brasil,

    partindo da constituio de suas regies e das cidades que hoje as compem, como

    So Paulo, antes Piratininga. No estudo sobre das aldeias que circundavam a

    cidade, enfatizaremos os aspectos polticos, econmicos e culturais, alm do papel

    de Embu no desenvolvimento regional. Como a cidade deixou de ser um aldeamento

    jesuta e se transformou numa importante cidade turstica? A presena dos

    missionrios deixou marcas profundas na regio, antes habitada por tribos

    consideradas hostis.

    Algumas questes nortearam a pesquisa:

    A primeira hiptese volta-se para o eixo poltico. S com a expanso da

    colonizao, Portugal garantiria a posse da terra e tornaria a colnia fornecedora de

    gneros alimentcios e minrios de grande valor no comrcio europeu.

    A segunda hiptese contempla as ambigidades e as disputas por poder na

    relao entre Igreja e Estado e seus reflexos no projeto colonial e no convvio

    conflitante entre missionrios, colonos e indgenas.

    A terceira hiptese tenta explicar a sobrevivncia da cultura indgena em meio

    colonizao. Sobrevivncia esta que se d graas a um amplo processo de

    ressignificao elaborado no encontro cultural que se deu especialmente no mbito

    das redues jesuticas.

    medida que a pesquisa evoluiu, foi possvel delinear o papel exercido por

    Embu: um ponto de parada entre Piratininga e o serto, um autntico corredor de

    passagem para os que buscavam indgenas no interior. Os missionrios que se

    aventuraram em busca de ndios no serto paravam em MBoy. As terras de MBoy

    pertenciam a Ferno Dias Paes Leme, administrador das aldeias do real padroado

  • 11

    de So Paulo. Ele se estabeleceu no stio dos Pinheiros, onde tinha uma grande

    fazenda agrcola. Para melhor vigiar as suas terras, Ferno Dias se fixou no meio do

    caminho entre as aldeias de MBoy e Itapecerica. MBoy comeou como um

    aldeamento particular e foi posteriormente doado aos jesutas. A atuao deles no

    Embu remete ao ano de 1554, com a presena sucessiva de vrios religiosos,

    comeando por Manoel da Nbrega at a chegada do padre Belchior de Pontes.

    O encontro entre jesutas e indgenas, desde seus primrdios, foi cercado de

    expectativas e descobertas de ambas as partes. Elementos da cultura dos

    missionrios foram absorvidos pelo mundo indgena, por fazerem sentido no seu

    universo. Algo semelhante ocorria com os missionrios que tambm acolheram

    elementos culturais indgenas. As mudanas no projeto missionrio confirmam o que

    acabamos de dizer. A forte presena do catolicismo popular em Embu nos dias

    atuais, especialmente nas festas, mais uma manifestao do processo de

    ressignificao.

    Como referenciais tericos recorremos aos autores Boris Fausto e Caio Prado

    Junior, profundos conhecedores do processo de colonizao portuguesa,

    especialmente no seu aspecto econmico. Laura de Mello e Souza e Srgio

    Buarque de Holanda nos ajudaram a compreender a mentalidade crist dos

    colonizadores europeus e sua viso de mundo, permeada por mitos, crenas e pela

    idealizao do paraso. Quanto ao papel da Igreja na colonizao e difuso da

    crena catlica, recorro s anlises de Riolando Azzi, Eduardo Hoonaert e

    novamente a Srgio Buarque de Holanda.

    Fomos auxiliados no entendimento da atividade missionria dos jesutas tanto

    por autores clssicos como Serafim Leite, quanto pelas novas pesquisas

    desenvolvidas por Castelnau-LEstoile, John Monteiro e Maximine Haubert.

    Com relao formao de MBoy, a pesquisa de Joaquim Gil Pinheiro foi de

    fundamental importncia, pois resgata a memria de Embu dentro de uma

    configurao etnogrfica, discutindo sua origem e a miscigenao ocorrida entre os

    povos. Recorro a Moacyr Faria Jordo, que compreende o Embu a partir de sua

    insero na dinmica do processo colonizador instaurado no planalto.

    Ao analisar o desenvolvimento dos aldeamentos, em especial do aldeamento

    de Embu, chamamos a ateno para a questo cultural, no interior da qual se d a

  • 12

    ressignificao. A obra missionria acabou por influenciar significativamente a

    cosmoviso indgena. Para trabalhar esta questo, recorremos a Mxime Haubert,

    Cristina Pompa, Graciela Chamorro e Castelnau-LEstoile.

    A pesquisa tem um perfil bibliogrfico, detendo-se na anlise das obras dos

    autores citados. Quanto documentao histrica sobre Embu, empreendemos uma

    busca no arquivo da Curia Metropolitana de So Paulo e no Museu de Arte Sacra do

    Embu. Os nicos registros encontrados pertenciam ao acervo do Museu da Cria

    Metropolitana. Eram livros de batismo e casamento do final do sculo XVIII e do

    incio do sculo XIX, sinais claros de que os padres continuavam desenvolvendo

    suas atividades no Embu. Encontramos tambm uma carta de agradecimento por

    doao de uma escultura sacra cidade, datada do sculo XVII. Esse foi o

    documento mais antigo. Entre outros documentos, podemos citar o do anncio de

    vendas de lotes na regio pelo Engenheiro Buccolini, alm dos panfletos de

    divulgao de festas populares tradicionais, j do incio do sculo XX. Todos esses

    documentos tambm foram utilizados por Leonardo Arroyo, em 1954, em seu livro

    Introduo ao estudo dos tempos mais caractersticos de So Paulo com a crnica

    da cidade.

    O trabalho articula-se em trs captulos, organizados a partir dos seguintes

    pilares: aspecto social, aspecto poltico e aspecto cultural-religioso. No primeiro

    captulo descrito o processo de colonizao levado a cabo por Portugal, que

    desempenhou importante papel na expanso martima. O projeto colonizador

    aglutinou interesses do reino, da Igreja e das classes hegemnicas. A expanso da

    f e a colonizao caminharam juntas. A Igreja e o Estado estavam unidos no

    projeto colonial; a primeira, tendo nas mos a educao das pessoas, o controle

    das almas, era um instrumento eficaz para veicular a idia de obedincia,

    principalmente a obedincia ao reino portugus. No mbito missionrio, as redues

    indgenas, atravs dos aldeamentos, foram teis para o controle da populao

    indgena e, conseqentemente, para o recrutamento de mo-de-obra. A tarefa

    missionria foi confiada a Companhia de Jesus, ordem recm fundada por Incio de

    Loyola, que se destacava no servio Igreja.

    O segundo captulo destaca a formao de So Paulo e os aldeamentos ao

    seu redor, tidos como ponto de apoio para a penetrao no serto, povoado pelos

    ndios. O surgimento do Embu (MBoy) liga-se a este fato. Buscamos compreender o

  • 13

    papel dos missionrios, seu ideal e suas estratgias para converter os indgenas e

    conserv-los na f. Os aldeamentos atenderam ao desejo de criar um espao que

    facilitasse o trabalho evangelizador e a perseverana na vida crist. A misso no foi

    realizada sem tenses, pois a insero dos missionrios na vida da colnia e a sua

    defesa dos indgenas despertou a ira dos colonos.

    No terceiro captulo, trabalhamos o encontro dos universos simblicos de

    jesutas e guaranis e suas ressignificaes. A cultura guarani, quanto questo

    religiosa, apresentava alguns traos prximos da viso catlica, facilitando a sua

    difuso e, por outro lado, proporcionando uma interpretao peculiar. O resultado

    deste encontro pode ser percebido em diversos lugares de So Paulo, como

    tambm no Embu, por meio de uma religiosidade popular sincrtica, resultante do

    processo de ressignificao.

  • 14

    CAPTULO I - ANTECEDENTES HISTRICOS DAFORMAO COLONIAL DO BRASIL

    Trabalharemos neste captulo a abordagem panormica das transformaes

    europias, que justificaram a necessidade de um empreendimento de colonizao

    de terras vis, tanto no aspecto econmico como no difusionismo religioso deste

    perodo.

    A nossa preocupao buscar subsdios, que justificam o empreendimento

    missionrio jesutico, como fio condutor para a colonizao, no que se refere aos

    seus aspectos econmicos, sociais e religiosos.

    1.1 - PROCESSO DE COLONIZAO

    Na anlise do processo de formao colonial do Brasil, So Paulo, antes

    Piratininga, aparece como um local povoado por grandes tribos indgenas,

    consideradas hostis para se escravizar ou catequizar, como os tapuias e tupiniquins.

    Para melhor compreender esse processo, examinaremos a histria do Brasil,

    dando especial ateno dinmica da colonizao e ao encontro entre europeus e a

    populao amerndia, bastante homognea em termos culturais e lingsticos,

    distribuda ao longo da costa e na bacia dos rios Paran-Paraguai. Boris Fausto nos

    relembra que:

    difcil analisar a sociedade e os costumes indgenas porque se lida compovos com uma cultura muito diferente da nossa, sobre a qual existiram eainda existem fortes preconceitos. Isto se reflete em maior ou menor grau nosrelatos escritos por cronistas, viajantes e padres, especialmente jesutas.1

    Na fundamentao de nosso estudo, recorreremos a elementos que formaram

    a base da estrutura econmica do Brasil colonial, especialmente a escravido

    1 Boris FAUSTO, Histria Concisa do Brasil, p. 15.

  • 15

    indgena. Caio Prado Jnior analisa alguns deles, como o meio geogrfico

    explorado, o incio das atividades agrcolas e os demais aspectos formadores da

    economia brasileira daquele perodo. Procuraremos demonstrar tambm, de forma

    sucinta, a dinmica das relaes polticas, com intuito de compreender mais

    profundamente o papel dos missionrios jesutas que deram suporte corte

    portuguesa e dominao em terras vis.

    Em suma e no essencial, todos os grandes acontecimentos desta era a quese convencionou com razo chamar de descobrimento articularam-se numconjunto que no seno um captulo da histria do comrcio europeu. Tudoque se passa so incidentes da imensa empresa comercial a que se dedicamos pases da Europa a partir do sculo XV e que lhes alargar o horizontepelo Oceano afora. 2

    O sentido da evoluo de um povo pode variar em virtude de transformaes

    infra-estruturais, mas tambm de circunstncias externas at ento ignoradas.

    Portugal, aps sua constituio como reino, voltou-se cada vez mais para a

    explorao martima, atividade que logo a transformaria numa potncia colonial. A

    expanso territorial europia impulsionava a busca por novas terras e Portugal

    despontava como pioneira no perodo das grandes navegaes.

    A expanso martima dos pases da Europa, depois do sculo XV, (...) seorigina de simples empresas comerciais levadas a efeito pelos navegadoresdaqueles pases. Deriva do desenvolvimento do comrcio continentaleuropeu, que at o sculo XIV quase unicamente terrestre e limitado, porvia martima, a uma mesquinha navegao costeira e de cabotagem. Agrande rota comercial do mundo europeu que sai do esfacelamento doImprio do Ocidente a que liga por terra o Mediterrneo ao mar do Norte. 3

    A fase colonial da histria do Brasil coincide com o perodo da histria da

    Europa no qual esta atingida por profundas transformaes advindas do

    expansionismo martimo4.

    2 Caio PRADO JUNIOR, Histria Econmica do Brasil, p. 14.3 IDEM, Formao do Brasil Contemporneo, p. 21.4 Francisco IGLSIAS, Trajetria poltica do Brasil: 1500-1964, p. 17, afirma que: o incio docontato entre o Velho e o Novo Mundo, com a explorao das riquezas e a subjugao de velhasculturas pelo dominador espanhol e pelo portugus.

  • 16

    Segundo Boris Fausto, Portugal no escapou crise geral que atingia o

    continente europeu. Enfrentou-a em condies polticas melhores do que os outros

    reinos. Durante todo o sculo XV, Portugal foi um reino unificado e menos sujeito a

    convulses e disputas, contrastando nesse sentido com a Frana, a Inglaterra, a

    Espanha e a Itlia, todas envolvidas em guerras e conflitos dinsticos, fator

    essencial para explicar seu pioneirismo na expanso.5

    No incio do sculo XV, a expanso correspondia aos interesses das classes,

    grupos sociais e instituies que compunham a sociedade portuguesa. Para os

    comerciantes, era a perspectiva de um bom negcio; para o rei, a oportunidade de

    criar novas fontes de receita numa poca em que os rendimentos da Coroa tinham

    decado muito, alm de ser uma boa forma de ocupar e prestigiar os nobres. Para

    estes e tambm para os membros da Igreja6, servir ao rei ou servir a Deus,

    cristianizando povos brbaros, resultava em recompensas e em cargos cada vez

    mais difceis de se conseguir nos estreitos quadros da metrpole. Para o povo,

    lanar-se ao mar significava sobretudo emigrar e tentar uma vida melhor, fugindo de

    um sistema social opressor.

    A expanso converteu-se em uma espcie de grande projeto nacional, ao

    qual todos ou quase todos aderiram e que atravessou sculos. Os impulsos para a

    aventura martima no eram apenas comerciais. Havia continentes e oceanos

    desconhecidos. As chamadas regies ignotas atraam a imaginao dos povos

    europeus, que a vislumbravam reinos fantsticos, monstros e a possibilidade do

    paraso terrestre.

    A descoberta da Amrica talvez tenha sido o feito mais espantoso da histriados homens: abria as portas de um novo tempo, diferente de todos os outros.(...) Todo um universo imaginrio acoplava-se ao novo fato, sendosimultaneamente, fecundado por ele: os olhos europeus procuravam aconfirmao do que j sabiam, resultantes ante o reconhecimento do outro.Numa poca em que ouvir valia mais do que ver, os olhos enxergavamprimeiro o que se ouviria dizer; tudo quanto se via era filtrado pelos relatos deviagens fantsticas, de terras longnquas, de homens monstruosos quehabitavam os confins do mundo conhecido.7

    5 Cf. Boris FAUSTO, Histria Concisa do Brasil, p. 10.6 Segundo M. de F. JORDO, O Embu na histria de So Paulo, p. 23: Erram os defensores emprocurar negar a inteno da Companhia, uma vez que as prprias cartas Jesuticas confessam essepropsito com evidncia incontestvel (...) as razes que os determinaram foram as mais elevadas ejustas, visando defesa da Igreja Catlica, ameaada pela Reforma religiosa.7 Laura de Mello e SOUZA, O diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 21-22.

  • 17

    A anlise de Souza demonstra que a expanso ocidental caracterizou-se pela

    bifrontalidade: por um lado, incorporavam-se novas terras, sujeitando-as ao poder

    temporal dos monarcas europeus; por outro, conquistavam-se novas ovelhas para a

    religio, para o papa. De todos os frutos que poderia dar a terra recm-descoberta,

    pareceu a Caminha que o melhor seria salvar os indgenas: (...) Esta deve ser a

    principal semente que Vossa Alteza em ela deve lanar8. A propagao da f

    catlica aparece no texto de Caminha como forte desejo do monarca. Quase

    cinqenta anos depois, D. Joo III reitera os propsitos cristianizadores da

    monarquia portuguesa para que o povo pudesse se converter a santa f catlica,

    criando assim um mecanismo ideolgico justificatrio para a colonizao da

    Amrica.9

    No imaginrio europeu, a colnia brasileira era palco de uma luta entre Deus

    e o Diabo, entre o paraso e o inferno. Numa poca em que ouvir valia mais do que

    ver, os relatos de viagens davam espao a sonhos e fantasias. Imaginrio esse

    fascinado pelas riquezas proporcionadas pela expanso comercial e pelo contato

    com povos diferentes. Alm disso, o processo colonizador trazia no seu bojo o dever

    de expandir a f, de conquistar novas terras para o reino de Deus. Misso que

    comportava inmeros desafios, pois, para a viso europia, a religio daqueles

    povos estava repleta de prticas mgicas, bruxaria e supersties.

    A f no se apresentava isolada da empresa ultramarina: propagava-se a f,mas colonizava-se tambm. As caravelas eram de Deus, nelas navegavamjunto missionrios e soldados, pois no s so apstolos os missionriosseno tambm os soldados e capites, porque todos vo buscar gentios etraz-los ao lume da f ao grmio da Igreja.10

    Para Souza, o descobrimento do Brasil revelou aos portugueses, como numa

    ao divina, a natureza que tanto se aproximava da imagem do paraso terrestre,

    principalmente pelo clima, pela fertilidade e pela vegetao. Aquela terra to distante

    e desconhecida tornava-se mais prxima e familiar. Contrastando com a viso 8 Carta de Pero Vaz de Caminha, In: Carlos Malheiro DIAS (org.), Histria da Colonizao Portuguesado Brasil, 32.9 D. Joo III escrevera em 1548 a Tom de Souza (Regimento de Tom de Souza), reiterando opropsito da converso. Para Souza, a religio forneceu os mecanismos ideolgicos justificadores daconquista e colonizao da Amrica. Cf. Laura de Mello e SOUZA, O diabo e a Terra de Santa Cruz,p. 32.

  • 18

    paradisaca, a presena do gentio revelava de maneira inequvoca a ao do

    demnio no novo mundo.

    A poca Moderna caracterizou-se por uma religiosidade exacerbada cheia de

    angstia, religiosidade esta que seria implantada na colnia. A idia de que Deus

    proveu tudo, determinando que os portugueses descobririam terras para coloniz-

    las, cristianizando-as, dava nimo aos colonizadores para que empreendessem a

    misso de conquista material e espiritual.

    Assim, a edenizao da natureza e o desprezo dos homens, vistos como

    brbaros, animais, demnios, faziam-se presentes no imaginrio dos colonizadores,

    que viam o que queriam ver e o que tinham ouvido dizer.11

    Os europeus acrescentaram imagem do homem selvagem a da

    monstruosidade. No mundo precrio, a necessidade de nomear e encarar o

    desconhecido, a fim de manter o medo dentro de limites suportveis, acabou

    propiciando cruzamentos culturais que geraram uma religiosidade popular com

    muitas particularidades na colnia.

    Hilrio Franco Jnior, em As Utopias Medievais, relembra que a questo do

    mito, em especial do paraso, era revestida por medos, dvidas, anseios,

    expectativas e sonhos coletivos. Estes aspectos vm ao encontro das projees do

    imaginrio europeu, que edenizava ou satanizava as novas terras.

    Portanto o mito trata de fatos e situaes ocorridos in illo tempore, a ideologiade um presente a ser de um tempo modificado, a utopia de um tempo por vir,futuro. Aquilo que o homem perdeu na Histria, narrado pelo mito, ele buscaatravs da ideologia e recupera no alm-Histria da utopoia. (...) Em outrostraos ainda utopia e ideologia se afastam: uma coletiva, outra segmentada;a primeira muitas vezes produto inconsciente, a segunda sempreconsciente; uma se fundamenta no sentimento e na esperana, outra nopensamento e na ao.12

    Entre os temas que mais contriburam para a gestao desse imaginrio

    estavam a fauna e a flora extraordinrias, a idia do paraso e do inferno, a fartura

    10 Ibid., p. 35.11 Cf. Laura de Mello e SOUZA, O diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 36.12 Hilrio FRANCO JUNIOR, As Utopias Medievais, p. 13.

  • 19

    de ouro e pedras preciosas, os lugares sagrados das histrias bblicas e as

    deformaes fsicas.13

    Para Souza, o mito acaba sendo explicitado no cotidiano colonial, na

    representao religiosa. A utopia presente na viso colonial, sendo uma

    representao coletiva, muitas vezes produto inconsciente, enquanto que a

    ideologia consciente. Uma fundamentada na esperana e outra, na ao.

    A expanso da f e a colonizao caminharam juntas. A Igreja e o Estado

    estavam unidos no projeto colonial. A Igreja, tendo nas mos a educao das

    pessoas e o controle das almas, era um instrumento eficaz para veicular a idia

    geral de obedincia e, mais restritamente, de obedincia ao poder do Estado.

    Entretanto, o papel da Igreja no se limitava a isso. Presente na vida e na morte das

    pessoas, nos episdios decisivos do nascimento e do casamento, mantinha um

    amplo controle da populao.14

    A tendncia para o absolutismo monrquico fez com que a Igreja fosse

    profundamente dominada pelo Estado. Agir decisivamente sobre a vida religiosa

    dentro da prpria metrpole seria resultado de uma contnua e progressiva

    interferncia do Estado nos assuntos eclesisticos. A posio do Estado, em face da

    Igreja em Portugal durante toda a Idade Mdia, em nada se distinguia das demais

    naes crists, no fosse por uma devoo particular autoridade papal. 15

    Portugal foi dos raros pases que aceitaram as decises do Conclio de

    Trento, talvez, por essa presena no mbito eclesistico. No reinado de D. Manuel,

    conseguiu-se obter da Santa S o direito de apresentao para os novos bispados

    do padroado real, e mesmo para os antigos bispados estabeleceu-se o costume de

    prov-las16.

    Segundo Fausto, na histria do mundo ocidental, as relaes entre Estado e

    Igreja variaram muito de pas a pas e no foram uniformes no mbito de cada um

    desses pases ao longo do tempo. No caso portugus, ocorreu uma subordinao da

    13 Cf. Neide GONDIN, A inveno da Amaznia, p. 16.14 Ver a instigante obra de Cludia RODRIGUES, Nas fronteiras do alm: a secularizao da morteno Rio de Janeiro (sculos XVIII e XIX). RODRIGUES mostra os mecanismos de controle da Igrejasobre o agir e as representaes diante da morte no ocidente catlico e no Rio de Janeiro.15 Cf. Srgio Buarque de HOLANDA, A poca Colonial, p. 51.16 Ibid., p. 51.

  • 20

    Igreja ao Estado por meio de um mecanismo conhecido como padroado real17, que

    consistiu em uma ampla concesso da Igreja de Roma ao Estado portugus, em

    troca da garantia que a Coroa promoveria e asseguraria os direitos e a organizao

    da Igreja em todas as terras descobertas.

    Para Holanda, de modo geral, os provimentos dos cargos eclesisticos foram

    feitos atravs da apresentao do rei ou de um representante, o provedor-mor. Mais

    tarde, do prprio governador-geral e da confirmao do bispo. O padroado consistiu

    praticamente no controle das finanas da Igreja e das nomeaes das autoridades

    eclesisticas pelo Estado. Durante os primeiros anos, no se conhecem

    interferncias diretas das autoridades civis no terreno espiritual. Mas, por outro lado,

    a administrao eclesistica estava entrosada com a mquina administrativa do

    governo. Seria difcil para o povo ver nela no um departamento do Estado, mas um

    poder autnomo.18

    O controle da Coroa sobre a Igreja foi em parte limitado pelo fato de que a

    Companhia de Jesus, at a poca do marqus de Pombal (1750-1777), teve forte

    influncia na corte. Na Colnia, o controle sofreu outras restries. De um lado, era

    muito difcil enquadrar as atividades do clero secular, disperso pelo territrio; de

    outro, as ordens religiosas conseguiram alcanar maior grau de autonomia. A

    independncia das ordens dos franciscanos, mercedrios, beneditinos, carmelitas e,

    principalmente, jesutas resultou de vrias circunstncias. Elas obedeciam a regras

    prprias de cada instituio e tinham uma poltica definida com relao a questes

    vitais da colonizao, da evangelizao e da civilizao do indgena. Alm disso, na

    medida em que se tornaram proprietrias de grandes extenses de terras e

    empreendimentos agrcolas, no dependiam apenas da Coroa para sua

    sobrevivncia.

    No processo colonizador, estiveram presentes outras ordens religiosas, alm

    dos jesutas, que tambm tiveram papel catequizador importante. Os franciscanos

    foram os primeiros religiosos a chegarem Terra de Santa Cruz. Suas atividades 17 Com o padroado real, o rei de Portugal ficava com o direito de recolher tributos devidos pelos fiis,conhecidos como dzimo, correspondente a um dcimo dos ganhos obtidos em qualquer atividade.Cabia tambm Coroa criar dioceses e nomear bispos. Muitos dos encargos da Coroa resultaram,pelo menos em tese, em maior subordinao da Igreja, como o caso da incumbncia de remuneraro clero e de constituir e zelar pela conservao dos edifcios destinados ao culto. Para supervisionartodas essas tarefas, o governo portugus criou uma espcie de departamento religioso do Estado, aMesa da Conscincia e Ordens. Boris FAUSTO, Histria Concisa do Brasil, p. 29.

  • 21

    estivam ligadas aos indgenas em torno do Rio de Janeiro. Quanto aos capuchinhos,

    eram de origem francesa. Desenvolveram a catequizao de indgenas e colonos e

    tambm levantarem um hospcio na Bahia, em 1679. Os carmelitas tambm atuaram

    como evangelizadores. Os beneditinos foram exceo. No trabalharam neste

    campo, s mantiveram suas fazendas e mosteiros.19

    A organizao das dioceses e parquias foi muito lenta e sua influncia sobre

    o catolicismo vivido no Brasil bastante reduzida. Ambas ficaram vacantes por

    grandes perodos, pois a Coroa s mostrava interesse na funo episcopal e

    sacerdotal medida que estas estavam ao seu servio. A vivncia real da religio

    catlica foi, dessa forma, pouco afetada pela estrutura eclesial. O clero secular

    atendia s necessidades sacramentais, como batismo, confisso ou missa de

    defuntos. Os sacramentos eram administrados populao em geral, independente

    de sua vontade, pois a colnia era catlica.20

    Coube afinal igreja, na formao da nacionalidade, o que se fez em matria

    de educao, de cultura, de catequese e de assistencialismo social. Hierarquia, clero

    secular, ordens religiosas e corporaes de leigos, formadas por irmandades e

    ordens terceiras, foram os responsveis por inserir os habitantes da colnia na

    Igreja, no somente no campo da exclusiva devoo, como tambm no da ao

    social.21

    Podemos considerar uma demonstrao de superioridade da metrpole a

    estratgia de colonizao calcada na influncia da Igreja Catlica. No h dvida de

    que, na histria da formao do povo brasileiro, o fator religioso representa uma

    contribuio singularmente valiosa.

    1.2 O IMPRIO TEOCRTICO: MISSO JESUTICA NO BRASIL

    Na trajetria histrica dos povos, certos momentos tm seus primrdios bem

    documentados e comentados por estudiosos e outros, nem tanto. Diversos episdios

    da histria colonial merecem ser revistos e melhor interpretados. 18 Cf. Srgio Buarque de HOLANDA, A poca Colonial, p. 57.19 Cf. Srgio Buarque de HOLANDA, A poca Colonial, p. 72.20 Cf. Eduardo HOORNAERT, A Igreja no Brasil-Colnia (1550-1800), p. 12-13.

  • 22

    Neste desafio, Serafim Leite com sua Histria da Companhia de Jesus no

    Brasil o nosso principal aliado, especialmente por ter apontado a questo. Sua

    obra tem uma intencionalidade muito bem definida: exaltar Portugal e a figura dos

    padres jesutas portugueses. Outro autor importante para nosso estudo John

    Monteiro que em Negros da Terra resgata a imagem dos colonos e dos ndios do

    planalto paulista.

    John Monteiro aborda a questo da administrao dos ndios por particulares

    e a contenda no seio da Companhia de Jesus referente a esta administrao,

    chamando a ateno para a escravizao dos ndios, fora de trabalho mais barata

    que a do negro.

    Estes autores nos ajudam na compreenso das transformaes ocorridas nos

    primrdios da Idade Moderna, que acabaram resultando nas conquistas de novas

    terras, na dominao de gentios e na reao da Igreja Catlica frente Reforma

    Protestante.

    A Societatis Jesu, a Companhia de Jesus22, foi criada em 27 de setembro de 1540,

    pelas bulas papais Regimini Militantis Ecclesiae e Exposcit debitu, de Jlio III.

    Ambas do o estatuto eclesial nova ordem. Contava ela, inicialmente, com apenas

    dez homens - dos quais dois seriam mais tarde canonizados: Incio de Loyola e

    Francisco Xavier - que se punham total disposio do papa para qualquer misso

    que o Sumo Pontfice ordenasse. Faziam votos de pobreza, castidade e

    obedincia.23

    A primeira bula estabelecia que a Companhia de Jesus se dedicasse principalmente

    ao bem das almas e propagao da f pelo ministrio da Palavra de Deus, pelos

    exerccios espirituais e pelas obras de caridade, pela formao crist das crianas e

    dos ignorantes e pela consolao espiritual dos fiis por meio da confisso. A nova

    ordem combateria por Deus sob o estandarte da cruz, servindo ao Senhor Jesus e

    seu vigrio na Terra.24

    21 Cf. Srgio Buarque de HOLANDA, A poca Colonial, p. 75.22 Ver A. RAVIER, Incio de Loyola funda a Companhia de Jesus.23 Para conhecer melhor o fundador da Companhia de Jesus, ver J. LOYOLA, Obras Completas deSan Igncio de Loyola; Ricardo Garcia VILLOSLADA, Santo Incio.24 INCIO DE LOYOLA escreveu um nico livro, os Exerccios Espirituais. Uma sntese de suaexperincia espiritual. O livro deu uma contribuio fundamental mstica ocidental e a norma deconduta da Companhia de Jesus.

  • 23

    O grupo se distinguiu rapidamente e se beneficiou do seu prestgio em crculos

    limitados da aristocracia espanhola e italiana. Os jesutas viam na educao um

    meio de conscientizar e de fortalecer as vontades para o servio do Reino de Deus.

    Rapidamente, a Companhia se fez presente em diversos pases. Em 1556, ano da

    morte de Incio de Loyola, contava com mais de 50 colgios espalhados pelo

    mundo.25

    Em 17 de fevereiro de 1554, de Roma, Incio de Loyola, escreve ao padre

    Manuel da Nbrega, provincial dos jesutas no Brasil, delegando a ele poderes para

    exercer como representante o Propsito Geral da Companhia de Jesus:

    Ao dilecto em Cristo Irmo P. Manuel da Nbrega, presbtero da mesmaCompanhia, e Propsito na ndia do Brasil, sujeita ao Serenssimo Rei dePortugal, e noutras regies mais alm, sade sempiterna no Senhor. Tendo oPapa Paulo III, de Feliz memria, concedido benignamente nossaCompanhia, do tesouro do poder apostlico, muitas graas espirituais para aglria de Deus e edificao das almas, as quais o Propsito Geral que for, porsi ou por outros que julgar idneos, pode exercer e dispensar: ns, que hpouco, confiando muito na vossa piedade e prudncia em Cristo Jesus, voselegemos Propsito de todos os nossos Irmos que andam nas sobreditasregies, e confirmando primeiro a autoridade conferida, vos comunicamostodas aquelas graas e autoridade, que a Santa S de qualquer modo noscomunicou e podemos comunicar (excepto duas, a saber, a indulgnciaplenria a conceder uma vez por ano, e a admisso profisso sem nossaexpressa licena), no s para usardes delas para edificao dos prximos,mas tambm para que possais e tenhais poder de fazer participantes delas osque esto sob a vossa obedincia e julgardes idneos, aos quais ns, desdeagora para ento, segundo o vosso parecer, as concedemos. E esperamosno Senhor que estas graas e faculdades vos ho-de ser, no futuro, armas dejustia para consolao e ajuda das almas e glria e honra de DeusAltssimo.26

    O vnculo entre a Companhia de Jesus e Portugal se estrutura pouco tempo

    depois da fundao da ordem por Incio de Loyola. J no governo de D. Joo III,

    vemo-los ativos no seio da Corte portuguesa e pelejando para ligarem-se aos

    negcios de Estado. De acordo com Khel, a relao entre o projeto colonial

    portugus e o projeto de catequizao da Santa S bastante conhecida e tem sua

    origem na forma de autoridade de Roma at ento, sendo o Papa representante de

    uma entidade supranacional, ao mesmo tempo sancionadora e legitimadora do

    25 Cf. Ricardo Garcia VILLOSLADA, Santo Incio.26 Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558), p. 21-22.

  • 24

    poder real. Essa posio sustenta-se na bula Orthodoxe Fidei27: (...) de todas as

    obras, a mais agradvel a Divina Majestade que a religio crist seja exaltada e

    divulgada em todos os pases, e as naes brbaras sejam subjugadas e

    convertidas f catlica28.

    Alfredo Ellis Junior, em Captulos da Histria Social de So Paulo, conta que

    a criao da Companhia de Jesus era uma das trs aes planejadas pelo Papa

    Paulo III para enfrentar a reforma religiosa. Os jesutas constituam uma espcie de

    milcia de elite da contra-reforma empreendida pelo Papa.

    Dando continuidade s afinadas relaes entre Roma e Lisboa, os jesutas

    foram liberados pelo Papa para ir ao Novo Mundo, com a misso de converso dos

    gentios e de dar atendimento aos portugueses. Sua chegada, em 1549, posterior

    presena dos franciscanos, que aqui haviam aportado com Cabral em 1500, porm

    apenas de passagem.

    Foram trs as misses jesuticas vindas para o Brasil:

    1. Em 1549, vindos na armada do primeiro governador Tom de Sousa,

    desembarcaram em 29 de maro os padres Manoel da Nbrega, Juan de Azpicuelta

    Navarro, Leonardo Nunes e Antnio Pires, alm dos irmos Diogo Jcome e Vicente

    Rodrigues;

    2. Em 1550, vindos na armada de Simo da Gama de Andrade,

    desembarcaram os padres Afonso Brs, Salvador Rodrigues, Francisco Pires e

    Manuel de Paiva;

    3. Em 1553, vindos na armada do segundo governador, D. Duarte da

    Costa, desembarcaram em 13 de junho os padres Lus da Gr, Ambrsio Pires e

    Brs Loureno, alm dos irmos Joo Gonalves, Antnio Blazquez, Gregrio

    Serro e Jos de Anchieta.

    Os jesutas distriburam-se pela costa, abrindo casas na Bahia, em Salvador e

    Porto Seguro; em So Paulo, em So Vicente; no Esprito Santo e em Pernambuco.

    27 Ortodoxe Fidei, de Sixto IV (1471-1484), concede a bula da cruzada aos reis catlicos para areconquista de Granada. Esta bula mais ampla nos seus privilgios que as bulas anteriores. Elamarca o incio da reconquista definitiva de Granada e, em 2 de janeiro de 1492, decreta a expulsoou a converso obrigatria dos judeus. Cf. Paulo SUESS (org.), A conquista da Amrica Espanhola,p. 232-246.28 Luis Augusto Bicalho KHEL, Simbolismo e profecia na fundao de So Paulo, p. 36.

  • 25

    Entretanto, desde o incio, Nbrega estava interessado em abrir uma casa em

    Piratininga, o que lhe permitiria estabelecer as bases para da penetrar no serto.

    Desde as primeiras notcias da presena de ndios menos belicosos ao sul edas possibilidades e ligao com o Peru por meio do Paraguai, Nbregainsistia em aventurar-se no serto adentro. J em 1550, est o padreLeonardo Nunes em So Vicente, em companhia de alguns Carijs cujalibertao na Bahia conseguira pessoalmente, e no de duvidar que eles otenham ciceroneado em suas primeiras incurses ao interior, de onde voltariaentusiasmado com a receptividade dos ndios.29

    Serafim Leite30 esclarece que o fim principal da Misso do Brasil era a

    converso de gentios, mas simultaneamente atender aos portugueses que aqui j

    estavam e aos que chegariam. Ergueram igrejas, abriram escolas para meninos e

    comearam as visitas aos ndios, cuja liberdade e dignidade defendiam. A ao da

    Companhia expandiu-se pela costa e sempre com o mesmo mtodo de trabalho:

    atender aos brancos e visitar e atrair os ndios, reunindo-os e educando-os. Ao

    mesmo tempo, iniciou-se o movimento de entrada de portugueses na Companhia,

    principalmente os que aqui estavam e j conheciam o tupi. Organizou-se a vida

    religiosa da comunidade segundo a prtica do Colgio de Coimbra, porque a

    Companhia ainda no tinha a Constituio31.

    Trs anos depois, em 1553, o provincial de Portugal deu ao superior da

    misso poderes de vice-provincial, resoluo aprovada por Santo Incio que, mais

    tarde, assinou a patente de Nbrega como provincial da nova Provncia do Brasil,

    em 9 de junho daquele mesmo ano. Com o passar do tempo e o desenvolvimento da

    colnia, os ministrios nas cidades, a necessidade de organizao rural das

    fazendas e a educao nos grandes colgios iriam ocupar muitos padres. No

    entanto, a Companhia no deixou de trabalhar com os ndios, razo primeira da sua

    presena na Amrica. O interesse dos jesutas pelos ndios no se limitava ao 29 Luis Augusto Bicalho KHEL, Simbolismo e profecia na fundao de So Paulo, p. 45.30 Cf. Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558), p. 21-22.31O texto das Constituies uma referncia constante para os jesutas, uma vez que eles soconvidados a rel-lo ao longo de toda sua vida. nele que se encontra explicitado o modo defuncionamento da Companhia. Ela se concebe uma metfora do corpo humano: uma vez que foiincorporado por um longo processo de formao na Companhia , um jesuta se torna membro dessecorpo que regido por uma nica cabea, o preposto geral. Os membros desse corpo, unidos porum mesmo lao de dependncia que os liga a sua cabea , esto dispersos no mundo, para ir

  • 26

    aspecto etnolgico, mas tambm as suas qualidades como homens e as suas

    aptides para se tornarem civilizados e cristos. O termo civilizado, muito utilizado

    no perodo, caracterizava a diferena entre os chamados evoludos e os no

    evoludos. A expresso posteriormente seria substituda pela noo de cultura, como

    ter ou no cultura32.

    Para Serafim Leite, o fruto destas misses consiste em faz-los de brbaros,

    homens e de homens, cristos e de cristos, perseverantes na f33. Para atingir tal

    objetivo, os missionrios viviam nas aldeias ensinando, curando e orientando. A

    misso continuava progredindo. Os superiores gerais, sempre atentos s atividades

    desenvolvidas pelos jesutas espalhados pelo mundo, costumavam de tempos em

    tempos enviar um visitador.

    No incio dos anos de 1580, a provncia do Brasil recebeu um visitador, padre

    Gouva, encarregado de implantar as diretrizes romanas, cuja finalidade era

    reacender a vida e a disciplina religiosa. O visitador, representante do poder central

    jesuta, aps a visita, como de costume, escrevia um relatrio no qual informava a

    situao da Provncia. Deixava tambm recomendaes a serem seguidas.34

    Os jesutas encontravam-se distribudos em colgios, residncias e aldeias,

    espalhados por centros de povoamento como Olinda, em Pernambuco; Salvador,

    Ilhus e Porto Seguro, na Bahia; Esprito Santo; Rio de Janeiro; So Vicente e

    Piratininga, a nica vila no interior das terras. No Brasil, o colgio ocupava o centro

    do dispositivo da Companhia, fruto de uma evoluo iniciada j nos seus primrdios.

    Na verdade, a criao de colgios no estava no projeto original do fundador. Incio

    de Loyola havia imaginado uma ordem essencialmente itinerante. Mas a demanda

    social levou a recm-criada Companhia a assumir tarefas de ensino. Com os

    colgios veio a estabilizao e o aumento de seus membros, o que obrigou a ordem

    a assegurar sua independncia econmica. O colgio era especializado no ensino,

    destinado primeiramente a atender a formao dos integrantes da Companhia.

    Gradativamente, passou a acolher estudantes externos.35

    trabalhar na vinha do cristo. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril,p. 67-68.32 Cf. Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558), p. 9.33 Ibid., p. 12.34 Cf. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p. 49-51.35 Cf. Ibid.

  • 27

    Os colgios gozavam de autonomia financeira e na provncia do Brasil no

    era diferente. Os jesutas, alm de estarem presentes nos colgios e residncias,

    residiam nas aldeias. A aldeia reunia ndios sob a direo dos missionrios que se

    encarregavam de catequiz-los e civiliz-los.

    Tambm se faziam presentes em outros espaos da colnia onde

    permaneciam em misso por cerca de quinze dias. Nessas misses, privilegiavam-

    se os lugares sem padre, secular ou regular. Alm de pregar e confessar, os

    missionrios batizavam e realizavam casamentos.

    Os jesutas agiam no mundo buscando a maior glria de Deus, como

    relembra bem Charlotte. Esta ao trazia consigo inmeros desafios. A provncia do

    Brasil envolvia-se cada vez mais com aspectos econmicos e polticos da vida da

    colnia.

    Em 1580, a colnia brasileira vive um momento de prosperidade graas

    produo de cana-de-acar. A cultura da cana desenvolveu-se muito e a colnia

    estava em via de se tornar o primeiro centro produtor e exportador de acar do

    mundo. O Brasil se beneficiava de uma conjuntura de preos elevados do acar na

    Europa e a atividade exportadora era fortemente rentvel. O visitador interessou-se

    muito pela produo do acar, pois a provncia estava envolvida com a produo.36

    Essa explicao dos lucros do comrcio aucareiro um convite explcito aconsiderar o interesse que haveria para os jesutas em produzir acardiretamente. (...) Para Cardim e Gouva, parece claro que os jesutasdevessem se engajar na economia aucareira para garantir a sobrevivnciada provncia e aliviar de dvidas os colgios.37

    Na metade do sculo XVI, a Coroa portuguesa olha com maior ateno para a

    sua colnia americana, pois a produo aucareira poderia ser ampliada e ajudaria

    equilibrar s finanas do reino. A colnia poderia tornar-se a maior produtora e

    distribuidora de acar. Portugal, naquele momento, sofria com a concorrncia do

    Oriente.38 A qualidade do solo e o clima do litoral nordestino favoreciam o cultivo da

    36 Cf. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p. 58.37 Ibid., p. 59.38 Cf. Capistrano ABREU, Caminhos antigos e Povoamentos do Brasil, p. 75.

  • 28

    cana-de-acar. Os engenhos se multiplicavam, a economia se dinamizava sob a

    tutela portuguesa.39

    Nesse contexto, a presso pela mo-de-obra escrava aumentava. Os ndios

    encontrariam nos jesutas aliados contra os colonos, mas estes tambm acabaram

    encontrando nos ndios mo-de-obra barata.40

    O fato de se envolverem com a produo de acar em suas fazendas no

    levou os jesutas a abandonarem seu projeto missionrio de evangelizar os ndios.

    Para Gouva e seu secretrio Cardim, a produo de acar pelos jesutas ajudaria

    a garantir a sobrevivncia da provncia e a aliviar as dvidas dos colgios. Nesse

    sentido, a posse de escravos pela Companhia no parecia perturbar o visitador e

    seu companheiro.41

    (...) De fato, na estratgia jesuta, o trabalho junto s elites era central; eletinha efeitos multiplicadores, abria as portas fundamentais da sociedade, por meio dele que se garantiam provncia os ganhos pelo vis das esmolase das doaes, e eventualmente recrutas de qualidades. Ferno Cardim osapresenta ento como uma clientela-alvo da qual era necessrio se ocuparatravs dos colgios e da educao de seus filhos. Ele insiste sobre aimportncia das misses temporrias no Recncavo baiano e no interiorpernambucano, para se ocupar das populaes escravas de suas fazendas.42

    A insero na sociedade colonial, com suas exigncias e tenses, acabou

    introduzindo modificaes no projeto inicial dos jesutas. Por outro lado, as

    novidades e desafios da vida na colnia tambm influenciariam nessa dinmica.

    Cabe aqui, um olhar para as Constituies. Estas queriam levar os que entravam na

    Companhia a plasmar sua identidade jesutica. Os Exerccios Espirituais dariam uma

    contribuio especfica e importante para este processo.43

    A longa formao, a dedicao aos estudos e a prtica anual dos exerccios

    espirituais contriburam para fortalecer a identidade do jesuta e lev-lo a agir para a

    maior glria de Deus, sendo um contemplativo na ao. As Constituies no eram

    regras fixas. Tinham um dinamismo interno que levava o jesuta a traduzir na ao, 39 Cf. Jacob GORENDER, O escravismo colonial, p. 498.40 Cf. Antnio Jos SARAIVA, Histria e Utopia, p. 22.41 Cf. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p. 62.42 Ibid., p. 62.43 Para traar paralelos e cruzamentos entre os Exerccios, as Constituies e as cartas jesuticas e omodo de proceder, ver J. EISENBERG, As misses jesuticas e o pensamento poltico moderno.

  • 29

    no seu modo de proceder, a sua experincia identitria. As Constituies

    convidavam-nos a agirem com liberdade e criatividade dentro dos limites do bom

    senso.44

    Pode-se entender nessa dinmica a criao dos aldeamentos. O aldeamento

    foi uma soluo encontrada para superar as inmeras dificuldades na evangelizao

    dos indgenas, embora as aldeias fossem espaos perigosos para os missionrios.

    O visitador Gouva reconhece no Regimento a legitimidade dos jesutas estarem

    nas aldeias, como demonstra Charlotte:

    O regimento confirma o lugar da aldeia na provncia definindo aosmissionrios os meios de realizar ali sua salvao e a dos ndios. Esse textode uso interno do mundo jesuta leva tambm em considerao o mundoexterior no caso, a sociedade colonial e os poderes polticos e religiosos pois a aldeia no somente um espao religioso, mas fundamentalmente umespao poltico, uma unidade administrativa onde vivem os ndios livres, eum espao econmico, o lugar onde se concentra uma fora de trabalho. Noentanto, apesar de evidentes tentativas conciliadoras, o regimento noconsegue resolver essa questo do lugar da aldeia na sociedade colonial, oque explica as dificuldades das aldeias jesutas na dcada seguinte.45

    A empresa colonial trazia no seu bojo contradies que no tardariam a se

    manifestar. Propagar a f46 e conquistar terra, mais cedo ou mais tarde, geraria

    tenses. De um lado, o colono com seus interesses mercantis e do outro, os

    jesutas, protegendo os ndios e, ao mesmo tempo, concorrendo com os prprios

    colonos. Os missionrios no se restringiram somente catequese. Acabaram

    tornando-se tambm bons administradores e bons colonizadores. Quando houve a

    necessidade de se expandir o projeto mercantilista, os primeiros a sofrerem foram os

    indgenas. Requisitados como mo-de-obra, tiveram nos missionrios seus

    defensores. Defesa pouco eficaz, verdade, pois o genocdio foi inconstestvel.

    A fora do projeto mercantilista acabou levando de roldo ndios e

    missionrios. Essa histria teve vrias etapas que relembremos a seguir.

    44 Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p. 69.45 Ibid., p.150.46 Segundo Laura de Mello e SOUZA, em O diabo e a Terra de Santa Cruz, p. 33: A f no seapresentava isolada da empresa ultramarina: propagava-se a f, mas colonizava-se tambm. Ascaravelas portuguesas eram de Deus, nelas navegavam juntos missionrios e soldados, pois no sso apstolos os missionrios seno tambm os soldados e capites, porque todos vo buscargentios e traz-los ao lume da f e ao grmio da Igreja.

  • 30

    1.3 FUNDAO E DESENVOLVIMENTO DAS REDUES

    Na qualidade de gro-mestre da Ordem de Cristo, o rei portugus era o

    responsvel pela propagao da f crist nos territrios descobertos sob sua alada.

    Para cumprir essa tarefa, de acordo com um parecer papal, o rei era competente

    para recolher tambm os tributos devidos Igreja na colnia e investi-los para o

    desenvolvimento do projeto missionrio. Obedecia, assim, a uma das prerrogativas

    que lhe vinha em forma de dever, por conta do regime do padroado47, institudo em

    Portugal desde a Idade Mdia, como mencionamos anteriormente.

    De todos os cantos da Europa e de todas as ordens religiosas surgiram

    voluntrios cheios de coragem e zelo apostlico, oferecendo-se como missionrios

    para levar a Santa F aos gentios. Catequizar os nativos era urgente. Os voluntrios

    aplicaram-se com notvel empenho na conquista das almas para a Igreja,

    compensando na Amrica as duras perdas europias com a Reforma.

    A Vila de So Paulo, no sculo XVI, vivia da agricultura de subsistncia at

    ser redimensionada pela ao dos bandeirantes. As bandeiras estavam ligadas

    demanda por mo-de-obra nos arredores do planalto e no serto.

    John Monteiro, em Negros da Terra48, reconstitui a evoluo da escravido

    indgena e do bandeirantismo. Esse processo tem o seu auge no sculo XVII. O

    planalto paulista, graas mo-de-obra indgena, deixa de ser uma das regies

    mais atrasadas da colnia e assiste a um grande desenvolvimento agrcola.

    Tanto no sculo XVI quanto no XVII, o escravo indgena, em So Paulo, era a

    maioria da populao. A busca constante de mo-de-obra seria o contraponto para

    garantir o abastecimento, devido ao alto ndice de mortes. O montono ritmo da vida

    e o trabalho em uma fazenda contrastavam com a vida nmade e selvagem. A morte

    do indgena no ocorria apenas pelo volume de trabalho, mas pela forma desumana

    como este trabalho se realizava. Outro fator letal era a falta de resistncia s

    doenas da civilizao.

    47 Sobre o padroado portugus, consulte: Eduardo HOORNAERT, Histria da Igreja na AmricaLatina, p. 160.48 Cf. John MONTEIRO, Negros da Terra, p. 8.

  • 31

    A constante busca da mo-de-obra indgena estava tambm ligada

    socialmente a um aspecto da vida portuguesa. H nos colonos, brancos e mestios,

    uma forte averso ao trabalho braal. Ocupar o tempo com o trabalho na lavoura era

    considerado indigno. Ter quem faa por ele hbito presente desde os primeiros

    momentos da colonizao. A digna ociosidade49, dentro dos ditames e

    entendimentos da poca, ope-se sofrida luta pelo po de cada dia.

    Numerosa escravaria se fazia necessria para a produo de um excedente

    que pudesse ser exportado para outras partes da colnia com custos baixos. A mo-

    de-obra escrava ndia era imprescindvel para a expanso econmica da colnia. Ao

    mesmo tempo, a Coroa visava aumentar suas rendas com a cobrana do quinto

    sobre toda e qualquer produo. As finanas do reino necessitavam de entrada de

    capital para se equilibrarem. A crise gerada pelo processo de Restaurao foi

    agravada com a perda do acar de Pernambuco - a capitania cara nas mos dos

    holandeses, na primeira metade do sculo XVII. Acrescente-se ainda a expulso

    deles em 1654, que exigiu altos custos.

    Na verdade, no decorrer do sculo XVII, os colonos afirmaram, cada vez commais convico, a necessidade do cativeiro indgena, reconhecendoexplicitamente que, para viabilizar o desenvolvimento econmico, mesmo emescala modesta, seria necessrio superar os obstculos mais fortes que aposio jesutica em prol da liberdade dos ndios. Ora, praticamente semcapital e sem maior acesso a crditos, reconheciam a impossibilidade deimportar escravos africanos em nmero considervel. Ademais, esbarravamna serra do Mar, o que tornava o transporte difcil e caro, especialmente paraos produtos de valor relativamente baixo que saam do planalto.50

    Para John Monteiro, segundo a mentalidade da poca, os paulistas

    prestavam grandes servios a Deus e Coroa, fosse tomando posse da terra ou

    convertendo os ndios verdadeira f e civilizando-os, sem esquecer que as razes

    econmicas do cativeiro estavam atreladas s convenincias do quinto.

    Tanto que se afirma que no h paulista sem o ndio. Estes garantiram o

    poder e a riqueza dos primeiros. Entende-se, ento, a rejeio paulista a tudo o que

    se interpusesse entre eles e os ndios. A averso aos jesutas aumentava. Ao longo

    da histria colonial paulista, inmeros episdios expressaram esta forte rivalidade e 49 Cf. Srgio Buarque de HOLANDA, Razes do Brasil, p. 27-28.

  • 32

    averso, que era recproca. O jesuta manifestava sua rejeio ao paulista apreador

    e administrao dos ndios por particulares.

    Diversos estudiosos, como Fausto, Jordo e Castelnau-LEtoile, entre outros,

    ao falar sobre a administrao dos ndios por particulares, remetem o leitor, por

    comparao, a encomienda, que era uma das formas encontradas pela Amrica

    Espanhola, em paralelo escravido negra, tal como no Brasil, para que o ndio

    fosse utilizado como mo-de-obra da empresa colonial. A encomienda e a

    administrao do ndio por particulares, por serem formas muito prximas,

    confundem-se em suas caractersticas, embora se saiba que a prtica espanhola

    goze de uma conformao jurdica mais complexa. Quando se trata da

    administrao do ndio por particulares no Brasil, trabalha-se com a idia de que a

    prtica teria nascido de um procedimento oposto norma padro51, que seria o

    aldeamento sob administrao religiosa ou leiga, isto , a cargo de um capito-mor

    indicado, por exemplo, pelo governador. Do aldeamento, os ndios passaram a ser

    desviados, ou por ao do capito-mor ou mesmo por mando direto de

    governadores, para estabelecimentos particulares, fixando-se, assim, o hbito da

    administrao do ndio por particular. Nas palavras de Gorender:

    (...) mas os governadores e capites-mores das aldeias, em oposio norma oficial, desviaram parte dos ndios aldeados para seusestabelecimentos particulares e ali os convertiam em escravos, nasceu da osistema de administrao confiada a particulares.52

    Assim, ao lado do ndio propriamente escravo e do ndio aldeado, tem-se a

    figura do ndio administrado. Ele to escravo quanto o primeiro. Entretanto, do

    ponto de vista legal, isto no poderia acontecer, pois, a princpio, o ndio

    administrado por particulares forro, tal como se d na encomienda. Em outras

    palavras, o administrado no pode ser visto como escravo, o que de fato no

    aconteceu no cotidiano da colnia. Cedo, o ndio administrado engrossou o nmero

    dos verdadeiros cativos. No fundo, a administrao particular sempre foi preldio da

    50 John MONTEIRO, Negros da Terra, p. 133.51 Cf. Jacob GORENDER, O escravismo Colonial, p. 498.52 Ibid., 498.

  • 33

    forma completa de escravido53. Neste sentido, o ndio administrado, por lei, no

    era escravo, mas na prtica, no havia diferena.

    A administrao do ndio por particulares gerou deformaes como o no

    pagamento do salrio e a alienao de mo-de-obra, ao deixar ndios como herana.

    Tudo o que um administrador no podia permitir. Ao longo do tempo, a

    administrao servia como suporte para escravizao dos indgenas.54

    O aldeamento podia estar sob administrao jurdica tanto de particulares,

    quanto de religiosos. Nas duas situaes o ndio estava sob tutela.

    O processo de colonizao, fazendo palco de uma tentativa passageira deimplantao de uma economia de mercado, e valorizando o planalto a partirdo core representado pelos Campos de Piratininga, por intermdio de umaestrutura econmica particular, marcada pela modstia das relaes com oexterior, contribuiu para que o referido core se constitusse no cenrio maissignificativo das iniciativas de implantao de aldeamentos. Estes foram, semdvida, elementos perfeitamente entrosados no conjunto das caractersticasque marcaram os fatos da colonizao (...) as condies, fundamentalmentefsicas, que presidiram o processo de colonizao condicionam tambm osfatos de distribuio, ou de redistribuio dos grupos indgenas. (...). Nestesentido, os quadros do povoamento pr-cabralino, participantes do processode reorganizao do espao pela colonizao, foram grandementeresponsvel pelas oportunidades que ofereceram para a criao dealdeamentos no planalto. (...) justificam os contrastes entre a riqueza dealdeamentos no planalto e sua pobreza no litoral. (...). Ela constitui emimportantssimo instrumento do prprio processo de colonizao, na medidaem que, utilizando o motivo da cristianizao para justificar a fixao e oaldeamento do indgena.55

    A ligao da Vila de So Paulo com os jesutas era antiga. Os aldeamentos

    organizados por eles buscavam maior distanciamento do litoral. O fato de os

    tupinamb estarem em guerra impulsionava a busca pelo serto. No serto seria

    possvel evangelizar os carij. A vila, por estar estrategicamente localizada no incio

    do planalto, tornou-se ponto obrigatrio para os que queriam adentrar o serto e,

    aos poucos, a ela acorreram moradores que, em suas imediaes, cultivavam

    lavouras que empregavam mo-de-obra indgena. Os paulistas buscavam-na nas

    matas dos arredores e, medida que escasseava, foram busc-la mais longe.

    53 Cf. Jacob GORENDER, O escravismo Colonial, p. 501.54 Ibid., p. 498.55 Pasquale PETRONE, Aldeamentos Paulistas, p. 108.

  • 34

    No sculo XVII, j nas primeiras dcadas, vemos convergir para So Paulo

    levas indgenas que os paulistas capturavam nos mais distantes lugares, como nos

    territrios pertencentes s misses jesuticas, a oeste do estado do Paran. Fato

    que escandalizava os religiosos da Companhia e os punha em litgio com os

    colonos, pois a legislao afirmava que o ndio, descido do serto, deveria

    permanecer aldeado e sob o controle espiritual e temporal dos jesutas56. O intuito

    no era evitar a prestao de servio do ndio ao colono, porque isso soava natural e

    bvio no contexto da estrutura colonial, mas impedir que o ndio fosse posto em

    regime de escravido absoluta e logo se finasse, devido s condies desumanas

    de trabalho. Em So Paulo, o poder real declarou-se a favor da entrega da

    administrao dos sistemas organizados de aldeamento aos jesutas. Somente no

    incio do sculo XVII a administrao temporal dos aldeamentos passou s mos de

    um capito, que era escolhido pelo poder civil. A populao paulista acabou

    desenvolvendo o hbito de intervir ativamente no cuidado do ndio muito antes dos

    jesutas assumirem a administrao temporal. Entende-se, ento, o motivo do

    choques entre jesutas e colonos. Mesmo na Bahia, a implantao dos aldeamentos

    no surtiu o efeito desejado pelos missionrios e pela Companhia. O Regimento de

    Tom de Souza57, documento oficial, permitia a criao e implantao do sistema de

    aldeamento:

    Eu, el-rei, fao saber a vs Tom de Sousa fidalgo de minha casa que vendoeu quanto servio de Deus e meu conservar e nobrecer as capitanias epovoaes das terras do Brasil e dar ordem e maneira com que melhor emais seguramente se possam ir povoando para exaltamento da nossa santaf (...) Eu sou informado que os gentios que habitam ao longo da costa dacapitania de Jorge de Figueiredo da vila de So Jorge at a dita baa deTodos os Santos so da linhagem dos topinambais e se levantaram j porvezes contra os cristos e lhes fizeram muitos danos e que ora esto aindalevantados e fazem guerra e que ser muito servio de Deus e meu seremlanados fora dessa terra para se poder provar assim dos cristos como dosgentios da linhagem dos topiniquis que dizem que gente pacfica e que se

    56 De modo geral, o aldeamento foi visto como algo positivo pela Coroa e autoridades coloniais. Noplano poltico, foi como um brao da autoridade real, sendo institudo para a prestao de serviospblicos, fez parte da razo do Estado portugus lutar pela sua preservao, pois o aldeamentoserviria como celeiro de mo-de-obra barata para as obras pblicas, para trabalhos agrcolas eexcedentes para abastecimento das praas em momentos de escassez. Para maioresesclarecimentos ler: Jacob GORENDER, O escravismo Colonial; Jos Antnio SARAIVA, Histria eUtopias.57 Tom de Sousa, primeiro governador-geral do Brasil, chegou Bahia em 29 de maro de 1549.Trazia consigo um regimento que recebera do rei D. Joo III em dezembro de 1548, nomeando-opara o exerccio do cargo e definindo suas tarefas.

  • 35

    oferecem a ajudar a os lanar fora e a povoar e a defender a terra pelo quevos mando que escrevais pessoa que estiver por capito na dita capitaniade Jorge de Figueiredo e a Afonso Alvares provedor de minha fazenda em elae a algumas outras pessoas que vos bem parecer que venham dita baa enela forem praticveis com ele e com quaisquer outras que nisso bementendam a maneira que se ter para os ditos gentios serem lanados na ditaterra e o que sobre isso assentardes poreis em obra tanto que vosso tempoder lugar para o poderdes fazer. (...) Porque parece que ser grandeinconveniente os gentios que se tornarem cristos morarem na povoao dosoutros e andarem misturados com eles e que ser muito servio de Deus emeu.58

    Pelo do Regimento de Tom de Souza, ficava claro o interesse do rei no

    Brasil, tanto pela colonizao, quanto pelas questes de ordem religiosas.

    Os jesutas foram encarregados pela Coroa de pr em ao a poltica real de

    converso e proteo dos ndios. O mesmo aconteceria na poca de Mem de S

    (1557-1575)59, quando do estabelecimento das aldeias.

    Segundo Charlotte, o estatuto das aldeias, de Mem de S (1558), previa a

    presena de missionrios encarregados pela realizao da missa, de ensinar a

    doutrina e o ensino elementar, mas no lhes confiava papel administrativo.60

    De acordo com Khel61, os jesutas que primeiro chegaram no Brasil

    encontraram a terra abandonada em todos os sentidos, especialmente no terreno

    espiritual. A escravido dos ndios representava uma sria dificuldade s intenes

    catequticas, pois instilava sentimentos de rancor em relao a qualquer branco

    indiscriminadamente. Os padres tomaram a defesa da liberdade dos ndios,

    granjeando-lhes logo a simpatia.

    As tribos resistiram s vrias formas de sujeio: pela guerra, pela fuga, pela

    recusa ao trabalho obrigatrio. Foram ainda vtimas de doenas como sarampo,

    varola e gripe, para as quais no tinham defesas biolgicas. Duas epidemias, entre

    1562 e 1563, mataram mais de 60 mil ndios.

    58 REVISTA DO INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO BRASILEIRO apud Darcy RIBEIRO;Carlos de Araujo MOREIRA NETO (orgs.), A fundao do Brasil.59 A origem dos aldeamentos est ligada estreitamente ao projeto portugus: o Regimento dasMisses, trazido pelo governador Mem de S e orientado em seus primeiros passos por Nbrega,consistia no estabelecimento de centros de concentrao nos quais os ndios eram localizados,instrudos na religio e em rudimentos da agricultura e iniciados na prtica de um trabalho regular.Lus Augusto Bicalho KHEL, Simbolismo e profecia na fundao de So Paulo, p. 70.60 Cf. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p.115.61 Lus Augusto Bicalho KHEL, Simbolismo e profecia na fundao de So Paulo, p. 35.

  • 36

    Podemos distinguir duas tentativas bsicas de sujeio dos ndios por partedos portugueses. Uma delas, realizada pelos colonos segundo um frio clculoeconmico, consistiu na escravizao pura e simples. A outra foi tentadapelas ordens religiosas, principalmente pelos jesutas, por motivos que tinhammuito a ver com suas concepes missionrias. Ela consistiu no esforo paratransformar os ndios atravs do ensino em bons Cristos, reunindo-os empequenos povoados ou aldeias. Ser bom cristo significava tambm adquiriros hbitos de trabalhos dos europeus, com o que se criaria um grupo decultivadores indgenas flexvel em relao s necessidades da Colnia.62

    necessrio ter presente que o aldeamento sob jurisdio religiosa, forma

    incompleta de escravido indgena, continuava se preocupando com a preservao

    da mo-de-obra nativa.

    Para Serafim Leite63, o aldeamento dos ndios visava garantir o xito de uma

    catequese mais aprofundada. Percorrer as aldeias indgenas no era suficiente para

    uma catequese mais slida. O nomadismo, a falta de exerccios religiosos e o

    convvio com cristos poderiam ser prejudiciais aos ndios recm-evangelizados

    que, com freqncia, retornavam aos hbitos antigos. O aldeamento fixando

    caadores e pescadores andarilhos poderia contribuir com o xito das misses. Se

    os padres se contentassem com percorrer as aldeias indgenas, alm dos possveis

    riscos, tirariam precrio fruto. O que ensinavam um ms, por falta de exerccio e de

    exemplo estiolaria no outro 64.

    No s a necessidade de fix-los era urgente para eliminao das prticas

    antigas, como de subtrair os batizados da influncia dos que continuavam pagos,

    polgamos e antropfagos. Dispersos pelo serto, os ndios nem se purificariam de

    suas supersties, nem deixariam de se guerrear e comer uns aos outros. Era

    necessrio modificar o seu sistema social e econmico, da a necessidade de fix-

    los nas aldeias.

    Os aldeamentos propostos pelos jesutas j haviam sido ordenados por D.

    Joo III no Regimento a Tom de Sousa, dada a inconvenincia de os ndios se

    tornarem cristos e ficarem soltos, misturados com os ainda no convertidos. Para o

    Regimento, seria de muito servio a Deus e Coroa que os convertidos s

    conversassem com cristos e no mais com gentios. O aldeamento tambm

    62 Boris FAUSTO, Histria Concisa do Brasil, p. 23.63 Cf. Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558), p. 42-48.64 Ibid., p. 42.

  • 37

    defendia o ndio da influncia dos colonizadores, principalmente dos maus colonos,

    e tambm limitava a liberdade e cerceava suas crenas, suas manifestaes

    religiosas, num ambiente em que a nica e verdadeira expresso religiosa era a do

    homem branco. A poltica de segregao gerou nos ndios, devido tambm

    catequese, o respeito pelos brancos. Cabia aos padres inculcarem a religio catlica

    como nica e verdadeira.

    Porque parece que ser grande inconveniente os gentios que se tornaremcristos morarem na povoao dos outros e andarem misturados com eles eque ser muito servio de Deus e meu apartarem-nos de sua conversaovos encomendo e mando que trabalheis muito por dar ordem como os queforem cristos morem juntos perto das povoaes das ditas capitanias paraque conversem com os cristos e no com os gentios e possam serdoutrinados e ensinados nas coisas de nossa santa f e os meninos porqueneles imprimir melhor a doutrina trabalhareis por dar ordem como se faamcristos e que sejam ensinados e tirados da conversao dos gentios e aoscapites das outras capitanias direis de minha parte que lhes agradecereimuito ter cada uma cuidado de assim o fazer em sua capitania e os meninosestaro na povoao dos portugueses e em seu ensino folgarei de se ter amaneira que vos disse.65

    As primeiras tentativas de aldeamentos jesuticos datam de 1550. No comeo

    daquele ano, Nbrega escrevera: desejamos congregar todos os que se batizam,

    apartado dos mais66. Para isso, ordenou que o padre Diogo lvares ficasse entre

    eles. Em 1552, Diogo lvares avisara D. Joo III que os ndios estavam reunidos em

    uma aldeia, em torno de uma igreja, onde eram ensinados.67

    (...) Quantas vezes, com o nomadismo intermitente dos ndios, ao voltarem ospadres a uma povoao, que deixaram animada pouco antes, em lugar delaachavam cinzas.68

    Atravs dos aldeamentos, a modalidade mais eficaz e original da colonizao

    crist do Brasil, foi a primeira semente das clebres redues, e o desenvolvimento

    do trabalho missionrio. Mem de S deu o mais decisivo apoio material e moral a

    65 REVISTA DO INSTITUTO HISTRICO E GEOGRFICO BRASILEIRO apud Darcy RIBEIRO;Carlos de Araujo MOREIRA NETO (orgs.), A fundao do Brasil.66 Cf. Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558), p. 42.67 Ibid., p. 42-48.68 Ibid., p. 42-48.

  • 38

    Nbrega e a todos os jesutas, pois com o consentimento de El-Rei, algumas penas

    de lei foram aplicadas no momento e na tentativa de fixar os moradores, que facilitou

    a construo de Igrejas e aldeias.

    Os zelosos jesutas organizaram de tal modo as aldeias, oferecendo aos

    ndios vantagens espirituais e materiais, que muitos se sentiram atrados para a vida

    crist, apresentada como superior ao seu antigo modo de vida.

    O crculo das aldeias, iniciado ao redor da cidade, alargava-se pouco a

    pouco.69 Nos primeiros aldeamentos, o trabalho dos padres consistia em misses

    mais ou menos demoradas pelas aldeias pags. Mergulhados no universo dos

    ndios, os jesutas procuravam captar a simpatia dos membros influentes das tribos,

    enquanto os meninos rfos atraam para o Colgio crianas indgenas para serem

    evangelizadas.

    Ao discutir o modo mais eficaz para executar os planos jesuticos, Nbregainsistiu que queria ver o gentio sujeito e metido no jugo da obedincia doscristos, para se neles poder imprimir tudo quanto quisssemos, porque elede qualidade que domado se escrever em seus entendimentos e vontademuito bem a f de Cristo.70

    Depois da estabilizao das aldeias e da fixao de residncia dos padres em

    cada uma delas, o problema passou a ser as atribuies dos religiosos, dado o

    aumento do nmero de missionrios. Em 1598, o Regimento acata o desafio de

    conciliar a experincia missionria com o esprito da Companhia. A aldeia era um

    espao perigoso para a identidade jesutica, mas era tambm a forma original

    encontrada pelos jesutas de evangelizar.71 Uma srie de mecanismos

    recomendados pelo Regimento visava fazer a Companhia existir no lugar da misso,

    isto , aonde ela no existe na aldeia.72 O superior de cada aldeia tinha o papel

    supervisionar, coordenar e delegar as atribuies dos padres ou desloc-los, se

    necessrio, para melhor desenvolvimento das aldeias.73

    69 Cf. Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558),p. 48.70 John MONTEIRO, Negros da Terra, p.41.71 Cf. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p.130-131.72 Cf. Ibid., p. 150.73 Cf. Serafim LEITE, Cartas dos Primeiros Jesutas do Brasil VII (1553 1558), p. 48.

  • 39

    Os jesutas foram atrs dos ndios para conhecer sua lngua e seus costumes,

    agreg-los s suas igrejas e aos seus colgios e transform-los em bons cristos e

    em trabalhadores submissos. As misses e as redues reuniram dezenas de

    milhares de ndios de diferentes tribos. Os jesutas acreditavam poder preserv-los

    da escravido, catequiz-los e, principalmente, organiz-los em comunidades de

    trabalho coletivo sob seu direito e pleno controle. Mas o projeto jesutico, no qual a

    coero e o paternalismo muito contriburam para a desfigurao cultural indgena,

    pouco ajudou para a sobrevivncia dos ndios e de sua cultura, principalmente por

    causa do avano das bandeiras.

    Figura 1

    Fonte: Divalte, Histria Volume nico, 2002

  • 40

    As grandes bandeiras ou entradas, organizadas no planalto de Piratininga,

    foram freqentes na primeira metade do sculo XVII, mais especificamente entre as

    dcadas de vinte e quarenta daquele sculo. Nessa poca, os bandeirantes

    assaltaram as redues jesuticas paraguaias para de l trazer levas de ndios

    guarani que, por sua prpria cultura, eram os mais capazes para as lidas da terra. O

    bandeirantismo de larga escala representou o esforo vigoroso para manter e

    desenvolver o projeto mercantilista no planalto paulista. A agricultura paulista contou

    com a fora do trabalho escravo necessria para que o preo dos produtos fosse

    competitivo no mercado. Dessa forma, os paulistas foram rotulados de um lado,

    como escravizadores de ndios e, de outro, como administradores.74 Eles assumiram

    de maneira mais incisiva o papel de administradores no final do sculo XVI, mais

    especificamente nas duas primeiras dcadas do domnio filipino - momento em que

    Portugal estava sob o domnio espanhol.

    A Espanha, no campo da legislao indgena, possua um conjunto de leis

    mais benficas aos ndios do que Portugal. Nesse aspecto, Portugal nunca chegou a

    igualar-se a Espanha.

    Neste perodo ocorreu tambm a chamada Unio das duas coroas, quandoPortugal e Castela tiveram um nico rei (1580-1640). Tal episdio interferiuigualmente na vida colonial do Brasil, pois se de um lado produziu umalegislao mais favorvel liberdade indgena, de outro facilitou a penetraoportuguesa em terras de Castela.75

    A elaborao de novas leis indgenas respondeu evoluo da sociedade

    colonial. A colnia estava plenamente engajada na cultura do acar, que favorecia

    o desenvolvimento, mas necessitava de mo-de-obra abundante tanto para a cultura

    da cana, quanto para a sua transformao em acar.76

    As primeiras leis de proteo do ndio foram as de 1595 e 1596, com o intuito

    de preservar o indgena nas terras da coroa espanhola. No que tange ao Brasil,

    parecem ter visado situao do ndio no litoral do Nordeste, mas valiam para todo

    o territrio. O mais importante nessas leis foi a preocupao em regular os trabalhos

    74 Cf. John MONTEIRO, Negros da Terra, p. 44.75 Benedito A PRZIA, Os ndios do planalto paulista nas crnicas quinhentistas e seiscentistas, p.80.76 Cf. Charlotte de CASTELNAU-LESTOILE, Operrios de uma vinha estril, p.274-275.

  • 41

    que os ndios poderiam prestar, se aldeados, estabelecendo, por exemplo, o tempo

    de servio fora do aldeamento - dois meses, na lei de 1596. A lei de 1595 afirmava

    que o ndio apreendido em guerra justa77 era escravo. Os demais, livres - isso em

    ambas as leis. Os trs primeiros pargrafos da Lei de 26 de julho de 1596 nos

    indicam suas prioridades:

    Lei de 26 de Julho de 1596 sobre a liberdade dos ndios

    Eu el rej faco saber aos que este aluara, e regimento uirem, q considerandoeu o muito que emporta, p. a conuerso do gentio do Brasil a nossa feecatholica, e p a conseruao daquelle estado dar ordem, com q o gentiodea do serto p as partes uesinhas as pouaes dos naturais deste Reyno,e se comuniquem com elles, e aia entre hus, e outros a boa corespondeia, qconvem para uiuerem em quietao, e conformidade, me pareceo emcarregarpor hora, em quanto eu nom ordenar outra cousa, aos religiosos da Comp deJesu o cuydado de fazer descer este gentio do serto e o enstruir nas cousasda religio xpa, e domesticar, emsinar, e escaminhar no q convem aomesmo gentio, assi nas cousa de sua salvao, como na uiuenda comum, etratamento com os pouadores, e moradores daquellas partes, no qprocedero pollamaneyra seginte.

    Primeiramente os Relygiosos procuraro por todos os bons meosencaminharao gentio praque uenha morar e comunicar com os moradores nos lugares, qo governador lhe ainara com pareer dos Religiosos, para trem suaspouaes, e os Religiosos ceclararo ao gentio, q he liure, e q na sualiberdade uiuira nas ditas pouaes e sera snor da sua fazenda, asi comohena serra, por quanto eu o tenho declarado por liure, e mando que seiaconseruado em sualiberdade e usaro o