A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE

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  • PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO MESTRADO REA DE CONCENTRAO EM DIREITOS SOCIAIS E POLTICAS PBLICAS

    LINHA DE PESQUISA CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORNEO

    Marizlia Peglow da Rosa

    A FUNO SOCIAL DA POSSE, NO DIREITO BRASILEIRO ATUAL, ENQUANTO INSTRUMENTO DE EFETIVAO DOS DIREITOS

    FUNDAMENTAIS AO TRABALHO E MORADIA

    Santa Cruz do Sul, janeiro de 2008

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    Marizlia Peglow da Rosa

    A FUNO SOCIAL DA POSSE, NO DIREITO BRASILEIRO ATUAL, ENQUANTO INSTRUMENTO DE EFETIVAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS AO

    TRABALHO E MORADIA

    Esta Dissertao foi submetida ao Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Direito Mestrado, rea de concentrao em Demandas Sociais e Polticas Pblicas, linha de pesquisa em Constitucionalismo Contemporneo, da Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito.

    Orientador: Prof. Dr. Jorge Renato dos Reis

    Santa Cruz do Sul, janeiro de 2008

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    Marizlia Peglow da Rosa

    A FUNO SOCIAL DA POSSE, NO DIREITO BRASILEIRO ATUAL, ENQUANTO INSTRUMENTO DE EFETIVAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS AO

    TRABALHO E MORADIA

    Esta Dissertao foi submetida ao Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Direito Mestrado, rea de concentrao em Demandas Sociais e Polticas Pblicas, linha de pesquisa em Constitucionalismo Contemporneo, da Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito.

    Prof. Ps-doutor Jorge Renato dos Reis Orientador

    Prof. Convidado

    Prof. Participante

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    AGRADECIMENTOS

    O tempo passou, e hoje agradeo queles que estiveram ao meu lado em mais uma jornada:

    Ao meu esposo, Fernando, pelo amor incondicional de todas as horas, pelo sorriso, pelo beijo na hora do adeus e por sabermos que, juntos vencemos mais um desafio em nossas vidas.

    Aos meus pais, Crespim e Deuzina, por terem me dado vida e me ensinado que devemos, sempre, correr atrs de nossos sonhos, mesmo que distantes, pois um dia eles se tornam realidade.

    Mait Dam Teixeira Lemos, pela amizade, apesar das diferenas.

    Ao Sr. Paulo Heinrich, por tudo que me ensinou. Muito Obrigada!

    Ao Sr. Julio Weschenfelder, por acreditar em minha capacidade e me motivar e cada conversa.

    Rosana, Gisele e Andr, pela equipe que formamos no decorrer desses dois anos. O trabalho passa, mas a amizade para sempre.

    Ao Prof. Ps-doutor Clvis Gorczevski, pelas palavras amigas e pela luta incessante para conseguir as obras de que precisava.

    Ao Prof. Dr. Hugo Thamir Rodrigues, pelos ensinamentos e pela compreenso.

    Ao Prof. Ps-doutor Jorge Renato dos Reis, pelo crescimento profissional e espiritual e pela orientao.

    Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CAPES, pela concesso da bolsa de estudos.

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    A posse no instrumento individual, social; no instituto de ordem jurdica e sim da ordem da paz. (Josef Kohler)

    A arte suprema do mestre consiste em despertar o gozo da expresso criativa e do conhecimento. (Albert Einstein)

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    RESUMO

    No contexto do tema da funo social da posse atravs do trabalho e da moradia, a pesquisa visa analisar qual o contedo e o alcance da funo social da posse, no direito brasileiro atual, referentemente a efetivao dos Direitos Fundamentais Sociais ao trabalho e moradia, considerando a significativa modificao ocorrida no cenrio jurdico brasileiro, face posse trabalho e posse moradia, que ganham normatividade constitucional, inseridos como Direitos Fundamentais Sociais. Assim, pretende-se trabalhar o instituto da funo social da posse como corolrio da efetivao dos Direitos Fundamentais nas relaes entre particulares, onde a grande importncia da pesquisa encontra-se no fato de, o atual Cdigo Civil no recepcionou o instituto da funo social da posse de forma expressa, razo pela qual a pesquisa utilizar-se- dos princpios constitucionais, pois estes servem como base legal para fundamentar a legislao civil como um todo e em particular a funo social da posse. O tema insere-se, por conseguinte, na linha de pesquisa do Constitucionalismo Contemporneo, que busca compreender os fenmenos sociais sob a tica do direito constitucional inseridos numa sociedade altamente complexa, em razo da pluralidade de direitos que lhe proposta. Neste contexto, a funo social da posse desempenha um papel de destaque, com a posse trabalho e a posse moradia, razo pela qual a discusso acerca de seus limites e de sua legitimidade torna-se fundamental, especialmente se o tema for enfrentado a partir de uma perspectiva democrtica, voltada para a realizao ampla e irrestrita dos direitos fundamentais constitucionais.

    Palavras-chave: Funo social da posse. Trabalho. Moradia. Direitos fundamentais sociais.

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    RESUMEN

    En el contexto del tema de la funcin social de la posse a travs del trabajo y de la vivienda la investigacin tiene como objetivo hacer una analize del contenido y del alcance de la funcin social de la posse, en la actual derecho brasilea, referentemente a la efetivacin de los derechos fundamentales sociales al trabajo y a la vivienda, en vista de la modificacin que ocurrio en encenario jurdico brasileo vista a posse trabajo y a posse vivienda, que ganan normatividad constitucional como derechos fundamentales sociales. Asi, se pretende trabajar el instituto de la funcin social de la posse como corolrio de efetivacin de los Derechos Fundamentales en las relaciones privadas. La importancia de esta investigacin se encontra en el facto de que lo actual Cdigo Civil no h recepcionado el instituto de la funcin social de la posse expresamente, por esta razn la investigacin utilizar de los principios constitucionales, una vez que estos son base legal para fundamentar la legislacin civil en general y particularmente la funcin social de la posse. El tema se inserta, por lo tanto, en la lnea de la investigacin del Constitucionalismo contemporneo, que busca entender los fenmenos sociales - bajo la ptica del derecho constitucional - insertados en una sociedad altamente compleja, en razn de la pluralidad de derechos que es ofertada. En este contexto, la funcin social de la posse desempea un papel prominente, con la posse trabajo y la posse vivienda, razn por la cual la discusin a cerca de los lmites de su legitimidad llega a ser bsica, especialmente si el tema es tomado a pecho frente a una perspectiva democrtica, que se vuelve hacia la realizacin amplia y sin restriccin de los derechos fundamentales constitucionales.

    Palabras clave: Funcin social de la propiedad. Trabajo. Vivienda. Derechos fundamentales sociales.

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    SUMRIO INTRODUO ........................................................................................................... 9

    1 A VINCULAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAES INTERPRIVADAS.......................................................................................................13 1.1 A vinculao dos particulares aos Direitos Fundamentais...................................16 1.2 Denominaes dos Direitos Fundamentais..........................................................22 1.2.1 Da teoria geracional (ou dimenso dos direitos)...............................................25 1.2.2 Teoria dualista...................................................................................................26 1.2.3 Teoria unitria....................................................................................................27 1.3 Funes dos Direitos Fundamentais....................................................................28 1.3.1 Teoria dos quatro status de Jellinek..................................................................29 1.3.2 Os direitos de defesa e os direitos a prestaes...............................................30 1.4 Teorias dos Direitos Fundamentais......................................................................31 1.5 A interpretao dos Direitos Fundamentais.........................................................39 1.6 A diferenciao entre princpios e regras.............................................................41 1.7 A Coliso de princpios e a antinomia de regras..................................................45 1.7.1 A ponderao como soluo da coliso entre princpios..................................48

    2 OS DIREITOS SOCIAIS COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS..............................55 2.1 Direitos Fundamentais Sociais.............................................................................56 2.2 Natureza dos Direitos Sociais..............................................................................60 2.3 Positivao dos Direitos Sociais como pressupostos de sua eficcia.................62 2.4 Formas de efetividade e de exigibilidade dos Direitos Fundamentais Sociais e as Polticas Pblicas limitadas pela reserva do possvel..............................................65 2.5 A igualdade e a liberdade como fundamentos dos Direitos Sociais.....................75 2.6 A vinculao dos particulares aos Direitos Fundamentais Sociais......................79 2.7 Os Direitos Fundamentais Sociais e os Particulares............................................82 2.8 Trabalho e moradia como Direitos Fundamentais Sociais...................................84 2.9 O paradigma da funo social da posse frente aos Direitos Fundamentais Sociais trabalho e moradia......................................................................................................87 2.10 A incidncia dos Direitos Fundamentais Sociais nas relaes jurdico-privadas......................................................................................................................89

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    3 A FUNO SOCIAL DA POSSE, NO DIREITO BRASILEIRO ATUAL, ENQUANTO INSTRUMENTO DE EFETIVAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS AO TRABALHO E MORADIA........................................................................................93 3.1 A propriedade.......................................................................................................94 3.2 A funo social da propriedade............................................................................98 3.3 A posse...............................................................................................................104 3.4 A funo social da posse....................................................................................106 3.5 A posse trabalho ................................................................................................113 3.6 A posse moradia.................................................................................................117 3.7 A funo social da posse, sua concretizao e interpretao conforme os Princpios Constitucionais........................................................................................122 3.8 O Princpio Constitucional da funo social da posse........................................125 3.9 A funo social da posse como concretizao dos Direitos Fundamentais entre particulares: trabalho e moradia...............................................................................128

    CONCLUSO...........................................................................................................132

    REFERNCIAS .......................................................................................................135

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    INTRODUO

    O presente estudo busca verificar a funo social da posse no Direito brasileiro, como instrumento de efetivao dos Direitos Fundamentais ao trabalho e moradia, considerando a significativa modificao ocorrida no cenrio jurdico brasileiro, face posse trabalho e posse moradia, que ganham normatividade constitucional, inseridos como Direitos Fundamentais Sociais.

    A questo da funo social da posse como conseqncia dos Direitos Fundamentais nas relaes entre particulares vem efetivar os Direitos Fundamentais ao trabalho e moradia no contexto do Estado Democrtico de Direito.

    Tem sido argumentada que a funo social da posse at mais importante que a funo social da propriedade, pois atravs da posse trabalho e da posse moradia que se d efetividade aos princpios constitucionais do trabalho e da moradia, respectivamente.

    Ocorre que, no mbito do direito civil, alguns institutos precisam ser mais trabalhados e recepcionados pela legislao infra-constitucional, a fim de terem efetividade. o caso do trabalho e da moradia que vem sufragados no mbito do direito civil no instituto da posse, atravs de vrios dispositivos positivados no Cdigo Civil. Da o objetivo que se prope no presente trabalho, pois se entende que a funo social da posse, no direito brasileiro atual, enquanto instrumento de efetivao dos direitos fundamentais ao trabalho e moradia contempla um espao imprescindvel e inexorvel da democracia, que precisa, porm, ser operacionalizado e fundamentado de forma compatvel.

    Assim, pretende-se trabalhar o instituto da funo social da posse como corolrio da efetivao dos Direitos Fundamentais nas relaes entre particulares, onde a grande importncia da pesquisa encontra-se no fato de, alm de ser insuficiente a bibliografia existente, o atual Cdigo Civil no recepcionou o instituto da funo social da posse de forma expressa, razo pela qual a pesquisa utilizar-se- dos princpios constitucionais, pois estes servem como base legal para fundamentar a legislao civil como um todo e em particular a funo social da posse, ao mesmo tempo em que o Cdigo Civil elenca a sua dogmtica jurdica

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    materializadora, onde o seu fundamento revela uma expresso natural da necessidade.

    Os esforos orientar-se-o no sentido de que, ao final da pesquisa consigamos responder ao problema que se apresenta, ou seja: Qual o contedo e o alcance da funo social da posse no direito brasileiro atual, referentemente a efetivao dos Direitos Fundamentais ao trabalho e moradia?

    Desta premissa interrogativa surgem as seguintes hipteses: Os Direitos Fundamentais e sua efetividade nas relaes entre particulares esto em conformidade com a Constitucionalizao do Direito Privado e mais ainda com o instituto da funo social da posse. E, por sua vez, os princpios constitucionais devem ser tomados como instncia inicial e como base para o desenvolvimento do tema proposto, ao lado da legislao civil vigente e tambm a legislao infraconstitucional. A funo social da posse aceita no ordenamento jurdico, tendo em vista os princpios constitucionais. A funo social da posse conseqncia da vinculao dos Direitos Fundamentais nas relaes interprivadas.

    Objetiva-se, assim verificar a questo da funo social da posse, no direito brasileiro atual, enquanto instrumento de efetivao dos Direitos Fundamentais ao trabalho e moradia em face do contexto do Estado Democrtico de Direito.

    Considerando-se que o trabalho de natureza bibliogrfica, o mtodo de abordagem a ser adotado no seu desenvolvimento ser o mtodo hipottico-dedutivo1. J que o mtodo de procedimento ser o monogrfico, trabalhar-se- desta forma, e como tcnica a pesquisa bibliogrfica e jurisprudencial, buscando na doutrina nacional e estrangeira seus referenciais.2

    1 MEZZAROBA, Orides. MONTEIRO, Cludia Servilha. Manual de metodologia da pesquisa no

    direito. So Paulo: Saraiva, 2004, p. 68. 2 ALVES, Rubem. Filosofia da cincia: introduo ao jogo e a suas regras. So Paulo: Edies

    Loyola, 2000, p. 150-7, passim. Coloca o seguinte questionamento: O que um mtodo? e logo a seguir responde: [...] um procedimento racional, que nos leva das amostras, dos dados, dos fatos, dos enunciados particulares (ou protocolares) aos enunciados universais. Caminharamos seguindo o caminho proposto pela induo.

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    A partir destes pressupostos, estabelecer-se- a demarcao terica de categorias fundamentais pesquisa, a saber: funo social da posse como conseqncia dos Direitos Fundamentais, para, ento, desenvolver uma proposta capaz de possibilitar os princpios constitucionais no contexto do Estado Democrtico de Direito.

    Em termos de tcnica da pesquisa, pretende-se utilizar documentao indireta, com consulta em bibliografia de fontes primrias e secundrias, tais como: publicaes avulsas, jornais, revistas especializadas na rea da pesquisa, livros, peridicos de jurisprudncia, etc.3 Este manancial vai servir tanto para a fundamentao do trabalho como para a diversificao de sua abordagem, possibilitando a concretizao dos objetivos propostos.

    A pesquisa ser desenvolvida em trs captulos: o primeiro de forma a descrever a vinculao dos direitos fundamentais nas relaes interprivadas; o segundo ir abordar os direitos fundamentais sociais; e, o terceiro captulo que busca responder a questo central, ou seja, a funo social da posse como efetivao dos direitos fundamentais nas relaes entre particulares, tendo ao final, algumas notas conclusivas.

    No primeiro captulo se destaca os Direitos Fundamentais nas relaes privadas, pois estes tm um merecido papel de relevo da doutrina constitucional. De antemo j se pode dizer que os direitos fundamentais devem ser respeitados nas relaes privadas, pois resultam de lutas e batalhas travadas no tempo, em prol da afirmao da dignidade humana4. No estgio atual do trfico jurdico nacional, erigido sobre os pilares da Carta de 1988, no se pode olvidar que os Direitos Fundamentais possuem eficcia erga omnes. No acertamento dos conflitos submetidos apreciao judicial, se estes conflitos reclamam sua aplicao, estes devem ser a sua fonte de disciplina mesmo frente a uma relao jurdica de Direito Civil.

    3 LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos de metodologia cientfica. So Paulo: Atlas, 1995,

    p.183. 4 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004,

    p. 18-19.

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    No segundo captulo, por opo de corte epistemolgico limitar-se- o presente estudo os Direitos Fundamentais Sociais trabalho e moradia -, que se encontram basicamente previstos no artigo 6 da Constituio Brasileira de 1988, tais direitos tambm so encontrados no Ttulo VIII, que trata da Ordem Social, o desenvolvimento de contedo desses direitos.5

    Finalizando, o terceiro captulo versar sobre a funo social da posse, no direito brasileiro atual, enquanto instrumento de efetivao dos direitos fundamentais ao trabalho e moradia. Que ser trabalhado no intuito de responder o problema da pesquisa, ou seja, qual o contedo e o alcance da funo social da posse no direito brasileiro atual, referentemente a efetivao dos Direitos Fundamentais ao trabalho e moradia?

    5 Art. 1. A Repblica Federativa do Brasil, formad a pela unio indissocivel dos Estados e

    Municpios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrtico de Direito e tem como fundamentos: I a soberania; II a cidadania; III a dignidade da pessoa humana; IV os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; v o pluralismo poltico; Pargrafo nico. Todo o poder emana do povo, que exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituio. Art. 170. A ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social, observados os seguintes princpios: I soberania nacional; II propriedade privada; III funo social da propriedade; IV livre concorrncia; V defesa do consumidor; VI defesa do meio ambiente; VII reduo das desigualdades regionais e sociais; VIII busca do pleno emprego; IX tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constitudas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administrao no Pas. Pargrafo nico. assegurado a todos o livre exerccio de qualquer atividade econmica, independentemente de autorizao de rgos pblicos, salvo nos casos previstos em lei.

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    1 A VINCULAO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAES INTERPRIVADAS

    Sucedendo o Absolutismo - campo frtil agresso das liberdades individuais em face do poder estatal exacerbado - e como substrato das revolues liberais, emerge o Estado Liberal sobre as bases do Constitucionalismo e dos Direitos Humanos, o qual se prope a defender os direitos individuais frente ao Estado, sugerindo a no interveno estatal nas relaes privadas e limitando sua atuao ao estabelecimento de regras mnimas de convivncia entre as pessoas. Sua finalidade era a de favorecer o desenvolvimento pleno dos indivduos. Tudo fundado nos ideais iluministas.

    O Cdigo de Napoleo, do incio do sc. XIX, auto-suficiente e sistemtico, representou a ciso entre direito pblico e direito privado, vindo ao encontro de um dos valores mais caros ao Liberalismo a segurana jurdica. Isto conferiu aos operadores do Direito, especificamente aos juzes, a comodidade de invocar ou aplicar a lei de forma analtica e pontual, quase matemtica, na regulao das situaes jurdicas individuais.

    Instaurada esta nova ordem jurdica, no contexto europeu do sculo XIX, onde a Lei ganha status superlativo; a Constituio vivencia uma crise de negao de seu carter normativo, uma vez que se atribui garantia dos Direitos Fundamentais uma estrita vinculao reserva legal, resultando na concepo de inaplicabilidade dos direitos constitucionais fundamentais s relaes privadas.

    Esta tradio jurdica, herdada do Estado liberal de Direito, muito cmoda aos aplicadores do Direito, ainda hoje se constitui um entrave aplicabilidade da fora normativa emanada da Lei Fundamental. O fato que a realidade se incumbiu de demonstrar que no o Estado o nico agente capaz de ameaar os direitos fundamentais. A partir dessa constatao, inicia-se o processo de retomada da Constituio ao topo da hierarquia das fontes do Direito A Constituio, em suma, no mais a Lei do Estado, mas o Estatuto Fundamental do Estado e da sociedade. Onde, a Constituio dirigente substitui as constituies liberais. O

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    primado do pblico sobre o privado no Estado social expressa-se pelo aumento da interveno estatal e pela regulao coativa dos comportamentos individuais e dos grupos intermedirios.6

    Mudanas ocorreram tanto no Estado, quanto na sociedade, de Estado liberal, passou-se para o Estado social7, onde os valores de justia social e distributiva passam a dominar o cenrio do sculo XX. A sociedade passa a exigir o acesso aos bens e servios e, o Estado age para fazer prevalecer o interesse coletivo. Essas mudanas do Estado e da Sociedade alteram a Constituio, ou seja, a interpretao passa a ser feita com base na Constituio, pois os cdigos civis continuaram alicerados no Estado liberal, protetor dos direitos patrimoniais e do individualismo jurdico.

    Atualmente, a opresso j no est presente somente nas relaes estatais, mas tambm nas relaes privadas, na sociedade civil, nas famlias, nas empresas e em todas as relaes de trabalho, razo pela qual ocorre a irradiao dos Direitos Fundamentais nestas relaes privadas. A lgica inerente ao Estado Social exige a vinculao dos particulares aos Direitos Fundamentais.

    Todavia, tambm o Estado Social teve sua crise (globalizao econmica, envelhecimento populacional, democratizao poltica e suas conseqncias) e foi se enfraquecendo e como conseqncia ocorreu o que se denominou de Estado Mnimo8 9. Estando sujeito ao mercado econmico e atua nele como garantidor apenas de segurana aos indivduos.

    6 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004,

    p. 40-41. 7 LBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalizao do direito civil. In: FIUZA, C,; S, M. F. F.; NAVES, B.

    T. O. (coord.). Direito civil: atualidades. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 202. O Estado social, no plano do direito, todo aquele que tem includa na Constituio a regulao da ordem econmica e social. Alm da limitao ao poder poltico, limita-se o poder econmico e projeta-se para alm dos indivduos a tutela dos direitos, incluindo o trabalho, a educao, a cultura, a sade, a seguridade social, o meio ambiente, todos com inegveis reflexos nas dimenses materiais do direito civil. 8 Entende-se por Estado Mnimo o Estado que d as garantias mnimas de proteo contra a

    violncia, o roubo, a fraude e garantiria o cumprimento dos contratos; aquele Estado que garante o mnimo, porque somente desta forma no interfere na autonomia de cada cidado. 9 Pode-se denominar de Estado Mnimo aquele em que [...] a constituio limita-se a funes de

    organizao e de processo da deciso poltica (constituio do estado liberal) e abstm-se de intervir da res publica (a sociedade civil). CANOTILHO. Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituio. Coimbra, Portugal: Almedina, s/d, p. 1289.

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    [...] nossa Constituio, que consagra um modelo de Estado de Bem-Estar Social, fortemente intervencionista, foi pega no contrap pela onda neoliberal que varreu o mundo na fase final do sculo XX. Assim, a partir de 1995, o governo federal, com o apoio de bancada parlamentar amplamente majoritria, iniciou um ciclo de reformas na ordem constitucional econmica brasileira, buscando redefinir o papel do Estado, envolvendo a extino de certas restries existentes ao capital estrangeiro (EC n 6 e 7) e a flexibilizao de monoplios estatais sobre o gs canalizado, as telecomunicaes e o petrleo (EC n 5, 8 e 9). 10

    O Estado de Bem-Estar Social, que pode-se chamar de ps-social ou subsidirio. um Estado retrado, que transfere a atuao para a iniciativa privada, na maioria das vezes, [...] se no Estado Social, o pblico avanara sobre o privado, agora ocorre fenmeno inverso, com a privatizao do pblico.11 Com toda esta transformao do Estado, comearam a surgir as desigualdades econmicas e sociais, e desta forma, a sada a eficcia horizontal dos Direitos Fundamentais.12

    Paralelamente a estas mudanas sociais, o direito tambm foi se transformando,

    [...] vinculado emergncia do Estado Social, consistente na redefinio dos papis da Constituio: se, no Estado Liberal, ela se cingia a organizar o Estado e a garantir direitos individuais, dentro do novo paradigma ela passa tambm a consagrar direitos sociais e econmicos e a apontar caminhos, metas e objetivos, a serem perseguidos pelos Poderes Pblicos no af de transformar a sociedade.13

    Neste sentido, urge uma maior reflexo acerca do contedo e do contorno normativo dos Direitos Fundamentais no ordenamento jurdico brasileiro. A Constituio Federal, vigente h quase duas dcadas, reclama por mais efetividade e pelo adensamento dos Direitos Fundamentais com o intuito de se consubstanciar a democracia e a dignidade da pessoa humana, princpios expressos em seu artigo 1, sobretudo pela via do Poder Judicirio no acertamento e na soluo dos conflitos. A

    10 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004,

    p. 49-50. 11

    SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004, p. 52. 12

    SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004, p. 31-67, passim. 13

    SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004, p. 71.

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    ausncia de debate quanto ao fundamento e aos limites dessa vinculao no deve intimidar os operadores do Direito a ponto de se desprezar esta ferramenta de combate s desigualdades sociais.

    A constituio uma lei dotada de caractersticas especiais. Tem um brilho autnomo expresso atravs da forma, do procedimento de criao e da posio hierrquica das suas normas. Estes elementos permitem distingui-la de outros actos com valor legislativo presentes na ordem jurdica.14

    Mas, a eficcia direta dos Direitos Fundamentais nas relaes privadas requer uma ateno especial, pois uma nova forma de soluo de conflitos nas relaes privadas, atravs de princpios constitucionais e isso denominado de ps-moderno em direito civil por alguns autores, a exemplo Sarmento15. Canotilho, por sua vez levanta o seguinte questionamento:

    A idia de Drittwirkung ou de eficcia directa dos direitos fundamentais na ordem jurdica privada continua, de certo modo, o projecto da modernidade: modelar a sociedade civil privada segundo os valores da razo, justia, progresso, do Iluminismo. Este cdigo de leitura pergunta-se no estar irremediavelmente comprometido pelas concepes mltiplas e dbeis da ps-modernidade?16

    A resposta a este questionamento de Canotilho ser alcanada ao longo da pesquisa, busca-se, neste momento, um maior aprofundamento referente aos ideais Iluministas da liberdade, igualdade e fraternidade, alm da construo de novos caminhos para a emancipao social.

    1.1 A vinculao dos particulares aos Direitos Fundamentais

    Os Direitos Fundamentais incidem nas relaes privadas, entretanto aqui, a eficcia atenuada, baseada na ponderao como tcnica para mediar o alcance em cada caso. Barcellos conceitua a ponderao, De forma muito geral, a ponderao pode ser descrita como uma tcnica de deciso prpria para casos

    14 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituio. Coimbra:

    Almedina, s/d, p. 1112. 15

    SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004, p. 63. 16

    CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Civilizao do direito constitucional ou constitucionalizao do direito civil? A eficcia dos direitos fundamentais na ordem jurdico-civil no contexto do direito ps-moderno. In: GRAU, E. R.; GUERRA FILHO, W. S. (org.). Direito constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. So Paulo: Malheiros, 2001, p. 114.

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    difceis (do ingls hard cases), em relao aos quais o raciocnio tradicional da subsuno no adequado.17

    Segundo Ubillos18, nas relaes privadas est em jogo o frgil equilbrio entre os direitos e liberdades e o princpio da autonomia negocial sobre o qual se constitui o direito privado. Neste contexto a Constituio pode ser chamada de, a parte geral do ordenamento jurdico, porque passa a ser o centro do ordenamento jurdico, onde toda legislao deve a ela estar vinculada. Possuindo eficcia irradiante, ou seja, a Constituio irradia os seus princpios para todo o sistema jurdico, para todos os ramos do direito, inclusive para as relaes entre os particulares que devem estar vinculados aos Direitos Fundamentais garantidos constitucionalmente, pois desta forma que as relaes jurdicas tero maior equilbrio. 19

    Hesse20 ao escrever sobre a fora normativa da Constituio, faz uma importante referncia vontade da Constituio, como uma fora ativa em orientar a conduta da sociedade segundo ordens pr-estabelecidas constitucionais. Numa forma de conduzir a conscincia dos responsveis pela ordem jurdica, no apenas seguindo a vontade do poder, mas tambm segundo a vontade de Constituio. Hesse faz o questionamento de sua tese a partir da existncia da relao entre o poder determinante das foras polticas e sociais e a fora determinante advinda do Direito Constitucional. Inovador, portanto, no sentido de perseguir a fundamentao e o alcance dessa fora/vontade constitucional, e diante de algumas respostas buscadas pelo autor, encontra-se tambm a fundamentao da prpria cincia do Direito Constitucional enquanto uma cincia normativa do sistema jurdico.

    No direito brasileiro, a eficcia dos direitos individuais nas relaes privadas direta e imediata, isso delineada pela Constituio Federal de 1988 (intervencionista e social) e pelo sistema de direitos fundamentais por ela abordados;

    17 BARCELLOS, Ana Paula de. Alguns parmetros normativos para a ponderao constitucional. In:

    BARROSO, Lus Roberto (Org.). A nova interpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 55. 18

    UBILLOS, Juan Maria Bilbao. En qu medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales? Revista da Ajuris Associao dos juzes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano XXXII, n. 98, p. 333-367, passim, jun. 2005. 19

    UBILLOS, Juan Maria Bilbao. En qu medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales? Revista da Ajuris Associao dos juzes do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, ano XXXII, n. 98, p. 333-367, passim, jun. 2005. 20

    HESSE, Konrad. A Fora Normativa da Constituio. Traduo de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: SAFE, 1991.

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    voltada para a promoo da igualdade substantiva.21 Mas segundo Steinmetz A vinculao dos particulares a direitos fundamentais no teve e ainda no tem a fora de uma evidncia constitucional Cabe ressaltar que a eficcia direta e imediata no de todo pacfica no direito brasileiro. Essa interpretao feita tendo em vista que, os direitos fundamentais so direitos jurdico-constitucionais, constituem normas de valor que so vlidas para todo ordenamento e, em virtude da consagrao definitiva do princpio da constitucionalidade, na cultura e na prtica constitucionais do segundo aps-guerra, a Constituio torna-se a fonte direta e imediata dos direitos fundamentais. 22 a chamada fora normativa da Constituio.

    Silva aponta que, [...] prescrever que os direitos fundamentais tm aplicao imediata no significa que essa aplicao dever ocorrer em todos os tipos de relao ou que todos os tipos de relao jurdica sofrero algum efeito das normas de direitos fundamentais.23

    Isto significa dizer que a Constituio fonte direta e imediata dos direitos fundamentais onde, os mesmos apresentam-se como limites de ao do Estado constitucional contemporneo. Desta forma, [...] a vinculao dos particulares a direitos fundamentais, alm de ser uma imposio da constituio, um instrumento socialmente necessrio para a preservao e promoo dos direitos fundamentais ante as transformaes, [...]24, principalmente nas sociedades capitalistas contemporneas.

    Os direitos fundamentais sob essa gide objetiva assumiram um papel mais intenso no estudo comparado, especialmente na Alemanha, a partir da dcada de 50. Duas grandes teorias sobre o assunto foram desenvolvidas: a eficcia irradiante dos direitos fundamentais e a teoria dos deveres de proteo. Essas teorias levaram os demais pases, interessados na valorao da constituio, a fundamentarem novas decises, baseadas em direitos e garantias fundamentais da pessoa humana,

    21 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Juris, 2004,

    p. 279. 22

    STEINMETZ, Wilson Antnio. A vinculao dos particulares a direitos fundamentais. So Paulo: Malheiros, 2003, p. 64 e 103. 23

    SILVA, Virgilio Afonso da. A constitucionalizao do direito: os direitos fundamentais nas relaes entre particulares. So Paulo: Malheiros, 2005, p. 58. 24

    STEINMETZ, Wilson Antnio. A vinculao dos particulares a direitos fundamentais. So Paulo: Malheiros, 2003, p. 83.

  • 19

    devido a ampliao da multifuncionalizao dos direitos fundamentais exigida pelas transformaes sociais ocorridas nos ltimos dois sculos.25

    A compreenso da Constituio como ordem de valores, no plano da filosofia constitucional impulsionou o estudo da dimenso objetiva. Tal plano de reflexo levou rapidamente crticos a se pronunciarem no sentido da fragilidade desta compreenso, uma vez que, para se concretizar a unio dessas duas concepes acima expostas (constituio e ordem de valores), faz-se necessrio a informao exaustiva e coordenada de quais valores est-se falando, quais so mais importantes e, como se relacionam entre si. Portanto, questiona-se de que forma possvel compreender a unio da Constituio com os valores.

    Ao deixar-se conduzir pela idia da realizao de valores materiais, dados preliminarmente no direito constitucional, o tribunal constitucional transforma-se numa instancia autoritria. No caso de uma coliso, todas as razes podem assumir o carter de argumentos de colocao de objetivos, o que faz ruir a viga mestra introduzida no discurso jurdico pela compreenso deontolgica de normas e princpios do direto [...]. Na medida em que um tribunal constitucional adota a teoria da ordem de valores e a toma como base de sua prtica deciso, cresce o perigo de juzos irracionais, porque, neste caso, os argumentos funcionalistas prevalecem sobre o normativos.26

    A teoria da eficcia irradiante, conseqncia da interpretao da dimenso objetiva dos direitos fundamentais possibilita o condicionamento de todo o sistema, tanto jurdico como legislativo, aos valores determinantes de tais direitos. A teoria da eficcia concede ordem jurdica uma interpretao mais humanitria e envolvente das garantias constitucionais, a dignidade da pessoa, igualdade substantiva, justia social. Pode-se considerar essa teoria de reflexo da dimenso objetiva como principio hermenutico e tambm como mecanismo de controle da constitucionalidade.

    O ponto principal que se deve ter como entendimento a questo de que a eficcia irradiante no se restringe aos dois efeitos acima descritos, mas uma atuao muito mais ampla e complexa. Uma interpretao que leva a uma reconstruo do prprio modo de ver o direito, ou seja, fortalecidos pela eficcia

    25 STEINMETZ, Wilson Antnio. A vinculao dos particulares a direitos fundamentais. So Paulo:

    Malheiros, 2003, p. 84. 26

    HABERMAS, Jrgen. Direito e democracia entre facticidade e validade, 2 v. Traduo de Flavio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 321-322.

  • 20

    irradiante, os direitos fundamentais tomam o lugar de eixo central no ordenamento, norteador da legislao e jurisdio. Essa eficcia irradiante manifesta-se sobretudo em relao interpretao e aplicao das clusulas gerais e conceitos jurdicos indeterminados, presentes na legislao infraconstitucional.27

    Nesse sentido, a situao descrita leva a tratar do fenmeno atual da filtragem constitucional28, a qual exige que as novas leis adotadas estejam imersas numa construo de garantias constitucionais sob o prisma de proteo de valores de uma vida digna ao homem. Como j citado, no Brasil, o enfoque dado ao grande valor axiolgico da Constituio de 1988 que, assim, possibilitou a abrangncia na interpretao de outros ramos do direito nesse mesmo contexto constitucional. Portanto, o encontro do direito civil ordem constitucional d-se nessa seara em que o ponto principal e intenso o princpio da dignidade humana.

    A Constituio no configura, portanto, apenas expresso de um ser, mas tambm de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condies fticas de sua vigncia, particularmente as foras sociais e polticas. Graas a pretenso da eficcia, a Constituio procura imprimir ordem e conformao realidade poltica e social. [...] A fora condicionante da realidade e a normatividade da Constituio podem ser diferenciadas; elas no podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas.29

    No Brasil, ainda h restries quanto ao uso reflexivo dos direitos fundamentais expressos na constituio, como a posio extremamente formal do STF30 quando considera agresso aos direitos apenas em casos restritos, quando diretos e especficos e principalmente, cuja confrontao seja nitidamente provada e alegada em primeira instncia. Essa atitude do Supremo que restringe o acesso aos direitos fundamentais dos cidados, acaba acarretando o descumprimento de

    27 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004,

    p.158. Este mesmo autor na pgina 156 enfatiza que: No caso brasileiro, este processo assume um relevo especial, em razo da riqueza axiolgica da Constituio de 1988, que conferiu absoluta centralidade e primazia aos direitos fundamentais e est fortemente impregnada por valores solidarsticos, de marcada inspirao humanitria. 28

    Baseada sempre no princpio da dignidade da pessoa humana. 29

    HESSE, Konrad. A fora normativa da constituio. Traduo de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: SAFE, 1991, p.15. 30

    Ofensa a princpios constitucionais. Alegao a ser aferida a partir da interpretao de normas infraconstitucionais. Impossibilidade. A alegao de vulnerao a preceito constitucional, capaz de viabilizar a instncia extraordinria, h de ser direta e frontal, e no aquela que demandaria interpretao de disposies de normas ordinrias (AgRg. 180710, Rel. Min. Maurcio Corra, 2 Turma, unnime, DJ 2/8/96).

  • 21

    disposio constitucional pelo prprio rgo mximo de jurisdio, que o encarrega de guardio e aplicao das garantias constitucionais.

    Onde o dever do Estado de no se abster da violao dos direitos fundamentais, o mesmo tem a obrigao tambm de proteger de forma ativa tais direitos e garantias, seja na esfera legislativa, administrativa ou judiciria, frente a leses e ameaas advindas de terceiros.31 Neste sentido, a vinculao completa e incondicionada quando advinda dos poderes pblicos e quando se trata dos particulares, estes so titulares de uma esfera de liberdade juridicamente protegida, que deriva do reconhecimento da sua dignidade.32

    Para regular a produo de efeitos dos direitos fundamentais nas relaes privadas necessrio um modelo mais flexvel que os modelos propostos normalmente pela doutrina e pela jurisprudncia. Esse modelo pressupe que, sempre que possvel, os efeitos dos direitos fundamentais se faro sentir nas relaes privadas por intermdio do material normativo do prprio direito privado. Isso significa conferir primazia mediao que o legislador ordinrio faz entre a ordem constitucional e a ordem privada. Em alguns casos, seja por omisso, seja por insuficincia legislativa, os efeitos dos direitos fundamentais somente podem ser direitos, havendo a necessidade, portanto, de uma aplicao direta dos direitos fundamentais no nvel interprivados. Esse modelo pretende, portanto, romper com a dicotomia entre efeitos diretos e indiretos, conciliando-os na mesma construo terica.33

    Assim, conforme Reis, [...] apesar de toda a discusso a respeito da forma como se deve dar essa vinculao dos direitos fundamentais nas relaes privadas, pode-se observar, no entanto, uma tendncia de abandono ao longo do tempo, das posies radicais de um ou outro lado, [...]34. No existindo no Brasil atualmente, portanto, uma corrente nica e excludente da inexistncia de qualquer possibilidade de vinculao dos particulares aos direitos fundamentais, como ao mesmo tempo, da sujeio total dos particulares a esses direitos como se fosse poder pblico.

    31 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004,

    p.160. 32

    SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004, p.175. 33

    SILVA, Virgilio Afonso da. A constitucionalizao do direito: os direitos fundamentais nas relaes entre particulares. So Paulo: Malheiros, 2005, p. 28. 34

    REIS, Jorge Renato dos. A vinculao dos particulares aos direitos fundamentais nas relaes interprivadas: breves consideraes. In: LEAL, R. G.; REIS, J. R. (orgs.) Direitos sociais e polticas pblicas: desafios contemporneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005, t. 5, p. 1510.

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    O que se busca uma necessidade de aplicao direta e imediata dos direitos fundamentais nas relaes interprivadas. Com isso no se est afirmando que, no caso concreto, exatamente o que ocorre.

    1.2 Denominaes dos Direitos Fundamentais

    Segundo Canotilho35 os direitos fundamentais podem ter as classificaes doutrinrias e histricas, divididas da seguinte forma: Direitos do homem e Direitos Fundamentais; direitos do homem e direitos do cidado; direitos naturais e civis; direitos civis e liberdades ou direitos polticos; direitos civis e direitos ou liberdades individuais; direitos e liberdades pblicas; direitos e garantias; Direitos Fundamentais e direitos de personalidade; direitos, liberdades e garantias e direitos econmicos, sociais e culturais; Direitos Fundamentais e garantias institucionais.

    J Sarlet, prefere traar uma distino de cunho didtico entre as expresses direitos do homem no sentido de direitos naturais ainda no positivados; direitos humanos positivados na esfera do direito internacional; e direitos fundamentais- direitos reconhecidos/outorgados e protegidos constitucionalmente pelo Estado (por cada Estado).36 Ressaltando ainda que direitos humanos e direitos fundamentais no so termos excludentes e sim complementares e que, os direitos fundamentais nascem com as Constituies e com elas se desenvolvem

    A expresso direitos do homem so direitos vlidos para todos os povos e em todos os tempos; a mais antiga das denominaes usadas pela doutrina. J os direitos fundamentais so os direitos do homem, jurdico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente.37 A expresso apareceu no contexto da Revoluo Francesa, mas sua difuso se deu atravs do constitucionalismo alemo. Por seu carter ideologicamente neutro, apresentando-se com um nome da cincia jurdica, hoje muito utilizado. Para estes, direitos seriam unicamente

    35 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituio. Coimbra:

    Almedina, s/d, p. 385. 36

    SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. A eficcia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 36 e ss. 37

    CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituio. Coimbra: Almedina, s/d, p. 387.

  • 23

    aqueles exigveis de uma autoridade poltica, integrantes, portanto, da ordem jurdica de um determinado Estado.

    Esta confuso terminolgica no incomum. Basta uma simples anlise na Constituio Brasileira de 1988 para constatar-se que tambm o legislador constituinte utilizou vrias expresses para designar o mesmo contedo: Direitos Humanos (art. 4, inc. II), direitos e liberdades constitucionais (art. 5, inc. LXXI), direitos e garantias fundamentais (art. 5, 1) , direitos e garantias individuais (art. 60, 4, inc. IV).

    No que se refere aos direitos do homem e direitos do cidado, os primeiros pertencem ao homem enquanto tal; os segundos pertencem ao homem enquanto ser social, isto , como indivduo vivendo em sociedade.38 A denominao direitos do homem e do cidado tem sua origem na teoria contratualista do pacto social e se entende como os direitos do indivduo frente ao Estado. Expresso utilizada pela Revoluo Francesa e pela maioria das proclamaes a partir de ento.

    A expresso, direitos naturais, possuiu um matiz claramente filosfica, largamente utilizada nas teorias jusnaturalistas desde o perodo do renascimento, mas sua divulgao se deu na poca do racionalismo, quando, por direito natural, se entendia um conjunto de direitos inatos ao homem e anteriores ao Estado. Segundo Canotilho, Os direitos naturais, como o nome indica, eram inerentes ao indivduo e anteriores a qualquer contrato social; os direitos civis [...] os direitos pertencentes ao indivduo como cidado e proclamados nas constituies ou leis avulsas. J os direitos civis so reconhecidos pelo direito positivo a todos os homens que vivem em sociedade; [...] os direitos polticos s so atribudos aos cidados activos.39

    J os direitos civis, depois de esvaziados os direitos polticos, passam a ser considerados pela publicstica francesa como direitos individuais ou liberdades individuais ou ainda liberdades fundamentais.40 A expresso direitos individuais

    38 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituio. Coimbra:

    Almedina, s/d, p. 337-388. 39

    CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituio. Coimbra: Almedina, s/d, p. 388. 40

    CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituio. Coimbra: Almedina, s/d, p. 389.

  • 24

    prpria do liberalismo. Os direitos do homem so entendidos como um contraponto ao Estado totalitrio e absolutista, cujo poder deve ser limitado a partir do direito individual do homem.

    Finalizando, tem-se os direitos e liberdades pblicas, onde a expresso liberdades pblicas foi criada pelo Estado Liberal de direito, que substitui a expresso direitos naturais por liberdades fundamentais, que era o ncleo de seu direito. A expresso aparece pela primeira vez na constituio francesa de 1793 e continua em uso por estar na origem das teorias polticas atuais. O rtulo dos direitos humanos no Conselho da Europa : Conveno Europia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. [...] os direitos civis, depois de separados dos direitos polticos, passaram a ser designados tambm por liberdades individuais. Como bem lembra Canotilho, essas definies so feitas sempre tendo por base a relao estabelecida entre cidado (este como titular de direitos) e Estado. [...] As liberdades estariam ligadas ao status negativus e atravs delas visa-se defender a esfera dos cidados perante a interveno do Estado.41

    Canotilho, ao falar de status negativus est se referindo teoria dos quatro status de Georg Jellinek, difundida no sculo passado, mas extremamente atual quando se aborda as perspectivas subjetivas e objetivas dos direitos fundamentais. Servindo de referencial para a classificao dos direitos fundamentais. Esta teoria ser abordada logo a seguir quando procura-se separar as vrias teorias utilizadas para a classificao dos direitos fundamentais.

    Outra classificao dos direitos fundamentais a de Schfer. Segundo o qual, a classificao dos direitos fundamentais pode ser observada sob trs distintos

    41 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituio. Coimbra:

    Almedina, s/d, p. 389.

  • 25

    pontos de vista: relacionados com o desenvolvimento histrico42; com o contedo preponderante43; e, com uma pretenso integrativa do direito44. 1.2.1 Da teoria geracional (ou dimenso dos direitos)

    A teoria geracional decorre do prprio desenvolvimento histrico dos direitos fundamentais. Segundo Jairo Schfer, ela utiliza-se da evoluo histrica como elemento de individualizao dos direitos fundamentais, tendo em vista o paulatino desenvolvimento da juridicidade dos direitos fundamentais. Assim, poderiam ser trs geraes de direito, ou ento, conforme Schfer: a) direitos de Primeira Gerao direitos prestacionais: os direitos fundamentais de primeira gerao, so os direitos de liberdade, vida, etc., onde o Estado somente pode agir nos limites traados pela lei; b) direitos de Segunda Gerao direitos negativos: a igualdade (igualdade material) passa a ser o elemento qualificador e essencial da democracia. Os direitos fundamentais de segunda gerao so os direitos econmicos, sociais e culturais, nos quais o Estado assume a funo promocional para satisfazer o cidado; c) direitos de Terceira Gerao carter difuso: traz os direitos individuais, difusos e coletivos. So os direitos emergentes e apresentam uma estrutura diferentes da apresentada na primeira e segunda gerao, englobam alguns direitos prestacionais e um conjunto de novos direitos. Os direitos fundamentais de terceira gerao so os direitos da solidariedade humana: paz, meio ambiente, patrimnio comum da humanidade, fraternidade, etc.45

    42 a chamada teoria geracional (ou dimenso dos direitos). A classificao doutrinria dos direitos

    fundamentais utiliza a evoluo histrica enquanto elemento essencial prpria caracterizao e individualizao dos direitos fundamentais, [...] Onde os direitos fundamentais so classificados em trs geraes: de primeira gerao; de segunda gerao; e, de terceira gerao. E, baseados em trs elementos, quais sejam: a) relao Estado x cidado; b) concepo poltica do Estado; c) espcie de direito considerado (individual, coletivo ou difuso). SCHFER, Jairo. Classificao dos direitos fundamentais: do sistema geracional ao sistema unitrio: uma proposta de compreenso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 14-15. 43

    tambm denominada de Teoria dualista. Baseada em duas categorias jurdicas, de um lado, as liberdades negativas atravs de uma postura omissiva do Estado; de outro, as liberdades positivas baseada na funo promocional do Estado. SCHFER, Jairo, 2005, p. 41. 44

    Tambm denominada de Teoria Unitria. a adequao da teoria dos direitos fundamentais sociedade contempornea, altamente complexa, tendo-se por objetivo a incorporao concreta desses direitos aos patrimnios jurdicos dos destinatrios, resultando as seguintes ponderaes: a) A incindibilidade dos direitos fundamentais e a inexistncia de diferenas estruturais entre os variados tipos de direitos [...]; b) O carter incindvel dos direitos fundamentais decorre da unidade de sentido constitucional. C) Inexistncia de diferenas estruturais entre os distintos tipos de direitos fundamentais, [...]; d) Interligao sistmica e dialtica entre todas as espcies de direitos fundamentais, [...]; e) Carter principiolgico de todos os direitos fundamentais, [...]. SCHFER, Jairo, 2005, p. 70. 45

    SCHFER, Jairo. Classificao dos direitos fundamentais: do sistema geracional ao sistema unitrio: uma proposta de compreenso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 14-33, passim.

  • 26

    Em crtica feita ao sistema geracional, refere o autor que existem duas crticas; a primeira relativa nomenclatura do termo gerao, que leva impresso de superao dos direitos anteriores. Como se sabe, a validade dos direitos no foi superada. Nesse contexto, o termo dimenso de direitos fundamentais seria mais adequado, pois englobaria as categorias anteriores, em um movimento de ampliao; a segunda crtica quanto ao mtodo de classificao dos direitos fundamentais, que utiliza o momento histrico como fator exclusivo de classificao dos direitos fundamentais, [...]. Tendo assim, a seguinte classificao: a) dimenso negativa - correspondente 1 gerao, carrega os direitos humanos de liberdade, igualdade, etc., na intromisso estatal, que fizeram parte da revoluo francesa; b) dimenso prestacional - correspondente 2 gerao, que encontrou no welfare state a sua via de desenvolvimento, com a garantia de direitos e atuao positiva do Estado; c) dimenso difusa - correspondente 3 gerao, traz os direitos coletivos difusos.46

    A crtica quanto nomenclatura tambm a preocupao de Guerra Filho, quando relata, Que ao invs de geraes melhor se falar em dimenses de direitos fundamentais, neste contexto, no se justifica apenas pelo preciosismo de que as geraes anteriores no desaparecem com o surgimento das mais novas.47 Para este autor a justificativa a esta preocupao quando surgem novas geraes e, para exemplificar ele adota o exemplo do direito de propriedade com funo social que est classificada como de segunda dimenso, mas, com o aparecimento da terceira dimenso, a propriedade cumpre sua funo ambiental.

    1.2.2 Teoria dualista

    Na teoria dualista, os direitos fundamentais so classificados de acordo com seu contedo preponderante, ou seja, se a funo do Estado a omisso, tem-se as liberdades negativas, j se a funo do Estado promocial, tem-se as liberdades positivas. uma classificao de acordo com a funo realizadora do Estado, de

    46 SCHFER, Jairo. Classificao dos direitos fundamentais: do sistema geracional ao sistema

    unitrio: uma proposta de compreenso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 39. 47

    GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. So Paulo: Celso Bastos Editor Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 40.

  • 27

    no leso e prestao: De um lado, temos os direitos negativos (I), com liberdade do estado e no Estado (direitos de defesa), com o afastamento do Estado de interferncias nas relaes desses direitos; e temos, de outro, direitos positivos (II), representados pela liberdade mediante o Estado (direitos prestacionais em sentido amplo), onde a atuao deste pressuposto para a concretizao do direito fundamental.48

    Os direitos polticos no podem ser agrupados conjuntamente dentre os direitos negativos, se estes direitos exigirem uma omisso do Estado, trata-se de liberdade negativa; quando for exigida uma ao concreta do Estado, est-se diante de um direito positivo, ou seja, os direitos so classificados de acordo com o ncleo essencial. Assim, dentre os chamados direitos sociais, [...] podem ser encontrados tanto direitos negativos (liberdade de associao sindical, por exemplo) quanto direitos positivos (direito prestao em sentido estrito: sade, por exemplo).49

    1.2.3 Teoria unitria

    A teoria unitria contou com a contribuio de Jorge Miranda50, foi este autor que criou o regime doutrinrio dos direitos sociais, e segundo ele, a indivisibilidade atributo de todos os direitos fundamentais, pela sua incindibilidade e inexistncia de diferenas estruturais. Ainda, esta unidade decorre da unidade de sentido constitucional, existncia de diferentes expectativas positivas e negativas (com maior ou menor grau) em todos os direitos.

    Schfer resume a posio doutrinria de Jorge Miranda da seguinte forma:

    A posio doutrinria de Jorge Miranda, quanto aos regimes dos direitos fundamentais, pode assim ser sistematizada: DIREITOS FUNDAMENTAIS I) Regime jurdico geral dos Direitos Fundamentais: conjunto de princpios e regras constitucionais aplicvel a todos os direitos fundamentais;

    48 SCHFER, Jairo. Classificao dos direitos fundamentais: do sistema geracional ao sistema

    unitrio: uma proposta de compreenso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 43. 49

    SCHFER, Jairo. Classificao dos direitos fundamentais: do sistema geracional ao sistema unitrio: uma proposta de compreenso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 44. 50

    Doutrinador portugus que possui importantes obras, dentre as quais destacamos: Regime especfico dos direitos econmicos, sociais e culturais.

  • 28

    II) Regime jurdico especfico dos direitos, liberdades e garantias: conjunto de princpios e regras constitucionais aplicvel somente aos direitos, liberdades e garantias; III) Regime jurdico especfico dos direitos econmicos, sociais e culturais: conjunto de princpios e regras constitucionais aplicvel somente aos direitos econmicos, sociais e culturais.(grifos do autor)51

    Por fim, ressalta a sua interligao sistmica e o carter principiolgico de todos os direitos, que leva sua compreenso como mandados de otimizao para maior efetivao.

    1.3 Funes dos Direitos Fundamentais

    Devido ao fato dos direitos fundamentais desempenharem diferentes funes na sociedade e no ordenamento jurdico, isso leva ao fato desses direitos terem diversas funes e, por conseguinte, diversos desenvolvimentos doutrinrios. Adotar-se- uma dimenso subjetiva (subjetivos individuais) e outra objetiva (objetivos fundamentais da comunidade), onde o ponto de partida a teoria dos quatro status de Jellinek e posteriormente, os direitos de defesa e os direitos a prestao.52

    Para os constitucionalistas alemes, as teorias propiciam o domnio da hermenutica constitucional e, por isso as classificaes dos direitos fundamentais so amplamente estudadas. Mas, no caso concreto que se aplicam essas teorias, baseado no caso ou no problema sobre o qual recai a tarefa cognitiva e conforme a interpretao hermenutica, quando pode ser usada mais de uma teoria ou no.53 El constitucionalismo actual no sera lo que es sin los derechos fundamentales.54

    1.3.1 Teoria dos quatro status de Jellinek

    51 SCHFER, Jairo. Classificao dos direitos fundamentais: do sistema geracional ao sistema

    unitrio: uma proposta de compreenso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 56. 52

    BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos de teoria geral dos direitos fundamentais. In: MENDES, G. F; COELHO, I. M.; BRANCO, P. G. G.; Hermenutica constitucional e direitos fundamentais. Braslia: Braslia Jurdica, 2000, p. 139. 53

    BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10 ed. Revista, atualizada e ampliada. So Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 560. 54

    LUO, Antonio Enrique Prez. Los derechos fundamentales. 8 ed. Madrid: Editorial Tecnos, 2005, p. 19.

  • 29

    Jellinek ao se referir teoria dos quatro status, quer dizer quatro status em que indivduo pode encontrar-se face ao Estado: status passivo; status negativo; status positivo; status ativo. O passivo quando o Estado tem condies de vincular o indivduo atravs de mandamentos e proibies. O negativo por sua vez, o espao de liberdade que o homem desfruta, em relao aos poderes pblicos uma no ao do Estado. No positivo ao contrrio, o Estado deve agir em favor do indivduo. E, por fim, o ativo, que quando o indivduo, atravs do direito de voto influi sobre a formao da vontade do Estado.55

    Segundo Branco,

    A partir dessa teoria, que foi recebendo depuraes ao longo do tempo, podem-se decalcar as espcies de direitos fundamentais mais freqentemente assinaladas direitos de defesa (ou direitos de liberdade) e direitos a prestaes (ou direitos cvicos). A essas duas espcies alguns acrescentam a dos direitos de participao.56

    Na sua teoria Jellinek denominou de status passivo (status subjectionis), aquele em que o sujeito estaria subordinado aos poderes estatais, sendo assim, detentor de deveres e no de direitos, onde, o Estado vincula o cidado atravs de mandamentos e proibies. De outro lado, o indivduo dotado de personalidade, sendo reconhecido o status negativus, que consiste numa esfera individual de liberdade imune ao jus imperii do Estado, que poder juridicamente limitado. O terceiro status o status positivus ou civitatis, no qual ao indivduo seria assegurada a possibilidade de utilizar-se das instituies estatais e de exigir do Estado determinadas aes positivas. Jellinek ainda complementa sua teoria com o reconhecimento de um status activus ao cidado, no qual este passa a ser considerado titular de competncias que lhe garantem a possibilidade de participar ativamente da formao da vontade estatal, como, por exemplo, pelo direito de voto.57

    55 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos de teoria geral dos direitos fundamentais. In: MENDES,

    G. F; COELHO, I. M.; BRANCO, P. G. G.; Hermenutica constitucional e direitos fundamentais. Braslia: Braslia Jurdica, 2000, p. 139-140. 56

    BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos de teoria geral dos direitos fundamentais. In: MENDES, G. F; COELHO, I. M.; BRANCO, P. G. G.; Hermenutica constitucional e direitos fundamentais. Braslia: Braslia Jurdica, 2000, p. 140. 57

    SARLET, Ingo Wolfgang. A eficcia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 172.

  • 30

    1.3.2 Os direitos de defesa e os direitos a prestaes

    Os direitos de defesa limitam a ao do Estado na medida em que exigem uma no-interferncia deste nas relaes de direitos fundamentais. O Estado somente interfere quando precisa reparar danos sofridos por agresses eventualmente consumadas. So direitos elencados, principalmente, no artigo 5 da Constituio Federal. Os direitos de defesa primam pela liberdade do indivduo, proibindo o Estado de intervir nas aes do indivduo. Alm de proteger o indivduo, esses direitos tambm protegem bens jurdicos contra a ao do Estado.58 59

    Segundo Sarlet, a faceta objetiva dos direitos fundamentais, que ora objeto de sumria anlise, significa, isto sim, que as normas que prevem direitos subjetivos outorgada funo autnoma, que transcende esta perspectiva subjetiva, [...]. Mas, para se ter claro esta perspectiva dos direitos fundamentais, deve-se observar trs aspectos, o primeiro deles de que tanto as normas de direitos fundamentais que consagram direitos subjetivos individuais, quanto as que impem apenas obrigaes de cunho objetivo aos poderes pblicos podem ter a natureza ou de princpios ou de regras [...]. O segundo, h que distinguir entre a significao da perspectiva objetiva no seu aspecto axiolgico ou como expresso de uma ordem de valores fundamentais objetivos e a sua igualmente j citada mais-valia jurdica, [...]. E o terceiro e ltimo, na presente apresentao da perspectiva objetiva dos direitos fundamentais no nos estamos limitando a qualquer uma das facetas especficas que a matria suscita.60

    Em se tratando de dimenso axiolgica, Luo salienta que en su significacin axiolgica objetiva los derechos fundamentales representan el resultado del acuerdo

    58 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos de teoria geral dos direitos fundamentais. In: MENDES,

    G. F; COELHO, I. M.; BRANCO, P. G. G.; Hermenutica constitucional e direitos fundamentais. Braslia: Braslia Jurdica, 2000, p. 140-141. 59

    ALEXY, Robert. Teora de los derechos fundamentales. Traduo de Ernesto Garzn Valds. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2002, p. 189. Los derechos del ciudadano frente al Estado a acciones negativas del Estado (derechos de defensa) pueden dividirse en tres grupos. El primero est constituido por derechos a que el Estado no impida u obstaculice determinadas acciones del titular del derecho; el segundo, por derechos a que el Estado no afecte determinadas propiedades o situaciones del titular del derecho; y el tercero, por derechos a que el Estado no elimine determinadas posiciones jurdicas del titular del derecho. 60

    SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. A eficcia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 158-159.

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    bsico de las diferentes fuerzas sociales, logrado a partir de relaciones de tensin y de los consiguientes esfuerzos de cooperacin encaminados al logro de metas comunes.61 Os direitos fundamentais incorporam e expressam alguns valores objetivos da comunidade e, por isso, mesmo os direitos de defesa tem seu olhar voltado para a comunidade e no para a individualidade, a dimenso axiolgica dos direitos fundamentais que expressa o direito da totalidade mesmo perante o Estado.62

    1.4 Teorias dos Direitos Fundamentais

    O aparecimento das teorias sobre a vinculao dos particulares aos direitos fundamentais, ocorreu na Alemanha por meados do ano de 1950. As investigaes versavam sobre qual a forma da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais, de que forma isso se daria? Em Portugal, a Carta Constitucional de 1976 fez meno expressa vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. Outros pases tambm se ocuparam deste estudo como Itlia e Espanha. Na Constituio Brasileira de 1988, os direitos fundamentais so oponveis contra o Estado, inexistindo qualquer previso de incidncia dos particulares aos direitos fundamentais. Apenas posteriormente que os direitos fundamentais passam a vincular os particulares nas relaes interprivadas.

    Assim, pode-se dizer que as teorias se dividem em cinco grupos: a) teoria negativa da State Action, que rejeita a possibilidade de aplicao dos Direitos Fundamentais nas relaes privadas; b) teoria da eficcia indireta e mediata; c) teoria da eficcia direta e imediata; d) teoria dos deveres de proteo do Estado; e) teorias alternativas e mistas.63

    A teoria da negao nega a [...] relevncia da discusso em torno de uma eficcia direta ou indireta dos Direitos Fundamentais nas relaes entre particulares

    61 LUO, Antonio Enrique Prez. Los derechos fundamentales. 8 ed. Madrid: Editorial Tecnos, 2005,

    p. 20-21. 62

    SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. A eficcia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 160. 63

    SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Juris, 2004, p. 225-226.

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    [...]64 Essa teoria nasceu na Alemanha aps o surgimento das teorias da vinculao mediata e imediata dos particulares aos direitos fundamentais. Os argumentos utilizados por esta teoria para combater os argumentos em prol da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais so os de que se aboliria com a autonomia privada, aniquilaria a identidade do direito privado, que restaria absorvido pelo direito constitucional e que entregaria um poder exagerado aos magistrados65. Ainda, na doutrina, encontram-se outras alegaes tais como a viso liberal do texto constitucional alemo que prev apenas a vinculao dos poderes pblicos, bem como a tradio histrica que sequer colocou em pauta a discusso dos particulares aos direitos fundamentais.

    Esta corrente praticamente desapareceu na Alemanha, aps vrias decises proferidas pelo Tribunal Constitucional Federal, a partir de 1950. No entanto, prepondera na Sua e nos Estados Unidos da Amrica. Neste pas o tema da no vinculao dos particulares aos direitos fundamentais teve maior propagao. Por certo, nos Estados Unidos da Amrica prevalece a tese de que os direitos fundamentais vinculam apenas o Estado, pois a constituio americana ao dispor sobre os direitos fundamentais impe limitaes apenas ao ente estatal, exceo a 13 emenda que proibiu a escravido. Todavia, a jurisprudncia deste pas vem expandindo, em casos excepcionais, o campo de aplicao dos direitos fundamentais da Constituio ao dilatar os conceitos de poder pblico.

    Sarlet apresenta as linhas de argio das cortes americanas no sentido de alargar o conceito de poder pblico:

    a)quando um particular ou entidade privada exerce funo estatal tpica; b) quando existem pontos de contato e aspectos comuns suficientes para que se possa imputar ao Estado a responsabilidade pela conduta oriunda do particular.66

    64 SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Direitos fundamentais e direito privado: algumas consideraes em

    torno da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. In: FINGER, Julio Csar (org.). A constituio concretizada: construindo pontes entre o pblico e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 133. 65

    REIS, Jorge Renato dos. A vinculao dos particulares aos direitos fundamentais nas relaes interprivadas: breves consideraes. In: LEAL, R. G.; REIS, J. R. (orgs.) Direitos sociais e polticas pblicas: desafios contemporneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005, t. 5, p. 1501. 66

    SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direitos privados: algumas consideraes em torno da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A Constituio Concretizada: construindo pontes com o pblico e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 135.

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    Sob este ngulo, a postura utilizada pelas cortes norte-americanas no sentido de abrir a incidncia dos direitos fundamentais, com base no acima citado, quando um particular demandar contra outro particular aduzindo, para tanto, violao de direito fundamental individual, preservando, outrossim, a tese esculpida na constituio americana. desta forma que as decises proferidas pelos juizes americanos fazem incidir os direitos fundamentais diante das relaes privadas. Neste sentido, a concluso de Steinmetz, de que a vinculao dos particulares aos direitos fundamentais com foco na constituio americana no uma teoria adequada para dita vinculao dos particulares:

    Para ser mais preciso e j exemplificando, a state action doctrine no marco da CF no uma teoria constitucionalmente adequada sobre a vinculao dos particulares a direitos fundamentais, porque a CF uma Constituio que, alm de normatizar as relaes entre indivduo e Estado, tem a pretenso de modelar, em questes fundamentais, as relaes sociais.67

    A segunda teoria a teoria da eficcia horizontal indireta e mediata dos Direitos Fundamentais na esfera privada, a qual teve origem na doutrina alem, em obra publicada em 1956, atravs de Gnter Drig, sendo adotada pela jurisprudncia a partir do caso Lth68. Situa-se num plano intermedirio entre aqueles que negam a vinculao dos particulares aos direitos fundamentais e entre aqueles que defendem a vinculao direta dos particulares a direitos fundamentais69. Sob o ponto de vista da teoria em tela, [...] os Direitos Fundamentais no ingressam no cenrio privado como direitos subjetivos, que possam ser invocados a partir da

    67 STEINMETZ, Wilson. A vinculao dos particulares a direitos fundamentais. So Paulo: Malheiros

    Editores, 2004, p. 181. 68

    Em 1950, Erich Lth, diretor do Clube de Imprensa de Hamburgo, sustentou boicote pblico contra o filme Unsterbliche Gelibte (amada imortal), dirigido pelo cineasta Veit Harlan, que havia produzido filme de cunho notoriamente anti-semita, durante a ditadura nazista. Harlan obteve deciso do Tribunal de Justia, no sentido de que Lth se abstivesse de boicotar o filme, com base no pargrafo 826 do Cdigo Civil (BGB). Contra esta deciso, Lth ingressou com reclamao constitucional perante a Corte Constitucional, argumentando que a deciso violou sua liberdade de expresso. O Tribunal Constitucional acolheu o recurso, argumentando que os tribunais civis podem lesar o direito fundamental de livre manifestao de opinio, aplicando regras de Direito Privado. Entendeu a Corte que o Tribunal Estadual desconsiderou o significado do direito fundamental de Lth (liberdade de expresso e informao) tambm no mbito das relaes jurdico-privadas, quando ele se contrape a interesses de outros particulares. 69

    REIS, Jorge Renato dos. A vinculao dos particulares aos direitos fundamentais nas relaes interprivadas: breves consideraes. In: LEAL, R. G.; REIS, J. R. (orgs.) Direitos sociais e polticas pblicas: desafios contemporneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005, t. 5, p. 1503.

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    Constituio.70. Acrescentar-se-ia: mas, sim como ordem objetiva de valores, centrada no principio da dignidade da pessoa humana, onde se precisa de pontes entre o Direito Privado e a Constituio.

    Steinmetz apresenta, resumidamente, o ncleo essencial da teoria mediata:

    (i) as normas de direitos fundamentais produzem efeitos (eficcia) nas relaes entre os particulares por meio das normas e dos parmetros dogmticos, interpretativos e aplicativos, prprios do direito privado (direito civil, direito do trabalho, direito comercial), isto , no caso concreto, a interpretao-aplicao de norma de direitos fundamentais no se processa ex constitutione, mas operada e modulada mediatamente pelas (atravs de) normas e pelos parmetros dogmticos hermeneuticos-aplicativos do direito privado; (ii) a eficcia de direitos fundamentais nas relaes entre particulares est condicionada a mediao concretizadora do legislador de direito privado, em primeiro plano, e do juiz e dos tribunais, em segundo plano; (iii) ao legislador cabe o desenvolvimento concretizante dos direitos fundamentais por meio da criao de regulaes normativas especficas que delimitem o contedo, as condies de exerccio e o alcance desses direitos nas relaes entre particulares; (iv) ao juiz e aos tribunais, ante o caso concreto e na ausncia de desenvolvimento legislativo especfico, compete dar eficcia as normas de direitos fundamentais por meio da interpretao e aplicao dos textos de normas imperativas de direito privado, sobretudo daqueles textos que contem clusulas gerais (e.g., ordem pblica, bons costumes, boa-f, moral, abuso de direito, finalidade social de direito), isto , devem fazer uso das clusulas gerias, interpretando-as e aplicando-as em conformidade (preenchidas, informadas, infludas) com valores objetivos da comunidade que servem de fundamento as normas de direitos fundamentais ou com os valores que defluem dessas normas. [...]71

    Deste modo, esta teoria nega a possibilidade de aplicao direta dos direitos fundamentais nas relaes interprivadas sob os seguintes argumentos: acabaria exterminando a autonomia da vontade e deformando o direito privado ao conceb-lo como mera concretizao do direito constitucional, atribuiria na outorga de poder incomensurvel ao judicirio atravs da indeterminao que assinalam as normas constitucionais consagradoras deste direito.

    Competiria, assim, ao legislador a tarefa de aplicar os direitos fundamentais nas relaes entre os particulares por meio de normas de direito privado, incumbindo a ele o papel de mediador. Desta forma, os direitos fundamentais no so diretamente oponveis, como direitos subjetivos, nas relaes entre particulares, mas carecem de uma intermediao, ou seja, de uma transposio a ser efetuada

    70 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004,

    p. 238. 71

    STEINMETZ, Wilson. A vinculao dos particulares a direitos fundamentais. So Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 136-138.

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    primeiramente pelo legislador, o que geraria maior segurana jurdica, e, na ausncia de normas legais privadas, que protegeriam os direitos fundamentais, pelos rgos judiciais ao interpretar as clusulas gerais, os conceitos indeterminados criados pelo legislador no campo do direito privado72. Caberia, portanto, ao legislador estabelecer uma proteo aos direitos fundamentais no direito privado, sem que isso implicasse uma negao da autonomia da vontade73. Para os adeptos dessa teoria deve-se antes fazer a mediao dos Direitos Fundamentais sobre os particulares. Essa mediao feita pelo legislador, e posteriormente se estabelece uma relao entre as relaes privadas e os valores constitucionais.

    Apesar dos argumentos acima apresentados a teoria da eficcia mediata recebeu determinadas crticas. As quais so enumeradas por Sarmento:

    [...] que a impregnao das normas do Direito Privado pelos valores constitucionais pode causar a eroso do princpio da legalidade, ampliando a indeterminao e a insegurana na aplicao das normas civis e comerciais; no proporcionar uma tutela integral dos direitos fundamentais no plano privado, que ficaria dependente dos incertos humores do legislador ordinrio. E h ainda quem aponte para o carter suprfluo desta construo, pois ela acaba se reconduzindo inteiramente noo mais do que sedimentada de interpretao conforme Constituio.74

    Depois tem-se a teoria da eficcia direta e imediata dos Direitos Fundamentais nas relaes privadas, segundo a qual, alguns direitos podem ser invocados diretamente nas relaes privadas, ou seja, aplica-se a Constituio diretamente e com efeito erga omnes, sendo sua aplicabilidade observada no caso concreto. Essa teoria teve seu incio, tambm na Alemanha, em 1950, por Hans Nipperdey75. No seu pas de origem a mesma no adotada, no entanto o Tribunal Federal do Trabalho alemo seguiu esta corrente em algumas decises76. Hoje adotada na

    72 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direitos privados: algumas consideraes em

    torno da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). A Constituio Concretizada: Construindo pontes com o pblico e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 123/124. 73

    REIS, Jorge Renato dos. A vinculao dos particulares aos direitos fundamentais nas relaes interprivadas: breves consideraes. In: LEAL, R. G.; REIS, J. R. (orgs.) Direitos sociais e polticas pblicas: desafios contemporneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005, t. 5, p. 1503. 74

    SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004, p. 244-245. 75

    Esta teoria tambm aparece vinculada a Walter Leisner. 76

    Cita-se uma deciso proferida pelo Tribunal Federal do Trabalho alemo: o caso foi julgado em 1957, no qual reconheceu, com base em preceitos constitucionais, sem a invocao de nenhuma norma ordinria da legislao trabalhista, a invalidade de clusula contratual que previa a extino do contrato de trabalho de enfermeira de um hospital privado, caso estas viessem a contrair matrimnio. (SARMENTO, 2004, p. 246)

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    Espanha, Portugal e Itlia e tambm aqui no Brasil por alguns doutrinadores, embora os tribunais no tenham se aprofundado diretamente nesta discusso, encontra-se decises acerca da sua aplicabilidade.77. Depara-se, ainda, com manifestaes de aplicao tambm na Argentina atravs de decises proferidas pela Suprema Corte.

    Mas, alm da diferenciao antes referida, Sarlet diferencia a teoria da eficcia direta da eficcia indireta, da seguinte forma, respectivamente:

    Os direitos fundamentais no carecem de qualquer transformao para serem aplicados no mbito das relaes jurdico-privadas, assumindo diretamente o significado de vedaes de ingerncia no trfico jurdico-privado e a funo de direitos de defesa oponveis a outros particulares, acarretando uma proibio de qualquer limitao aos direitos fundamentais contratualmente avenada, ou mesmo gerando direito subjetivo indenizao no caso de uma ofensa oriunda de particulares.78 Os direitos fundamentais no so diretamente oponveis, como direitos subjetivos, nas relaes entre particulares, mas que carecem de uma intermediao, isto , de uma transposio a ser efetuada precipuamente pelo legislador e, na ausncia de normas legais privadas, pelos rgos judiciais, por meio de uma interpretao conforme aos direitos fundamentais e, eventualmente, por meio de uma integrao jurisprudencial de eventuais lacunas cuidando-se, na verdade, de uma espcie de recepo dos direitos fundamentais pelo Direito Privado.79

    A teoria consiste na aplicao direta dos direitos fundamentais nas relaes privadas entre os particulares, independente de mediao do legislador. Steinmetz ilustra as premissas bsicas desta teoria:

    (i) As normas de direitos fundamentais conferem ao particular (individuo, cidado) uma posio jurdica oponvel no s ao Estado, mas tambm aos demais particulares. Trata-se do status socialis de que falava Nipperdey, uma posio jurdica que autoriza o particular a elevar uma pretenso de respeito contra todos. (ii) Os direitos fundamentais so e atuam como direitos subjetivos constitucionais independentemente de serem pblicos ou privados. (iii) Como direitos subjetivos constitucionais, a no ser que o Poder Constituinte tenha disposto ao contrrio, operam eficcia

    77 Menciona-se alguns precedentes encontrados nos tribunais ptrios: Resp n 27.039-3 (STJ);

    Habeas Corpus n 5.583 (STJ); AI n 598.360.402 (TJRS). (FINGER, 2000, p. 101/102) 78

    SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Direitos fundamentais e direito privado: algumas consideraes em torno da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. In: FINGER, Julio Csar (org.). A constituio concretizada: construindo pontes entre o pblico e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 122. 79

    SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Direitos fundamentais e direito privado: algumas consideraes em torno da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. In: FINGER, Julio Csar (org.). A constituio concretizada: construindo pontes entre o pblico e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 124.

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    independentemente da existncia de regulaes legislativas especficas ou do recurso interpretativo-aplicativo das clusulas gerais do direito privado.80

    No h que se negar a aplicao do princpio da ponderao quando ocorrer conflito entre os direitos fundamentais e a autonomia da vontade, por tal motivo no se pode considerar esta corrente como sendo radical. A mencionada teoria recebeu objees, pelos defensores da teoria mediata, que Steinmetz assim resume:

    Uma primeira objeo diz que a eficcia imediata no encontra amparo positivo na Constituio, isto , no a texto de norma constitucional que fundamenta a eficcia imediata [...]. Uma segunda objeo diz que a teoria da eficcia imediata, no mbito dos direitos fundamentais equipara, erroneamente, a relao vertical particular-Estado relao horizontal particular-particular [...]. Uma terceira objeo invoca a identidade do direito privado [...]81

    Resta, ainda, a teoria dos deveres de proteo do Estado, a qual, tambm surgiu na Alemanha como uma crtica s teorias de eficcia mediata e imediata da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. Os principais autores, dentre outros, que pregaram esta teoria foram Claus-Wilhelm Canaris, Klaus Stern etc. Nesta teoria, a conciliao entre a autonomia privada e os Direitos Fundamentais dever do legislador e no do Judicirio, este teria relevncia somente quando o legislador no atender as necessidades e faria isso atravs do controle de constitucionalidade do Direito Privado. O julgador exerce o controle difuso. A teoria dos deveres de proteo oferece os mesmos requisitos das teorias da eficcia imediata e mediata, em especial desta ltima.

    Nesta teoria o Estado assume relevante importncia visto que as normas de direitos fundamentais conferem a ele um poder de proteo (atuao positiva) aos particulares contra eventuais agresses aos seus direitos fundamentais, mesmo que estas agresses tenham como atores outros particulares. Trata-se de uma proteo absoluta do Estado frente s relaes de cunho privado, de tal sorte que abrange todos os bens fundamentais.82

    80 STEINMETZ, Wilson. A vinculao dos particulares a direitos fundamentais. So Paulo: Malheiros

    Editores, 2004, p. 168-169. 81

    STEINMETZ, Wilson. A vinculao dos particulares a direitos fundamentais. So Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 171-172. 82

    REIS, Jorge Renato dos. A vinculao dos particulares aos direitos fundamentais nas relaes interprivadas: breves consideraes. In: LEAL, R. G.; REIS, J. R. (orgs.) Direitos sociais e polticas pblicas: desafios contemporneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005, t. 5, p. 15.

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    Os defensores desta teoria apontam determinadas vantagens para a sua aplicabilidade, entre as quais o fato de fomentar um tratamento distinto dos direitos fundamentais no Direito Privado, tendo como ponto de partida o reconhecimento de uma competncia normativa dos atores privados na qual deve haver a interveno do Estado frente s relaes jurdico/privadas apenas em casos extraordinrios e devidamente justificados. Outra vantagem que esta teoria encontra-se armada sobre as bases do Direito Privado, sendo assim os direitos de proteo no podem ser determinados de antemo e em abstrato, de forma genrica, necessitando de concretizao de acordo com o seu contedo e apenas nesta seara suscita direitos subjetivos.83

    Todavia, a referida teoria apresenta crticas de distintas origens:

    Por um lado, alguns civilistas alemes, preocupados diante de supostos riscos autonomia da sua disciplina, criticaram o fato de que ela conferiria poderes em demasia ao juiz constitucional, permitindo que este, com base em valoraes pouco objetivas, implantasse confuso entre as categorias tradicionais do Direito Privado, aumentando a insegurana jurdica. De outra banda, e com muito maior procedncia ao nosso sentir, afirma-se que a teoria dos deveres de proteo encobre o fato de que, no contexto da sociedade contempornea, s por mero preconceito se pode excluir os particulares, sobretudo os detentores de posio de poder social, da qualidade de destinatrios dos direitos fundamentais. Ademais, a referida teoria, tal como a eficcia indireta acima comentada, torna a proteo dos direitos fundamentais na esfera privada refm da vontade incerta do legislador ordinrio, negando a eles uma proteo adequada, compatvel com a sua fundamentalidade, mxime num contexto como o nosso que, alis, no difere em substncia do que existe na Alemanha em que os instrumentos de controle de inconstitucionalidade por omisso revelam-se falhos, seno praticamente incuos.84

    Em resumo, constata-se que esta teoria apresenta semelhanas com a teoria da eficcia indireta, fundamentando-se na idia de que, a combinao entre a autonomia privada e os direitos fundamentais deve pertencer ao legislador e no ao judicirio. Pode ocorrer a possibilidade de interveno do Judicirio, por meio do controle de constitucionalidade das normas de Direito Privado, quando o legislador no resguardar adequadamente o direito fundamental e, quando, o mesmo agindo de modo contrrio, no conferir a devida importncia proteo da autonomia

    83 SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet. Direitos fundamentais e direito privado: algumas consideraes em

    torno da vinculao dos particulares aos direitos fundamentais. In: FINGER, Julio Csar (org.). A constituio concretizada: construindo pontes entre o pblico e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 127. 84

    SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2004, p. 261-262.

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    privada dos particulares.85 Salienta-se tambm, que a crtica a essa teoria a de que, o juiz constitucional detm muito poder e tambm torna a proteo dos Direitos Fundamentais na esfera privada refm da vontade incerta do legislador ordinrio.

    Finalizando, tem-se ainda as teorias alternativas, como a de Schwabe86, segundo a qual o Estado sempre o responsvel por leses aos Direitos Fundamentais, mesmo quando desenvolvidas no mbito da esfera privada. Porque quando o Estado disciplina as relaes privadas, ele se torna responsvel por qualquer ato que viole os Direitos Fundamentais. Outra teoria que faz parte das alternativas a de Robert Alexy87, que tenta englobar trs correntes tericas: da eficcia direta e imediata, da eficcia indireta e mediata e a doutrina dos deveres de proteo do Estado. Para isso ele alega que nas relaes entre particulares (nos dois plos), ambos so titulares de Direitos Fundamentais. Esse modelo de teoria ele denomina de um modelo de trs nveis de efeitos, a) deveres do Estado; b) direitos frente ao Estado; c) relao entre sujeitos privados.

    1.5 A interpretao dos Direitos Fundamentais

    da natureza polissmica a multiplicidade de enfoques possveis aos direitos fundamentais que fizeram surgir duas correntes doutrinrias distintas: de um lado existe a corrente minimalista dos direitos fundamentais,