A FUNDAÇÃO DO COLÉGIO DE JESUS DO RIO DE JANEIRO...

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS A FUNDAÇÃO DO COLÉGIO DE JESUS DO RIO DE JANEIRO (1567-1759) JEAN SANTIAGO LOURENÇO Tese orientada pelo Prof. Doutor Miguel Corrêa Monteiro, especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre em História, na especialidade História Moderna. 2016

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

A FUNDAÇÃO DO COLÉGIO DE JESUS DO

RIO DE JANEIRO (1567-1759)

JEAN SANTIAGO LOURENÇO

Tese orientada pelo Prof. Doutor Miguel Corrêa Monteiro,

especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre em

História, na especialidade História Moderna.

2016

1

A Giselle, meu amor

2

Agradecimentos

Aos meus pais, Pórthos e Lucia, por todo apoio e incentivo que sempre

me deram nesses trinta e três anos que tenho de vida;

Aos meus irmãos, Fellipe e Igor, e meus cãezinhos Quinho e Cristal.

Aos meus sogros, José Ribamar Paiva dos Santos e Mirtes Maria

Negreiros dos Santos e meus “cunhados de quatro patas” Uli e Balu.

À professora doutora Maria da Conceição de Moraes Coutinho Beltrão,

por toda ajuda dispensada – sem ela não teria a como realizar este trabalho.

Ao meu orientador, Miguel Maria Santos Corrêa Monteiro, por toda

paciência, ajuda e confiança depositadas em mim.

A Rhoneds Aldora Rodrigues Perez da Paz, pelo incentivo e ajuda.

A todos os funcionários da Faculdade de Letras da Universidade de

Lisboa, em especial à dona Fátima Lopes, à dona Elisabete Oliveira, à dona

Arlete Pato e àqueles que me ajudaram, de uma forma ou de outra, e cujos

nomes não me recordo neste momento.

Aos funcionários da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, da Biblioteca da Faculdade de Letras da

Universidade Federal do Rio de Janeiro, da Biblioteca da Faculdade de

Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da

Biblioteca da Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de

Janeiro.

Aos meus colegas da Divisão de Diplomas da Universidade Federal do

Rio de Janeiro: Dayse de Amorim Marques, Flávio Lafaiete, Marcos Pereira

Guimarães, Marcio Luiz da Cunha, Leandro Pereira da Costa, Rosalva Mendes

da Silva e também a Juliana, Karina, Mayara, Luiz Fernando e Bruna.

E ainda a todos aqueles que passaram por meu caminho e que

engrandeceram esta pesquisa e trabalho e que não tiveram seus nomes aqui

citados.

3

Resumo

A Companhia de Jesus fundou, ao redor do mundo, diversos colégios

cujo objetivo ia além da formação de elites católicas para combater o

protestantismo. No Brasil, por exemplo, os colégios foram fundados também

para formar padres para a difícil missão da catequização dos indígenas, tendo

como alvo a inserção desses na sociedade colonial. Um desses colégios foi o

Colégio da cidade do Rio de Janeiro, que foi ainda o centro regional da

administração jesuíta em relação ao sul do país, tendo se tornado o segundo

colégio em importância da Companhia no Brasil, atrás apenas do Colégio da

Bahia. Este trabalho tem como objetivo relatar a história do Colégio de Jesus

do Rio de Janeiro, desde sua fundação no século XVI até seu fechamento no

século XVIII, passando pelos acontecimentos na cidade que tiveram o Colégio

como "personagem", tratando ainda sobre a destruição de seu prédio histórico

na segunda década do século XX.

Palavras-chave: Companhia de Jesus - Colégios - Rio de Janeiro - Educação

4

Abstract

The Society of Jesus has founded, around the world, many colleges

whose purpose went beyond the formation of Catholic elites to fight

Protestantism. In Brazil, for example, schools were also founded to form priests

for the difficult task of catechizing the native Indians, with the purpose of

inserting these people in the colonial society. One of these schools was the

College of the city of Rio de Janeiro, which was also the regional center of the

Jesuit administration in relation to the south of the country, having become the

second College in importance of the Society of Jesus in Brazil, only behind

College of Bahia. This study aims to report the history of College of Jesus of Rio

de Janeiro since its foundation in the sixteenth century until its closure in the

eighteenth century, through the events in the city that had the College as a

"character," dealing still with the destruction of its historic building in the second

decade of the twentieth century.

Keywords: Society of Jesus - Colleges - Rio de Janeiro - Education

5

Siglas e Abreviaturas

apud – citado em

art. – artigo

cit.– citado

fig. – figura

fl – folha

IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

ibidem – mesmo autor, mesma obra

in – em

nº – número

org. – organização

p. – página

pp. – páginas

r.IHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

vide - veja-se

vol. – volume

vols. – volumes

6

Índice

Introdução ................................................................................................ 08

Capítulo I – A Companhia de Jesus e seu projeto pedagógico ............... 14

I.1 Santo Inácio de Loyola: o fundador da ordem dos jesuítas ............... 14

I.2 Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio.......................................... 15

I.3 A organização da Companhia de Jesus ............................................ 16

I.4 As Constituições ................................................................................. 18

I.5 A Ratio Studiorum .............................................................................. 19

I.6 Cursos ............................................................................................... 20

Capítulo II – Antecedentes da Fundação de Colégios no Novo Mundo ... 22

II.1 Os Colégios ....................................................................................... 22

II.2 Em Portugal ....................................................................................... 23

II.3 No Brasil ............................................................................................ 24

II.4 O trabalho nas Aldeias ...................................................................... 26

Capítulo III – Fundação do Colégio do Rio de Janeiro e o Colégio no século XVI

.................................................................................................................. 28

III.1 As batalhas pela fundação da cidade do Rio de Janeiro................... 29

III.2 A Igreja e o Colégio dos Jesuítas ...................................................... 33

III.3 As obras da construção do Colégio do Rio de Janeiro ...................... 35

III.4 Os estudos no Colégio no século XVI ................................................ 37

III.5 As Fazendas e engenhos dos jesuítas .............................................. 38

7

Capítulo IV – O Colégio do Rio de Janeiro nos séculos XVII e XVIII ........ 43

IV.1 Os estudos no Colégio nos séculos XVII e XVIII .............................. 45

IV.2 Um Colégio em constante construção ............................................. 46

IV.3 O Colégio como um forte: tumulto contra os padres da Companhia em

1640 ..................................................................................................................... 48

IV.4 O Colégio em festa: Restauração e aclamação de Dom João IV ..... 51

IV.5 As novas invasões francesas: a investida do corsário Duclerc sobre o Rio

de Janeiro ........................................................................................................... 52

IV.6 O assalto de Duguay-Trouin e a mediação dos jesuítas .................. 56

Capítulo V – A expulsão dos jesuítas do Brasil e o fechamento do Colégio do

Rio de Janeiro .......................................................................................... 62

Capítulo VI – O retorno dos jesuítas ao Brasil no século XIX ................. 69

Capítulo VII – O Colégio Santo Inácio: o legado jesuítico ....................... 71

Capítulo VIII – Morro do Castelo: os segredos e tesouros dos jesuítas .... 74

Considerações Finais ............................................................................... 80

Fontes e Bibliografia .................................................................................. 83

8

Introdução

Os últimos anos têm sido marcados por acontecimentos importantes em

relação à Companhia de Jesus. Em 2013, foi eleito Papa o jesuíta argentino

Jorge Mario Bergoglio, assumindo o trono de São Pedro com o nome de

Francisco. É o primeiro Papa latino-americano e primeiro Papa jesuíta da

História. No ano seguinte, em 2014, foi comemorado o aniversário de 200 anos

desde a volta da Companhia de Jesus, que, banida pelo Papa Clemente XIV

em 1773, foi restituída às atividades pelo Papa Pio VII no ano de 1814. Em

2014 também foi canonizado José de Anchieta, o apóstolo do Brasil, que foi

levado à condição de co-padroeiro do Brasil. A assinatura do decreto de

canonização de Anchieta ocorreu 417 anos depois de sua morte, no dia 24 de

abril de 2014, pelo papa Francisco. A figura de São José de Anchieta foi de

uma importância ímpar na construção do Brasil. O século XVI é o século da

mais importante atividade jesuítica no país, quando que, sem deixar dúvidas,

homens como o próprio Anchieta, além de Manuel da Nóbrega, Fernão Cardim,

Luiz da Grã, Gonçalo de Oliveira, dentre outros, construíram os alicerces do

país, fundando, junto com seus Colégios, aldeamentos, fazendas, engenhos e

cidades, a base de uma nação, numa tarefa hercúlea da sua formação.

Segundo o grande historiador Capistrano de Abreu, em sua obra

Capítulos de história colonial, publicada pela primeira vez em 1907, “uma

história dos jesuítas é obra urgente; enquanto não a possuirmos será

presunçoso quem quiser escrever a do Brasil”1. O historiador português e

padre jesuíta Serafim Leite encarregou-se de tão difícil tarefa, a de escrever a

história dos jesuítas no Brasil. Iniciando em 1938, foi publicada em dez

volumes a obra História da Companhia de Jesus no Brasil. A obra, um marco

para os estudos jesuíticos no país, foi muito bem recebida2 durante o seu

lançamento e nos anos posteriores. Apesar de constituir uma história oficial da

Companhia de Jesus, continua a ser, até os dias de hoje, referência para todo

1 CAPISTRANO DE ABREU, José. Capítulos da História Colonial. Rio de Janeiro: Centro Eldestein de Pesquisa Social, 2009. p. 156 2 PEDRO, Lívia Carvalho. História da Companhia de Jesus no Brasil: Biografia de uma obra. Dissertação de Mestrado. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2008.

9

e qualquer pesquisador da História dos jesuítas e colonial do Brasil. No início

do século XXI ganhou uma nova edição, com o mesmo conteúdo da original,

mas em uma edição de luxo em quatro volumes e um CD-ROM contendo os

desenhos da obra original. A História... é fundamental para podermos

compreender a atuação dos jesuítas e seus Colégios no país, tanto que é

exaustivamente citada neste trabalho.

Para a construção deste nosso trabalho, além da História..., foram

importantes alguns estudos de outros autores sobre os Colégios da Companhia

de Jesus no Brasil. No ano de 2015, a cidade do Rio de Janeiro completou 465

anos desde a sua fundação. Além das festividades oficiais que marcaram o

ano, merecem destaque as publicações de duas obras que retratam o Rio de

Janeiro, os jesuítas e o seu Colégio na cidade. São elas: “Os jesuítas e o Rio

de Janeiro: a saga dos jesuítas na construção da história do Rio de Janeiro”, de

Cesar Augusto Tovar Silva, publicado em uma parceria da editora PUC-Rio e o

Colégio Santo Inácio, instituições fundadas e mantidas por jesuítas, e “A

Companhia de Jesus na América por seus Colégios e Fazendas –

aproximações entre Brasil e Argentina (século XVIII)”, de Marcia Amantino,

Eliane Cristina Deckmann Fleck e Carlos Engemann (orgs.), da editora

Garamond. O primeiro livro atenta-se, como o próprio subtítulo indica, na

“saga” dos jesuítas na construção do Rio de Janeiro, focando-se nas

propriedades jesuíticas como o Colégio, terras, fazendas e engenhos no que é

hoje o Estado do Rio de Janeiro. Já a segunda obra é uma coletânea de artigos

que fazem uma comparação entre as atuações e propriedades dos jesuítas nas

Américas hispânica e portuguesa, especialmente entre os Colégios do Rio de

Janeiro e de Córdoba.

Um outro trabalho cujo tema também é o Colégio dos jesuítas do Rio de

Janeiro é “Subsídios para o estudo do Real Colégio das Artes e Ofícios da

cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: O caso da Nova Igreja.”

Dissertação de Mestrado em arquitetura de Claudia Nóbrega Baroncini, de

1996, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nesse trabalho, a

autora, depois de fazer um histórico da atuação dos jesuítas em seu Colégio no

Rio de Janeiro, passa a tratar sobre a construção – não finalizada – da nova

10

igreja no complexo dos jesuítas localizado no Morro do Castelo, cuja pedra

fundamental foi lançada em 1744.

Um estudo similar ao nosso, embora o tema seja sobre outro Colégio

jesuíta e apesar de tratar esse tema por um viés arquitetônico, é “O Colégio e

as residências dos jesuítas no Espírito Santo”, de José Antonio Carvalho

(editora Expressão e Cultura, 1982). Nele, o autor trata da história dos jesuítas

no que se tornou o estado do Espírito Santo, de seu Colégio (cujo prédio existe

até os dias atuais, ao contrário do Colégio do Rio de Janeiro, e é a sede do

governo daquele estado), suas fazendas, engenhos e residências. É um estudo

importante que indicou alguns caminhos pelos quais nosso trabalho poderia

seguir.

Nessa mesma linha, de estudo regionais sobre os colégios da

Companhia de Jesus no Brasil, podemos destacar ainda o livro, publicado pela

Prefeitura do Município de São Paulo no ano de 1979, “A Igreja e o Colégio dos

jesuítas de São Paulo”, de Geraldo Dutra de Moraes, sócio do Instituto

Histórico e Geográfico de São Paulo. O trabalho, com diversas fotografias,

conta a história da fundação da cidade de São Paulo com a construção do

colégio da cidade, tratando também da igreja colonial jesuíta que desabou no

final do século XIX.3

Já o nosso trabalho tem como objetivo fazer um relato sobre a História

do Colégio dos jesuítas na cidade do Rio de Janeiro, Colégio este que possui

uma história que vai além da sua própria existência como instituição. Tendo

encerrado suas atividades em 1759, com a expulsão dos jesuítas do território

luso, inclusive o Brasil, o Colégio foi ainda protagonista por mais de um século

e meio desde seu fim formal de lendas e mistérios que estiveram na mente de

gerações de cariocas até o desmonte do Morro do Castelo, local onde estava

erigido o dito Colégio.

Utilizando como fontes as inúmeras cartas jesuíticas, relato de viajantes,

escritos de personagens que construíram a história da cidade, documentos

oficiais, e mais toda a sorte de documentação que ajudaria a recontar a

3 MORAES, Geraldo Dutra de. A Igreja e o Colégio dos Jesuítas de São Paulo. São Paulo: Prefeitura do Município, 1979.

11

trajetória do Colégio, tentou-se trazer à luz no século XXI a história dessa

instituição que tanta importância teve na construção da cidade do Rio de

Janeiro.

Resolvemos dividir este trabalho em capítulos que seguem uma ordem

cronológica. Foi assim feito não porque seja a melhor maneira ou a maneira

“correta”, mas porque achamos que, para uma história do Colégio do Rio de

Janeiro, a compreensão se daria de modo mais fácil. O trabalho de Serafim

Leite na História... foi utilizado como referência, já que a obra traz muitas fontes

em relação à construção, reforma e atividades do Colégio do Rio de Janeiro,

além das informações detalhadas sobre a atuação dos jesuítas no Brasil.

Utilizar a obra de Serafim Leite como referência sim, porém, sempre

contextualizando que a obra foi escrita por uma padre jesuíta que se utilizou de

fontes quase que exclusivamente jesuíticas, ou seja, é uma história oficial da

Companhia de Jesus no Brasil. Por isso estamos sempre tentando obter outras

fontes, geralmente não-jesuíticas, para tentar contrapor a visão exposta no

trabalho de Serafim Leite.

Este trabalho foi divido em 10 capítulos. No primeiro, intitulado A

Companhia de Jesus e seu projeto pedagógico, contamos resumidamente a

história da Companhia de Jesus como instituição, passando pela figura de seu

fundador, Santo Inácio de Loyola. O projeto pedagógico da Companhia, de

fundação de instituições de ensino em diversas partes do mundo para

estudantes leigos e também para formação de novos membros da instituição,

faz parte do projeto maior de evangelização e da defesa mundial do

Cristianismo católico. Falamos também da Ratio atque Institutio Studiorum

Societatis Iesu, o plano de estudos que deveria ser seguido por todos dos

colégios da Companhia de Jesus ao redor do globo.

O segundo capítulo tem como título Antecedentes da fundação de

colégios no Novo Mundo e tem como objetivo mostrar o processo de criação

dos colégios da Companhia. Veremos que a ideia da construção de

estabelecimentos de ensino não era, inicialmente, prioridade para Santo Inácio,

mas que pouco tempo depois tornou-se um dos pilares da instituição.

Mencionaremos ainda, nesse capítulo, o importante trabalho realizado pelos

12

inacianos nas aldeias indígenas e que dava suporte aos colégios mais

próximos.

Para o terceiro capítulo, ao tratar sobre a fundação do Colégio e da

cidade do Rio de Janeiro e da história do Colégio nos seus primeiros trinta e

três anos de existência, o título escolhido foi Fundação do Colégio do Rio de

Janeiro e o Colégio no século XVI. Nesse capítulo também é falado sobre a

aquisição de terras pela Companhia no Brasil, o que fez com que a mesma

tivesse um vasto poder aquisitivo no país, capaz de sustentar seu projeto

missionário, mas também de angariar a inveja e ressentimento dos detratores

da instituição jesuíta.

O quarto capítulo, O Colégio do Rio de Janeiro nos séculos XVII e XVIII,

fala sobre os acontecimentos no Colégio nos quase 160 anos compreendidos

nesses dois séculos até a expulsão da Companhia dos territórios portugueses.

As invasões da cidade do Rio de Janeiro por corsários franceses, em 1710 e

1711, são reconstruídas através de relatos de testemunhas oculares, incluindo

os próprios invasores. Nesses acontecimentos, o Colégio, os jesuítas que

estavam na cidade e os estudantes tiveram papéis destacados.

A expulsão dos jesuítas do Brasil e o fechamento do Colégio do Rio de

Janeiro é o título do quinto capítulo. No capítulo em questão são mostrados os

acontecimentos imediatamente anteriores à derradeira expulsão dos jesuítas

dos territórios portugueses – incluindo, aí, o Brasil – e o fechamento do

Colégio. Tido como obra quase que exclusivamente do futuro Marquês de

Pombal, a expulsão dos jesuítas é um marco, mas não o fim da nossa história

do Colégio do Rio de Janeiro, que sobreviverá na memória dos cidadãos

cariocas por muitos anos ainda, em razões de lendas sobre os “tesouros” que

foram abandonados pelos padres jesuítas na confusão de sua expulsão e que

estariam escondidos nos subterrâneos do Colégio.

Os dois capítulos seguintes, o sexto e o sétimo, intitulados,

respectivamente, O retorno dos jesuítas ao Brasil no século XIX e O Colégio

Santo Inácio: o legado jesuítico, debruçam-se sobre a volta dos jesuítas ao

Brasil e sua atuação na cidade do Rio de Janeiro nos séculos XIX e XX, com a

fundação, em 1903, do Externato Santo Inácio (futuro Colégio Santo Inácio).

13

Já Morro do Castelo: os segredos e tesouros dos jesuítas, nosso nono

capítulo, relata os mais de cento e sessenta anos entre o fechamento do

Colégio em 1759 e o arrasamento do morro do Castelo, onde o Colégio estava

erguido, na década de 1920, sob um diferente prisma: o das lendas e mistérios

que cercavam o Colégio e os padres jesuítas, que teriam deixado escondidos

em vários caminhos subterrâneos imediatamente abaixo do prédio do colégio

diversos tesouros, como uma estátua de Santo Inácio feita de ouro maciço.

Muito além de meros devaneios de um povo inculto, os tesouros dos jesuítas

intrigaram mentes como a de Joaquim Maria Machado de Assis, sem dúvida

alguma um dos maiores escritores brasileiros, se não o maior.

Por fim, as considerações finais no décimo capítulo, tentando mostrar a

contribuição do estudo da história dos jesuítas e do colégio para demais

estudos sobre a história da cidade e do país.

Ainda resolvemos incluir dois anexos; o primeiro, uma lista com o nome

dos reitores do extinto Colégio de Jesus do Rio de Janeiro e as datas de

quando eles estiveram no cargo. O segundo anexo é a transcrição da parte

relevante ao Colégio do Rio de Janeiro da carta do bispo dom Antônio do

Desterro ao conde de Oeiras sobre a situação dos jesuítas no Brasil, na época

da expulsão da Companhia de Jesus do reino de Portugal.

Iniciemos, pois, com o primeiro capítulo, a seguir.

14

Capítulo I – A Companhia de Jesus e seu projeto pedagógico

A instituição Companhia de Jesus, desde que foi fundada no século XVI,

prima-se não apenas por suas missões de evangelização ao redor do globo,

mas também pelo desenvolvimento de práticas educacionais nas quais se

observa o “espírito” do criador da Ordem, Santo Inácio de Loyola. Para

conhecermos o significado do projeto educacional da Companhia, se faz

necessário apresentar primeiro o fundador da ordem dos jesuítas.

Santo Inácio de Loyola – o fundador da ordem dos jesuítas

O mais novo do clã dos Loyola nasceu em Azpeitia, no País Basco, em

1491. Inigo Lopez de Oñaz y Loyola (só adotará o nome latino Ignatius após

concluir seus estudos em Paris), dar-se-á às vaidades e vicissitudes da

juventude e entrará para a carreira militar, sempre buscando honras e glórias.

Estará em Pamplona quando estoura a guerra contra França, de onde Inigo

sairá com um grave ferimento na perna.

Durante sua longa e dolorosa convalescença, pediu para ler livros de

cavalaria – mas a casa onde ele se encontrava apenas possuía dois livros: A

Vida de Cristo (Vita Christi), de Ludolfo da Saxônia, e Florilégio dos Santos

(Flos Sanctorum), de Tiago de Voragine4.

Após a leitura dessas obras, Inigo descobriu sua verdadeira missão:

seguir o Rei dos Reis, dedicar sua vida a Jesus Cristo Salvador. Quando

recuperado dos ferimentos de guerra, o futuro Santo partiu em peregrinação,

deixando para trás todos os bens materiais que possuía. Carregando apenas

um sac, o peregrino atraía a atenção tanto de devotos quanto da Inquisição,

que por algumas vezes o prendeu e questionou. Decidido a aprender, pois

conhecimento de letras e teologia lhe faltava, Inigo passou pelas Universidades

4 MONTEIRO, Miguel. Os Jesuítas e o Ensino Médio. Colecção de Estudos de História – Número 1. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 2011, p. 17.

15

de Salamanca e Alcalá, mas foi em Paris, em 1534, que conseguiu o título de

Mestre em Artes. Agora Inácio de Loyola, conheceu, naquela cidade, seus

futuros companheiros, como Francisco Xavier, e junto deles fundou a

Companhia de Jesus, ordem religiosa aprovada pelo Papa em 1540 através da

Bula Regimini militantis Ecclesiae e dedicada à evangelização em qualquer

parte do mundo, combatendo, também, as ideias consideradas heréticas da

Reforma Protestante.

Inácio de Loyola foi eleito, por unanimidade, Superior Geral da

Companhia de Jesus, apesar de sua reticência, de início, em aceitar tal posto.

Após 1540, passou a viver em Roma, vindo a falecer naquela cidade no ano de

1556, aos 65 anos de idade. Em 1609, foi beatificado pelo papa Paulo V e

canonizado, junto com Francisco Xavier, em 1622, pelo papa Gregório XV.

Os Exercícios Espirituais de Santo Inácio

Inácio de Loyola desenvolveu uma forma de alcançar a Deus através da

meditação e contemplação e a qual denominou “Exercícios Espirituais”. Ao

recuperar-se de um ferimento de uma batalha em que quase perdeu a perna,

Inácio retira-se para uma gruta na cidade de Manresa, na Catalunha, onde

passa por experiências espirituais que darão origem aos ‘Exercícios’.

O livro dos Exercícios Espirituais é divido em quatro partes ou

“semanas” (hebdomadae) e cada semana tem tamanhos diferentes. Seu

objetivo é fazer com que o leitor visualize as passagens da vida de Cristo

através da meditação para que o mesmo possa refletir e ‘sentir’ o que Cristo

passou no Calvário. Os ‘Exercícios’ foram primeiramente escritos em espanhol,

depois traduzidos para o latim. Na época de sua primeira formulação, Inácio

não tinha ainda completado sua formação, o que fará anos mais tarde em

Paris. Lembremos ainda que a língua materna do autor era o basco, não o

castelhano, o que pode ter causado algumas imprecisões na passagem das

ideias de um idioma para o outro. De fato, segundo Elder Mullan:

16

(...) o Santo cria novas palavras em espanhol a partir do latim ou italiano, ou

utiliza palavras em espanhol num sentido italiano ou latino, ou emprega expressões

que não ocorrem senão nas Escolas, e algumas vezes até se utiliza de palavras em

sua forma latina.5

Ao passar do tempo da vida de Santo Inácio, os ‘Exercícios’ foram sendo

incrementados a partir das experiências vividas pelo Santo e também pelo seu

crescimento intelectual e de seu conhecimento teológico.

Todos que entravam na Companhia de Jesus deveriam praticar os

Exercícios e muitos que não faziam parte dela também os praticaram, como é o

caso do terceiro governador-geral do Brasil, Mem de Sá, conforme veremos

nos capítulos adiante.

A organização da Companhia de Jesus

A Companhia de Jesus era dividida em províncias, que se uniam em

grupos, seguindo critérios geográficos ou linguísticos, e cada grupo constituía

uma Assistência. Antes da dissolução da Companhia no século XVIII, existiam

seis Assistências: Itália, Portugal, Espanha, Alemanha, França e Polônia. A

Assistência de Portugal compreendia, além do próprio Portugal, a Província da

Índia (que depois se desmembrou em duas, Goa e Malabar), o Japão, a Vice-

Província da China, a Província do Brasil e a Vice-Província do Maranhão,

possuindo, também, missões na Etiópia, Moçambique e Angola6. Cada

Assistência mantém um representante em Roma, chamado de Assistente,

eleito nas Congregações Gerais, sendo consultor do Superior Geral, ou

simplesmente Geral, que era a mais alta posição da Ordem. Para este cargo o

5 “(...) the Saint makes new Spanish words from the Latin or Italian, or uses Spanish words in an Italian or Latin sense, or employs phrases not current except in the Schools, and sometimes even has recourse to words in their Latin form”. in Mullan, Elder. The Spiritual Exercises of Saint Ignatius of Loyola. Nova Iorque: P. J. Kennedy & Sons, 1914, p.14. 6 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004. Tomo I, p.06.

17

eleito assim o era por toda sua vida. A Congregação Geral, composta pelos

delegados das diversas províncias, era o poder legislativo da Companhia.

Abaixo do Geral, era organizada da seguinte maneira: vinham os

Provinciais, responsáveis por cada Província. Seguem aos Provinciais os

Reitores dos Colégios e a estes, os Prefeitos dos estudos. A seguir vinham os

professores e abaixo destes, os alunos, que eram agrupados dois a dois sob a

autoridade dos decuriões responsáveis de cada grupo – as decúrias, grupos de

nove ou dez alunos.

Nos Colégios, existia também a figura do Admonitor. Em cada Provínicia

e em cada casa, havia um certo número de admonitores. Assim como o Geral

se aconselhava com os assistentes, os admonitores aconselhavam seus

superiores nas questões mais importantes.7

Importante, principalmente para nosso estudo, é a figura do padre-

visitador. Este padre, de três em três anos, visitava as províncias. Tinha

autoridade para intervir em quaisquer questões e era quem passava as

comunicações ao Geral em Roma. O Visitador Inácio de Azevedo, por

exemplo, decidiu que seria no Rio de Janeiro o local da construção de um

Colégio da Companhia. Já o Visitador Cristóvão de Gouvêa interveio no

planejamento da construção do mesmo Colégio, modificando-o.

Os integrantes da Companhia de Jesus (Societas Iesu), que ficaram

conhecidos como jesuítas (de ita Iesu, “como Jesus”) ou inacianos, fazem

votos de pobreza, castidade, obediência (comuns às demais ordens religiosas)

e de dedicação total ao Papa, a respeito das missões que o Pontífice ordenar

aos jesuítas. Logo a partir de seus primeiros momentos como jesuítas, os da

Companhia dedicaram-se a diversas missões ao redor do globo, evangelizando

e pregando a palavra de Deus em tais locais como do Japão, tarefa

empreendida por Francisco Xavier, estando a serviço do rei de Portugal D.

João III, ao Novo Mundo, como veremos mais adiante neste trabalho, nos feitos

de homens como Manuel da Nóbrega e José de Anchieta.

7 BARONCINI, Claudia Nóbrega. Subsídios para o estudo do Real Colégio das Artes e Ofícios da cidade de

São Sebastião do Rio de Janeiro: o caso da Nova Igreja. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p. 13.

18

As Constituições

Quando foi estabelecida a Companhia de Jesus, não havia ainda a

organização dela explicitamente escrita. Santo Inácio começou a escrever as

constituições da Companhia de Jesus em 1547 e, após diversas revisões e

aperfeiçoamentos, foram promulgadas nas várias províncias da Companhia a

partir de 1552.

Os pretendentes à Companhia de Jesus deveriam fazer um exame cujo

objetivo era conhecer o candidato. Eram excluídos os candidatos hereges, os

cismáticos, homicidas ou infames, se já pertenceram a outra Ordem, se estão

ligados por vínculo matrimonial ou de escravidão. Se estiver livre, a família do

pretendente a uma posição na Companhia é questionada sobre os talentos que

o candidato possui, como sentiu desejos de ser religioso e se mantém vontade

deliberada de viver e morrer na Companhia de Jesus.8

As Constituições são divididas em dez partes.

“a primeira, da admissão dos que hão de seguir o nosso Instituto; a segunda,

da demissão dos que não pareçam idôneos para ele; a terceira, da conservação e

aproveitamento em virtude dos que ficarem; a quarta, da formação em Letras e outros

meios de ajudar o próximo os que se tiverem ajudado a si mesmos em espírito e

virtudes; a quinta, da incorporação na Companhia dos que assim forem formados; a

sexta, do que devem observar em si mesmos os já incorporados; a sétima, do que se

há de observar para com os próximos, repartindo os operários e empregando-os na

vinha de Cristo Nosso Senhor; a oitava, do que toca a unir entre si e com sua cabeça

os que estão repartidos; a nona, do que respeita à cabeça e ao governo que dela ao

corpo desce; a décima, do que universalmente toca a conservação e aumento de todo

o corpo desta Companhia no seu bom ser. Esta é a ordem a qual se terá nas

Constituições e Declarações, olhando ao fim que todos pretendemos da glória e louvor

de Deus Nosso Criador e Senhor.” 9

8 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004. Tomo I,

p.05. 9 Ibidem.

19

A Ratio Studiorum

Para os colégios jesuítas, uma série de normas e instruções para

orientar professores, alunos e todos aqueles envolvidos no processo educativo

foi sendo desenvolvida. Alguns projetos pedagógicos foram implantados em

alguns colégios, como o de Messina, que recebeu um plano de estudos de

Annibal du Coudret. Jerônimo Nadal chegou a desenvolver três planos

pedagógicos distintos. Finalmente, em 1599, após passar por várias revisões, é

publicado oficialmente a Ratio Studiorum (plano de estudos) da Companhia de

Jesus, que deveria ser seguido por todos os colégios da ordem ao redor do

mundo e cujo nome completo é Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu.

A pedagogia jesuítica tem características que se fizeram presentes na

vida de Santo Inácio de Loyola. Uma delas é a obediência. Como diz o padre

Serafim Leite: “O princípio da obediência (...) é a força disciplinadora e fecunda

da atividade apostólica da Companhia.”10 Vale lembrar que Santo Inácio, em

sua juventude, fez carreira militar e, como tal, valorizava a obediência e

hierarquia.

Voltando ao ponto; a obediência. Santo Inácio se também inspirava no

Colégio de Santa Bárbara, em Paris, onde estudara junto com seus primeiros

companheiros (Simão Rodrigues, Pedro Fabro e Francisco Xavier). A ordem,

organização e obediência de todos eram marca daquele Colégio, no caminho

que ficou conhecido como modus parisiensis. A contraparte ao modus

parisiensis era o modus italicus, dos colégios italianos de então. Ao contrário

do Colégio de Santa Bárbara, os colégios italianos não prezavam pela total

retidão e cumprimento de regras, sendo aos alunos possível a seleção de

disciplinas e a facultação ao comparecimento às aulas, ficando, assim, as salas

quase desertas11.

10 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004. Tomo I, p.06. 11 SOUSA, Jesus Maria. Os Jesuítas e a Ratio Studiorum: As raízes da formação de professores na

Madeira. In revista Islenha n° 32, p. 26-46, 2003. Disponível em

http://www3.uma.pt/jesussousa/Publicacoes/31OsJesuitaseaRatioStudiorum.PDF

20

Portanto, para Santo Inácio e os futuros jesuítas, seguir regras bem

estabelecidas era o melhor caminho para a construção de um ideal

educacional. Sendo assim, quando a Ratio Studiorum foi estabelecida, em

1599, sob o Geral Claudio Aquaviva, seus ordenamentos deveriam ser

seguidos por todos os Colégios da Companhia, num esforço de organizar e

unificar as práticas pedagógicas jesuíticas.

Cursos

Os cursos nos Colégios da Companhia eram divididos em três

categorias: Letras Humanas, Artes e Teologia.

O curso de Letras Humanas é divido em três grandes partes: Retórica,

Humanidades e Gramática (dividida, por sua vez, em Suprema, Média e

Ínfima). Estudava-se nas Letras Humanas o latim, o grego e o hebraico. Em

Humanidades, estudava-se Poesia e História.

No Brasil, no século XVI, não se estudava grego, mas sim a língua dos

índios, “o grego da terra”.12 A partir da introdução da Ratio Studiorum, com a

reorganização dos estudos, o grego também passou a ser estudado no Brasil,

ao menos com os fundamentos dessa língua.

O curso de Artes ou Ciências Naturais abrangia a Lógica, a Física, a

Metafísica, a Ética e a Matemática e durava aproximadamente três anos. No

Brasil, o curso era dado esporadicamente, já que por vezes esperava-se obter

o número suficiente de alunos para iniciar o triênio.

Já o curso de Teologia era divido em dois, Teologia Moral e Teologia

Especulativa ou Dogmática. A Teologia Moral, que se baseia em estudos de

casos de consciência, foi um curso que sempre existiu nas casas jesuíticas no

Brasil. A Teologia Especulativa, por outro lado, estuda o dogma católico, e no

Brasil era dada primordialmente no Colégio da Bahia. Era um curso em que

12 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

21

não era admitido qualquer estudante, havia uma seleção e só os alunos mais

aptos, os chamados de talento insigne, a estudavam.

22

Capítulo II – Antecedentes da Fundação dos Colégios no Novo Mundo

Os Colégios

A palavra ‘colégio’ tem sua origem no latim collegium, derivada da

palavra collega13. Na Antiga Roma, um collegium era uma associação,

confraria ou corporação de collegae, ou seja, pessoas que possuíam o mesmo

ofício. Esta acepção da palavra chegou até os nossos dias em expressões

como colégio eleitoral, Colégio de Cardeais, etc.

Na Idade Média, os colégios inicialmente não eram instituições voltadas

para o ensino, sendo simplesmente estabelecimentos para hospedagem e

acolhimento de estudantes pobres que seguiriam para os estudos

universitários, mantidos por fundadores piedosos e desejosos em ensinar

teologia.14 Os colégios, assim como as primeiras universidades, são criações

do século XIII (como exemplo temos o Collège de Sorbonne, ligado à

Universidade de Paris, datando de 1257)15.

Foi com esse “espírito” um tanto medieval a criação dos colégios da

Companhia de Jesus – sua finalidade não era, primeiramente, serem centros

de ensino. Segundo nos informa o professor Miguel Monteiro16, o ensino não

era prioridade na Companhia de Jesus em um primeiro momento, já que se

temia que houvesse uma restrição da liberdade de movimento dos jesuítas e

de sua disponibilidade para aceitar futuras missões que o Papa ordenasse, em

qualquer parte do mundo, em razão da natureza da instituição educacional. No

entanto, logo os jesuítas perceberiam a importância dessa instituição,

dedicando-se ao ensino de forma gratuita em seus colégios. Foi por sugestão

13 Verbetes collegium e collega. Saraiva, F. R. dos Santos. Novíssimo Dicionário Latino-Português – Etimológico, prosódico, histórico, geográfico, mitológico, biográfico, etc. Rio de Janeiro, Garnier, 1993. 14 LE GOFF, Jacques e SCHMITT, Jean Claude (org.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Vol. 2. São Paulo: EDUSC, Imprensa Oficial do Estado, 2002. P. 578. 15

Ibidem. 16 MONTEIRO, Miguel. Os Jesuítas e o Ensino Médio. Colecção de Estudos de História – Número 1. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 2011. pp 27-28.

23

de Diego Laínez que Inácio de Loyola levou em maior consideração a questão

do ensino, tanto para os futuros jesuítas quanto para o público leigo.

Sendo assim, pode-se dizer que os embriões para os colégios jesuítas

foram as residências fundadas nas cidades universitárias da Europa nos anos

de 1540. Em 1544, já existiam sete dessas residências no continente

europeu17. As residências serviam para acolher os estudantes jesuítas que

iriam se formar nas universidades, assim como era a função primeira dos

colégios na época medieval, como visto anteriormente.

No ano de 1546, a cidade de Gandia, na Espanha, recebe o primeiro

colégio jesuíta voltado para a formação de novos membros da Companhia de

Jesus. Em 1548 é aberto o primeiro colégio jesuíta propriamente dito, como

instituição de ensino, prioritariamente para os estudantes leigos, na cidade de

Messina, na Sicília. Em 1551, funda-se o Colégio Romano, o qual Inácio

dedicou-se pessoalmente em fazer dele o modelo para os demais colégios da

Companhia.

Com passar dos anos, mais e mais colégios foram sendo abertos pela

Europa. Quando da morte de Inácio, em 1556, estavam estabelecidos no

continente europeu trinta e três colégios, com mais seis já autorizados, mas

que ainda não estavam em funcionamento18.

Em Portugal

Portugal foi o primeiro país a aceitar os jesuítas, antes mesmo da

publicação formal da aprovação da ordem pelo Papa Paulo III, e foi local onde

a Companhia deu muitos frutos. Dom João III, rei de Portugal, queria levar a fé

católica aos confins de seu Império colonial, do Brasil à Índia. Em 1540, Inácio

de Loyola enviou a Portugal dois de seus mais próximos irmãos, o navarro

Francisco Xavier e o português Simão Rodrigues, a pedido do reino português.

O navarro e futuro santo da Igreja Católica partiu no ano seguinte para a Índia,

17 BANGERT, William V. História da Companhia de Jesus. Porto: Apostolado da Imprensa, 1985. 18 Ibidem.

24

chegando até o Japão, enquanto Rodrigues permaneceu na Europa, lançando

as bases da Província de Portugal. O doutor Diogo de Gouveia, português,

responsável pelo Colégio de Santa Bárbara em Paris, indicara ao rei o grupo

de Inácio, já que os considerava aptos para o trabalho missionário.

Contando com o apoio real, o crescimento da Companhia de Jesus no

país foi deveras veloz. Em 1542, foi fundado o Colégio de Jesus, em Coimbra,

com a finalidade de prestar o apoio espiritual necessário para os novos

membros da ordem que frequentavam a Universidade. Inicialmente, os

estudantes frequentam a Universidade de Coimbra para a obtenção do

diploma, mas, com o passar do tempo, o próprio Colégio vai prestar aulas e

distribuir graus acadêmicos. O primeiro colégio em que os jesuítas deram aulas

públicas foi o de Santo Antão, em Lisboa, inaugurado em 1553. No mesmo ano

abrem um colégio em Évora e, posteriormente, assumem o controle da

universidade local (1559).

No Brasil

Em carta ao padre Inácio, datada de 14 de fevereiro de 1554, o padre

Diego Mirón, escrevendo de Lisboa, afirma que faria bem abrir casas e colégios

na Índia e no Brasil, “donde se remediasse la ignorantia de aquellas partes en

los clérigos con la lición de casos de conscientia, y en los demás con las

liciones de grammática y latín.”19

O ensino seria destinado também a padres não-jesuítas, com os

chamados “casos de consciência”, isto é, a teologia moral. As aulas de teologia

dividiam-se em teologia moral, com os supracitados casos de consciência

(atos, virtudes, vícios etc.), e teologia especulativa, que estudava o dogma

católico. Além disso, o estudo das letras (gramática e latim) complementaria o

curso, inclusive para leigos, em um segundo momento. A formação de novos

missionários era o papel primordial dos colégios, já que a demanda para eles

era muita e a Europa não conseguia supri-la. Era necessário formar um grande

19 LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae II (1553-1558).- Cartas e outros documentos. Roma, 1957, p. 25.

25

número de missionários para o objetivo final claro da Companhia e do reino

português: a conversão e catequese dos povos nativos.

O colégio apresenta-se, então, como um meio para um fim: a

evangelização. Seria o local de formação, em princípio, de missionários

dispostos a dura tarefa da conversão do gentio. Como bem lembrou José

Antônio Carvalho, os próprios jesuítas nos dizem, em uma das respostas aos

Capítulos de Gabriel Soares de Sousa contra os padres da Companhia de

Jesus no Brasil20, “que a intenção que teve S.A. em fundar colégios no Brasil

não foi abrir estudos para os filhos dos portugueses, senão criar ministros pera

a conversão”.21

Para complementar o trabalho dos colégios e garantir a catequese, os

jesuítas possuíam também casas e residências. As chamadas ‘casas’ jesuíticas

eram estabelecimentos de ensino elementar, complementares à catequese,

com aulas de ler, escrever e contar. Nelas, o ensino era voltado para ‘los

demás’, como diz Diego Mirón em sua carta, ou seja, para alunos de fora da

Companhia.

Nas aldeias, as casas jesuítas eram chamadas de ‘residências’. Como

nos informa José Antonio de Carvalho22, do ponto de vista arquitetônico e

construtivo, os colégios e as residências são o mesmo tipo de edificação.

Quanto à finalidade, são idênticos salvo pelo fato de que, nos colégios, além

das atribuições que possuía uma residência, havia também as atribuições de

um estabelecimento de ensino secundário.

Tanto as casas como as residências estavam subordinadas aos

colégios, que se tornariam os centros regionais, e deles dependiam de sua

subsistência. Os Superiores das casas e residências respondiam ao Reitor do

Colégio.

20 Os Capítulos foram escritos por um colono e senhor de engenho português do século XVI chamado Gabriel Soares de Sousa, que também fizera um tratado descrevendo o Brasil quinhentista. Dirigido ao monarca Felipe II, os Capítulos tratam sobre as relações entre os colonos e os padres jesuítas, em especial em relação aos indígenas. 21

CARVALHO, José Antonio de. O Colégio e as residências dos jesuítas no Espírito Santo. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1982, p. 22. 22 Ibidem, p. 19-20

26

Existiram três Colégios principais, com dotação do rei de Portugal, no

Brasil: o da Bahia, fundado em 1556, o do Rio de Janeiro (1567) e o de

Pernambuco (1568).

O trabalho nas Aldeias

Apesar de não ser o objetivo de nosso trabalho, trataremos aqui um

pouco sobre a relação dos jesuítas com os índios no Novo Mundo, já que os

projetos jesuíticos para lidarem com os indígenas estão ligados diretamente

aos colégios da Companhia.

Para alcançar a cristianização dos indígenas foi instituído um sistema

chamado aldeamento. Sob a supervisão dos padres, os indígenas eram

forçados a viver e trabalhar em aldeias, tendo assim condições de viverem

como cristãos, evitando que voltassem a praticar seus antigos costumes

“pagãos”. Alguns eram os objetivos dos aldeamentos. Um era propiciar a

inserção do índio na sociedade colonial, com a conversão dos mais velhos e

alfabetização das crianças nas casas e residências. Outro objetivo era garantir

acesso à mão-de-obra indígena, inclusive no tocante à defesa militar. Ainda

podemos citar que, com os aldeamentos, os índios ficavam “protegidos” em

relação à escravização pelos colonos. Os jesuítas defendiam que os índios não

deveriam ser escravizados, mas sim catequizados, para poderem viver como

cristãos na sociedade.

Segundo Serafim Leite23, as aldeias indígenas eram divididas em três

categorias: aldeias do serviço do Colégio, aldeias do serviço real e aldeias de

repartição. Com o tempo, ficaram conhecidas como aldeias do Colégio, aldeias

de El-Rei ou da repartição, e aldeias simplesmente, ou missões, afastadas das

cidades e vilas. Nas aldeias do Colégio e da repartição ficavam os índios livres

ou “forros”, em contraponto aos índios “resgatados” (escravizados). Nessas

aldeias, os jesuítas possuíam residências. Como visto anteriormente, a

residência difere-se do colégio por não dispor de cursos de ensino secundário.

23 Ibidem, tomo IV, p. 37.

27

No que é hoje o estado do Rio de Janeiro, existiam quatro aldeias, ligadas ao

Colégio do Rio de Janeiro, onde estavam presentes os padres jesuítas. Eram

elas: São Lourenço dos Índios, São Barnabé, São Francisco Xavier e São

Pedro do Cabo Frio, respectivamente hoje os municípios de Niterói, Itaboraí,

Itaguaí e São Pedro d’Aldeia. Formavam as três primeiras aldeias um cinturão

ao redor da baía da Guanabara, também com o propósito de defesa da cidade

do Rio de Janeiro.

São Lourenço dos Índios e São Barnabé foram aldeamentos criados já

no século XVI; São Pedro do Cabo Frio e São Francisco Xavier tiveram suas

construções no século XVII, respectivamente em 1617 e 1628.

28

Capítulo III – Fundação do Colégio do Rio de Janeiro e o Colégio no século XVI

A história do Colégio do Rio de Janeiro se confunde com a história da

própria cidade. A começar pelos seus fundadores jesuítas – o padre Manuel da

Nóbrega e o então irmão José de Anchieta tiveram papéis fundamentais tanto

na fundação do colégio quanto na da cidade.

Já em 1502 ou 150424, a expedição do navegador português Gonçalo

Coelho, que percorreu o litoral da terra recém-descoberta por Pedro Álvares

Cabral, ao chegar à entrada da baía de Guanabara no primeiro mês do ano,

teria dado o nome de Rio de Janeiro àquela localidade. A cidade, como

veremos, foi fundada mais de cinquenta anos depois, em 1565, por Estácio de

Sá, “sobrinho”25 do governador-geral Mem de Sá, sendo batizada com o nome

de São Sebastião, em homenagem ao santo padroeiro do rei de Portugal, D.

Sebastião. Já o Colégio foi fundado em 1567, ano em que a povoação da

cidade fundada apenas dois anos antes fora transferida do terreno entre o

morro Pão de Açúcar e o outro que ficou conhecido como Cara de Cão para o

alto do morro que a partir do século XIX ganharia a denominação Morro do

Castelo26. Só que, mesmo antes da fundação da cidade do Rio de Janeiro,

padres jesuítas estiveram nos arredores da Baía da Guanabara. O padre

Manuel da Nóbrega e o padre Francisco Pires passaram por aquelas terras em

fins de 1552 ou início do ano seguinte, segundo nos aponta Serafim Leite27.

O padre Manuel da Nóbrega havia chegado ao Brasil em 1549 aos 32

anos, liderando um grupo com mais cinco jesuítas, e junto com o primeiro

governador-geral do Brasil, Tomé de Souza. Coube a Nóbrega e aos demais

jesuítas, então, a missão da catequização e conversão dos indígenas. Mais do

que isso, o esforço concentrava-se, também, na construção de novos homens

24 DELGADO DE CARVALHO (1988, p. 23) menciona o ano de 1504; já Enders (2015, p. 11), citando Varnhagen, afirma que a expedição de Gonçalo Coelho teria ocorrido em 1502. 25 Estácio de Sá era filho de Diogo de Sá, primo do pai de Mem de Sá. Ser considerado sobrinho de Mem de Sá era, segundo o Dicionário do Brasil colonial, p. 212, “uma acepção quinhentista de sobrinho (descendente direto ou filho de um primo germano ou coirmão). ” 26 Para uma discussão sobre a denominação “Morro do Castelo”, ver R.IHGB Ano 171, n. 449, p. 239-264, out. /dez. 2010. 27 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo I, livro 4º, página 127. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

29

na colônia, com apoio espiritual e moral. Portugal havia sido obrigado a uma

mudança de estratégia em relação ao Brasil: precisava agora colonizar a nova

terra frente à ameaça de piratas e corsários que não só atacavam as

embarcações portuguesas no Atlântico Sul, mas também punham em jogo as

reivindicações e pretensões portuguesas em suas tratativas na América,

comerciando livremente com os indígenas. Assim, a chegada dos jesuítas e de

vários futuros colonos junto com o primeiro governador-geral do Brasil era parte

dessa nova cartada do reino português. O grupo dos primeiros jesuítas que

chegaram ao Brasil era formado, portanto, além de Nóbrega, pelos padres

João de Azpilcueta, perito linguístico; Leonardo Nunes; António Pires, arquiteto;

e os irmãos Diogo Jácome, que era carpinteiro, e Vicente Rodrigues, mestre-

escola.28

Os primeiros jesuítas no Brasil acompanham a fundação da cidade de

Salvador, cidade essa que será a sede do Governo Geral do Brasil e das

principais instituições civis e eclesiásticas da colônia.

Quando da chegada do segundo governador-geral à cidade de Salvador,

em 1553, uma nova leva de jesuítas vinha para as terras brasileiras. Dentre

eles estava o então noviço José de Anchieta.

Em 1556 era fundado o Colégio de Jesus da Bahia, com os estudos

secundários e de formação para novos membros da Companhia. Este foi o

primeiro colégio da Companhia de Jesus no Brasil29 e se tornou o Colégio

Máximo, retendo em si a exclusividade da formação dos padres jesuítas na

colônia portuguesa.

As batalhas pela fundação da cidade do Rio de Janeiro

Em 1556, o rei de Portugal nomeia o terceiro governador-geral do Brasil,

Mem de Sá, que chega às terras americanas no final do ano seguinte. Desde

28

BANGERT, William V. História da Companhia de Jesus. Porto: Apostolado da Imprensa, 1985. p. 51 29 Anteriormente, em 1550, com a chegada de meninos órfãos de Lisboa à Salvador, Manuel de Nóbrega havia fundado o Colégio dos Meninos de Jesus, que teve vida efêmera, sendo extinto em 1556.

30

dois anos antes, no entanto, a presença francesa se faz constante no Rio de

Janeiro. Nicolas Durand de Villegagnon, cavaleiro de Malta, havia chegado

com sua expedição à baía de Guanabara em 10 de novembro de 1555.

Estabeleceu-se numa ilha, a qual os indígenas chamavam de Serigipe ou

Sergipe, ele a rebatizou de Coligny e que hoje possui seu nome (Ilha de

Villegagnon), onde fundou um forte (Forte de Coligny). Sua intenção era

estabelecer uma Henriville, em homenagem ao rei da França Henrique II, que

patrocinou a expedição de Villegagnon.

Mem de Sá deveria tomar o controle das terras do Rio de Janeiro e

expulsar os franceses da região. A missão dos jesuítas agora era também

evitar que a heresia dos calvinistas franceses, que haviam chegado na colônia

(denominada França Antártica) em 1557, se enraizasse no Novo Mundo. Os

franceses aliaram-se aos índios tamoios, inimigos dos portugueses. Os padres

da Companhia acompanhavam expedições contra os tamoios, conseguindo em

vezes dividir os inimigos, pondo uns contra os outros. O padre Nóbrega

empenhou-se nesse movimento, sendo considerado uma influência decisiva na

fundação da cidade do Rio de Janeiro.

Em 1560, os portugueses atacam os franceses e seus aliados, os índios

tamoios, conseguindo tomar o forte Coligny. Serafim Leite chega a dizer que o

papel dos jesuítas na tomada da Ilha de Villegaignon esteve na atitude de

Manuel da Nóbrega. Os capitães da armada portuguesa enviada para tomar a

ilha estavam receosos em virtude da topografia e do tipo de construção

utilizado no forte Coligny. O governador Mem de Sá com o apoio de Nóbrega

conseguiu convencer os capitães opostos ao ataque do contrário. Com a

tomada do forte, tamoios e franceses se entrincheiraram pelas terras do Rio de

Janeiro, fortificando a região do Morro da Glória.

No forte, segundo Nóbrega, se encontravam cerca de 60 franceses e

800 tamoios. A armada portuguesa, sob o comando de Bartolomeu

Vasconcelos da Cunha, possuía 26 navios e mais de dois mil homens. Em 15

de março de 1560, o forte Coligny foi tomado pelos portugueses. Villegaignon

encontrava-se na França durante este período.

31

Naquela época, ocorria uma guerra indígena contra os portugueses e

que ficou conhecida como Confederação dos Tamoios (1555-1567). O padre

Manuel da Nóbrega tinha como plano separar os índios tamoios da costa dos

do Rio e confederá-los com os tupis de Piratininga e de São Vicente. Com o

enfraquecimento da Confederação dos Tamoios, seria mais fácil derrotá-los e

prosseguir para a fundação de uma cidade.

Nóbrega desejou um armistício com os tamoios, para isso propôs ser

refém daqueles índios para garantir o acordo. Esta proposta foi aceita pelos

portugueses, e partiu Nóbrega junto com o Irmão José de Anchieta,

conhecedor da língua dos índios. Em 18 de abril de 1563, saíram de São

Vicente em direção a Iperoig, onde se encontrava o líder tamoio Cunhambebe,

chegando àquela localidade no dia 5 de maio. A certo ponto, Nóbrega teve que

deixar Iperoig para São Vicente, ficando o Irmão Anchieta com os índios. Após

diversas negociações, os padres jesuítas conseguem finalmente seu objetivo.

José de Anchieta permanece ainda em Iperoig como refém, para garantir o

acordo, entre julho e setembro de 1563. Anchieta chegou à fortaleza de

Bertioga, em 22 de setembro daquele mesmo ano, com o acordo com os índios

garantido.

Este acordo permite a reorganização das tropas portuguesas. Em 1563,

Anchieta obtém a informação de que todos os franceses da região do Rio de

Janeiro eram protestantes e que perseguiam e matavam a quem celebrasse

missa.30 Se fazia necessário, urgentemente, a expulsão das heresias e dos

hereges das terras americanas. Naquele ano voltava ao Brasil Estácio de Sá.

No dia primeiro de março de 1565, estabeleceu-se o capitão-mor Estácio

de Sá em terra situada entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar. Os

soldados ali armaram tendas e construíram casas de palha. Estava assim

fundada a cidade do Rio de Janeiro, na presença do padre Manuel da Nóbrega

e de José de Anchieta.

O padre Manuel da Nóbrega resolveu enviar à Bahia o Irmão Anchieta

para que ele pudesse ser ordenado padre. Anchieta partiu em 31 de março de

30 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

32

1565. Para assegurar sua posição e as conquistas recentes escreve Nóbrega a

Portugal pedindo mais irmãos para a Companhia, além de uma poderosa

armada. Pedidos semelhantes fizeram o governador-geral Mem de Sá. O

receio de todos é que viesse ajuda da França para os franceses que ainda se

encontravam em terras americanas.

Chega a Salvador, no dia 23 de agosto de 1566, a tão esperada armada.

Nela vieram também o Padre Visitador Inácio de Azevedo, outros três padres e

quatro irmãos. Em 18 de janeiro de 1567, a armada, fortalecida por três

caravelões, chega ao Rio de Janeiro. Estavam nos navios o bispo Dom Pedro

Leitão e seis jesuítas, Inácio de Azevedo, Luiz da Grã, José de Anchieta, recém

ordenado padre, Antônio Rodrigues, Baltazar Fernandes e Antônio da Rocha31.

Os tamoios são finalmente derrotados, mas, a 20 de fevereiro de 1567,

sucumbe Estácio de Sá aos ferimentos recebidos um mês antes, em uma

batalha no Morro da Glória. Fora atingido no rosto por uma flecha, que estava

envenenada.

Em primeiro de março de 1567, o governador-geral Mem de Sá transfere

a cidade que seu “sobrinho” fundara para outro local, o morro que ficaria

conhecido, anos mais tarde, como o Morro do Castelo.

Na empreitada da conquista e fundação do Rio de Janeiro, destaca

Serafim Leite três jesuítas: Gonçalo de Oliveira, Capelão Militar, companheiro

de Estácio de Sá e assistente dos índios, e os já citados José de Anchieta e, é

claro, Manuel da Nóbrega. “Nóbrega foi o verdadeiro animador da gloriosa

empresa”.32

É naquele ano também que é dado o início para a fundação do Colégio

de Jesus da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, que iniciará suas

atividades de ensino em 1573.

Mem de Sá era muito estimado pelos jesuítas, e o mesmo pode-se falar

a respeito do terceiro governador-geral do Brasil em relação aos inacianos.

Mem de Sá conhecia e teria feito os Exercícios Espirituais. E é atribuída a José

31 Ibidem. 32 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

33

de Anchieta a escrita de uma epopeia em homenagem ao terceiro governador-

geral do Brasil, intitulada De gestis Mendi de Saa ("A saga de Mem de Sá")33.

A Igreja e o Colégio dos Jesuítas

A ideia da fundação de um colégio no Rio de Janeiro precede a

fundação da cidade. Pelo menos desde 1561 já estava claro o pensamento em

fundar colégios na costa do Brasil e, no caso, também na capitania de São

Vicente. Em carta ao Geral Diego Laínez, em setembro daquele ano, o irmão

João Fernandes informa que o rei d. Sebastião quer fundar e dotar (financiar)

quatro colégios, na Bahia (Salvador), em Ilhéus, Pernambuco e São Vicente34.

Destes, sabemos que somente três foram fundados – o de Ilhéus não chegou a

existir – e o de São Vicente acabou sendo o Colégio do Rio de Janeiro.

Em janeiro de 1565, ano de fundação da cidade do Rio de Janeiro, o rei

de Portugal faz uma provisão para a fundação de um colégio na capitania de

São Vicente “ou outro lugar nessa costa”

“(...) em que se ensinase a doutrina christãa, e de que os religiosos delle se

podessem commonicar às outras Capitanias e povoações a ellas propínquas até onde

fossem enviados os da Capitania da Bahia, para assy se ajudarem na dita obra hun[s]

aos outros: vos encomendo muito que com o Padre Provincial da dita Companhia

nessas partes, ou em sua ausência com os Padres por elle para isso deputados,

pratiqueis e vejaes se se deve fazer o dito collegio na dita Capitania de São Vicente e

estará nella mais acommodado para o dito efeyto da conversão dos gentios como me

disserâo, ou em alguma outra da dita costa.”35

Vemos, mais uma vez, que a construção de um colégio na capitania de

São Vicente estava ligada primordialmente à formação de padres jesuítas para

33 POSSEBON, Fabricio. O épico De Gestis Mendi de Saa (A saga de Mem de Sá), de José de Anchieta. Tese de Doutorado. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, 2007. 34 LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae III (1558-1563). Roma: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1958, p. 433 35 LEITE, Serafim. Monumenta Brasiliae IV (1563-1568). Roma: Monumenta Historica Societatis Iesu, 1960, p. 185

34

a conversão do gentio e não para o ensino dos filhos dos colonos portugueses;

o que, também, não deixará de acontecer, apesar de, como citado, não ser o

objetivo principal dessa empreitada.

Finalmente, em 1567, Inácio de Azevedo, Padre Visitador, decidiu, em

reunião com outros padres que ficaram em São Vicente, que o novo Colégio a

ser fundado e que ficaria responsável pelas Capitanias do sul da colônia fosse

estabelecido na cidade do Rio de Janeiro. A este Colégio ficariam

subordinadas as casas das Capitanias do Espírito Santo e de São Vicente.

Dois anos antes, em 1565, após o estabelecimento da cidade do Rio de

Janeiro, o padre Gonçalo de Oliveira fundou “uma casa-igreja da evocação de

São Sebastião”. Feita de palha, a casa era frágil e algumas vezes as flechas

dos inimigos tamoios a perfuravam. Ali Gonçalo de Oliveira celebrou missa,

recebeu confissões e administrou a comunhão aos combatentes.36

Depois da mudança da cidade para o Morro do Castelo, dois anos mais

tarde, a igreja de São Sebastião foi refundada, construída, agora, de taipa. Em

1570, Mem de Sá menciona ter mandado construir uma igreja para os jesuítas

e outra, a Sé da cidade. Diz Mem de Sá: “fiz a igreja dos Padres de Jesus,

onde agora resibidem, telhada e bem concertada; e a Sé de três naves,

também telhada e bem concertada”.37

O Visitador Cristóvão de Gouvêa, em 1585, deu ordem para que se

fizesse uma nova igreja, mais ampla do que a anterior e capaz de atender a

população da cidade que crescia. Após a canonização de Santo Inácio, em

1622, a igreja passa à invocação do Santo fundador da Companhia de Jesus38.

36 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004. 37

NONATO, José Antonio; SANTOS, Nubia Melhem. Era uma vez o Morro do Castelo. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000. 38 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

35

As obras para a construção do Colégio do Rio de Janeiro

Os Colégios da Companhia deveriam possuir, além da igreja principal,

capelas internas, salas de aula, quartos de dormir, oficinas, copa, cozinha,

refeitório, e ainda biblioteca, botica e enfermaria. Estas últimas, mesmo sendo

planejadas para utilização dos padres e alunos do Colégio, acabavam por

servir a toda a comunidade.39 Com o Colégio do Rio a situação não foi

diferente.

O primeiro Reitor do Colégio do Rio de Janeiro foi o Padre Manuel da

Nóbrega. Em 24 de julho de 1567, vindos de São Vicente, chegavam ao Rio

alguns padres, dentre eles Inácio de Azevedo, Padre Visitador, e Manuel da

Nóbrega, que vinha para assumir o Reitorado do Colégio. Em agosto do

mesmo ano iniciou-se a construção de um edifício, junto à Igreja de São

Sebastião, onde morariam os padres e que serviria para o futuro Colégio.

Em 11 de janeiro de 1568, o Rei de Portugal publicava, finalmente, a

provisão sobre a dotação real do Colégio do Rio de Janeiro.

Apesar da dotação real, diz Serafim Leite que as obras da construção do

Colégio andaram com dificuldade, sendo que o Rei Dom Sebastião teve que

expedir dois alvarás, um dirigido ao Governador do Rio e outro ao Ouvidor-

Geral, garantindo aos padres jesuítas

“toda a pedra, cal, madeira, e mais achegas que forem necessárias para as

obras dos Colégios da Companhia (...) para servirem nas ditas obras, todos os

pedreiros, carpinteiros, caboqueiros, carreiros e embarcações e servidores e quaisquer

outros oficiais e coisas que para elas forem necessárias”.40

Em 1584, foi iniciado um projeto para a construção de um outro edifício,

aproveitando o possível do antigo, que já se encontrava desgastado pela ação

do tempo.

39 BARONCINI, Claudia Nóbrega. Subsídios para o estudo do Real Colégio das Artes e Ofícios da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: o caso da Nova Igreja. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p. 40. 40 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

36

O padre Fernão Cardim, em seu Tratados da terra e gente do Brasil, nos

traz alguns elementos para podermos verificar sobre a construção do Colégio

do Rio de Janeiro. Em passagem pela cidade no Natal de 1584, diz o padre

que o prédio do Colégio se comparava ao do de Coimbra:

“Os padres têm aqui o melhor sítio da cidade. Têm grande vista com tôda esta

enseada defronte das janellas: têm começado o edifício novo, e têm já 13 cubiculos de

pedra e cal que não dão vantagem aos de Coimbra, antes lha levam na bôa vista. São

forrados de cedro, a igreja é pequena, de taipa velha. Agora se começa a nova de

pedra e cal, todavia tem bons ornamentos com uma custódia de prata dourada”.41

Em Informação da Província do Brasil, de 1585, José de Anchieta nos

traz as suas impressões sobre o Colégio:

“Aqui temos o Colégio, está bem situado em lugar eminente, de bom prospeto

ao mar, tem feito um quarto de edifício e parte do outro; os cubículos que estão feitos

são 10 a 12 assobradados e forrados em madeira de cedro, a igreja é pequena e velha,

e as oficinas, ainda que estão bem acomodadas, são mui velhas. Sempre se faz algo

no edifício, ainda que devagar por não haver tanta comodidade de cal e oficiais, e por

não pagarem 166 ducados que El Rei D. Sebastião lhe deu de esmolas para as obras

(...)”42

Um outro documento quinhentista, intitulado “Historia de la fundación del

Collegio del Rio de Henero y sus residencias”, de autoria anônima43, também

nos traz informações importantes acerca dos primeiros anos das atividades

jesuíticas no Rio de Janeiro.

As obras no Colégio eram constantes. O número de quartos do Colégio

foi aumentando com o tempo. Segundo Serafim Leite (p. 139), a Carta Ânua44

41 CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. 2ª edição. São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1939, p. 308 42 ANCHIETA, José de. Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte: Itatiaia. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p. 428 43 Sobre a autoria dessa obra, diz Serafim Leite: “Na Biblioteca Nacional de Lisboa, há uma carta de Quirício Caxa, de dezembro de 1573 (...), onde se descreve a arribada dos dois irmãos a Pernambuco (...) com as mesmas palavras [grifo do autor]. Portanto, ou os autores da Historia e da Carta tiveram a mesma fonte, ou o autor da Historia copiou neste passo Caxa, ou Caxa é o autor da Historia.” 44 Cartas ânuas, ou, simplesmente, Ânuas, eram cartas que os padres jesuítas enviavam para seus superiores e correspondentes na Europa sobre a situação nas suas missões, aldeamentos e colégios.

37

de 1601-1602 contém a informação de que foram construídos naquela época

alguns quartos.

Os estudos no Colégio no século XVI

Um colégio, como estabelecimento de ensino que é, deve possuir

professores, alunos e, é claro, aulas. Então, nada melhor do que tratarmos

sobre os estudos que foram realizados naquela instituição.

Os professores eram membros da Companhia de Jesus, geralmente

formados em Coimbra ou Évora. Os alunos, como vimos, não só eram os

candidatos a ingressar na Companhia mas também os filhos dos colonos

portugueses e religiosos de outras denominações. Existiam os alunos “de

casa”, isto é, alunos internos que moravam no colégio e os alunos “de fora”, ou

seja, que não pertenciam à Companhia e não moravam no colégio.

A primeira turma a ter aulas no Colégio do Rio de Janeiro iniciou-se no

ano de 1573. No calendário escolar, as aulas tinham início, geralmente, em 3

de fevereiro, dia de São Braz45. As férias, os estudantes as costumavam

passar em uma ilha defronte ao Colégio (Serafim Leite suspeita que seja a

atual Ilha Fiscal ou Ilha das Cobras). Em finais do século XVI, com a aquisição

da Fazenda de São Cristóvão, os estudantes do Colégio passaram a desfrutar

as férias anuais e os feriados semanais na Quinta de mesmo nome da fazenda.

O primeiro mestre-escola do Colégio Rio de Janeiro foi o Irmão Custódio

Pires, que começou as atividades do Colégio com o curso elementar de ler e

escrever e contar. Natural de Almeirim (Portugal), Custódio Pires, depois de 60

anos na Companhia, faleceu no Rio, aos 82 anos de idade, em 16 de fevereiro

de 1630.46

Em 1574, foi formada a primeira classe de Humanidades. O lente, isto

é, o professor responsável, foi o Padre Antônio Ferreira, este natural da Ilha da

45

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004. 46 LEITE, Serafim. Novas cartas jesuíticas – de Nóbrega a Vieira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940, p. 202.

38

Madeira, formado em Humanidades e Artes em Évora. A turma era composta

por 19 alunos, cinco internos e quatorze externos.47

José de Anchieta, em Breve Informação do Brasil, de 1584, diz, a

respeito do Colégio do Rio de Janeiro:

“O segundo colégio é o do Rio de Janeiro, que se fundou e dotou para

cinquenta por el-rei D. Sebastião no ano de 1567. Nele sempre houve escola de ler,

escrever e algarismo, uma classe de latim e lição de casos de consciência para toda

sorte de gente e para aqui, como dito é, se mudou o primeiro colégio que houve em S.

Paulo e S. Vicente: a este colégio estão subordinadas as casas de S. Vicente e S.

Paulo de Piratininga e a do Espírito Santo”.48

Assim, vemos que o Colégio fora construído, inicialmente, para o

alojamento de 50 padres da Companhia, além de ter aulas de ler, escrever e

algarismo, latim e casos de consciência (teologia moral), cursos abertos para a

população.

Com o aumento e o desenvolvimento da cidade, também os estudos no

Colégio progrediam. Segundo as Ânuas, o número de alunos também

aumentava, como por exemplo em 159749. No ano seguinte iniciava-se uma

nova turma de Humanidades.50

As Fazendas e engenhos dos jesuítas

Fundados os colégios, garantir sua subsistência era primordial. O

esforço da evangelização e catequese do gentio demandava um grande

suporte econômico, nem de longe suprido pelas doações e esmolas da

população à Companhia. Era preciso muito mais, além do que, se ficassem a

47 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004. Tomo I, p. 139. 48 ANCHIETA, José de. Textos Históricos – pesquisa, introdução e notas de Hélio Abranches Viotti, S.J. Obras Completas, 9º volume. São Paulo: Edições Loyola, 1989. p. 57 49

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004. Tomo I, p. 139. 50 Ibidem.

39

“andar nesse peditório”, como diz Serafim Leite, ou seja, a pedir esmolas,

afastando-se de suas atividades primordiais, os padres jesuítas poderiam

comprometer todo o projeto missionário no Brasil.51

A dotação real poderia ser uma saída. O Rei de Portugal dotou três

colégios no Brasil: o da Bahia, do Rio e de Janeiro e o de Pernambuco. Dom

Sebastião, com a “redízima de todos os dízimos e direitos que tenho e me

pertencem e ao diante me pertencerem, nas ditas partes do Brasil(...)”52,

deixou, assim, sua contribuição para o desenvolvimento do trabalho realizado

pelos padres. No entanto, esta dotação real não foi suficiente para resolver a

situação econômica dos jesuítas na colônia.

A saída foi a Companhia de Jesus adquirir terras. Através de sesmarias,

doações, heranças, compras e trocas, constituiu-se grandes propriedades de

terra de onde sairia o sustento de seus Colégios, casas e residências. Esses

latifúndios eram nominalmente propriedade dos colégios. Os colégios se

tornaram, então, o único estabelecimento da Companhia de Jesus a que era

permitido ter bens materiais, não interferindo, por isso, na questão do voto de

pobreza dos membros daquela instituição.

Os seguintes engenhos e fazendas listados abaixo possuíram os

jesuítas no que é hoje o estado do Rio de Janeiro:

- Sesmaria de Iguaçu – doada por Estácio de Sá em 1º de julho de 1565,

era formada por dois engenhos e uma fazenda: Engenho Velho, Engenho Novo

e a fazenda de São Cristóvão.

A sesmaria de Iguaçu correspondia a um grande território. Segundo a

descrição de Mauricio de Abreu (apud Cesar Augusto Tovar Silva53), a

sesmaria se estendia do antigo rio Iguaçu, atual rio Catumbi, até Inhaúma,

onde existia uma aldeia indígena abandonada. Abrangia a área dos atuais

bairros da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro.

51 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004. Tomo I, p.41 52

Ibidem, p. 43. 53 SILVA, Cesar Augusto Tovar. Os jesuítas e o Rio de Janeiro: a saga dos jesuítas na construção da história do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2015, p. 49.

40

Em Iguaçu foi estabelecido o primeiro aldeamento do Rio de Janeiro, a

aldeia de Gebiracica, formada pelos índios temiminós que haviam lutado ao

lado dos portugueses e contra os franceses e índios tamoios nas batalhas para

o controle da Guanabara. Este núcleo indígena era também conhecido como

Aldeia de Martinho, em alusão ao líder indígena Araribóia, que depois de

batizado mudara seu nome para Martim Afonso. Depois de alguns anos, a

aldeia seria transferida para o outro lado da Baía de Guanabara, onde ficaria

conhecida como São Lourenço dos Índios.

O engenho chamado de velho só recebeu este nome após a construção

do Engenho Novo e abrangia a área dos atuais bairros do Maracanã, Tijuca,

Andaraí e Vila Isabel. Era o engenho mais próximo da cidade. Em 1707 se

inicia o funcionamento do Engenho Novo, construído para aumentar a

produção que diminuíra em função da redução das áreas destinadas aos

canaviais, que tinham sido arrendadas pelos padres da Companhia.

Já a Fazenda de São Cristóvão fora construída numa área formada por

ilhas e manguezais, cujo acesso era feito por mar ou por uma ponte. Lá, os

padres priorizavam a plantação de frutas e legumes, o corte de madeiras e a

produção de cal.54

- Terras e Fazenda de Macacu – doação de Miguel de Moura, cavaleiro

e secretário de El-Rei, feita em 18 de outubro de 1571. Também era conhecida

como Fazenda da Papucaia e ficava localizada próximo às terras da Aldeia de

São Barnabé. Depois de tentarem a policultura e criação de gado, os jesuítas

fixaram-se na produção de mandioca nas terras da fazenda, no que obtiveram

bastante sucesso.

- Fazenda de São Francisco Xavier – nas cercanias da Aldeia de São

Lourenço dos Índios.

Também conhecida como Fazenda do Saco, era uma propriedade de

pequena extensão, entre as praias de São Francisco e Charitas, na hoje cidade

de Niterói. Doada aos padres pelos descendentes do capitão Mateus Antunes

54 AMANTINO, Marcia apud SILVA, Cesar Augusto Tovar. Os jesuítas e o Rio de Janeiro: a saga dos jesuítas na construção da história do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2015, p. 53.

41

na segunda metade do século XVI. Lá, criava-se gado e madeira de corte, que

abasteceram por anos o Colégio do Rio de Janeiro.

- Fazenda de Santa Cruz – doação de Marquesa Ferreira e de João

Adorno e Catarina Monteiro, em 1589 e 1590. No século XVII, será juntada a

novas terras por compra, constituindo 10 léguas quadradas de tamanho.55 A

Fazenda de Santa Cruz se estendia em terras hoje pertencentes aos

municípios do Rio de Janeiro, Barra do Piraí, Itaguaí, Mendes, Nova Iguaçu,

Paracambi, Engenheiro Paulo de Frontin, Piraí, Rio Claro, Vassouras e Volta

Redonda.56

Com uma localização estratégica, permitia o acesso à capitania de São

Vicente, assim como para a região das Minas Gerais, no século XVIII.

Também, em sua faixa litorânea, paravam navios que vinham de Buenos Aires

com a prata extraída em Potosí para comprar gado, que era trocado pelo

valioso metal.

A criação de gado, aliás, era a característica principal da fazenda, que

ficou conhecida como “Curral dos Padres”. O gado criado lá abastecia não

apenas o Colégio e outras propriedades jesuítas, mas também ao povo da

cidade.

- Fazenda de Macaé – adquirida através de doação de Martim Correia,

em 1630. Localizada entre as fazendas de Campos dos Goytacazes e Campos

Novos, a fazenda de Macaé, no início do século XVIII, se voltou à atividade

açucareira, já que fora construído pelos padres dois engenhos, um próximo ao

rio Macaé e outro próximo à lagoa de Imboassica.57 Além da produção de

açúcar, na fazenda também era feita a extração de madeira, produção de

farinha de mandioca e criação de gado, servindo como ‘descanso’ deste último

vindo da Fazenda de Campos dos Goytacazes em direção ao Rio de Janeiro.58

55 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004. Tomo I, p.149. 56 ENGEMANN, Carlos apud SILVA, Cesar Augusto Tovar. Os jesuítas e o Rio de Janeiro: a saga dos jesuítas na construção da história do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2015. p. 61 57

SILVA, Cesar Augusto Tovar. Os jesuítas e o Rio de Janeiro: a saga dos jesuítas na construção da história do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2015. p. 93 58 Ibidem.

42

- Fazenda do Colégio de Campos dos Goytacazes – Das três fazendas

dos jesuítas localizadas ao norte do aldeamento de São Pedro de Cabo Frio

(Macaé, Santo Inácio de Campos Novos e a própria fazenda do Colégio) era a

maior e mais importante. Por pertencer ao Colégio, ficou conhecida como

“fazenda do Colégio”, mas seu nome era Fazenda de Santo Inácio e Nossa

Senhora da Conceição. Além da criação de gado, outra atividade bastante

importante na Fazenda foi a produção de açúcar, tornando-se a maior

produtora dentre todas as fazendas jesuítas no Brasil e a fonte principal de

receita do Colégio do Rio de Janeiro no século XVIII.

- Fazenda de Santo Inácio de Campos Novos – localizada próxima à

Aldeia de São Pedro de Cabo Frio. Foi fundada em 1648, e ficou especializada

na criação de gado e extração de madeira. Para diferenciar-se da fazenda que

já exploravam em Campos dos Goytacazes, os jesuítas deram-na o nome de

Campos Novos e a consagraram a Santo Inácio.59

59 Ibidem, p. 90.

43

Capítulo IV – O Colégio do Rio de Janeiro nos séculos XVII e XVIII

Nesta cidade do Rio de Janeiro, o rei de Portugal, dom Sebastião, como fizera

em outras partes do Brasil, fundou um Colégio Jesuíta. Essa instituição abriga, em

geral, 50 jesuítas, se incluirmos aqueles religiosos que estão de passagem pela

residência. No estabelecimento são ensinadas a teologia moral e a língua latina, até a

primeira classe, e a arte de ler e escrever, às crianças menores. Além desses serviços

que prestam aos portugueses, os jesuítas mantêm duas grandes aldeias de brasileiros,

onde, sob seus cuidados, estão dois mil homens ou mais, que os religiosos procuram

converter e batizar.60

Esta passagem, retirada da obra Histoire du Nouveau Monde, publicada

em 1625, por Joannes Laet, é baseada no relato do viajante holandês Dierick

Ruiters, que passou por terras brasileiras em 1618. Falando sobre os

brasileiros, isto é, os indígenas, diz-nos sobre as duas grandes aldeias que os

padres tinham à época, as quais seriam a Aldeia de São Lourenço dos Índios

(Niterói) e a Aldeia de São Barnabé (Itaboraí). A passagem confirma também

as informações que traz o padre Serafim Leite, através dos relatos do padre

António Matos, de 1619, sobre o ensino da Companhia de Jesus no Colégio do

Rio de Janeiro. Era dado o curso de Humanidades, divididos em aulas de latim,

e de ler, escrever e contar, e o curso de Teologia Moral (os casos de

consciência).

Segundo a carta ânua escrita em 21 de dezembro de 1621 e que

relatava os acontecidos no ano anterior, no Colégio residiam 27 membros da

Companhia, 12 padres e 15 irmãos. À época, o Colégio mantinha três

residências (em São Lourenço dos Índios, São Barnabé e São Pedro do Cabo

Frio). Foi dito ainda que os padres visitavam a residência em São Lourenço a

cada quinze dias e, nas outras residências, moravam quatro religiosos, dois em

cada casa. Outra informação que traz a carta é a respeito das comemorações

60 Segundo Jean Marcel Carvalho França, em Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial (2000), p. 328-329, o texto está na obra Histoire du Nouveau Monde, de 1625, escrito por Joannes Laet, que aproveitou para o conteúdo sobre o Rio de Janeiro o relato do viajante Dierick Ruiters, que esteve na cidade em 1618.

44

da beatificação de Francisco Xavier. Diz-se que o Colégio “parecia em chamas,

tamanha era a quantidade de luzes que o adornavam” e que a cidade estava

em festa.61

Os estudos no Colégio nos séculos XVII e XVIII

Com a publicação da versão definitiva da Ratio Studiorum, em 1599,

houve uma reorganização os estudos nos colégios da Companhia de Jesus

Brasil. Antes do surgimento da Ratio, os estudos nos colégios do Brasil

acompanhavam os que eram dados no Colégio de Évora.

Além das aulas que vimos anteriormente, o relato do padre António

Matos, como descrito por Serafim Leite62, afirma que eram dadas aulas de

“bons costumes” e que os estudantes também deveriam se confessar

mensalmente.

Com o aumento do número de estudantes também foram feitas

modificações nos cursos. Sobre o curso de Humanidades, em 1639, ele foi

dividido em dois, Rudimentos e Superior. Dois anos antes da expulsão da

Companhia de Jesus do reino de Portugal, em 1757, o curso de Humanidades

possuía, como disciplinas, Português, Rudimentos, duas classes de Gramática

e uma de Retórica.

A grande novidade nos estudos no Colégio do Rio de Janeiro nos

séculos XVII e XVIII foi o curso de Artes, também chamado de Ciências

Naturais, ou, ainda, de Filosofia. Esse curso, a primeira Faculdade de Filosofia

do Rio de Janeiro63, foi iniciado pela primeira vez no Colégio do Rio entre os

anos de 1638 e 1640, e concluído por nove alunos da Companhia, além dos

externos64. À colação de grau dos alunos assistiu o Governador Salvador

61 Carta ânua escrita pelo padre Luís Baralho de Araújo in França, Jean Marcel de Carvalho. (org). Outras visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos, 1582-1808. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2000, p. 43-47. 62

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004. 63 Ibidem. 64 Ibidem.

45

Correia de Sá e Benevides e pessoas de alto gabarito na sociedade. Em 1649,

o Curso contava com 21 alunos da Companhia, fora os externos.65

Durante um período, como os jesuítas da Bahia estavam a construir uma

grande igreja (Catedral de Salvador), foram divididos os cursos entre Bahia e

Rio de Janeiro a fim de economizar os custos. O Rio de Janeiro, então, ficou

brevemente com o Curso de Filosofia para todos os da Companhia no Brasil.

Mais tarde, voltou o Colégio da Bahia a fornecer o curso de Filosofia. Na

História da Companhia de Jesus no Brasil, Serafim Leite não especifica os

anos em que apenas o Rio de Janeiro ficou com o curso de Filosofia (apenas

cita o ano de 1692)66, mas, sabendo que a construção da Catedral de Salvador

durou 16 anos, de 1657 a 1672, podemos inferir que foi a partir dessa época

que o Colégio do Rio concentrou o curso de Filosofia para todo o Brasil.

O curso de Teologia Especulativa e Dogmática era realizado apenas no

Colégio da Bahia, salvo cursos esporádicos que aconteciam nos outros

Colégios do Brasil, como foi o caso de em 1640 ser dito que alguns estudaram,

no Rio, não apenas Teologia Moral (curso que havia no Colégio do Rio desde o

século XVI), mas também Teologia Dogmática67.

O crescimento do Colégio do Rio de Janeiro acompanha o

desenvolvimento da própria cidade, a ponto de, em 1662, ser ele considerado o

colégio da Companhia mais próspero do Brasil.68

Em 1757, o Colégio do Rio de Janeiro encontrava-se em posição igual

ao da Bahia69. Serafim Leite afirma que a Província do Brasil se desdobraria

em duas (além do Maranhão e Pará), então, assim, ficariam dois os Colégios

Máximos, o da Bahia e o do Rio de Janeiro. Apesar de o autor da História da

Companhia de Jesus no Brasil não tocar neste ponto, é de se supor que todos

os cursos, nessa época, estariam disponíveis também no Colégio do Rio de

Janeiro.

65 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004. 66 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004. 67

Ibidem. 68 Ibidem. 69 Ibidem.

46

De todos os cursos disponíveis, temos a situação que, excetuando o

Noviciado, curso de formação para religiosos da Companhia, todos os outros

eram abertos à população. Existia uma casa de noviciado no Rio de Janeiro no

século XVI, porém depois este curso ficou restrito ao Colégio da Bahia. Com a

supracitada igualdade dos dois colégios, o Noviciado também teria voltado ao

Rio de Janeiro.

Um Colégio em constante construção

O Colégio estava sempre sujeito a obras de melhoria, remodelação e

expansão. Em 1607, algumas dependências do Colégio foram concluídas:

dispensa, cozinha e refeitório70. Em 1648, o Reitor Simão de Vasconcelos

escreve que se fizeram mais obras em “quasi a metade do Colégio”, “muitas

obras na Sacristia, igreja, refeitório e outras partes do Colégio (...)”71.

Ainda pensou-se em transferir o Colégio do Morro do Castelo para a

parte baixa da cidade que crescia, mas isso significaria iniciar mais obras e

abandonar outras tantas que o prédio do Colégio manteve-se no Morro do

Castelo até o fim do próprio morro, em 1924. Aproximadamente em 1693,

durante o reitorado do padre Francisco de Matos, a construção da “parte nova”

teve início, obra que teria terminado em 1701.72

Um viajante francês, de passagem pelo Rio de Janeiro no início do

século XVIII, descrevia assim o “Convento dos Jesuítas”:

“(...) uma casa que se destaca tanto pela sua estrutura como pelos seus

cômodos. Esse convento, que é todo talhado em pedra, foi construído sobre uma montanha de

altura prodigiosa. O seu interior em nada fica a dever em magnificência ao seu exterior. A

distribuição dos cômodos é harmoniosa e inteligente. Todos os belos quartos ocupados pelos

padres são assoalhados. A botica mantida por essa casa é excelente: bem decorada, asseada

e provida de todos os tipos de drogas. Julgo não possuirmos, em França, nenhuma que se lhe

70 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004. 71

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. São Paulo: Edições Loyola, 2004, tomo VI, p. 422. 72 Ibidem.

47

compare. Essa botica dos padres abastece todas as outras da cidade. A igreja é pequena, mas

bastante ornamentada. Na parte detrás do convento, está sendo construído um colégio”.73

Duas coisas que podemos destacar nesse relato são a observação de

que as obras no colégio ainda continuavam, já que o visitante francês diz que

“está sendo construído um colégio” e a comparação que o viajante faz muito

favoravelmente da botica dos jesuítas em relação às de seu país natal. O

viajante anônimo ficou um mês na cidade (10 de julho a 12 de agosto) no ano

de 1703.74

A botica do Colégio, além de fornecer medicamentos às outras da

cidade, enviava-os também para as aldeias e fazendas e, por ocasiões de

epibidemias na cidade, os remédios da botica ficavam à disposição da

população. Segundo Lycurgo Santos Filho (apud Claudia Nóbrega Baroncini)75,

existiam ainda no século XVIII cidades brasileiras que apenas possuíam botica

ou hospital instalado em colégios da Companhia.

E as obras no Colégio, igreja e entorno continuavam. Diz Serafim Leite

que, em 1707, a quadra do colégio foi concluída. Em 1724, mais intervenções:

cortou-se parte do morro que ficava ao lado da igreja e foi feito um largo com

muros ao redor.

Em 1744, foi lançada a pedra fundamental da construção de uma nova

igreja76, obra que não foi concluída em razão da expulsão dos jesuítas dos

territórios portugueses em 1759.

Mesmo depois da expulsão, o complexo dos jesuítas no Rio de Janeiro

sofreu intervenções no sentido de adaptar suas estruturas de modo a poder ser

a sede do Observatório Imperial, por exemplo, que lá foi instalado no século

73 Journal d’um voyage in FRANÇA, Jean Marcel Carvalho (org). Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos, 1531-1800. Rio de Janeiro: EdUERJ: José Olympio Editora, 1999, p. 63. 74 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho (org). Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos, 1531-1800. Rio de Janeiro: EdUERJ: José Olympio Editora, 1999, p. 62. 75 BARONCINI, Claudia Nóbrega. Subsídios para o estudo do Real Colégio das Artes e Ofícios da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: o caso da Nova Igreja. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. 76

Sobre esta nova igreja, ver BARONCINI, Claudia Nóbrega. Subsídios para o estudo do Real Colégio das Artes e Ofícios da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: o caso da Nova Igreja. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

48

XIX. Ou seja: as obras no Colégio continuaram, mesmo depois de sua “morte”

em 1759.

Mas, nem só de obras e estudos “vivia” o Colégio do Rio de Janeiro. O

complexo dos jesuítas no alto do Morro do Castelo foi palco para alguns

acontecimentos bastante significativos da história da cidade. A seguir, veremos

como ele foi de uma espécie de forte a proteger os padres da fúria de uma

turba que queria exterminá-los, passando por ser o local da festa onde se deu

vivas à independência de Portugal da Espanha, e chegando a ser até um

“quartel-general” de bravos jovens que lutaram contra o inimigo francês.

O Colégio como um forte: tumulto contra os padres da Companhia em 1640

Como vimos brevemente no capítulo 2 (O trabalho nas Aldeias), a

questão da liberdade dos índios sempre foi uma constante para os padres da

Companhia. Os jesuítas almejavam a proibição da escravização dos indígenas,

mas a reação dos colonos era intensa, já que a economia da colônia baseava-

se no trabalho escravo. As várias tentativas de restrição da escravidão dos

indígenas sempre foram recebidas com muitos protestos pelos colonos

portugueses, e as autoridades acabavam, de uma forma ou de outra, recuando.

Contudo, no ano de 1640, os acontecimentos tiveram uma dimensão não antes

vista, e ao Colégio do Rio de Janeiro coube a tarefa de proteger o bem-estar e

até a vida dos padres.

Atendendo aos apelos dos jesuítas espanhóis, que queriam evitar mais

ataques dos bandeirantes paulistas às missões no sul do continente americano

em busca de índios para o trabalho escravo, eis que o Papa Urbano VIII, em 22

de abril de 1639, publica um breve denominado Commissum Nobis proibindo a

escravidão dos indígenas e “declarando incorrer em excomunhão os que

cativassem e vendessem os índios”77.

77 COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no século dezessete. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1965.

49

O padre espanhol Francisco Dias Taño trazia de Roma a ordem papal e,

no caminho de volta à região do Rio da Prata, parou no Rio de Janeiro. Trazia,

junto com o breve papal, ordens do rei afirmando a liberdade dos índios,

punindo aqueles que os tinham como cativos e, sobre aqueles que os

escravizassem, que fossem punidos pelo Santo Ofício e tivessem seus bens

confiscados em benefício da Coroa.

As ordens reais, no entanto, não vinham em português, mas no idioma

castelhano (lembremos que era época da União Ibérica, onde Portugal e

Espanha eram governados pelo mesmo rei, de Castela). Todas as medidas

reais que valessem para Portugal deveriam estar em português. Este fato

gerou confusão nos colonos quando foi anunciada a decisão; a medida valeria

para Portugal ou não? Obviamente foi argumentado que a decisão não valeria;

a manutenção da escravidão indígena, base da economia colonial, era

primordial.

No dia 20 de maio de 1640, os padres jesuítas leram o documento papal

para os fiéis que assistiam a missa na igreja do Morro do Castelo. Apesar de

muitos dos moradores terem esposa ou mãe indígena, a revolta foi geral. A

multidão enfurecida, aos gritos de “Mata! Mata!” e “Bota fora, bota fora da terra,

os Padres da Companhia!”78, tentou invadir o Colégio, atentando contra as

portas, que estavam fechadas, com golpes de machado. Foi preciso que o

próprio governador, Salvador Correia de Sá e Benevides, interviesse a tempo

para salvar os padres do linchamento, ou, quiçá, da morte.

A situação era tensa. Os jesuítas insistiam na aplicação integral do breve

papal e das ordens régias, o que era combatido pelos colonos, que fizeram

várias ameaças aos padres, inclusive de morte. Um libelo difamando os

jesuítas foi circulado.79 A revolta dos colonos tinha um agravante: apesar de

desejarem a extinção da escravidão indígena, os jesuítas eram acusados pelos

78 BOXER, Charles Ralph (1973) apud Pinheiro, Joely Aparecida Ungaretti. Conflitos entre jesuítas e colonos na América Portuguesa – 1640 – 1700. Tese de Doutoramento. Campinas: UNICAMP, 2007, p. 190. 79 PINHEIRO, Joely Aparecida Ungaretti. Conflitos entre jesuítas e colonos na América Portuguesa – 1640 – 1700. Tese de Doutoramento. Campinas: UNICAMP, 2007, p. 190.

50

colonos de se utilizarem da mão-de-obra dos índios para diversos tipos de

trabalho.

Salvador Correia de Sá e Benevides conseguiu que uma reunião entre

as diferentes partes acalmasse os ânimos, pelo menos momentaneamente.

Manobras jurídicas conseguiram fazer suspender o breve pontifício. Após um

mês, em junho de 1640, o governador consegue que os jesuítas voltem atrás

em seus intentos e a escravidão dos índios, tanto dos que trabalhavam nas

residências dos colonos quanto dos que trabalhavam nas lavouras, é declarada

lícita. Além disso, os padres comprometem-se a devolver aos senhores os

escravos que tentaram refugiar-se nas missões. Em troca, os colonos retiram

as queixas que haviam feito contra os padres da Companhia e decibidem não ir

adiante na decisão de expulsá-los da capitania.

Acontecimentos similares ocorreram em Santos e São Paulo, mas

nessas localidades a resolução para essa questão foi diferente. Em São Paulo,

os jesuítas foram expulsos e seu colégio fechado, sendo reaberto apenas em

1653.

A intervenção do governador Salvador Correia de Sá e Benevides foi

crucial para a resolução do conflito e permanência dos jesuítas na capitania do

Rio de Janeiro, assim como a manutenção da questão da administração dos

índios sob o controle dos padres da Companhia de Jesus.

Com a diminuição dos índios que poderiam ser escravizados (ou seja,

índios capturados em combate) e as constantes pressões dos jesuítas acerca

da licitude de sua escravização, uma outra fonte de mão-de-obra é buscada:

são os escravos vindos da África. Datam da década de 1610 os primeiros

contratos que permitiram a comerciantes trazer escravos vindos do continente

africano para abastecer o mercado do Rio de Janeiro.80 A escravidão de

pessoas trazidas da África não era estranha aos portugueses; desde pelo

menos 1444 (quando foram trazidas ao reino português “peças da Guiné”) os

escravos africanos trabalhavam no próprio Portugal ou nos canaviais das ilhas

80 ENDERS, Armelle. A História do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Gryphus, 2015, p. 48.

51

de Cabo Verde e São Tomé.81 No Brasil, os primeiros escravos trazidos de

África datam de 1538, chegando a São Vicente para trabalhar nos engenhos.

No Rio de Janeiro, no entanto, a chegada de forma maciça dos escravos

africanos na última década do século XVII. Em 1640, os jesuítas do Rio

possuíam aproximadamente seiscentos escravos, em sua grande maioria

vindos da África.82

O Colégio em festa: Restauração e aclamação de Dom João IV

Durava já 60 anos a dominação espanhola sobre Portugal, com os reis

Felipes de Espanha (II, III e IV) reinando também sobre os lusitanos. Desde

1580, com o desaparecimento do rei D. Sebastião dois anos antes na batalha

de Alcácer-Quibir, no Marrocos, e a consequente morte de seu tio e sucessor,

o Cardeal-Rei D. Henrique, Portugal era governado pela dinastia dos Felipes

de Castela. Em 1º de dezembro de 1640 houve a restauração de Portugal

como reino independente, com a dinastia de Bragança e o rei D. João IV.

A notícia da Restauração chegaria ao Rio de Janeiro em março de 1641.

Era governador Salvador Correia de Sá e Benevides, filho de uma espanhola

(Maria de Mendonça e Benevides, filha do governador de Cádiz) e casado com

uma espanhola (Catarina de Ugarte Velasco, filha do Vice-rei do Peru e

governador do Chile). Temeu-se que o governador, por essas ligações

familiares, não aceitasse a Restauração. Os jesuítas teriam então um papel

importante a cumprir: trazer a notícia e convencer o governador, se necessário,

a fazer a aclamação ao rei D. João IV. O representante foi o próprio Provincial

do Brasil, padre Manuel Fernandes, que se encontrava na Bahia.

Chegando em 10 de março de 1641, o Provincial logo deu as cartas do

Vice-Rei com as notícias sobre os acontecidos em Portugal ao governador.

Combinaram que o ato seria feito no Colégio dos Jesuítas. Ajudado por eles,

81 Ibidem. 82 Ibidem.

52

Salvador Correia de Sá e Benevides deu vivas ao Rei de Portugal Dom João IV

no próprio Colégio dos Jesuítas. Diz Serafim Leite sobre a ocasião:

Em Lisboa, o Palácio dos Condes de Almada, onde se fraguou a Restauração

do Reino (...) é hoje monumento nacional e chama-se Palácio da Restauração. O

“Palácio da Restauração”, no Rio, foi o Colégio.83

Aconteceram festas na cidade para marcar o ocorrido e os estudantes

do Colégio

“encerraram as manifestações públicas de regojizo: ‘rematou-se a festa (que na

mais opulenta cidade não podia ser mais lustrosa) com um alardo que os estudantes a

segunda-feira ordenaram, dando mostras de que também, quando fosse necessário em

serviço de Sua Majestade, saberiam disparar tão bem o arcabuz como construir os

livros’.”84

Interessante esta passagem, pois a oportunidade de “disparar tão bem o

arcabuz” chegaria para os estudantes do Colégio, que com sua bravura

salvaram a cidade do Rio de Janeiro de um ataque de corsários franceses no

início do século seguinte, como veremos a seguir.

As novas invasões francesas: a investida do corsário Duclerc sobre o Rio de

Janeiro

As guerras de sucessão espanhola e a descoberta de ouro e diamantes

nas Minas Gerais são o pano de fundo para duas tentativas francesas de

invasão à cidade do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do Setecentos;

tentativas essas que contaram com a forte participação dos jesuítas e dos

estudantes do Colégio na defesa da cidade.

Em razão das disputas sobre a sucessão ao trono do reino de Espanha

no início do século XVIII, Portugal vê seus interesses em conflito com os da

França de Luís XIV. Com o reino português formalizando mais uma aliança

83 Tomo VI, p. 430. 84 Ibidem.

53

com a Inglaterra, através do tratado de Methuen, de 1703, a animosidade entre

franceses e portugueses se acirra. Corsários franceses começam então a

atacar posições portuguesas no Atlântico (Benguela, em 1705, Príncipe, em

1706, São Tomé, em 1709, Santiago de Cabo Verde em 1712)85. Também no

ano de 1706 franceses saqueiam a embarcação em que se encontrava o padre

João Pereira, que havia sido Provincial da Companhia de Jesus, e que fazia o

caminho de retorno do Brasil a Portugal.86

O padre António Vieira, já no século XVII, fazia alertas sobre a presença

de corsários nas costas brasileiras.87 Em fins daquele século, é dado início à

corrida do ouro em direção ao interior do território da América Portuguesa, com

a descoberta daquele metal e de pedras preciosas na região. O Rio de Janeiro,

em razão de seu crescimento e sendo o principal porto de escoamento aurífero

para Portugal, é visto como ponto estratégico. Em 1710, a cidade foi alvo da

expedição do comandante corsário francês Jean François Duclerc (ou Du

Clerc), que via nessa empreitada grande oportunidade para apoderar-se das

riquezas produzidas a partir das Minas Gerais.

Duclerc partiu do porto de Brest, França, em 7 de maio de 1710 para a

cidade do Rio de Janeiro com uma tropa de 1100 homens em uma frota de

cinco navios – Ventus, Valeur, Atalante, Diane, Oriflamme – e uma balandra

(embarcação coberta, de apenas um mastro) para transporte88. Três meses

depois, em agosto de 1710, a esquadra de Duclerc era avistada próxima às

costas do Rio.

Após tentarem, sem sucesso, adentrar pela baía da Guanabara, a

esquadra corsária se retira em direção à Angra dos Reis, onde também suas

tentativas de desembarque são frustradas. Em 11 de setembro, por fim,

Duclerc e suas tropas conseguem aportar em Guaratiba, distante 40 km da

85 BOXER, Charles Ralph apud ENDERS, Armelle. A História do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Gryphus, 2015, página 59. 86 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VI, livro 1º, página 431. São Paulo: Edições Loyola, 2004. 87

Ibidem. 88 MORAIS, Ronaldo. Os Arquivos da Invasão: O corsário Du Clerc e a invasão do Rio de Janeiro em 1710. Rio de Janeiro: Ronaldo Morais, 2007, página 22.

54

cidade, sendo guiados por quatro escravos fugidos das fazendas da região ao

caminho em direção ao Rio de Janeiro.

Na manhã do dia 19 de setembro os franceses chegam à cidade. O

governador Francisco de Castro Morais havia mandado construir uma grande

trincheira, do morro da Conceição ao de Santo Antônio, nos limites da cidade.

Duclerc e suas tropas foram duramente combatidos pelas forças cariocas. Nos

sangrentos combates pereceram tanto invasores quanto defensores, inclusive

o irmão do governador, o mestre de campo Gregório de Castro Morais.

Os estudantes do Colégio dos Jesuítas têm um papel destacado na luta

contra os invasores franceses. Comandados por Bento do Amaral Coutinho89

,

personagem de vulto da Guerra dos Emboabas (1707-1709), a Companhia dos

Estudantes entrou em combate com os franceses na rua Direita, nas

proximidades do palácio do governador, derrotando diversos deles.

Defender a terra em resistência ao invasor não era novidade para os

estudantes da Companhia de Jesus. Segundo Serafim Leite, já no século XVII,

em Pernambuco, organizaram-se os estudantes contra os holandeses. Nos

anos seguintes, na Bahia, também os estudantes se propõe a combater os

holandeses durante o cerco à cidade de Salvador em 1638. Uma Companhia

de Estudantes se forma naquela cidade finalmente em 1651, como organização

destinada a defender-se de um ataque estrangeiro. No Rio de Janeiro, em

razão das tentativas de invasão, também é a companhia dos estudantes

constituída. Ao todo, para combater o ataque de Duclerc, a companhia dos

estudantes foi formada por 48 integrantes.

Em carta ao duque de Cadaval90, escrita ainda em 1710, o frei Francisco

Menezes, este também um personagem da Guerra dos Emboabas, cita a

bravura dos rapazes da companhia dos estudantes, que teriam, com “mais

alguns pardos e negros”, atacado sozinhos os invasores, sem ajuda das tropas

89 Há controvérsia acerca do nome do comandante que liderou a companhia dos estudantes na batalha contra as tropas de Duclerc. Serafim Leite, assim como Ronaldo Morais, afirma ser o comandante Bento do Amaral Coutinho, como citamos aqui. Já Jean Marcel Carvalho França e Sheila Hue (2014, p. 109), provavelmente seguindo o Barão do Rio Branco, afirmam que os estudantes estavam “sob o comando do lente Bento de Amaral Gurgel”. 90 Carta do frei Francisco de Menezes para o duque de Cadaval in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. LXIX, pp. 53-75.

55

do governador. O governador Francisco de Castro Morais, aliás, em um

primeiro momento, considerava ter sido perdida a cidade, ao que depois teria

sido avisado por um interlocutor, para sua surpresa, que “perdido está o

inimigo, sem remédio, pois está sendo atacado na rua Direita”91 pela

companhia dos estudantes.

Finalmente, ao cair do mesmo dia 19, ao se verem sem saída do

trapiche – uma espécie de grande armazém – onde se encontravam, as tropas

de Duclerc se rendem. Sobreviveram cerca de 600 franceses.

Dos estudantes, Pedro da Costa, Francisco Teles, Antônio Moreira,

Francisco Pelleja, José Ferreira foram mortos nos combates, além do professor

José de Faria.92

Jean François Duclerc foi preso e enviado ao Colégio dos Jesuítas.

Alegando que não havia nascido para ser monge, e pedindo para que fosse

retirado do Colégio, foi transferido para a Fortaleza de São Sebastião e depois

para a casa do tenente Tomás Gomes da Silva, na rua da Quitanda. Em 18 de

março de 1711, Duclerc foi assassinado. Apesar da investigação, os

responsáveis nunca foram encontrados.

Infelizmente a narrativa pessoal de Duclerc sobre os acontecimentos

não sobreviveu aos nossos dias. Segundo Ronaldo Morais93, o barão do Rio

Branco, em uma obra chamada Le Brésil et l’Exposition de 1889, no capítulo

intitulado Esquisse de l’histoire du Brésil, página 139, menciona que Duclerc

enviou para a França seu relato sobre o combate na cidade, mas que este

relato jamais fora publicado94.

91 Ibidem, p. 62. 92 MORAIS, Ronaldo. Os Arquivos da Invasão: O corsário Du Clerc e a invasão do Rio de Janeiro em 1710. Rio de Janeiro: Ronaldo Morais, 2007, página 51. 93 Ibidem, página 79. 94 “Du Clerc (...) envoya en France une relation de ce combat, mais elle n'a jamais été publiée.”

56

O assalto de Duguay-Trouin e a mediação dos jesuítas

Não foi apenas a tentativa frustrada de Duclerc a única invasão francesa

ao Rio de Janeiro no século XVIII.

Já no ano seguinte, em 1711, o corsário René Duguay-Trouin

tomou de assalto a cidade. Com uma força substancialmente maior do que a

que teve Duclerc, Duguay-Trouin chegava à Baía da Guanabara com uma

esquadra composta por 17 vasos de guerra – de nomes Lis, Brillant,

Magnanime, Achille, Glorieux, Amazonne, Bellonne, Astrée, Argonaute, Mars,

Concorde, Chancelier, Glorieuse, Françoise, Patient, Fidèle, Aigle –95 mais um

pequeno navio capturado no caminho da França ao Brasil e milhares de

marinheiros, o comandante francês nascido em Saint-Malo conseguiu

conquistar a cidade e saqueá-la.

René Duguay-Trouin (ou du Guay-Trouin) era um homem com grande

prestígio junto à Coroa francesa. Portador de títulos como Comandante-Geral

da Armada de França e Comendador da Ordem Real e Militar de São Luís, o

corsário cita, em suas Memórias96, a participação decisiva dos jesuítas nos

acontecimentos desde sua chegada ao Rio de Janeiro no mês de setembro de

1711. Com a contribuição dos jesuítas, a cidade foi salva de sua completa

aniquilação com o pagamento, pelo governador Francisco de Castro Morais, de

uma vultuosa indenização à Duguay-Trouin e suas tropas97. Nas palavras do

próprio Duguay-Trouin:

“Na iminência da partida, confiei a guarda do tesouro aos jesuítas, que me

pareceram os únicos eclesiásticos locais dignos de confiança, e encarreguei-os de

devolvê-lo à diocese. Devo ser justo e dizer que esses religiosos em muito contribuíram

95 O número de embarcações varia de acordo com as fontes, como veremos. São citados 15, 17 e 18 navios, porém, Duguay-Trouin cita nominalmente as 17 embarcações que listamos, além do navio inglês que foi capturado em alto mar. 96 Memoires de Monsieur Du Guay-Trouin, Lieutenant Général des Armées Navalles de France, et Commandeur de l’Ordre Militaire de Saint Louis, obra publicada em português sob o título “O Corsário: uma invasão francesa no Rio de Janeiro” 97 “Surpreendido, o governador enviou um jesuíta, homem de espírito, com dois de seus principais oficiais, para me transmitirem sua oferta de resgate da cidade, que era de todo o ouro que ele pudesse dispor, e que, na impossibilidade em que se encontrava de conseguir mais, tudo o que podia fazer seria acrescentar dez mil cruzados de seu próprio bolso, quinhentas caixas de açúcar e todas as cabeças de gado de que eu viesse a necessitar para a subsistência de meus homens.”

57

para a salvação da florescente colônia, ao convencer o governador a resgatar a cidade,

sem o que eu a teria destruído totalmente (...). ”98

Sobre a invasão, diz-nos o padre António Pais, em carta datada de 18

de abril de 171299:

“Os Franceses, cobiçando a riqueza desta cidade, entraram dia 18 de setembro

com 18 navios e, ocupada a ilha mais próxima da cidade, durante oito dias a

bombardearam com canhões e panelas de fogo. Nesses dias, os Nossos da

Companhia, antepondo o próprio perigo a ajuda dos moradores, com o ministério da

piedade e caridade, percorreram com frequência os postos dos soldados e ouviam-nos

de confissão. Outros levavam do Colégio de comer e de beber aos soldados e fizeram

tudo o que já tinham feito no ano passado. Mas não foi igual o êxito da guerra. E,

apesar de os nossos soldados, seu poder, força e ânimo, serem superiores aos do

inimigo, nem os Franceses se atreverem a ter batalha com os nossos e só nos

atacarem de longe com os canhões, por não confiarem nas suas forças e temerem o

nosso poder, passados oito dias, sem nenhuma derrota dos nossos, uma noite feia,

cheia de chuvas e trovões, não sem leve boato de traição, o Governador mandou que

todos os soldados e defensores saíssem da Cidade e da Vala e se recolhessem aos

campos dos subúrbios. Divulgado o boato da traição, cada qual se acolheu para onde

achou mais seguro e naquela noite se desfez o exército. Feito isto ficou aberta com

segurança ao inimigo a entrada na Cidade, cheia de riquezas, sem que ninguém lhe

cortasse o passo. Todos, desde o maior ao menor, de ambos os sexos, abandonaram

a cidade, excepto dois da Companhia, um Padre e um Irmão Coadjutor, que preferiram

ficar em casa, sujeitando-se a toda fortuna favorável ou adversa, com a esperança de

que pelos benefícios feitos pelos Nossos aos prisioneiros, fossem menos duros

conosco e nossas coisas. Não obstou, porém, a que saqueassem não só as alfaias,

mas todos os comestíveis e as coisas vindas de Portugal, reduzindo os Nossos a

extrema penúria.

Entretanto, a conselho dos da Companhia, alguns batalhões dos muitos que a

retirada desordenada tinha dispersado, foram-se reconstituindo, para não ficarem

abertos os subúrbios ao ímpeto dos inimigos. Mas este conselho, com ser útil à

República, não o foi às nossas Fazendas. Os soldados acamparam nos nossos

Engenhos, e consumiram não só o açúcar, mas quebraram os recipientes em que se

guardava, e levaram muitos instrumentos de ferro e de cobre dos Engenhos,

98 DU GUAY-TROUIN. O Corsário: uma invasão francesa no Rio de Janeiro. Tradução de Carlos Andedê Nougué. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2002, página 159. 99 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VI, livro 1º, página 432. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

58

devastaram os canaviais, levaram os rebanhos de gado, devoraram todos os bois

mansos, do carro, além dos que foram trazidos dos campos mais distantes, a pedido

do Governador e da Câmara; e uma grande casa, que dava de aluguel 500 cruzados,

ficou em cinzas. Cinco negros do Colégio, tomados pelos Franceses, foram conduzidos

para as Ilhas de Martinica; e ainda 150 bois e 3000 arrobas de açúcar, requisitados

pelo Governador para o resgate da cidade.

Os Franceses ameaçavam incendiar a cidade e todas as suas fortalezas e

castelos, se pela deixarem incólume, lhes não dessem 610.000 cruzados, 200 bois, e

3.000 arrobas de açúcar. E não só ameaçavam destruir a Cidade, mas também os

Mosteiros e Igrejas, mesmo as menos próximas dela, sobretudo o nosso Colégio, em

cujas paredes já tinham feito quatro grandes minas para fazer voar todo o edifício.

Estipulado o resgate entre os Franceses e o Governador Francisco de Castro

Morais, não sendo fácil achar tanta quantidade de açúcar e de bois, a pedido instante

do Governador para a utilidade comum e mais breve partida dos Franceses, demos o

que acima se disse”.

Um outro relato importante sobre a invasão francesa de 1711 é o de

Jonas Finck, um tipógrafo e missionário protestante alemão. Finck, que estava

a serviço da Society for Promoting Christian Knowledge, uma instituição inglesa

fundada em 1698 pelo padre anglicano Thomas Bray para propagar pelo

mundo o cristianismo e a literatura cristã, aportou no Rio de Janeiro em agosto

de 1711. Ele, que deixou a cidade em outubro do mesmo ano, testemunhou in

loco os acontecimentos da invasão do comandante Duguay-Trouin à cidade.

Em carta ao reverendo M. W. Boehm, capelão do rei Frederico IV da

Dinamarca e que estava em visita à Inglaterra, Finck descreve os fatos que se

sucederam naquele mês de setembro de 1711 e suas próprias interações com

os jesuítas. Sobre os jesuítas, diz Jonas Finck100:

Os jesuítas mantêm um colégio na cidade, instalado num prédio bastante

imponente. Tive a oportunidade de conversar diversas vezes com esses religiosos.

Eles habitualmente separavam um dos membros da ordem, em geral o mais graduado

na língua latina, para funcionar como porta-voz, enquanto os outros apenas escutavam.

Eu, sempre que podia, encaminhava a conversação para a teologia prática, sem tocar

em aspectos controversos. Mas eles preferiam abordar a teologia de uma maneira

100 FRANÇA, Jean Marcel Carvalho (org). Visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos, 1531-1800. Rio de Janeiro: EdUERJ: José Olympio Editora, 1999, páginas 66-74.

59

escolástica. Disse-lhes, porém, que nem o local nem a hora eram propícios para

discutir tão controverso assunto. Quando manifestei o desejo de adquirir um exemplar,

em língua portuguesa, da obra Christian Pattern, de Thomas-à-Kempis, notei que

nenhum deles tinha ouvido falar desse autor. Coisa que muito espanto me causou, pois

esse tratado é universalmente conhecido e aprovado por todas as nações cristãs da

Europa. Ao ouvir o nome Thomas-à-Kempis, os jesuítas perguntaram se eu não me

referia a São Tomás de Aquino e à sua vasta obra101

. Aliás, nesse país, encontrei

poucos livros que merecessem ser comprados.

Finck continua seu relato, agora tratando diretamente sobre o assalto de

Duguay-Trouin à cidade do Rio de Janeiro:

No dia 24 de agosto, o governador do Rio de Janeiro foi informado de que uma

frota de 15 navios tinha sido vista perto da costa do Brasil. Uns não acreditaram na

notícia, outros mostraram-se preocupados, pois temiam que fossem navios franceses,

que vinham vingar a derrota sofrida há um ano pelos seus compatriotas. Nesse

confronto, os portugueses fizeram aproximadamente 800 prisioneiros, entre os quais o

general que comandava a operação. Esse general foi, posteriormente, assassinado a

sangue frio e mais de 500 soldados não suportaram a crueldade dos portugueses,

vindo a falecer. Os restantes, como pudemos observar, viviam num estado deplorável.

Foi com grande satisfação que esses homens receberam o nosso navio, pois tinham

esperança de que pudéssemos ajudá-los.

Os portugueses, diante das notícias, começaram a preparar-se para a defesa,

pensando que o cerco só teria lugar no dia 1º de setembro. Contudo, mal tinham

começado a fazê-lo, quando o forte de Santa Cruz disparou alguns tiros de canhão

para avisar que o inimigo se aproximava. A frota francesa, composta por 15 velas,

levou uma hora para entrar na embocadura do rio e, duas horas depois, lançou âncora

no lugar mais seguro do porto.

No dia seguinte, o Almirante Duguay-Trouin desembarcou 3.500 soldados,

dividindo-os entre uma pequena ilha, de um lado da cidade, e a terra firme, do lado

oposto. Assim distribuídos, os franceses atacaram os oito fortes portugueses. (...)

Esperávamos que os sitiados organizassem uma poderosa ação defensiva,

pois estavam bem aparelhados para tal. Havia na cidade uma tropa formada por mais

de mil soldados, além de 2 mil marinheiros, 4 mil cidadãos e 8 mil negros, perfazendo

um total de 15 mil homens. Não obstante essa numerosa guarnição, abastecida com

101 É interessante notar que Thomas-à-Kempis, ou Tomás de Kempis (1380-1471), escreveu De Imitatione Christi, A Imitação de Cristo, uma obra que teve grande influência em Santo Inácio de Loyola.

60

tudo o que era necessário, os portugueses renderam-se após oito dias de

bombardeamento e deixaram a cidade, repleta de ouro e prata, à mercê do inimigo.

Eles chegaram mesmo a pôr fogo em três de seus próprios navios de guerra, sendo

que um quarto afundou após se chocar com a terra. Vários outros navios, a maioria dos

quais mercantes, foram postos a pique pelos franceses. As baixas de ambos os lados

foram poucas, quase não se ouviu falar em mortes. No dia 11 de setembro, os

franceses tomaram a cidade e no dia seguinte a saquearam. Eles ameaçaram

transformá-la num amontoado de entulhos, mas os portugueses conseguiram evitar

essa tragédia pagando a soma de 15 mil libras.

Durante todo esse tempo, os franceses não nos incomodaram e aceitaram-nos

como observadores do desastre que se abatia sobre os portugueses. Não podíamos

supor que eles nos fariam uma incômoda visita, à qual não pudemos fazer qualquer

oposição, pois estávamos cercados por todos os lados. No dia 13 de setembro, os

oficiais do nosso navio deliberaram o que fazer naquelas circunstâncias. O Governador

Collet retornou a bordo e, juntamente com seu filho, capitulou, sendo imediatamente

considerado prisioneiro de guerra. O capitão Austin fez o mesmo e o comando de seu

navio foi assumido por um capitão francês e 20 homens. Logo que tomaram posse do

navio, os franceses iniciaram a pilhagem e nada escapou à fúria desses homens, nem

mesmo as provisões que se encontravam no depósito. Ainda lancei um último e triste

olhar em direção aos meus livros, que, num segundo, desapareceram. Salvo o que

trazíamos em nossos bolsos, nada, absolutamente nada, foi deixado para trás. Tendo

em conta a situação que nos encontrávamos, confesso que foi um verdadeiro milagre

os saqueadores não terem revistado os nossos bolsos ou mesmo nos deixado

completamente nus. ”

Em ambos os relatos vemos que foi com surpresa que tanto o padre

António Pais quanto Jonas Finck viram as defesas da cidade se retirarem, a

mando do governador, visto que eram superiores aos invasores. No relato do

padre Pais ainda há uma menção a um suposto boato de traição, que fez com

que as tropas cariocas esmorecessem.

O governador Francisco de Castro Morais aguardava tropas vindas de

Minas Gerais sob o comando de Antônio de Albuquerque para defender a

cidade, porém acertou os termos do resgate com Duguay-Trouin antes da

chegada dos reforços. Certamente esses fatos contribuíram para a queda do

governador, que depois desses acontecimentos caiu em desgraça, sendo

preso, condenado e mandado para o degredo em Índia.

61

Por fim, em 4 de novembro, após o último pagamento pelos

portugueses, os franceses começam a se retirar da cidade. No dia 13, toda a

frota já se encontrava em alto mar.102

O Colégio dos jesuítas também não foi poupado da fúria dos invasores.

Duguay-Trouin e cerca de 1500 de seus homens se instalaram no complexo

dos jesuítas durante sua aventura no Rio, de acordo com o relato de um dos

combatentes franceses103. Já os padres, ao retornarem ao Colégio, segundo

relato do padre Estanislau de Campos, encontraram

(...) saqueada a dispensa e a rouparia, e tirados da Capela Doméstica e da

Igreja alguns castiçais e os colares de ouro da Nossa Senhora e o diadema de ouro de

S. Francisco Xavier, e a cruz de prata e a lâmpada.104

Apesar da invasão e saque ao Colégio, suas estruturas não sofreram

grandes danos, o que pode ter permitido que as aulas retornassem à

normalidade sem grandes dificuldades.

Segundo Serafim Leite, do total do resgate pago aos invasores, os

jesuítas participaram com 14.000 cruzados, que seriam devolvidos por El-Rei,

ainda que em 1714 conste que tal quantia não teria sido, até aquela data,

restituída.

Este episódio da invasão de Duguay-Trouin à cidade torna-se mais uma

arma para os críticos dos jesuítas. Seu “colaboracionismo” com os invasores

deixará marcas e, quase cinco décadas depois desses acontecimentos, servirá

de munição para acusações de que os jesuítas eram traidores, dentre outras

queixas que servirão como pretexto para a expulsão da Companhia de Jesus

das terras do reino português.

102 DU GUAY-TROUIN. O Corsário: uma invasão francesa no Rio de Janeiro. Tradução de Carlos Andedê Nougué. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2002, página 160. 103 FRANÇA, Jean Marcel de Carvalho (org). Outras visões do Rio de Janeiro colonial: antologia de textos, 1582-1808. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2000. 104 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VI, livro 1º, página 432. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

62

Capítulo V – A expulsão dos jesuítas do Brasil e o fechamento do Colégio do

Rio de Janeiro

Meados do século XVIII. Se a Companhia de Jesus foi uma grande

parceira de Portugal na construção do Brasil, nos séculos anteriores, o que

certamente é indiscutível, nesses novos tempos sua presença nas terras do

reino já não era tão bem vista assim, principalmente na visão de Sebastião

José de Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal, Secretário de Estado

dos Negócios Interiores do Reino (cargo algo equivalente ao de primeiro-

ministro) de Portugal do reinado de Dom José I (1750 – 1777).

É claro que não podemos fixar num só homem o sentimento antijesuíta e

a sequência de acontecimentos que levou à expulsão da Companhia do

território luso-brasileiro e, por fim, da extinção da própria organização dos

inacianos, com a Bula Dominus ac Redemptor do Papa Clemente XIV em

1773. Lembremos que as críticas vinham de muito tempo e, desde antes da

própria fundação da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola teve que responder

por duas vezes à Inquisição a respeito de suas atividades.

No Brasil, temos já no século XVI o agora famoso documento de Gabriel

Soares de Sousa, “Capítulos de Gabriel Soares de Sousa contra os padres da

Companhia de Jesus que resibidem no Brasil”, como testemunho das tensões

entre os colonos e os inacianos, o que pode ter provocado um sentimento

antijesuítico.

Ou seja, o antijesuitismo e as críticas à atuação da Companhia de Jesus

não se iniciam no século XVIII. Carvalho e Melo não é a única voz contra os

inacianos, porém é alguém que estava em uma posição que o permitiu fazer o

que fez: banir a Companhia de Jesus das terras portuguesas.

O autor Nireu Cavalcanti chega a dizer que “não tem fundamento”

responsabilizar principalmente Carvalho e Melo pelo acontecido com os

jesuítas105. Cita que o papa Bento XIV, com o breve de 10 de janeiro de 1758,

105 CAVALCANTI, Nireu. Histórias de conflitos no Rio de Janeiro colonial. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 127.

63

instituiu uma reforma na Companhia de Jesus “para corrigir os desvios

cometidos contra os princípios da Igreja Católica”, oito meses antes do

atentado contra a vida do rei dom José de Portugal – um dos motivos da

“perseguição” atribuída ao futuro Marquês de Pombal em relação aos jesuítas.

É claro que esta visão não é compartilhada por autores jesuítas, como é

o caso de Danilo Mondoni ou do próprio Serafim Leite. Esses autores apontam

para acontecimentos durante toda a década de 1750 cometidos pelo futuro

Marquês de Pombal com o propósito de enfraquecer os jesuítas, culminando

com a expulsão dos inacianos no final daquela década. Essas ações iniciam-se

com as chamadas “ordens secretas” de 1751. Quando ainda era ministro dos

Negócios Exteriores e da Guerra, o futuro Marquês de Pombal emitiu duas

ordens secretas aos governadores contra os religiosos em geral, que foram a

de inspecionar os bens eclesiásticos e, se se encontrassem em desacordo com

as disposições legais, que se tomassem providências a respeito; e a segunda,

em relação aos aldeamentos, de que tratassem com os bispos acerca da

possibilidade de os religiosos se reservassem apenas a questões relativas ao

domínio espiritual. Essas ordens foram passos na direção da supressão ao

regime missionário, como afirma Mondoni.106

Uma outra medida contra os jesuítas foi a expulsão desses religiosos

das missões no que é hoje a fronteira do Brasil com o Paraguai. Em razão do

Tratado de Madri, de 1750, que estabeleceu a troca da Colônia do Sacramento,

que passaria do controle luso ao espanhol, pela região dos Sete Povos das

Missões, que faria o caminho inverso, os indígenas de Sete Povos se

rebelaram e lutaram contra as forças luso-espanholas, sendo massacrados.

Acusados de fomentar a guerra, os jesuítas foram expulsos daquela região e

substituídos por missionários dominicanos e franciscanos.

Pode ser citada também a perseguição ao padre Gabriel Malagrida. Em

1756, após o grande terremoto que atingiu a cidade de Lisboa, o padre jesuíta

Gabriel Malagrida publicou um opúsculo, denominado “Juízo da Verdadeira

Causa do Terramoto que Arrasou Lisboa em 1 de Novembro de 1755”, onde

106 MONDONI, Danilo. Os expulsos voltaram – Os jesuítas novamente no Brasil (1842-1874). São Paulo: Edições Loyola, 2014, p. 22.

64

afirmava que as razões para a catástrofe acontecida em Lisboa se davam por

um castigo divino. Tal atitude, tomada como um “desafio” ao governo

português, com a implicação de que tanto o rei dom José quanto seu ministro

Sebastião José de Carvalho e Melo estariam cometendo atos que mereceriam

tal castigo divino, não haveria de se sair impune. O padre foi afastado para

Setúbal, de Lisboa. Outros jesuítas que haviam se expressado de forma similar

acabaram sendo presos.

E, é claro, o caso da tentativa de regicídio contra Dom José. Em três de

setembro de 1758 ocorreu um atentado supostamente contra a vida de D.

José, que voltava incógnito de um encontro amoroso com uma amante da

família dos Távora quando a carruagem que estava foi atingida por tiros. D.

José foi ferido em um dos braços, mas sobreviveu. A investigação da suposta

tentativa de regicídio foi concluída rapidamente e apontou como culpada a

família Távora, que estaria conspirando para por o Duque de Aveiro no trono

do reino português. Integrantes da família dos Távora foram condenados à

morte. O padre Gabriel Malagrida, confessor de Leonor Távora, foi preso e,

acusado de ser o “mentor intelectual” do crime, condenado à morte na fogueira.

Outros jesuítas também foram acusados e condenados com relação a esse

acontecimento.

José Eduardo Franco afirma que Carvalho e Melo tinha uma “obsessão

antijesuítica” que chegou a tal grau de “‘possessão’ psicológica ou psicótica”

que o ministro de d. José via os jesuítas a maquinarem com nações

estrangeiras contra os interesses de Portugal.107 Diz que ele “(...) criou um mito

monstruoso, enxertando na Companhia de Jesus todas as caras do mal”.108

Ainda segundo José Eduardo Franco, através de movimentos que se

constituíram em um verdadeiro “antijesuitismo de Estado”, e no assunto que

para o ministro Carvalho e Melo era prioritário, o governo português passou a

uma intensa campanha de propaganda contra a Companhia de Jesus,

107 FRANCO, José Eduardo. O triunfo internacional do antijesuitismo pombalino: do sucesso à incerteza ou os limites da eficácia do mito negro dos jesuítas. in GALDEANO, Carla; ARTONI, Larissa Maia; AZEVEDO, Silvia Maria (orgs). Bicentenário da Restauração da Companhia de Jesus (1814-2014). São Paulo: Loyola, 2014, p. 132. 108 Ibidem, p. 133.

65

investindo não apenas na tradução de peças propagandísticas portuguesas

contra os inacianos para línguas estrangeiras, como também na versão para

língua portuguesa de manuais de propaganda antijesuítica produzidos e

circulados na Europa.

Em fevereiro de 1758, o embaixador português em Roma, Francisco de

Almeida e Mendonça, primo do futuro Marquês de Pombal, recebeu a missão

de entregar uma carta ao papa Bento XIV com uma série de acusações contra

os jesuítas109. Em abril de 1758, o cardeal Francisco de Saldanha foi nomeado,

pelo Papa, reformador da Companhia de Jesus no reino de Portugal e este

nomeou o bispo do Rio de Janeiro, dom Antônio do Desterro, o reformador na

área de seu bispado.110

No Rio de Janeiro, o bispo Antônio do Desterro convocou 43 pessoas,

todas do sexo masculino, moradoras da cidade e região, que tiveram relações

ou trabalharam com os membros da Companhia de Jesus, como testemunhas

no processo de reforma dos jesuítas.111 Essas pessoas tiveram que responder

perguntas acerca do comportamento dos jesuítas, como por exemplo “se eram

arrogantes, manipuladores e desrespeitadores das ‘Leis Divinas e Humanas’”,

“se ensinavam ou praticavam ‘ritos, doutrinas falsas e opiniões’ contra as

normas da Igreja, dos concílios e das bulas papais e contra a monarquia” ou

ainda “se praticavam o voto de castidade e se viviam castamente nas cidades e

aldeias’”, dentre outras perguntas.112

No decorrer desse processo de reforma, quase oitenta membros da

Companhia a deixaram. Alguns optaram pela vida laica, a maioria pela vida

religiosa em outra ordem ou como padre secular.

109

MONDONI, Danilo. Os expulsos voltaram – Os jesuítas novamente no Brasil (1842-1874). São Paulo: Edições Loyola, 2014, p. 25. 110 CAVALCANTI, Nireu. Histórias de conflitos no Rio de Janeiro colonial. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 128. 111 “Compunham aquele número: 12 religiosos, 9 senhores rurais, 7 negociantes, 8 profissionais ligados à Justiça – metade advogados e metade ‘solicitadores de causas’, conhecidos hoje como despachantes – e os sete restantes um indivíduo de cada área: alcaide-mor, desembargador, estudante do colégio dos jesuítas, militar, professor, um que vivia de rendas e, por fim, o mais velho (73 anos) sem indicação de atividade profissional.” In CAVALCANTI, Nireu. Histórias de conflitos no Rio de Janeiro colonial. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 129. 112 CAVALCANTI, Nireu. Histórias de conflitos no Rio de Janeiro colonial. 2ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 130.

66

O processo de reforma estava em seu fim quando aconteceu a expulsão

do reino português e de seus domínios dos padres da Companhia de Jesus.

Ela se deu por uma lei, datada de três de setembro 1759, exatamente no

aniversário de um ano do atentado contra a vida do rei dom José. O rei, com a

“lei exterminando os jesuítas, e proibindo a comunicação com os mesmos”,

sobre a “Companhia denominada de Jesus”, diz:

Declaro os sobreditos regulares na referida forma corrompidos;

deploravelmente alienados do seu Santo Instituto; e manifestamente indispostos com

tantos, tão abomináveis, tão inveterados, e tão incorrigíveis vícios para voltarem à

observância dele, por notórios rebeldes, traidores, adversários, e agressores, que tem

sido, e são atualmente, contra minha Real Pessoa, e Estados, contra a paz pública dos

Meus Reinos, e domínios, e contra o bem comum dos meus fiéis vassalos: e

ordenando, que como tais sejam tidos, havidos, e reputados: e os hei desde logo em

efeito desta presente lei por desnaturalizados, proscritos, e exterminados: mandando

que efetivamente sejam expulsos de todos os Meus Reinos, e domínios, para nele mais

não poderem entrar (...)113

Na noite do dia 2 de novembro o Colégio dos jesuítas no Rio de Janeiro

foi cercado pelas tropas reais. A mando do vice-rei conde de Bobadela, Gomes

Freire de Andrade, o desembargador Agostinho Félix Capelo e as tropas

sobem o morro do Castelo pela Ladeira da Misericórdia para prender os

jesuítas e confiscar seus bens. Os padres ficam confinados ao Colégio por

meses, e a eles vão se juntando outros jesuítas que estavam nas fazendas e

engenhos do Colégio, além de religiosos de outras cidades e capitanias, como

São Paulo, Santos, Paranaguá e Espírito Santo. Em 14 de março de 1760,

finalmente, são encaminhados os 199 homens para o navio Nossa Senhora do

Livramento e São José, que os levará para Lisboa na madrugada do dia

seguinte.

Apesar de Serafim Leite afirmar que “a cidade se cobriu de luto”, não há

relatos de protestos ou outras manifestações, seja por parte da população em

geral, seja por parte das outras ordens religiosas, em relação à expulsão dos

113

Collecção da Legislação Portuguesa desde a última compilação das ordenações, redigida pelo desembargador Antonio Delgado da Silva. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830, p. 713-716. Disponível em http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/

67

jesuítas. Pelo contrário, segundo Amantino114, as autoridades do Rio de Janeiro

responderam a Portugal que não havia ocorrido nenhum incidente durante a

prisão dos inacianos, nem por parte dos religiosos, que aceitaram seu destino

resignadamente, e nem por parte da população. O que seria, segundo as

autoridades, uma prova de que o sentimento que tinha o povo em relação

àqueles religiosos era de temor e não de respeito.

As consequências da expulsão dos jesuítas são muitas. No Rio de

Janeiro, o impacto sobre a ocupação do solo da cidade foi grande. Como os

jesuítas possuíam um enorme patrimônio imobiliário e territorial, conforme

vimos na seção As Fazendas e engenhos dos jesuítas do capítulo III, a

expulsão faz com que suas terras e imóveis fossem retidas em favor da Coroa.

Esses bens são revendidos paulatinamente, à exceção da fazenda de Santa

Cruz, o que gera não apenas recursos para a Coroa, como também aumentam

as áreas públicas da cidade, com o surgimento de novas ruas e bairros115.

Quando da expulsão dos jesuítas, surgiram algumas tentativas para a

ocupação do complexo que havia sido entregue à Coroa. O bispo do Rio de

Janeiro, Francisco Xavier de Mendonça, sugeriu que fosse transferido o

convento de Nossa Senhora de Monte Carmo para o Colégio dos Jesuítas.116

Em 1766, no entanto, com a não concretização da transferência do Convento,

o vice-rei Conde da Cunha decide que o antigo Colégio será a residência dos

vice-reis. As obras para adequação do Colégio em residência teriam sido

iniciadas, mas a mudança não foi efetivada. No vice-reinado seguinte, do

Conde de Azambuja (1767-1769), o prédio foi transformado em Hospital Militar.

A igreja de Santo Inácio passou a ser a capela do hospital e a sacristia da

igreja cuja construção foi interrompida em 1759 passou a ser a quarta

enfermaria117.

114 AMANTINO, Márcia. A expulsão dos jesuítas da Capitania do Rio de Janeiro e o confisco de seus bens. R IHGB, Rio de Janeiro, a. 170 (443):169-191, abr./jun. 2009 115 ENDERS, Armelle. A História do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Gryphus, 2015, p. 77. 116 BARONCINI, Claudia Nóbrega. Subsídios para o estudo do Real Colégio das Artes e Ofícios da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: o caso da Nova Igreja. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p. 83. 117 Ibidem, p. 85.

68

A Escola de Anatomia, Medicina e Cirurgia – embrião da futura

faculdade de Medicina da atual Universidade Federal do Rio de Janeiro – teve

suas primeiras aulas no prédio do antigo colégio, transformado no Hospital

Militar. Transformada em Faculdade de Medicina em 1832, manteve-se no

prédio até 1856, quando foi transferida do alto do morro para o edifício do

Recolhimento das Órfãs, na rua Santa Luzia, próximo à Santa Casa da

Misericórdia do Rio de Janeiro.

No inicio do século XX, o prédio foi cedido à Santa Casa da Misericórdia,

que o transformou no Hospital Infantil São Zacharias (inaugurado em 1914). O

prédio permaneceu como hospital infantil até o desmonte do morro na década

de 1920. O hospital posteriormente foi transferido para o bairro de Botafogo.

A igreja que estava a ser construída pelos jesuítas quando da expulsão

foi transformada no Observatório Astronômico do Rio de Janeiro no período

entre 1846 a 1850118. O Observatório lá esteve até a década de 1920, quando

do desmonte do Morro do Castelo, e foi transferido para o morro de São

Januário, no bairro de São Cristóvão, onde permanece até os dias de hoje.

118 Ibidem, p. 125.

69

Capítulo VI – O retorno dos jesuítas ao Brasil no século XIX

Quando aos jesuítas fora permitido retornar suas atividades pelo papa

Pio VII, em 1814, o Brasil havia passado por transformações que alteraram

significavelmente sua posição no mundo. Em razão das Guerras Napoleônicas,

a Corte Portuguesa viu-se obrigada a deixar Lisboa em direção ao Rio de

Janeiro, que se transformava, de fato, na capital do Império Português. Em

1815, o país era elevado à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves e,

dentro de dez anos, teria proclamado-se uma nação independente, com um

governo autônomo e reconhecimento alcançado junto à Inglaterra, a nação

mais poderosa da Terra naquele momento, e do próprio Portugal.

A Coroa portuguesa, na figura do príncipe-regente e depois rei D. João

VI, fora contrária ao reestabelecimento da Companhia em terras brasileiras. Os

jesuítas só retornaram à terra brasilis em 1841, já no Segundo Reinado (1840 –

1889), do Império do Brasil, nação independente. Inicialmente, não entraram no

país como jesuítas, mas sim como “missionários” ou como religiosos auxiliares

do clero secular.119

É importante ressaltar como o regime do padroado120 dificultou a

restauração da Companhia de Jesus em solo brasileiro. Em 1855, uma lei

proibiu os noviciados no país até que se chegasse a uma reforma das ordens

religiosas, com a assinatura de uma concordata entre o Império do Brasil e a

Santa Sé. A lei perdurou até o fim do Império, já que não houve nenhuma

concordata entre o Brasil e a Santa Sé. Deste modo, foi praticamente

estabelecida a morte lenta e gradual das ordens religiosas no país.121

119 RODRIGUES, Luís Fernando Medeiros. O Retorno da Companhia, a partir das missões populares dos jesuítas espanhóis, no extremo sul do Brasil (1842-1867). In Revista História e Cultura, v.3, n.2, p.316-337, Franca: 2014. 120 O padroado era um regime em que ao rei português (e depois ao Imperador do Brasil) era delegado os direitos de organização da Igreja Católica em seu país, como, por exemplo, o direito à nomeação de bispos. Em contrapartida, o monarca deveria pagar salários aos párocos, recolher os dízimos eclesiásticos e promover a construção e a manutenção das igrejas. 121 MONDONI, Danilo. Os expulsos voltaram – Os jesuítas novamente no Brasil (1842-1874). São Paulo: Edições Loyola, 2014, p. 66.

70

A Companhia de Jesus nunca foi reconhecida legalmente durante o

Império do Brasil (1822 – 1889), apesar de tentativas para que isto

acontecesse, particularmente em 1854, o que não ocorreu em virtude da

mudança de postura do governo – se até aquele ano era tolerante com as

ordens religiosas, isto mudou a partir do ano seguinte, com a lei da proibição

dos noviciados. Apesar de sua ausência formal como ordem religiosa, a

Companhia esteve atuante por meio de seus religiosos presentes no país como

missionários sob a autoridade dos bispados locais, inicialmente nas regiões

mais meridionais do país, onde as fronteiras ainda não estavam

verdadeiramente consolidadas, primeiramente com jesuítas espanhóis e depois

com religiosos italianos e os de língua alemã.122

Durante o século XIX e ainda durante o Império do Brasil, foram abertos

alguns colégios por padres jesuítas em cidades como Desterro (atual

Florianópolis) em 1865, Itu (em 1867), Recife (1867) e Nova Friburgo (1886).

Alguns desses colégios tiveram vida efêmera, outros continuam em

funcionamento até os dias de hoje, fazendo parte da Rede Jesuíta de

Educação. O Rio de Janeiro, no entanto, esperaria até a virada do século para

a criação de um novo colégio jesuíta.

Com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, deixou

de existir razão para buscar-se o reconhecimento da Companhia de Jesus

como ordem religiosa, já que na República extinguiu-se o regime do padroado

e houve a separação do Estado e da religião, tornando-se o país oficialmente

laico. Sendo assim, os cidadãos poderiam constituir-se em grupos ou

sociedades independentemente da religião, ou seja, estava permitida a livre

associação de indivíduos.123

Os jesuítas puderam, enfim, voltar à capital do Brasil e retomar as

atividades eclesiásticas e educacionais que empreenderam durante mais de

duzentos anos no país, nos séculos XVI, XVII e XVIII. O prédio do antigo

colégio do Rio de Janeiro, no entanto, não foi reocupado pelos jesuítas em seu

retorno à cidade.

122 Ibidem, pp. 41 - 66. 123 Ibidem, p. 92.

71

Capítulo VII – O Colégio Santo Inácio: o legado jesuítico

Alguns colégios haviam sido fundados por padres jesuítas no século

XIX, como vimos no capítulo anterior, mas não na capital do Império e depois

da República, o Rio de Janeiro. Na virada para o século XX, a residência dos

jesuítas no Rio de Janeiro localizava-se no bairro do Flamengo, na rua Senador

Vergueiro, numa casa de número 35. Naquele local havia uma pequena escola

primária, onde o padre Alexandre Diomedi ensinava música e preparava as

crianças para a Primeira Comunhão.

Em 1903 era fundado, pelos padres jesuítas, o Externato Santo Inácio,

que mais tarde passou-se a chamar Colégio Santo Inácio.

A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em

edição comemorativa aos 100 anos do Colégio Santo Inácio, publicou textos de

autores pertencentes ao Instituto e que estudaram no Colégio. Na introdução, o

presidente do IHGB Arno Wehling, ele próprio também um ex-aluno da

instituição, no período de 1955-62, tenta recriar, com suas palavras, como

estava o clima político e religioso da época da fundação do Colégio. Diz Arno

Wehling:

“O contexto, em 1903, era francamente adverso ao catolicismo e à escola

confessional. O liberalismo, transitando para a democracia de nossos dias, condenava,

em quase todas as usas correntes, a cosmovisão religiosa. Os partidos socialistas,

marxistas ou não, e os movimentos sindicais na Europa e nos Estados Unidos

pregavam uma nova ordem e viam, quase sempre, a Igreja com as lentes voltairianas

do século XVIII. Os intelectuais estavam impregnados de cientificismo, quer na visão

positivista, quer na evolucionista, com suas concepções solidariamente fincadas no

determinismo de inspiração newtoniana.

(...)

Foi a este contexto que reagiu o catolicismo. Não mais como o

ultramontanismo de Pio IX, mas com a renovação do tomismo e a Encíclica social de

Leão XIII. Em vez de anatemizar o liberalismo, o socialismo e a ciência, como fizera

seu predecessor, o Papa Leão XIII sugeriu aos intelectuais opor ao materialismo ou ao

agnosticismo cientificista a coerência do realismo aristotélico-tomista; e sugeriu aos

72

homens de ação opor à luta de classes o solidarismo cristão e a doutrina social da

Igreja.

(...)

Assim, em 1903, quando foi fundado o Colégio Santo Inácio do Rio de Janeiro,

estava-se na maré montante da reação católica ao mundo, como este construíra entre

o Iluminismo e a Belle Époque. (...)”124

Em primeiro de julho de 1903 tinham início as primeiras aulas no

Externato Santo Inácio, localizado numa chácara alugada por 500 mil réis na

rua São Clemente, no. 132 (depois 226), no tradicional bairro de Botafogo,

sendo o seu reitor o padre Domingos de Meis. No início, apenas nove alunos e

um professor, a saber: sr. Francílio Marques – professor –, Amadeu Silva

Junior, Augusto de Saboia Silva Lima, Edgard José Soares Pereira, Flaminio

Hugo de Miranda, José Armando de Souza Ribeiro, Lucas Monteiro de Barros,

Marciano Rabello de Miranda, Raul Leopoldo Pinto Palhares e Roberto Vieira –

alunos125. Dois anos depois, em 1905, o número de alunos era de 92. Já cinco

anos mais tarde, em 1910, o Externato continha 267 alunos, e várias obras e

reformas começaram a ser realizadas a fim de se expandir o Colégio, com mais

salas e laboratórios sendo construídos.

Em 1934, assume como reitor o padre Leonel Franca, fundador e

primeiro reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio),

que fora inicialmente sediada em um prédio anexo ao Santo Inácio, de 1940 a

1955, comprado da família Joppert.

Quarenta anos após a sua fundação, o Externato Santo Inácio mudava

de nome, passando à atual denominação de Colégio Santo Inácio.

Na década de 1950, mais precisamente em 1956, era criado o Curso

Primário (hoje, ensino fundamental). No ano de 1968 foi aberto o curso

noturno, voltado para jovens e adultos que trabalham durante o dia. E foi

somente em 1971 que, pela primeira vez, era permitida no Colégio Santo Inácio

124

WEHLING, Arno. R.IHGB, Rio de Janeiro, 165 (422): 177-179, jan/mar 2004. 125 Relação dos nomes do professor e alunos segundo placa comemorativa dos 100 anos (1903-2003) do Colégio Santo Inácio, afixada na própria instituição.

73

a presença de alunas – o colégio, até então exclusivamente masculino,

tornava-se uma escola mista.

Atualmente, o Colégio Santo Inácio possui cerca de 4.300 alunos, entre

os ensinos fundamental e médio.

É importante notar que Vicente Paim-Costa, escrevendo a história oficial

do Colégio Santo Inácio quando do centenário da instituição126 considera que a

história da instituição se inicia com o Colégio de Jesus fundado em 1567.

Ao contar um pouco da história do Colégio Santo Inácio, vemos que o

apostolado da educação continua firme com os jesuítas na cidade do Rio de

Janeiro, mesmo depois do fechamento do Colégio de Jesus em 1759.

126PAIM-COSTA, Vicente. Colégio Santo Inácio 1903-2003: uma história que começou com o primeiro colégio carioca. Rio de Janeiro: Colégio Santo Inácio, 2004.

74

Capítulo VIII – O Morro do Castelo: segredos e tesouros dos jesuítas

As grandes riquezas deixadas no Castelo pelos jesuítas foram uma das minhas

crenças da meninice e da mocidade... Perdi saúde, ilusões, amigos e até dinheiro; mas

a crença nos tesouros do Castelo não a perdi. Imaginei a chegada da ordem que

expulsava os jesuítas. Os padres do colégio não tinham tempo nem meios de levar as

riquezas consigo; depressa, ao subterrâneo, venham os ricos cálices de prata, os

cofres de brilhantes, safiras, corais, as dobras e os dobrões, os vastos sacos cheios de

moeda, cem, duzentos, quinhentos sacos. Puxa, puxa este santo Inácio de ouro

maciço, com olhos de brilhantes, dentes de pérolas; toca a esconder, a guardar, a

fechar...127

O grande escritor brasileiro Machado de Assis conta assim suas

memórias sobre o morro do Castelo no conto “Conversa com São Pedro” e os

supostos tesouros que os jesuítas ali haviam deixado desde a expulsão da

Companhia de Jesus do Brasil em 1759. É com este trecho que começa o

primeiro capítulo da obra do professor e diplomata Carlos Kessel, ‘Tesouros do

Morro do Castelo – Mistério e história nos subterrâneos do Rio de Janeiro’ (Rio

de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2008). A obra de Kessel tem como não tem

como objeto “estabelecer a veracidade sobre alegações e lendas”, mas sim

“lançar uma luz sobre uma parte obscura do imaginário da cidade e divulgar um

aspecto pouco conhecido de sua história”.128

Partindo do mesmo pressuposto de Kessel, este capítulo pretende

relatar o fim do morro do Castelo, no qual estava localizado o antigo colégio

dos jesuítas, e que veio abaixo com o arrasamento do morro na década de 20

do século passado. Como objetivo também, tratar sobre a suposta riqueza dos

jesuítas perdida entre os vários caminhos subterrâneos embaixo do prédio do

Colégio.

127 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Conversa com São Pedro. In KESSEL, Carlos. Tesouros do Morro do Castelo: mistério e história nos subterrâneos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. 128 KESSEL, Carlos. Tesouros do Morro do Castelo: mistério e história nos subterrâneos do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

75

Grandes escritores e intelectuais brasileiros, como Machado de Assis,

Lima Barreto e Monteiro Lobato se envolveram, de uma forma ou de outra, nos

‘mistérios’ que rondavam o morro do Castelo, que com suas inúmeras galerias

subterrâneas poderiam esconder os mais preciosos tesouros supostamente

deixados pelos jesuítas desde o século XVIII.

O morro do Castelo, para onde a recém-fundada cidade de São

Sebastião do Rio de Janeiro fora transferida, em 1567, desde pelo menos finais

do século XVIII era alvo de médicos e intelectuais da época, que viam nos

morros da cidade e, principalmente, no Castelo, a “causa das moléstias [...] por

concorrerem para o calor do clima” e que “o mais nocivo é o do Castelo, porque

é o que obsta a viração do mar, vento o mais constante, o mais forte e o mais

saudável”129. Outro médico, José Maria Bontempo, pedia, em 1814, a

demolição dos morros do Castelo e Santo Antônio “para que a cidade se torne

mais elegante e majestosa”130. O bispo de Pernambuco, dom José Joaquim da

Cunha de Azeredo Coutinho, afirmava, em 1816, na obra Ensaio econômico

sobre o comércio de Portugal e suas colônias, que o Castelo “impedia toda a

viração do mar, tão necessária debaixo da zona tórrida”. Assim, o pensamento

para o arrasamento do morro não é algo apenas do século XX, dos ideais

modernizantes de pessoas como os prefeitos Pereira Passos (1836 – 1913,

prefeito do Rio no período 1902-1906) e Carlos Sampaio (1861-1930, prefeito

durante 1920-1922), mas sim vinha de tempos anteriores.

Pereira Passos é o prefeito do “bota abaixo”, da reformulação da zona

central do Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XX. Como disse o

historiador Jaime Benchimol, foi um “Haussman tropical” – lembrando o barão

que reformou a Paris de Napoleão III no século XIX.

Carlos Sampaio, engenheiro tal como Pereira Passos, foi o responsável,

como prefeito, por, finalmente, dar início às obras para o desmonte do Morro do

Castelo, que foi o grande feito da sua gestão. Esta obra iniciou-se em

novembro de 1920, com uma máquina escavadora utilizada antes na

demolição do Morro do Senado. O prefeito elaborou quatro questões que

129

Relato do médico Manoel Joaquim Moreira no ano de 1813, conforme descrito por Kessel (2008). 130 Memórias sobre algumas enfermidades do Rio de janeiro in NONATO, José Antônio; SANTOS, Nubia Melhem (org). Era uma vez o Morro do Castelo. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000.

76

deveriam ser solucionadas em relação ao Castelo: a) do desmonte do morro; b)

do destino a dar às terras e ao local onde as utilizar; c) do sistema de

transporte; d) da melhor forma de arrimar as terras no aterro, protegendo-as

contra o embate das águas e, como consequência, onde buscar o volume

necessário131.

Faltava também obter as licenças necessárias dos ministérios da

Marinha, Fazenda e Viação e em obter a permissão eclesiástica para demolir

as igrejas situadas no morro.

Um “incentivo” para a demolição do Castelo era a Exposição do

centenário da Independência que ocorreria em 07 de setembro de 1922. Os

pavilhões da exposição seriam construídos em áreas aterradas pelas terras

provenientes do Morro do Castelo.

Conseguidas as licenças, as obras de demolição, depois de um contrato

feito com a firma Soares & Cia, começaram, só que seu progresso foi bastante

lento. Tendo em outubro de 1921 a Prefeitura assinado um novo contrato com

a firma de engenharia Kennedy & Co, com a contração de novo empréstimo,

substitui-se a empresa responsável e o método utilizado na empreitada: saíam

as escavadoras e entrava o método hidráulico, onde o morro seria demolido

através de potentes jatos de água capturada do mar. O volume do morro, de

4,6 milhões de metros cúbicos, não tinha perdido mais do que dez por cento de

sua metragem quando a nova empresa foi contratada e o método hidráulico

começou a ser utilizado, em fins de 1921.

O método hidráulico aumentou a velocidade da demolição

consideravelmente, e permitiu que a Exposição do Centenário da

Independência ocorresse como planejado. O mandato do prefeito Carlos

Sampaio terminava em 15 de novembro de 1922 e, nos meses finais, o ritmo

das obras se intensificou. A última construção a ruir foi, ironicamente, o prédio

do antigo Colégio. Mas, e os tesouros?

131 KESSEL, Carlos. A vitrine e o espelho – o Rio de Janeiro de Carlos Sampaio. Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001.

77

Em 1905, no governo do prefeito Pereira Passos e durante as obras

para a abertura da Avenida Central (hoje chamada Avenida Rio Branco), uma

parte do Morro do Castelo foi derrubada. No dia 26 de abril, foi achada a

entrada para uma galeria abobadada de pedra que corria para dentro do morro.

A descoberta atraiu milhares de visitantes, inclusive o próprio presidente da

República, que adentrou pela galeria, no dia primeiro de maio. Seria esta a tal

rede de galerias por onde os jesuítas passaram para esconder seus tesouros?

Foram descobertas, com mais explorações, outras galerias, além de

salas e respiradouros. Mas o tão esperado tesouro não foi encontrado.

Professor da Escola Naval, o almirante João Nepomuceno Batista

entregou ao chefe da comissão para a construção da Avenida Central, André

Gustavo Paulo de Frontin, alguns documentos sobre os subterrâneos do

Colégio dos Jesuítas, dentre eles uma ata, que teria sido escrita em 5 de

dezembro de 1758. No mês de maio de 1905 a ata foi publicada na Revista

Renascença. Dizia assim:

“Congregada a Companhia por ordem superior transmitida pela Casa Central

de São Roque, verificou-se que os haveres montam nessa província e seus domínios,

até esta data, nos seguintes: em ouro em pó três mil arrobas em moedas de ouro de

diversas espécies 25 e meio milhões de cruzados. Uma imagem de Santo Ignácio de

Loyola com 220 arrobas de ouro. Alfaias 560 8/m cruzados, um diamante com 24-3- e

11 quilates e três quartos. Remeteu-se para Roma a Coroa da Imaculada Conceição no

valor de 260 m/o + ados por ordem anterior de sua paternidade...Foi na nau N. S. das

Dores. Item à Casa Central de S.Roque um pequeno cofre de prata contendo o

diamante grande e um rubi de Ceilão: foi portador o padre Manuel. Item pela frota em

que foi o padre Luiz Gonçalves 20 milhões de cruzados para a Casa Central de S.

Roque. O restante ficou encerrado nos cofres declarados nos livros secretos, bem

como no segredo de cada cofre. Deliberou-se por maioria pôr a salvamento esses

cofres transferindo-os para as galerias que rodeiam o morro pelos lados externos,

tornando-os impenetráveis ... Na do lado da Santa Casa fica oculto o arquivo da

Companhia para facilitar-se o embarque... Obstruirão se as entradas das obras

internas, por inúteis. O segredo das galerias vai no lugar competente explicado em

caráter reservado ao Superior e irmãos do competente voto. VI. Amém. O coadjutor,

Miguel da Costa - Visitador.”

78

A acreditar-se no conteúdo da ata, encontramos uma vasta quantidade

de ouro e riquezas em posse dos jesuítas. Certamente, com tantas terras, com

prédios, engenhos, fazendas, os jesuítas movimentaram muitos recursos em

mais de 200 anos de Rio de Janeiro. Mas, seria a ata verdadeira? Para nós,

isto não é o mais importante, visto que o interessante, para o nosso estudo,

neste capítulo, é o efeito que este suposto tesouro causou na população

carioca.

Com as galerias sendo exploradas e nada de grande valor sendo

achado, a não ser um crucifixo de ouro de aproximadamente 8 cm e um

candeeiro de ferro que ficaram, respectivamente, com Rodrigues Alves

(Presidente da República) e o engenheiro Paulo de Frontin – apesar dos

protestos do escritor Lima Barreto, que queria que as peças fossem para o

Museu Nacional –, o interesse dos jornais e revistas da época no tesouro dos

jesuítas foi esvaindo-se. A abertura da Avenida Central, em 15 de novembro de

1905, capturou a atenção de todos na cidade e o tesouro dos jesuítas parecia

ter sido esquecido.

Os tesouros escondidos dos jesuítas, no entanto, já eram utilizados até

como meio para o financiamento do desmonte do Castelo desde pelo menos o

século XIX. Na supracitada obra Ensaio econômico sobre o comércio de

Portugal e suas colônias, de 1816, o bispo Azeredo Coutinho diz, a respeito do

financiamento das obras para o arrasamento do morro do Castelo, que

“bastaria que se mandasse avaliar os prédios do morro e que uma companhia

de negociantes se obrigasse a pagar aos proprietários, conforme se ajustasse; ficando

para os associados, livre de todos os direitos, o ouro extraído do subsolo”. [grifo

nosso].

Temos aí um exemplo de que a crença nos tesouros dos jesuítas não

apenas pertencia a um povo inculto, mas que foi discutida seriamente por

intelectuais da época.

Durante todo o século XIX foram discutidas várias opções sobre o que

fazer com o morro do Castelo, que padecia com desmoronamentos, às vezes

com perda de vidas. Em 1860, uma lei autorizou o governo a contratar

79

companhia ou empresários que oferecessem as melhores condições para a

demolição do morro. Só em 1873 conseguiu Joaquim Antônio Fernandes a

autorização para o prosseguimento com as obras para o arrasamento dos

morros do Castelo e de Santo Antônio. Como as obras não começaram, o

contrato caducou em 1886. Em 1890, o governo provisório da República

autoriza o engenheiro Carlos Sampaio (sim, o mesmo que seria apontado

prefeito do Rio de Janeiro na década de 1920) e Manuel Matos a concessão

para o arrasamento, o que não se concluiu em razão da crise financeira que o

país atravessava naquele momento (o chamado Encilhamento).

No século XX, muitos foram os que solicitaram ao Congresso Nacional

concessão para a demolição do morro, mas nenhum projeto foi adiante até

Carlos Sampaio assumir a prefeitura.

Com a destruição do morro do Castelo, apesar dos protestos de pessoas

como os escritores Monteiro Lobato e Lima Barreto, qualquer tesouro

escondido teria se perdido em meio a terra e lama resultante do arrasamento.

O morro tinha sido destruído em nome do “progresso” e, assim, o prédio

histórico do Colégio foi também arrasado.

Terminamos este capítulo, então, com uma passagem do escritor Assis

Memória, publicada na revista Careta, de 22 de outubro de 1921, sobre o

verdadeiro tesouro dos jesuítas:

"(...) Lembra-me a parábola do pai moribundo, que chamou os filhos e anunciou

solene: – “No terreno, ao fundo, cavai; e encontrareis uma riqueza oculta”. Morrendo o

pai, os filhos revolveram o terreno em todas as direções, e não descobriram as

riquezas apregoadas. É que o moribundo aludira ao trabalho. Trabalhai, cavai o solo,

plantai, e colhereis tesouros. São assim as riquezas enterradas pelos jesuítas no Brasil,

desde as margens do Tietê até os cimos solenes da Ibiapaba. Os tesouros que eles

nos legaram são estes: as tradições da fé e de civilização. Não são ricas as

nações somente de riqueza material. São-no também da riqueza do seu

patrimônio moral e intelectual. Eis o que nos transmitiram os Nóbregas, os

Vieiras, os Anchietas. No Morro do Castelo, os tesouros por eles enterrados são

os gloriosos símbolos da crença e da nacionalidade. (...)”132

[grifo nosso]

132 ASSIS MEMÓRIA. “Os tesouros do Castelo” in NONATO, José Antonio; SANTOS, Nubia Melhem. Era uma vez o Morro do Castelo. Rio de Janeiro: IPHAN, 2000.

80

Considerações Finais

A Companhia de Jesus, com seu trabalho apostólico e educacional, foi

uma das principais forças do século XVI na expansão da fé católica e combate

às "heresias" da Reforma Protestante pelo mundo. E é inegável o papel dos

jesuítas na construção do Brasil. Fundaram colégios, igrejas, casas,

residências, estabelecendo bases para a colonização da terra. O Colégio de

Jesus do Rio de Janeiro foi parte deste esforço e ocupou um papel

fundamental na fundação, pacificação e formação da cidade.

Com esta pesquisa, propusemos revelar aspectos da história do Colégio

de Jesus do Rio de Janeiro, instituição fundada e mantida pelos jesuítas, que

teve seu início apenas dois anos após a fundação da cidade, interrompeu suas

atividades em 1759 e cujo prédio foi destruído em 1922.

A instituição Colégio de Jesus do Rio de Janeiro possuía formalmente os

bens que os jesuítas administravam na capitania e regiões próximas, como os

diversos engenhos e fazendas. Além de seu notório trabalho educacional,

ensinando aos filhos dos colonos, catequisando os indígenas e também

formando novos religiosos, os jesuítas tiveram ainda uma participação deveras

importante na economia colonial, com grandes propriedades de terra e os

supracitados engenhos e fazendas.

Essa grande participação nos aspectos econômicos da vida colonial por

muitas vezes fez com que colonos e jesuítas estivessem em lados opostos,

principalmente em relação à liberdade dos indígenas. Enquanto os jesuítas

"protegiam" os índios da escravização em seus aldeamentos, onde os nativos

trabalhavam e viviam como cristãos, sob a supervisão dos padres inacianos, os

colonos creditavam aos padres um jogo duplo: os índios poderiam trabalhar

para os padres, mas não para os colonos. A situação gerou alguns

desconfortos durante os duzentos anos aproximadamente em que a

Companhia esteve em terras brasileiras e, especificamente, em solo carioca,

culminou com a tentativa de invasão, pela população, ao Colégio em 1641, em

81

um intento contra a vida dos padres, situação que só foi contornada com a

intervenção do próprio governador do Rio de Janeiro.

Um sentimento antijesuítico na população, acumulado pelos anos em

que os inacianos estiveram no Brasil, pode explicar o porquê da falta de

comoção dos populares quando da prisão dos padres no Colégio em fins de

1759 e de sua expulsão em março do ano seguinte. Claro que, no período, os

jesuítas também conquistaram vários admiradores e pessoas que

simpatizavam ao trabalho desenvolvido e sua causa e a reação popular à

expulsão pode ser explicada pelo medo da repressão governamental.

Sobre o Colégio, que, junto com seus similares na Bahia e Pernambuco,

foi um colégio real, com a dotação do rei de Portugal, o mesmo passou e foi

protagonista de alguns episódios importantes da história da cidade. Neste

trabalho procuramos recuperar e relatar os acontecimentos em que o Colégio

ocupou uma posição central, a partir da fundação do próprio Rio de Janeiro,

onde os jesuítas tiveram atuação destacada. Na história dessa instituição,

passamos pela festa que ocorreu no Colégio quando da Restauração de

Portugal como reino independente da Espanha; da perseguição aos jesuítas no

ano seguinte, quando populares tentaram invadir o colégio atrás dos inacianos;

a contribuição decisiva que deram os estudantes do Colégio dos Jesuítas na

defesa da cidade, com a criação de uma companhia de estudantes que lutou

contra os invasores franceses na fracassada tentativa do corsário Duclerc, em

1710, em conquistar e saquear o Rio de Janeiro. E ainda temos, no ano

seguinte, em 1711, uma outra tentativa de invasão pelos franceses, desta vez

bem-sucedida, do comandante Duguay-Trouin, mas que contou com a decisiva

mediação dos jesuítas, alardeada até pelos invasores, de que foram os padres

que evitaram a aniquilação da cidade.

Vimos também os processos contra os inacianos que culminaram com

sua expulsão em 1759, e a concentração de padres provenientes de diversas

partes do Brasil no Colégio do Rio de Janeiro, antes de serem levados para

Portugal no início do ano seguinte e de lá para prisão ou exílio. O fechamento

do colégio naquela época, sendo ele transformado depois em hospital, a igreja

de Santo Inácio em observatório; e, finalmente, passamos por sua destruição

82

no século XX, quando, em nome do “progresso”, o Morro do Castelo, onde

estava localizado o colégio, foi derrubado, privando as gerações futuras de

uma peça importante na História da cidade e do Brasil.

Debruçamo-nos, ainda, como não poderia deixar de ser, sobre o papel

do Colégio como instituição de ensino. O Colégio possuía cursos, quase todos

abertos à população, que variavam desde os níveis mais básicos (como as

aulas de ler, escrever e contar) até os de nível superior (como o curso de Artes

ou Filosofia). Vimos que o ensino gratuito foi uma das características principais

da educação inaciana, o que permitiu que alunos de diversos níveis pudessem

estudar.

Depois da expulsão dos jesuítas em 1759, a Companhia de Jesus foi

suprimida pelo Papa Clemente XIV em 1773 e, restaurada em 1814, puderam

os inacianos retornar ao Brasil. No Rio de Janeiro, contudo, um novo colégio só

foi ser fundado em 1903 – o Externato Santo Inácio, mais tarde tendo sua

nomenclatura mudada para Colégio Santo Inácio. Os jesuítas, assim,

continuavam com o apostolado da educação na antiga capital federal e hoje

“capital cultural” do Brasil.

Esperamos que este trabalho seja de valia para futuros pesquisadores

da história dos jesuítas no Brasil ou da cidade do Rio de Janeiro.

83

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VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil colonial (1500-1808). Rio de

Janeiro: Objetiva, 2001.

VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: Moral, sexualidade e inquisição no

Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

WEHLING, Arno. Colégio Santo Inácio. Revista do Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 165 (422): 177-179, jan/mar 2004.

89

ANEXO I

Reitores do Colégio dos Jesuítas do Rio de Janeiro

Apresentamos abaixo uma lista com os reitores do Colégio de Jesus do

Rio de Janeiro. As datas entre parênteses não indicam necessariamente o

início ou fim do reitorado, mas sim que naquele(s) ano(s) o reitor estava no

cargo.

Padre Manuel da Nóbrega (1567 – 70)

Padre Gonçalo de Oliveira (1570 – 73)

Padre Braz Lourenço (1573 – 76)

Padre Pedro de Toledo (1576 – 83)

Padre Inácio Tolosa (1583 – 91)

Padre Fernão de Oliveira (1592)

Padre Francisco Soares (1594)

Padre Fernão Cardim (1594 – 98)

Padre Francisco Soares, 2ª vez (1598 – 1601)

Padre Leonardo Armínio (1602)

Padre Manuel de Oliveira (1602)

Padre Domingos Coelho (1604)

Padre Marcos da Costa (1610)

Padre Fernão Cardim, 2ª vez (1613)

Padre António de Matos (1617)

Padre João de Oliva (1621)

Padre Francisco Fernandes (1627)

Padre Francisco Carneiro (1628)

90

Padre Inácio de Sequeira (1628)

Padre Baltasar Fernandes (1631)

Padre Francisco Carneiro, 2ª vez (1632)

Padre José da Costa (1640)

Padre Simão de Vasconcelos (1646)

Padre António Rodrigues (1649)

Padre Manuel da Costa (1652)

Padre Francisco Madeira (1655)

Padre António Forti (1659)

Padre Francisco Madeira, 2ª vez (1662)

Padre Francisco de Avelar (1663)

Padre Manoel Ribeiro (1667)

Padre Simão de Vasconcelos, 2ª vez (1670)

Padre Manuel André (1677)

Padre Jacinto de Carvalhais (1678)

Padre Barnabé Soares (1679)

Padre Jácobo Cócleo (1683)

Padre Domingos Barbosa (1685)

Padre Mateus de Moura (1689)

Padre Francisco de Matos (1693)

Padre Baltasar Duarte (1698)

Padre Manuel Côrtes (1701)

Padre Estêvão Gandolfi (1702)

Padre Filipe Coelho (1706)

91

Padre Francisco de Souza (1710)

Padre Miguel Cardoso (1716)

Padre Estêvão Gandolfi, 2ª. Vez (1719)

Padre Manuel Dias (1720)

Padre Luiz de Carvalho (1724)

Padre António Cardoso (1727)

Padre Salvador da Mata (1731)

Padre Marcos Coelho (1735)

Padre Luiz de Matos (1736)

Padre Simão Marques (1737)

Padre Francisco Xavier (1742)

Padre António Cardoso, 2ª vez (1746)

Padre Tomaz Lynch (1748)

Padre Roberto de Campos (1750)

Padre João da Mata (1752)

Padre Marcos de Távora (1753)

Padre Félix Xavier (1754)

Padre Manuel Ferraz (1759)

92

ANEXO II

O transcrito abaixo é uma carta do bispo do Rio de Janeiro, dom Antônio

do Desterro, ao conde de Oeiras (futuro Marquês de Pombal), datada de 20 de

fevereiro de 1761.

Relação sobre o deplorável estado a que chegou a Companhia nesta província

do Brasil

A Companhia que Santo Inácio fundou para bem universal do mundo,

instrumento da conversão dos infiéis, redução dos hereges e reforma dos

católicos chegou a tanta decadência estado tão deplorável neste Brasil que já

hoje servia mais para destruir do que para edificar, mais corromper os povos do

que para os ajudar, mais para escândalo do que para o bem das almas. A torpe

lassidão em que vivia os jesuítas, a monstruosa corrupção de costumes a que

tinham chegado esses homens faziam no Brasil a essa família não só inútil,

mas absolutamente perniciosa, abominável e merecedora de perpétua abolição

para que a corrupção de tão grande e tão dilatado o corpo não acabasse de

envenenar sem remédio aos indivíduos destas conquistas. Essa verdade plena

muito penetrou o padre José Geraldes, que na Companhia, já sacerdote e de

madura idade. Esse padre, depois de estar em Lisboa nove anos por

procurador geral, veio a esta província feito Provincial e depois de visitar os

colégios de norte a sul, e ver com seus olhos e apalpar com a experiência a

incorrigível devassidão e irremediável soltura dos jesuítas, disse-o

publicamente que entrava na Companhia enganado, e que nunca supunha

haver tanta diabrura em uma família religiosa, motivo por que renunciara ao

Provincialado. Mas com a consulta lhe não quisesse aceitar a renúncia,

escreveu ao geral Inácio Visconte alegando que se não atrevia com a

província. Aceitou o Geral a renúncia e mandou patente ao padre João

Honorato, tendo dito Geraldes apenas um ano de Provincial. Nada disso

podem negar os jesuítas, porque com a renúncia se fez público neste Brasil o

motivo dela. No mesmo conceito viviam velhos timoratos, como o padre

93

Antônio de Moraes, que contava mais de 80 anos, o qual, sendo agora Reitor

do Colégio da Bahia, andava gemendo pelos corredores e dizendo a todos –

está perdida a província, a Companhia está muito amarela. Veja o padre

Lourenço Ricci, que é o geral que agora existe; veja e reveja os papeis de seu

antecessor Luís Centurioni e achará em umas cartas sérias e zelosas desta

província estas palavras que assaz explicam o lastimoso estado desta

Sociedade – oh Sr. Paternitas vestra Provinciam istam peragxare quantum hiret

saper Mam! Super Ey providentiam, ve pax est, adhibere digne tur, ne Societas

in Brasilea ad ultimum pallepa.

Veja mais o traslado de uma carta do Vigário-Geral João Antônio

Thimozi escrita a esta província haverá 4 anos na qual descreve e lamenta o

estado deplorado desta província. Não a podem negar, porque se mandou ler

publicamente essa carta em todos os Colégios e se achavam certamente

traslados nos papéis que pelos Colégios se confiscaram, se não tiveram a

costumada providência de os queimar.

Mas para falar com mais individuação e mais facilmente apontar fatos

inegáveis irei correndo os Colégios, com suas fazendas e aldeias respectivas,

e apontarei só o que chegou à minha noticia, que posso jurar ser a mínima

parte do que neste Brasil obraram os jesuítas.

(...)

Colégio do Rio

Nesse colégio o padre Antônio Teixeira viveu muitos anos amigado com

uma parda chamada Inácia, a qual introduzia de noite a correr o colégio, depois

à porta do mesmo reverendo Simão Marques cometia o seu pecado. Por uma

vez, oito dias inteiros a teve no cubículo e, pouco satisfeito, saía muitas vezes

de noite a fartar com outras o seu apetite. Chegou a tanto seu desafouro que,

acompanhado do padre Tobias e do leigo Torres, pintaram a porta do

reverendo com excremento humano. Esse leigo também recolhia a sua quase

todas as noites e como, por ser refeitoreiro, tinha a chave do refeitório, para lá

a levava; era crioula forra chamada Bárbara e vizinha do colégio.

94

Imagine ladrões havia nesse colégio, o padre Miguel Carlos entrou

furtivamente no cubículo do reitor por uma janela e lhe furtou quinhentos mil-

réis. O padre N. Alves roubou em uma noite ao prefeito da igreja uma grossa

quantia. Bem sei que foram despedidos. Mas que se fez ao padre Luís de

Albuquerque, que em 24 anos em que foi procurador de causas tantas terras

furtou para a religião? Era vulgar entre os mesmos jesuítas que nunca perdera

demanda alguma, porque se via alguma mal parada furtava aos autos custasse

o que custasse. Assim o fez com a célebre demanda das capivaras do Colégio

da Bahia, que, estando-se já concluídas contra o colégio, corrompeu a uma

escrava do escrivão e por esse meio houve às mãos os autos, e ainda hoje os

conservava em seu poder e sem o menor reparo os mostrava. Eu os vi e os

viram muitos dos egressos, como o padre Estêvão de Souza, o padre Pedro

Barreiros etc.

O mesmo fez em uma bem-renhida demanda dos religiosos de São

Bento, os quais se queixaram ao gral da Companhia, que mandou restituir os

táis papéis furtados com riso desta cidade. Esse mesmo foi com um certo

ministro a medição das terras dos goitacases e aqueles moradores ainda hoje

se queixam dele. Não sei o que há por lá fez, só sei que por essa medição

deram ao ministro quinze mil cruzados e, certamente, se não esportolariam

dessa sorte se o Ministro não fizesse a vontade ao dito procurador, que o

acompanhava. Sei que por lá o queriam matar e a companhia do ministro o

livrou. O padre Silvério Pinheiro também foi procurador de causas e fez belas

coisas; porque pedia confidência aos escrivães e tabeliães, escrituras, doação

e testamento e os adulterava, pondo e tirando folhas, acrescentando e

diminuindo o que lhe parecia. Para isso conservava no colégio refugiado um

insigne tratante, que fingia perigrinamente qualquer letra e até as tintas.

Mandou fazer muitas marcas e com esse mesmo homem os foi furtivamente

meter por donde lhe pareceu para ampliar as fazendas. Tudo isso contava o

mesmo homem que se chamava N. de Almeida, e o caixeiro do Colégio, que

então era Domingos Alves, de tudo é sabedor.

No Engenho Novo desse colégio foram superiores os padres João

Duarte e Joaquim de Moraes, homens de mau viver, de quem se diz tem filhos

95

nessa fazenda, como tetifica o provedor da Fazenda Real Francisco Cordovil

Siqueira e Mello, que tem sua fazenda ao pé desse engenho. No Engenho

Velho modernamente foi superior o padre Luís Cardoso, homem o mais

prostituto, que jamais se viu. Poucas escravas lhe escaparam e muitas vezes à

força de castigo sujeitava aquelas miseráveis vítimas a sua carnalidade e era

tão torpe que as castigava ou mandava castigar à sua vista para as ver

descompastas. A uma mulata chamada Cecília, depois de solicitando largo

tempo, vendo que lhe resistia, em um dia da Conceição a apanhou em casa e

depois de grande luta, vendo que a não podia forçar a seu gosto, saciou o seu

apetite como pôde e tão torpe e brutalmente que não cabe na minha pena. O

caso foi público em toda a fazenda, não só pelos clamores da mulata, mas

porque da sorte que ficou saiu e foi meter em um rio, para se lavar dois

imundos vestígios da torpeza. A fazenda toda é testemunha, o próprio marido

chamado Laureano, hoje assistente nesta cidade, oficial de ferreiro e forro.

Também é boa testemunha o padre Teodósio Pereira, sacerdote egresso.

A Quinta de São Cristóvão tem sido uma Sodoma; principalmente nos

tempos que leram filosofia os padres Manuel de Araújo, Manuel Cardim e

Francisco de Faria, cujos discípulos, sem temor de Deus, nem vergonha dos

homens, pelas cercas, velados e matas, gastavam o dia todo com as escravas

e outras mulheres, que para esse intento faziam ir da cidade; assinalando-se

entre todos os padres João Veloso, Antônio dos Reis, Manuel Álvares, Manuel

do Rego e João das Neves. O padre João Caetano agora de próximo teve um

filho nessa fazenda da mulher do mulato Francisco Ferrão, para cuja alforria

deixou dinheiro quando com os demais se embarcou para Portugal. Se forem

perguntados aos escravos dirão isso e muito mais.

Na Fazenda de Macaé foi superior do Padre José dos Reis, de quem se

contam coisas horrorosas. Tratou com escândalo com uma mulher branca sua

comadre. Os escravos e escravas que falavam dele eram castigados

barbaramente mandando ir alguns à igreja com freios na boca e a algumas

mandando-lhes esfregar à boca pimentas e com o mesmo molho as partes

inferiores. Foi visitar essa fazenda o padre Cristóvão Cordeiro e por empenhos

absolveu de culpa e pena ao tal superior. Mas o seu mesmo companheiro José

96

Freire, voluntário egresso da Companhia, que se acha em Pernambuco,

confessa desse padre ainda piores coisas e o confirma a vizinhança.

Em campos novos era superior o padre Manuel de Andrade, o qual,

além de outras desenvolturas, tratava mal uma parda mulher do ferreiro N. de

Mello; porque solicitada muitas vezes, nunca quis consentir. Não o poderá

negar, porque além da mulata e marido tem nessa cidade duas testemunhas

verídicas, que são o padre Teodózio Pereira e o ferreiro Laureano, de quem a

dita parda é madrasta.

Na Fazenda dos Goytacazes há mais de 30 anos que era superior ao

padre Miguel Lopes, régulo naquelas partes. Desse padre é atribuída uma

morte como ainda hoje firmemente supões naquela capitania. São conhecidos

vários filhos que teve de uma escrava, com quem vivia amancebado largos

anos. Das mais insolências fará fiel relação aquele povo, se for perguntado.

Da Fazenda de Santa Cruz, era superior, também há muitos anos, o

padre Pedro Fernandes, homem tão absoluto que passando pela fazenda os

soldados que vinham ao Registro, Depois de os descompor e ultrajar, lhe

mandou violentamente tomar as armas e certamente sairia em maiores

destemperos se o padre Francisco Ferreira não saísse a acomodar tudo. O

ferreiro Laureano, que lá se achava, presenciou tudo, e a fazenda toda. Foi

acusado a Roma várias vezes; mas como dava muito dinheiro; e tudo se

sanava, até que estando ano passado em sua companhia o padre Francisco

Cordeiro e vendo a crueldade com que castigava a um escravo, que se

queixava por lhe ter deflorado e emprenhado uma filha, e o excesso com que o

buscou depois de fugido e chegando a ir em traje de secular atrás dele com o

capitão do mato, deu parte de tudo a Roma, e com estava já a Companhia

Portuguesa perturbada e a ponto de estourar, por medo mandou o geral

apressadamente tirá-lo do superioriado. Assim se fez as vésperas do bloqueio

desse colégio, e estando fazendo entrega da fazenda ao padre Francisco

Manuel, chegou o Ministro a buscá-lo e tomar a entrega da fazenda. Todos os

jesuítas sabem que falo a verdade e o mesmo geral em cuja mão há de estar

uma carta do padre Francisco Cordeiro feita poucos meses antes do bloqueio e

remetida por um franciscano, e nela lerá miudamente o que eu refiro só em

97

sustância e outras muitas coisas que eu não aponto. Nela lerá as justíssimas

queixas que faz esse padre de que o padre Francisco de Almeida, sendo tantas

vezes visitador daquela fazenda, por justas copiasse tantos escândalos do

padre Pedro Fernandes.

Ao pé dessa fazenda ficava a Aldeia Itaguaí, onde foi superior o padre

Manuel de Araújo, que sendo velho era depravadíssimo, pois maltratava

aquelas raparigas que se não lhe queria sujeitar. Diga a Barbara, a quem

muitas vezes a castigou por essa causa, até que desesperada fugiu da aldeia

com seus parentes. São testemunhas disso toda a aldeia e seu próprio

companheiro, o padre Manuel de Oliveira, que tudo presenciou e se acha nesta

cidade voluntário egresso. Seguiu-se depois dele no superiorado da mesma

Aldeia de Itaguaí o padre José Xavier, monstro de lascívia cujos escândalos,

torpeza e desenvolturas com as índias, principalmente com a mameluca

Germância, são públicos e não há militar que não saiba, por ser essa aldeia o

caminho ordinário do destacamento que, a cada seis meses, vai desta praça

para o Registro. Na Corte se acha o padre Gonçalo Alexandrino, que foi seu

companheiro nessa aldeia, o qual, condoído do que via, escreveu um papel em

que desse superior apontava coisas horrorosas e o entregou ao provincial João

Honorato. E que caso fez o provincial? Tudo se tapeou, tudo se sanou, e o

castigo que lhe deu foi manda-lo continuar mais um ano por superior na mesma

aldeia e no seguinte manda-lo por visitador a Pernambuco, de donde outro

tempo tinha sido removido por mil escândalos, e fazê-lo logo vice-reitor do

Colégio e Seminário da Paraíba, tudo por duzentos ou trezentos mil-réis que

deu ao tal provincial João Honorato, como pode dizer o padre Gonçalo

Alexandrino, que é um dos professores que ficaram na Corte.

Nas Aldeias de São Barnabé paravam na mão do padre procurador

Antônio Leão, neste Colégio do Rio, quatro mil cruzados pertencentes aos

índios, os quais arrecadou João Honorato, provincial o mais ambicioso que eu

conheci. Não o pode negar, porque tudo andou em papéis públicos pelos

tribunais nesta cidade.

Nessa ocasião em que esses papéis corriam, tratavam de mostrar-se

libertos vários mulatos do colégio, entre os quais era o mulatinho Miguel, que

98

tinha no colégio servido de amásio a muitos jesuítas, e como se achava livre

deles, referia por casa dos ministros incríveis torpezas que com ele obravam os

padres, mil brigas, ódios, etc entre uns e outros por seu respeito. E não é isso

coisa nova, porque não só escandalizavam ao mundo com estudantinhos pelos

pátios, sacristias, coros, portarias, cubículos, etc, mas causavam horror o que

faziam com os próprios escravos. Digam as porquíssimas bulhas do padre

Albuquerque, velho de mais de 70 anos, com o padre José Caetano por causa

do mulato Lourenço; as do padre José Caetano com o padre João da Rocha;

as do padre Alexandre dos Reis com o padre José de Paiva, aqueles pelo

mulato José Ferreira, esses pelo mulato Francisco Ferraz, etc.

Dessa sorte criados, como podiam ser úteis para a salvação das almas e

edificação do próximo. Como? Eu digo, veio Dom Antônio Rolim de Moura para

governador de Cuiabá e Mato Grosso, com ordem de levar consigo a dois

jesuítas para missionários, para esse fim, depois de acusarem os padres Lima

e Vale, se ofereceram os padres Estevão de Castro e Agostinho Lourenço. Do

padre Estevão de Castro escreveu logo o padre José Xavier a Roma, que se

oferecera – Nom animarum zelo ductas se de corpi irretitus ambitione. Foram

em companhia daquele governador e contudo fizeram de gastos a Fazenda

Real perto de cinco mil cruzados. E que bem fizeram lá postos? Viveram

sempre escandalosamente inimizados e o padre Estevão se embaraçou com

capitações etc. sobre as quais causas não me quero deter mais, porque

suponho a Sua Majestade ciente pela acusação que dele fizeram os povos

daquelas minas.

(...)

Isso é tudo que sei; mas só relato que vi e sucedeu de 15 a esta parte e

tudo se achará certo, como refiro, se fizer jurídica averiguação. 20 de fevereiro

de 1761.