A. G. ROEMMERS O REGRESSO DO JOVEM...

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Tradução de Elsa T. S. Vieira A. G. ROEMMERS O REGRESSO DO JOVEM PRÍNCIPE

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Tradução de

Elsa T. S. Vieira

A. G. ROEMMERS

O REGRESSO DO JOVEM PRÍNCIPE

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Capítulo I

Ia de carro por uma estrada isolada na Patagónia (aquela terra que foi buscar o seu nome à tribo nativa supostamente com gran-des pés ou «patas») quando, de súbito, vi à beira da estrada um volume de aspeto estranho. Instintivamente, abrandei e, para meu grande espanto, vi uma madeixa de cabelo loiro a espreitar

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de baixo de um cobertor azul que parecia estar enrolado à volta de um corpo humano. Parei o carro e, quando saí, fui comple-tamente apanhado de surpresa. Aqui, a centenas de quilóme-tros da povoação mais próxima, no meio de uma faixa de terra deserta onde não se via qualquer casa, cerca, nem sequer uma árvore, um jovem dormia placidamente sem o mínimo indício de preocupação no rosto inocente.

Aquilo que eu confundira com um cobertor era, na realidade, uma grande capa azul com dragonas, sob a qual conseguia agora ver um forro encarnado e um par de calças brancas, como cal-ças de equitação, enfiadas num par de botas de cabedal pretas e brilhantes.

O conjunto dava -lhe um ar principesco, incongruente nestas latitudes. Um cachecol cor de trigo flutuava descuidadamente na brisa de primavera, confundindo -se, por vezes, com o seu cabelo e emprestando -lhe um ar melancólico e sonhador.

Fiquei ali parado algum tempo, estupefacto com aquilo que era, para mim, um mistério inexplicável. Era como se até o vento, que soprava das montanhas em grandes redemoinhos, o tivesse poupado à sua chuva de poeira.

Era evidente que não podia deixá -lo ali a dormir, indefeso, sem água nem comida, naquele local isolado. Embora o seu aspeto não me despertasse qualquer medo, tive de ultrapas-sar uma relutância adquirida em abordar um estranho. Com dificuldade, segurei -o nos meus braços e sentei -o no banco do passageiro.

O facto de ele não ter acordado surpreendeu -me ao ponto de, por um momento, temer que estivesse morto. A pulsação fraca mas regular confirmou que não era esse o caso. Quando pou-sei a sua mão inerte no banco pensei que, se eu não estivesse tanto sob a influência de imagens aladas, teria acreditado estar

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na presença de um anjo descido à Terra. Mais tarde, vim a saber que o rapaz estava exausto e no fim das suas forças.

Durante muito tempo, fiquei a pensar em como os adultos, com os seus avisos para nossa própria proteção, nos afastam dos outros, ao ponto em que tocar em alguém ou fitar outra pessoa nos olhos causa uma sensação desagradável de apreensão.

— Tenho sede — disse o jovem de repente, sobressaltando -me, porque quase me esquecera de que não estava sozinho. Embora tivesse falado em voz baixa, o som límpido tinha a qualidade transparente da água que estava a pedir.

Em viagens longas como esta, que pode levar até três dias, trago sempre no carro comigo bebidas e sanduíches, para não ter de parar senão para abastecer de combustível. Dei -lhe uma garrafa, um copo de plástico e uma sanduíche de carne e tomate embru-lhada em papel de alumínio. Ele bebeu e comeu sem dizer uma palavra. Entretanto, as perguntas cresciam na minha cabeça. De onde vens? Como chegaste aqui? O que estavas a fazer ali dei-tado à beira da estrada? Tens família? Onde estão? E por aí fora. Tendo em conta a minha natureza ansiosa, cheia de curiosidade e de vontade de ser útil, ainda hoje me congratulo por ter con-seguido ficar em silêncio durante aqueles dez minutos intermi-náveis, à espera de que o jovem recuperasse as forças. Ele, por outro lado, bebeu e comeu como se fosse a coisa mais natural do mundo que, depois de estar deitado, abandonado, num semi-deserto, aparecesse alguém para lhe dar uma bebida e uma san-duíche de carne.

— Obrigado — disse, quando terminou, e encostou -se nova-mente à janela, como se essa palavra fosse suficiente para clarificar todas as minhas dúvidas.

Após um momento, percebi que ainda nem sequer lhe tinha perguntado qual era o seu destino. Uma vez que o encontrara à

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beira da estrada, partira simplesmente do princípio de que ele ia para sul, mas na verdade era mais provável que estivesse a ten-tar chegar à capital, que ficava para norte.

É espantoso como assumimos facilmente que os outros vão na mesma direção do que nós.

Quando me virei novamente para ele, era tarde demais. Um novo sonho levara -o para muito, muito longe.

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Capítulo II

Deveria tê -lo acordado? Penso que não. Provavelmente estaria perdido e confuso por causa do cansaço. De qualquer maneira, tínhamos de continuar viagem; teria sido impossível ficarmos ali parados e era irrelevante se ele viajava para norte ou para sul.

Acelerei. Esta era diferente das outras vezes, em que desper-dicei o meu tempo e a minha vida a pensar por que estrada devia seguir.

Estava imerso nestes pensamentos quando, depois de muito tempo a conduzir, senti subitamente um par de olhos azuis cin-tilantes a fitarem -me com curiosidade.

— Olá — disse, virando brevemente o rosto na direção do jovem misterioso.

— Que máquina é esta onde viajamos? — perguntou ele, percor-rendo o interior do carro com os olhos. — Onde estão as suas asas?

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— Referes -te ao carro?— Carro? Não pode deixar a Terra?— Não — respondi, com o meu orgulho de proprietário um

pouco ferido.— E não pode sair desta faixa cinzenta? — Ele apontou com

o dedo para o para -brisas, tornando -me consciente das minhas limitações.

— Esta faixa chama -se estrada — expliquei, perguntando a mim próprio de onde teria vindo este miúdo. — E se a deixar-mos, a esta velocidade, morremos.

— As estradas são assim tão tiranas? Quem as inventou?— As pessoas.Perante perguntas tão simples, as respostas pareciam -me imen-

samente difíceis. Quem era este jovem, irradiando inocência, que abalava até às fundações o meu sistema de crenças adquirido?

— De onde vens? — perguntei. — Como vieste aqui parar? — O seu aspeto parecia -me estranhamente familiar.

— Há muitas estradas na Terra? — perguntou ele, ignorando as minhas questões.

— Sim, incontáveis.— Eu estive num sítio sem estradas — disse o jovem misterioso.— Mas assim as pessoas perdem -se — observei, sentindo a

curiosidade a aumentar de minuto para minuto, a vontade de saber quem ele era e de onde vinha.

— Mas quando não há estradas na Terra — continuou ele, imperturbado —, as pessoas não pensam em procurar orienta-ção no céu? — E olhou para cima, pela janela.

— À noite — respondi, pensativo — é possível orientarmo -nos pelas estrelas. Mas quando a luz do sol é demasiado forte, cor-remos o risco de cegar.

— Ah — disse o jovem. — As pessoas cegas veem o que mais

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ninguém se atreve a ver. Devem ser as mais corajosas de todas.Não soube o que responder e o silêncio abateu -se sobre nós

enquanto o carro continuava a acelerar pela tirana faixa cinzenta.

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