TEOLOGIA DE SÍNTESE - ênfase nas religiões afro-brasileiras - Ano I, nº 1
A geografia das religiões afro-brasileiras em Itu-SP
Transcript of A geografia das religiões afro-brasileiras em Itu-SP
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA HUMANA
PATRCIA PAULA DA SILVA
A GEOGRAFIA DAS RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS EM ITU-SP
Verso corrigida da dissertao
SO PAULO
2012
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PATRCIA PAULA DA SILVA
A GEOGRAFIA DAS RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS EM ITU-SP
Verso corrigida da dissertao
O exemplar original se encontra disponvel no CAPH da FFLCH
De acordo do professor orientador _____________________________________________
Elvio Rodrigues Martins
Dissertao de mestrado apresentada a Faculdade de
Filosofia Letras e Cincias Humanas da
Universidade de So Paulo.
rea de concentrao: Geografia Humana
Orientador: Professor Dr. Elvio Rodrigues Martins
SO PAULO
2012
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Silva, Patrcia Paula da.
A Geografia das religies afro-brasileiras em Itu-SP / Patrcia Paula da Silva;
orientador Elvio Rodrigues Martins. - So Paulo, 2012.
192f.
Dissertao (mestrado) Universidade de So Paulo, 2012
1.Geografia. 2. Religies afro-brasileiras. 3. Candombl. 4. Umbanda. 5. Itu
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Nome: SILVA, Patrcia Paula da.
Ttulo: A Geografia das religies afro-brasileiras em Itu-SP.
Dissertao apresentada a banca examinadora da
Ps-graduao em Geografia Humana da Faculdade
de Filosofia Letras e Cincias Humanas da
Universidade de So Paulo para obteno do ttulo
de mestre em Cincias na rea de concentrao de
Geografia Humana.
Aprovada em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. _________________________Instituio: ____________________________
Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. _________________________Instituio: ____________________________
Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. _________________________Instituio: ____________________________
Julgamento: ______________________ Assinatura: ____________________________
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AGRADECIMENTOS
Agradeo, em primeiro lugar, aos meus pais que continuamente me deram muito apoio em
meus estudos, em especial minha me que sempre teve palavras de incentivo e de
tranquilidade.
Aos meus amigos todos! Em especial aqueles que estiveram mais prximos e aguentaram as
tenses, os choros, as crises, as reclamaes, que me deram conselhos, pitacos, xingos,
chacoalhes, ideias, alegrias, cervejas, risadas, sambas, carinhos, msica. Joozinho pelos
milhes de quebra-galhos, conversas, cervejas, Juninho pelas milhes de cervejas...rs e
deliciosas conversas, Diene pelas conversas e brejas, Nadia pelas conversas e conselhos, Z
(Evandro) pela pacincia de leituras e discusses, ideias e conselhos...e brejas, ao fantstico
211: Ro, meu to querido que fez a correo do trabalho de maneira essencial, Thiago e Quel
e os agregados, Smia, Mayra e Luco, que juntos me proporcionaram muitas horas de
conversas de muito valor terico e desestressantes, e muitas brejas...uma delicia de
apartamento, Danilo que muito nos fez falta com a mudana e salvou minha vida com os
mapas, Jackeline Severina pelos conselhos, orientaes, correes e pelos momentos
agradveis, ah! E pelos sambas, Natlia Viveiros que mesmo a distncia esteve to perto, que
nos fez visitas e muito me alegrou, que me proporcionou conversas insubstituveis quando
todas as crises resolvem aparecer no momento em que voc no tem nem o direito de t-las
porque o prazo est vencendo, e que nos deu o Pedro , Joviniano que muito me ensinou a
vida, Tati Treta essa maluca que me deu muitos abraos e no ltimo minuto do segundo
tempo, quando me encontrava em absoluta tenso, me trouxe um delicioso pedao de bolo ,
Ana Cludia esse anjo que salvou minha vida, casa 7 que me recebeu com muita
hospitalidade.
Aos meus co-habitantes, desse primeiro semestre: Fbio, Mora Truff, Moqueca e Ceclia (a
gata pelcia), pela harmonia.
minha maravilhosa companheira Adriana, que com muita pacincia e carinho me
proporcionou calma, tranquilidade, amor, longas conversas, conselhos, revises, pitacos,
timos almoos, amor, viagens, chazinhos, brejas, a casa maravilhosa onde moro e muito
amor.
todos do Ncleo de Conscincia Negra: alunos e companheiros de trabalho, pelo estgio pra
vida. Aroldo, Giba, Valtinho, Leo, Liz, a turma da Bio, Angelina, Marcelo, Raphael, e todos
que com muita dedicao e carinho fazem o cursinho funcionar e mostram a luz no fim do
tnel para os nossos alunos.
professora Ideni Terezinha Antonello uma das grandes responsveis pela minha formao
intelectual e tico-profissional, assim como ngela Katuta, Tnia Fresca, Mrcia Siqueira,
Alice Asari, Ruth Tsukamoto dentre outros professores da Universidade Estadual de
Londrina.
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Ao professor Elvio pelas boas conversas, pela formao e pela disciplina Ontologia e
Epistemologia em Geografia, que em muito me enriqueceu.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico (CNPq), pelo financiamento da
pesquisa.
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Para apalpar as intimidades do mundo preciso saber:
a) Que o esplendor da manh no se abre com faca b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que que as borboletas de tarjas vermelhas tm devoo por tmulos d) Se o homem que toca de tarde sua existncia num fagote, tem salvao
e) Que um rio flui entre dois jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe g) Qual o lado da noite que umedece primeiro
etc
etc
etc
Desaprender oito horas por dia ensina os princpios.
Manoel de Barros O livro das ignoras (2000, p.9)
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RESUMO
SILVA, Patrcia Paula da. A Geografia das religies afro-brasileiras em Itu-SP. 192f.
Dissertao (mestrado) Faculdade de Filosofia Letras e Cincias Humanas, Universidade de
So Paulo, So Paulo, 2012.
O principal objetivo do presente trabalho analisar a Geografia das religies afro-brasileiras
em Itu, portanto averiguar quais so os elementos determinadores da localizao de terreiros
destas religies no municpio, tendo em vista sua insero numa cidade com histrico de
escravido e, consequentemente, de represso e segregao. Tambm verificamos, a partir dos
preceitos da religio candombl e umbanda, a importncia dos lugares na natureza e/ou na
cidade, como o uso religioso e representao das entidades, alm da localizao dos
elementos religiosos dentro do terreiro. Para tanto, foram feitos levantamentos bibliogrficos
acerca do tema, tanto na rea da geografia quanto em outras reas das cincias humanas. A
partir do arcabouo terico foram elaboradas questes norteadoras das entrevistas, as quais
em trabalho de campo foram realizadas com os dirigentes de cada centro religioso (terreiro),
pois so eles os detentores de todo o conhecimento referente aos preceitos da religio, bem
como determinam a localizao do terreiro e dos seus elementos internos. No houve critrio
especfico para a escolha dos terreiros, os contatos com os dois primeiros dirigentes foram
obtidos via internet e a partir deles chegamos aos subsequentes, assim, finalizamos o trabalho
com dez entrevistas, sendo 4 dirigentes de candombl e 6 de umbanda. As entrevistas foram
gravadas, transcritas e por fim compuseram o ltimo captulo da dissertao. Os terreiros, em
ritual ou no, foram fotografados a fim de localizar seus elementos internos e/ou externos.
Tambm elaboramos um mapa de localizao dos terreiros estudados nos trabalhos de campo.
Nossos resultados constam no levantamento das principais caractersticas geogrficas e
histricas do municpio de Itu; na reviso conceitual de cultura e religio no mbito da
Geografia cultural, nas 10 entrevistas com mes de santo e pais de santo e na localizao
geogrfica de elementos internos e externos aos terreiros.
ABSTRACT
SILVA, Patrcia Paula da. A Geografia das religies afro-brasileiras em Itu-SP. 192f.
Dissertao (mestrado) Faculdade de Filosofia Letras e Cincias Humanas, Universidade de
So Paulo, So Paulo, 2012.
This study aims to analyze the geography of the African-Brazilian religions in Itu, therefore
find out which elements must influence the location of such religions in the city, in view of
their inclusion in a city with a history of slavery and, consequently, repression and
segregation. Beyond the location of the religions elements within the terreiros such as
religious use and representation of entities, we found, from the precepts of the religion
Candombl and the religion Umbanda the importance of places in the nature and / or in the
city. Thus, literature surveys were made on the subject in geography and in other areas of the
humanities. From the theoretical framework guiding questions were developed for interviews
with the higher priests (female me de santo or male pai de santo) of each religious center
(terreiros), they are the keepers of all knowledge relating to religious precepts as well as
determine the location of terreiros and its internal elements. There were no specific criteria
for choosing the terreiros in Itu, the contacts with the first two higher priests were obtained
via the Internet and from them we were indicated to the others, so we finished this part of the
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procedure with ten interviews, four higher priests of Candomble and six of Umbanda. The
interviews were taped, transcribed and formed the last chapter of the dissertation. The yards,
in ritual or not, were photographed in order to locate its internal and external elements. We
also prepared a map location of the researched yards in the fieldworks. Our results are the
survey of the main geographical features and historic city of Itu; the conceptual review of
culture and religion in the area of Cultural Geography; the 10 interviews with mes de santo
and pais de santo and geographic location of the internal and external to the terreiros.
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SUMRIO
INTRODUO........................................................................................................................11
CAPTULO 1. EMBASAMENTO TERICO E SUA APLICAO NA
GEOGRAFIA............................................................................................................................14
1.1 O conceito de cultura..........................................................................................................15
1.2 A aplicao do conceito de cultura na geografia................................................................26
1.3 O conceito de religio.........................................................................................................31
1.4 A aplicao do conceito de religio na geografia...............................................................50
CAPTULO 2. AS RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS: EMBASAMENTOS
TERICOS...............................................................................................................................60
2.1 As religies afro-brasileiras................................................................................................61
2.2 O candombl.......................................................................................................................66
2.3 Os orixs.............................................................................................................................78
2.4 A umbanda..........................................................................................................................86
2.5 As entidades da umbanda....................................................................................................91
CAPTULO 3. CONTEXTO SCIO-ESPACIAL DO MUNICPIO DE ITU........................96
3.1 Localizao e Geografia da Natureza do municpio de Itu.................................................97
3.2 Formao da Geografia Humana do municpio de Itu......................................................100
3.3 O contexto geogrfico do negro em Itu............................................................................110
CAPTULO 4. A GEOGRAFIA DAS RELIGIES AFRO-BRASILEIRAS EM
ITU..........................................................................................................................................118
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4.1 Tenda de Umbanda Caminho da Luz................................................................................122
4.2 Il Ax Oxum Abot.........................................................................................................128
4.3 Casa Maria Cndida - Terreiro de Pai Ju - Centro Esprita Umbandista........................136
4.4 Il Ax Alaketu Iya Omim Wgi Orun Ai........................................................................143
4.5 Tenda Espiritual de Umbanda Caboclo Tabajara e Pai Lua Branca.................................153
4.6 Centro Esprita Ogum Ramatis do Oriente.......................................................................154
4.7 Tenda de Umbanda Caboclo Montanha, Sebastio Boiadeiro..........................................157
4.8 Centro Esprita Pai Xang.................................................................................................162
4.9 Il Ax Alaketu Om Oxum.............................................................................................167
4.10 Entrevista com Eva e pai Andr......................................................................................174
CONSIDERAES FINAIS..................................................................................................179
REFERNCIAS......................................................................................................................183
ANEXOS................................................................................................................................191
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INTRODUO
O municpio de Itu foi fundado no incio do sculo XVII e teve grande
destaque econmico no perodo colonial, graas sua vocao para o plantio de cana e,
posteriormente, ao enriquecimento pelo ciclo do caf. Mas, primeiramente, a sua localizao
estratgica, entre o serto e a capital, possibilitou o desenvolvimento incipiente da sua
economia. Alguns autores consideram que entre a data de fundao e o final do sculo XVIII,
Itu no passava de uma economia de subsistncia.
Durante o sculo XVIII toda a capitania de So Paulo passou por escassez
de mo de obra, devido minerao no interior do pas. Aps esse perodo a populao
retorna a provncia e a economia canavieira toma flego.
A populao e a economia de Itu cresciam gradativamente nesse perodo. A
populao era acrescida pelos mineiros que retornavam do serto e pela populao escrava
que era trazida para trabalhar nas lavouras de cana. A capacidade de compra dos agricultores
aumentou tanto que, entre 1824 e1830, a populao escrava superou a populao branca.
A agricultura canavieira trouxe grandes modificaes para a capitania
paulista, impulsionando a urbanizao, o aumento populacional tanto de escravos quanto de
trabalhadores livres, aumentando o tamanho das propriedades e o nmero de escravos por
engenho, bem como melhorando a rede de transportes, o que no foi suficiente para segurar a
crise do acar e a ascenso do caf, em meados do sculo XIX.
At esse perodo a produo cafeeira era produzida por pequenos produtores
sem a utilizao de mo de obra escrava. No entanto, j no final deste sculo, as grandes
propriedades com elevado nmero de escravos passaram gradativamente a ser predominante
na produo cafeeira.
Os perodos de expanso das lavouras de cana e de caf alm de serem de
grande importncia no desenvolvimento econmico de Itu, remontam a chegada e o incio da
histria dos negros nesse municpio, cuja ocupao acompanhada do desenvolvimento das
respectivas culturas de exportao enquanto atividades escravistas.
O crescente aumento da populao negra causou grandes temores dos
senhores de escravo ituanos. Isso porque a populao ituana era majoritariamente escrava em
1830, quando a populao brasileira como um todo estava inflamada pelo contexto poltico: a
abdicao de D. Pedro I em favor do seu filho D. Pedro II e o aumento gradativo do partido
republicano.
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Com isso, a Cmara de Itu passou a enrijecer e criar leis e posturas de
vigilncia sobre os escravos, tais como a proibio de ajuntamento de escravos em tabernas,
rea comercial ou qualquer outro espao, tirando-lhes objetos que pudessem ser usados como
armas; o aumento dos castigos e a sofisticao dos meios de punio, dentre outras formas de
represso.
No entanto, as punies incitavam revolta, as mortes e as prises
estimulavam os escravos a se entregarem a polcia, pois poderiam ser alternativas melhores
que continuar trabalhando para o senhor e sendo castigado diariamente.
O discurso de Nardy (2000a) se inclina em defesa do senhoril ituano,
advogando que a maioria dos senhores tratavam bem seus escravos castigando-os somente
quando era de fato necessrio e sem crueldade. No entanto, as crescentes revoltas e
assassinatos relatados por Sousa (1998) apontam para outra realidade, bem como Camargo (in
SETUBAL, 2004a) descreve que os escravos da capitania paulista, durantes os perodos
cafeeiro e canavieiro, viviam em pssimas condies de vida, alm dos tratamentos brutais
que recebiam.
nesse contexto que as manifestaes culturais e sociais dos negros se
revelavam. As rodas de samba, encontros religiosos, dentre outros, alm de promoverem a
rede social necessria para a solidariedade entre os participantes, tambm eram momentos em
que se pensava em estratgias para fugas. As redes de solidariedade eram importantes
inclusive no suporte aos escravos fugidos.
As principais manifestaes culturais afro-brasileiras em Itu foram o samba
de terreiro, estudado principalmente por Ianni (2006), os rituais religiosos que segundo
Amauri Nogueira (in NOGUEIRA, C. et al., 2008) s foram revelados em notas da imprensa
da poca e os cordes de carnaval, que atuavam como uma contraposio do carnaval da elite
branca.
Nesse contexto, entendemos que os negros tiveram relevante participao
histrica na construo scio-cultural e econmico-espacial no municpio de Itu,
principalmente nos seus primeiros sculos. Atualmente so rarssimos os trabalhos que fazem
referncia ao tema. Dessa forma, a pesquisa volta-se para a localidade com o intuito de
averiguar a Geografia das religies afro-brasileira, ou seja, quais so os fatores que
estabelecem a sua localizao geogrfica no municpio, tendo em vista a herana de
escravido e a consequente segregao scio-econmica-espacial; assim como entender os
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preceitos que determinam a localizao dos elementos religiosos dentro do terreiro. Tambm
buscamos compreender os usos e as representaes que essas religies fazem da cidade e da
natureza.
Para atingir os objetivos propostos, o trabalho foi dividido em 4 captulos.
No primeiro captulo tratamos dos conceitos de cultura e religio. Observando que o tema do
presente trabalho enquadra-se no campo de estudo da Geografia Cultural, buscamos as
reflexes desenvolvidas em torno do conceito de cultura tradicionalmente discutido nas
cincias sociais e, posteriormente, como os gegrafos compreendem e aplicam o termo. Da
mesma forma trabalhamos o conceito de religio.
No segundo captulo foi desenvolvido o embasamento terico acerca das
religies afro-brasileiras, assim foram descritos os preceitos e as entidades do candombl e da
umbanda, bem como as suas respectivas diferenas.
No terceiro captulo sero analisadas as diferentes geografias do municpio
de Itu, sendo assim sero abordados temas como localizao geogrfica e processo de
formao histrico: fundao, ciclos e desenvolvimento econmico, participao poltica e a
condio histrica do negro no municpio; bem como a Geografia Fsica da regio onde o
municpio est inserido, pois entendemos que os aspectos fsicos do meio tem ampla
influncia na fixao dos diferentes personagens no territrio e como diria Brunhes (1956), os
fenmenos da Geografia Fsica e da Geografia Humana no esto isolados uns dos outros,
mas em conexo.
Dessa forma, compartilhamos com Geraldino (2009) que, considerar as
determinaes do meio como limitantes ao fenmeno humano, no ser determinista e sim
reconhecer que as populaes chegam at onde o meio lhes permitir ir. Certamente, no
desconsiderando o perodo histrico de cada populao e nem mesmo omitindo o uso das
tcnicas para superar os obstculos naturais desse meio.
Por fim, no quarto captulo analisamos a Geografia das religies afro-
brasileiras no municpio de Itu. Assim, foram realizadas dez entrevistas1 com os dirigentes,
sendo quatro de candombl e 6 de umbanda, mediante as quais buscamos a compreenso dos
fatores que influenciavam a localizao geogrfica de cada terreiro, tentando desvendar as
subjacncias do preconceito. Tambm averiguamos os norteadores da localizao dos
1 O roteiro de questes utilizado para a entrevista encontra-se no final do trabalho em anexo.
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elementos dentro e fora do terreiro, bem como a maneira com que essas religies usam e
representam a cidade e a natureza.
CAPTULO 1. EMBASAMENTO TERICO E SUA APLICAO NA GEOGRAFIA
A redao desse captulo foi pensada a partir da ideia de que o tema da
religio na geografia enquadrado no mbito da geografia cultural, a qual desenvolve
trabalhos referentes cultura, no entanto, sem fazer grandes reflexes acerca do termo. Sabe-
se que a geografia possui restrita contribuio na tradio terico-epistemolgica tanto na
questo da religio quanto no que se refere ao conceito de cultura.
Diante disso, entendemos ser necessria para o desenvolvimento do trabalho
a compreenso terica dos termos, que foi encontrada em autores das cincias sociais, tais
como Denys Cuche, mile Durkheim, Clifford Geertz, Mircea Eliade, dentre outros. O termo
cultura possui um histrico conceitualmente polmico tendo em vista que serviu de base para
se justificar a dominao e a explorao de algumas sociedades sobre outras, (cf. Veiga-Neto,
2003), estabelecendo-se uma escala de evoluo das menos evoludas, as primitivas, para as
mais evoludas, as contemporneas.
O conceito de cultura tambm foi reificado mediante a noo de super-
orgnico, desenvolvida pelo antroplogo Alfred Kroeber, que entendia a cultura como algo
que est acima dos homens no sentido de que funciona autonomamente, independente deles.
Essa noo influnciou o gegrafo Carl Sauer, um dos primeiros a desenvolver temas
culturais na geografia, o que entendemos como um ponto problemtico, uma vez que, tal
noo de cultura parece-nos ter o poder de justificar as condies socioeconmicas (tendo em
vista que carregam elementos culturais) das pessoas, pois se a cultura algo superior ao
indivduo e funciona independentemente da sua vontade, este deve se conformar com a
situao que lhe dada. A nosso ver, esta linha de raciocnio dificulta a reflexo dos
indivduos sobre sua prpria condio, aprofundando questes como explorao econmica,
diferena de renda, de escolaridade, de acessos, dentre outras.
O conceito super-orgnico de cultura serviu de base para o desenvolvimento
de diversas pesquisas entre os gegrafos sauerianos da Escola de Berkeley, que passaram a
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receber diversas crticas, das quais surgiram novas teorias em contraposio. Dentre os
principais autores destacamos James Duncan, gegrafo estadunidense de vertente marxista, e
Paul Claval, gegrafo francs com tendncias a geografia humanista, de mtodo
fenomenolgico.
1.1 O CONCEITO DE CULTURA
Com o intuito de apresentar um panorama extensivo da noo de cultura,
nas prximas pginas utilizaremos basicamente a obra A noo de cultura nas cincias sociais
do etnlogo francs Denys Cuche, tendo em vista que, nesse trabalho, o autor traz toda a
perspectiva do processo de formao e evoluo do conceito, perpassando pelas teorias de
diversos autores importantes nessa contribuio.
A gnese e a evoluo do termo cultura, nos dizeres de Cuche (2002),
parece ter se iniciado na Frana no sculo XIII; derivou-se do latim cultura, que se referia ao
cuidado despendido ao campo e ao gado, e passou a designar uma parte da terra cultivada. No
sculo XVII ganha seu carter figurado, aparecendo no Dicionrio da Academia Francesa
(1719) seguido de complementos tais como: cultura das artes, cultura das letras etc. Por
conseguinte abandona tais complementos e representa a formao, a educao do esprito,
- a ao de instruir; por fim, contrape esta concepo, para designar o estado do esprito,
este cultivado pela instruo, se referindo ao estado do indivduo que tem cultura,
estigmatizando o esprito natural e sem cultura. Assim, no iluminismo o termo consagrado
e passa a ser concebido como elemento distintivo da espcie humana.
A cultura ento passa a ser considerada como a soma dos saberes
acumulados e transmitidos pela humanidade (CUCHE, 2002, p.21), representando uma
totalidade ao longo de sua histria. Nesse contexto, a palavra cultura traz a ideia de progresso,
evoluo, educao e razo revelando um aspecto fundamental da cultura e do pensamento da
poca, ao que Cuche (2002) vai chamar de cultura ocidental, segundo ele prprio, por falta
de um termo mais apropriado.
Nesse momento, as palavras cultura e civilizao se aproximam,
pertencem ao mesmo campo semntico e refletem as mesmas concepes fundamentais; no
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entanto, no so equivalentes, pois a primeira refere-se aos progressos individuais e a segunda
aos progressos coletivos, sendo utilizada somente no singular e definida como um processo
de melhoria das instituies, da legislao, da educao. E assim dissemina-se a ideia de que
se alguns povos esto avanados ao ponto de serem considerados civilizados, os outros
povos tambm podem entrar no mesmo movimento: a civilizao deve se estender a todos os
povos que compem a humanidade. (CUCHE, 2002, p.22)
No ideal alemo do sculo XIX, sob a influncia do nacionalismo, a cultura
vai ser entendida como parte constituinte do patrimnio de uma nao, reunindo as conquistas
artsticas, intelectuais e morais. Ao longo deste sculo os romnticos alemes opem cada vez
mais a cultura, como expresso da alma profunda de um povo, civilizao, definida a
partir de ento pelo progresso material ligado ao desenvolvimento econmico e tcnico.
(CUCHE, 2002, p.29)
Ainda nesse sculo, a palavra cultura tomou outra dimenso na Frana e
passou a ser entendida como um conjunto de caracteres prprios de uma comunidade
(CUCHE, 2002, p.29), porm apresentada sem um sentido preciso.
Segundo Cuche (2002) a viso francesa particularista em debate com a viso
alem universalista, trouxe para o seio das cincias sociais contemporneas as duas
concepes de cultura. De um lado, o antroplogo Edward Tylor como representante
universalista, foi o primeiro a definir cultura, colocando-a num patamar de evoluo dos
povos primitivos aos povos mais civilizados. Estes ltimos estariam num grau de avano
cultural superior, tendo necessariamente passado pela fase primitiva; de outro lado Franz
Boas, que teria sido o criador da etnografia, apresenta uma concepo particularista da noo
de cultura. Segundo Cuche (2002), Boas tentava pensar a diferena entre os grupos humanos e
acreditava que esta era determinada pela cultura e no pela raa. Ops-se a ideia de que os
traos fsicos estavam ligados aos traos mentais e, logo, que a raa determina o
comportamento humano. Dessa forma, entendia que entre os primitivos e os civilizados no
havia diferenas biolgicas, mas de cultura e estas eram adquiridas, portanto no inatas.
Por sua influncia na formulao de teorias referentes cultura o autor
destaca o pensamento de Durkheim, que acreditava que os fenmenos sociais possuam
necessariamente dimenso cultural, por serem tambm fenmenos simblicos; lutava contra
os pressupostos ideolgicos implcitos no conceito de civilizao e defendia que no havia
diferenas de natureza entre sociedades primitivas e civilizadas, ambas, com particularidades,
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faziam parte de uma mesma civilizao humana; ao mesmo tempo em que Durkheim
partilhava da ideia evolucionista de cultura, era contrrio ao esquema unilinear de evoluo,
segundo o qual todas as sociedades seguiriam para uma evoluo final mais cedo ou mais
tarde. Esta ideia pode ser percebida no seguinte trecho:
Nada nos autoriza a acreditar que os diferentes tipos de povos vo todos no mesmo
sentido; alguns seguem caminhos muito diversos. O desenvolvimento humano deve
ser ilustrado no sob a forma de uma linha em que as sociedades viriam se colocar
umas depois das outras como se as mais avanadas no fossem seno a continuao
e a sequencia das mais rudimentares, mas como uma rvore com ramos mltiplos e
divergentes. Nada nos diz que a civilizao ser apenas o prolongamento da
existente atualmente para uma mais elevada; talvez, ao contrario, ela ter como
agentes povos que ns julgamos inferiores como a China, por exemplo, e que lhe
daro uma direo nova e inesperada. (DURKHEIM apud CUCHE, 2002, p. 542).
Cuche salienta que, apesar de Durkheim no ter produzido uma teoria
sistemtica sobre a cultura, suas ideias influenciaram muitos antroplogos, principalmente
norte-americanos, na formulao de teorias acerca do tema. A noo de conscincia
coletiva, desenvolvida por ele, serviu de pilastra para a formulao da teoria superorgnica
de cultura, difundida principalmente pelo antroplogo Alfred Kroeber3.
Durkheim entende que as sociedades possuem uma conscincia coletiva,
constituda de representaes coletivas, ideais, valores e dos sentimentos comuns a todos os
seus indivduos. Para ele,
a conscincia coletiva algo mais que um simples epifenmeno de sua base
morfolgica, da mesma forma que a conscincia individual algo mais que uma
simples eflorescncia do sistema nervoso. Para que a primeira se manifeste,
preciso que se produza uma sntese sui generis das conscincias particulares. Ora,
esta sntese tem por efeito criar todo um mundo de sentimentos, de idias, de
imagens que, uma vez nascidos, obedecem a leis que lhes so prprias.
(DURKHEIM, 2003, p. 468)
Nesses dizeres possvel observar que o autor d certo corpo chamada
conscincia coletiva, entendida como algo que possui leis prprias. Encontra-se, portanto,
numa dimenso separada do homem, que no necessita de sua interferncia para existir. Na
citao seguinte tal afirmativa torna-se mais evidente:
Em resumo, a sociedade no de maneira alguma o ser ilgico ou algico,
incoerente e caprichoso que muito seguidamente se comprazem em ver nela. Muito
pelo contrrio, a conscincia coletiva a forma mais elevada da vida psquica, j
que uma conscincia de conscincias. Colocada fora e acima das contingncias
individuais e locais, ela s v as coisas por seu aspecto permanente e essencial,
fixando-o em noes comunicveis. Ao mesmo tempo em que v do alto, ela v ao
2Procuramos o exemplar original de Durkheim para consult-lo, no entanto, no o encontramos, talvez por datar
de 1913. 3Essa teoria desempenhou grande influncia sobre os gegrafos culturais americanos e ser melhor abordada no
decorrer deste trabalho.
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longe; a cada momento do tempo, abrange toda a realidade conhecida; por isso s
ela pode fornecer ao esprito marcos que se apliquem totalidade dos seres e que
permitem pens-los. Esses marcos, ela no os cria artificialmente; mas encontra-os
dentro de si e apenas toma conscincia deles. [...] Se a sociedade algo de universal
em relao ao indivduo, ela prpria no deixa de ser uma individualidade que tem
sua fisionomia pessoal, sua idiossincrasia; ela um sujeito particular que, por
conseguinte, particulariza o que pensa. (DURKHEIM, 2003, p. 494-495, grifo
nosso)
Essa abordagem da conscincia coletiva enquanto uma individualidade,
um sujeito particular, vai servir como influncia e base terica no processo de reificao
da cultura desenvolvida por antroplogos e adotada pelos gegrafos norte-americanos.
Cuche (2002) aponta que Lvy-Bruhl, tido como fundador da disciplina
etnolgica na Frana, considera que os grupos so diferenciados a partir do modo como
exercitam o pensamento e no a partir de suas estruturas psquicas profundas. Para ele
mentalidade lgica e mentalidade pr-lgica so compatveis e existem
concomitantemente em todas as sociedades, mas a superioridade de uma sobre a outra pode
variar conforme diferentes situaes, explicando, assim, a diversidade cultural.
Segundo Cuche (2002), o conceito de cultura vai ser mais bem acolhido e
estudado na antropologia norte-americana, que pode ser agrupada em trs grandes correntes: a
primeira herdeira do pensamento de Boas e entende a cultura sob a tica da historia cultural;
a segunda tenta entender as relaes entre a cultura (coletiva) e a personalidade (individual); e
por fim, na terceira vertente, a cultura considerada um sistema de comunicaes entre os
indivduos.
A partir da influncia de Franz Boas alguns antroplogos norte-americanos
passaram a direcionar suas pesquisas tomando a dimenso histrica dos fenmenos culturais.
Dentre eles, Cuche (2002) destaca Alfred Kroeber e Clark Wissler, que tentaro explicar a
distribuio dos elementos culturais no espao. Com esse intuito, os pesquisadores tomam
como instrumentos os conceitos de trao cultural e rea cultural, em que o primeiro
permite definir os menores elementos de uma cultura e o segundo polariza dois pontos da rea
cultural: o centro, onde as caractersticas fundamentais de uma cultura so encontradas, e a
periferia, onde estas caractersticas e os traos culturais das reas vizinhas se entrecruzam4.
Os antroplogos da escola Cultura e personalidade vo buscar a conexo
existente entre o indivduo e sua cultura, como os seres humanos incorporam e vivem sua
cultura. Para esses antroplogos a cultura no existe fora dos indivduos e nem enquanto
4Parece plausvel a influncia sobre os gegrafos.
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realidade em si. Dessa forma, vo tentar explicar como a cultura est presente nos
indivduos, como os faz agir e com quais condutas. Esse caminho foi orientado a partir da
ideia de que a cultura determina certo modo de comportamento, que seria comum a todos os
indivduos sob a sua gide. Dessa maneira, esse estilo de comportamento seria uma
caracterstica especfica que diferenciaria determinada cultura de outras e daria unidade aos
seus membros, a cultura ento encarada como totalidade e a ateno est sempre centrada
nas descontinuidades entre as diferentes culturas. (CUCHE, 2002, p.75).
Dentre outros, Cuche (2002) destaca como representantes dessa escola Ruth
Benedict e Margareth Mead. A primeira desenvolveu sua teoria sobre os tipos culturais,
trabalhando com a hiptese de que haveria um arco cultural que abrangeria todos os tipos
culturais, que so em nmero limitado, e cada cultura seria definida a partir de um tipo ou
estilo. Convencida da especificidade de cada cultura, Benedict afirmava, no entanto, que a
variedade de culturas redutvel a certo nmero de tipos caracterizados. (CUCHE, 2002,
p.77).
Margareth Mead pesquisou principalmente a maneira com que a cultura
recebida por um indivduo e as consequncias provocadas em sua personalidade. Nessa via,
averiguou os processos de transmisso cultural e de socializao da personalidade, analisando
modelos de educao. Assim, a autora entende que a personalidade de um indivduo no pode
ser explicada pelos caracteres biolgicos, mas por um modelo cultural determinado pela
educao de uma dada sociedade. Nessa perspectiva, a anormalidade psicolgica explicada
segundo a lgica de determinado modelo cultural, cujo padro foi desviado pelo indivduo.
Sendo assim, o anormal sempre relativo sua prpria cultura, nunca absoluto, universal.
Para Cuche (2002) a escola "cultura e personalidade" merece destaque pela
nfase dada a educao como elemento da diferenciao cultural, tendo em vista que a
educao necessria e determinante entre os homens, pois o ser humano quase no tem
programa gentico que guie o seu comportamento. Os prprios bilogos dizem que o nico
programa (gentico) do homem o que o leva a imitar e aprender. (CUCHE, 2002, p.91).
Dessa forma, os grupos humanos podem ser diferenciados pela cultura a partir dos sistemas de
educao, o qual abarca o modo de criao do beb: aleitamento, modo de dormir, desmame
etc.
A partir da dcada de 1950 surge na antropologia americana uma corrente
chamada antropologia da comunicao, referenciada por Gregory Bateson e pela escola de
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Palo Alto. Seus pesquisadores entendem que a cultura existe a partir das interaes entre os
indivduos, estas sendo sempre consideradas a partir de um contexto, cuja diversidade explica
o carter plural e instvel de todas as culturas. Esta abordagem permite pensar a
heterogeneidade de uma cultura ao invs de nos esforarmos para encontrar uma
homogeneidade ilusria. (CUCHE, 2002, p.107)
Essa abordagem, tambm chamada de interacionista, questionou a distino
entre cultura e subcultura. Considerando que a cultura se origina das interaes entre os
indivduos e entre grupos de indivduos, incorreto pensar a subcultura como algo que deriva
de uma cultura global anterior a ela. A primeira pilastra da construo cultural a interao
mais imediata entre os indivduos, ento a cultura local, do grupo mais prximo; a cultura
global corresponde a uma coletividade ampliada.
A antropologia cultural americana recebeu dos franceses uma srie de
crticas direcionadas principalmente ao substancialismo, o qual remete a uma concepo da
cultura enquanto realidade em si. Mas segundo Cuche (2002) essa critica pode ser aplicada
somente a Kroeber, quanto a sua teoria do super-orgnico, em que a cultura possui
autonomia em relao s aes dos indivduos.
No entanto, para Cuche (2002) o culturalismo norte-americano trouxe uma
srie de contribuies para o pensamento da antropologia cultural: evidenciou-se a relativa
coerncia de todos os sistemas culturais: cada um uma expresso particular de uma
humanidade nica, mas to autntica quanto todas as suas outras expresses. (p.90). O autor
destaca que os pesquisadores se atentaram para a importncia da incorporao da cultura, no
sentido em que ela responsvel inclusive por moldar o corpo humano e coordenar as funes
vitais como comer, dormir, copular, dar luz, andar, correr etc.
No mbito dos trabalhos sobre cultura que vinham sendo realizados pelos
antroplogos, o estudo das relaes entre as culturas ocorreu, de maneira mais significa,
tardiamente. No entanto, no deixou de contribuir profundamente no processo de renovao
do conceito.
Cuche (2002) destaca que esse atraso terico pode ter sido causado pela
fixao dos etnlogos nos estudos das chamadas culturas primitivas. Sob a ideia de que
estas eram mais simples, portanto, mais fceis de compreender do que as culturas presentes
nas sociedades mais desenvolvidas, j que, estas ltimas, sofreram mais alteraes pelo
contato entre si e por isso so mais complexas. Nesta perspectiva, toda mestiagem das
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culturas era vista como um fenmeno que alterava sua "pureza" original e que atrapalhava o
trabalho do pesquisador embaralhando as pistas (CUCHE, 2002, p.111)
Assim, alm das culturas arcaicas serem entendidas como primitivas numa
escala de evoluo, eram tambm vistas como mais puras pelo seu menor contato com
outras.
Esse pensamento vai comear a sofrer alteraes a partir da formulao do
conceito de aculturao, que traz a noo da perda dos elementos autnticos da cultura
original, como o afro-americano e o afro-brasileiro.
Cuche (2002) destaca que para Melville Herskovits a aculturao o
resultado do contato entre culturas distintas, alterando os seus padres iniciais. Assim,
aculturao no pode ser confundida com mudana cultural, que pode resultar de causas
internas. Cuche ainda destaca que aculturao no pode ser confundida com assimilao,
pois esta seria sua ltima fase, alias raramente atingida. Ela implica o desaparecimento total
da cultura de origem de um grupo e na interiorizao completa da cultura do grupo
dominante. (CUCHE, 2002, p.116).
A noo de aculturao foi concebida pelos antroplogos culturalistas norte-
americanos e foi levada para a Frana por Roger Bastide, entendendo que o culturalismo tinha
como limite de seus trabalhos a ausncia de relao do cultural com o social. Para ele, o
cultural no pode ser estudado independente do social.
A perspectiva de avaliao da cultura se redefiniu aps as pesquisas sobre
aculturao. Parte-se ento da aculturao para entender a cultura e no o inverso. Segundo
Cuche, as pesquisas sobre aculturao permitem conceber que no existem culturas puras
em contraposio com as culturas mestias, todas, devido ao fato universal dos contatos
culturais, so, em diferentes graus, culturas mistas, feitas de continuidades e de
descontinuidades. (CUCHE, 2002, p.140)
Essa descontinuidade pode estar mais presente na ordem temporal do que na
espacial, tendo em vista que pode haver mais descontinuidades entre duas culturas que esto
em contato prolongado do que entre os diferentes estados de um mesmo sistema cultural
tomado em momentos distintos de sua evoluo histrica. (CUCHE, 2002, p.141) Citando
Bastide o autor enfatiza que a ideologia assegura bem mais a continuidade de uma
determinada cultura do que a prpria realidade, e esta pretensa continuidade ser to mais
afirmada quanto mais a descontinuidade aparecer nos fatos: nos momentos de ruptura, o
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discurso da continuidade uma ideologia da compensao (CUCHE, 2002, p.141)
Para Cuche (2002) tentar diferenciar as culturas, enquanto entidades
separadas, pode ter utilidade no mbito metodolgico e foi valorosa para pensar a diversidade
cultural. Desse modo, indagar-se sobre onde comea e onde termina uma cultura significa
pensar sobre a escala da cultura em questo. Assim, o autor aponta o pensamento de Lvi-
Strauss, que considera que uma mesma unidade cultural pode ser analisada na sua insero
universal, nacional ou local, conforme for determinada no espao e no tempo.
Considerando as ideias de Amselle, Cuche (2002) destaca que as culturas
esto sempre em comunicao umas com as outras, no sendo totalmente estranhas entre si,
no havendo, portanto, descontinuidades verdadeiras. A acentuao das diferenas serve para
melhor se afirmar e se distinguir.
Depois de uma significativa explanao acerca das diferentes noes de
cultura que se seguiram nas reflexes antropolgicas, Cuche (2002) faz um esforo para
demonstrar como o uso indiscriminado do termo pode levar a uma confuso conceitual entre o
uso social, o ideolgico e o cientfico. Para elucidar cita o exemplo do uso na poltica: cultura
descentralizada, cultura do governo, cultura da oposio; e o uso religioso: quando o Papa
Joo Paulo II utiliza o termo cultura da morte para se referir prtica do aborto.
Destaca tambm o surgimento do termo cultura dos imigrantes na Frana
dos anos de 1960, num contexto de grande entrada de imigrantes o uso dessa expresso
enquadrava tais pessoas na sua cultura de origem de maneira que os prendesse nela, sendo
imutvel e inassimilvel a cultura de onde atualmente habitavam. Assim, o termo cultura foi
tratado como raa, e o indivduo seria inteiramente determinado pela sua cultura de origem.
Desse modo a expresso cultura dos imigrantes consistia ento numa cultura definida pelos
outros, em funo dos interesses dos outros, a partir de critrios etnocentristas. (CUCHE,
2002, p.229)
Cuche (2002) entende que,
Seja no campo poltico ou religioso, na empresa ou em relao aos imigrantes, a
cultura no se decreta; ela no pode ser manipulada como um instrumento vulgar,
pois ela est relacionada a processos extremamente complexos e, na maior parte das
vezes, inconscientes. (CUCHE, 2002, p.15)
Para esse autor, a cultura possibilita ao homem transformar a natureza,
tendo em vista que, permite a sua adaptao ao meio e, tambm, adaptar o meio a si prprio e
a suas necessidades e projetos. Para ele todas as populaes humanas possuem a mesma carga
gentica, no entanto, se diferenciam a partir de suas escolhas culturais, cada uma inventando
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solues originais para os problemas que lhe so colocados. (CUCHE, 2002, p.10).
Considerando a unidade gentica da humanidade, o autor entende que tais solues
representam princpios culturais universais, que esto sujeitos a evolues e transformaes.
Sendo assim, a noo de cultura aparece como um instrumento necessrio
para colocar um fim nas explicaes naturalizantes dos comportamentos humanos. Pois
mesmo as necessidades fisiolgicas, como a fome, o sono, o desejo sexual, etc., so
direcionados pela cultura, as sociedades no do exatamente as mesmas respostas a estas
necessidades. (CUCHE, 2002, p.11).
Com isso, Cuche (2002) entende que a noo de cultura oferece a
possibilidade de conceber a unidade do homem na diversidade de seus modos de vida e de
crena, enfatizando, de acordo com os pesquisadores, a unidade ou a diversidade. (p.13); e
que a anlise cultural serve para compreender a coerncia simblica do conjunto das prticas
de um grupo social, para, assim, entender o sentido que do a sua existncia, pois mediante a
criatividade cultural estes podem afirmar sua humanidade.
Tambm considerando o carter simblico, Geertz (1989) defende um
conceito de cultura essencialmente semitico, partindo das ideias de Max Weber, que
ilustram o homem como animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu
(GEERTZ, 1989, p.4), entende que essas teias e suas anlises so a cultura, assumida no
como uma cincia experimental em busca de leis, mas como uma cincia interpretativa,
procura do significado. (GEERTZ, 1989, p.4). Para ele, tais significados so pblicos,
portanto a cultura tambm o , e se encontra articulada nos fluxos de comportamento, ou ao
social, bem como em artefatos e estados de conscincia.
Sendo assim, o autor no est de acordo com as discusses quanto a
objetividade ou subjetividade da cultura, considerando que o comportamento humano
tido como ao simblica:
uma ao que significa, como a fonao na fala, o pigmento na pintura, a linha na
escrita ou a ressonncia na msica, - o problema se a cultura uma conduta
padronizada ou um estado da mente ou mesmo as duas coisas juntas, de alguma
forma perde o sentido. (GEERTZ, 1989, p.8)
Para ele, o que devemos perguntar qual a importncia das aes e o que
transmitido atravs delas, pois, apesar de isso parecer bvio, existem vrias maneiras de
obscurec-las. Como acreditar que a cultura uma realidade superorgnica e tentar reific-la
ou coloc-la como um padro de comportamento, o que a reduziria.
Para averiguar a cultura o autor tenta manter a anlise das formas simblicas
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estreitamente ligadas aos acontecimentos sociais e ocasies concretas; e que verificar as
dimenses simblicas da ao social, tais como a arte, a religio, a ideologia, a cincia, a lei, a
moralidade, o senso comum no significa o afastamento dos dilemas existnciais da vida a
fim de privilegiar o empiricismo no-emocional, ao contrrio: mergulhar no meio delas.
(GEERTZ, 1989, p.21)
Propondo uma reflexo acerca do impacto do conceito de cultura sobre o
conceito de homem, Geertz (1989) ressalta a impossibilidade da existncia de uma natureza
humana que seja constante no tempo, lugar e circunstncia. Assim, o que o homem pode
estar intrinsecamente ligado ao onde ele est e no que ele acredita, que so inseparveis dele.
A considerao dessa possibilidade permitiu o surgimento do conceito de cultura e o declnio
da perspectiva uniforme de homem.
Geertz (1989) apresenta duas ideias com o intuito de promover uma imagem
mais exata de homem:
A primeira delas que a cultura melhor vista no como complexos de padres
concretos de comportamento (...) mas como um conjunto de mecanismos de controle
planos, receitas, regras, instrues (o que os engenheiros de computao chamam
programas) para governar o comportamento. A segunda idia que o homem
precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de
controle, extragenticos, fora da pele, de tais programas culturais, para ordenar seu
comportamento. (p.32-33)
Desse modo, entende que o comportamento do homem, no dirigido por
padres culturais, seria virtualmente ingovernvel, um simples caos de atos sem sentido e de
exploses emocionais, e sua experincia no teria praticamente qualquer forma. (GEERTZ,
1989, p.33).
Nesse sentido, para se realizar uma anlise do que a natureza do ser
humano necessrio partir da avaliao do que o ser individual e o que ele pode ser. E
exatamente por ser concebido como um conjunto de mecanismos simblicos para controle de
comportamento que o conceito de cultura tem impacto no conceito de homem, pois
fornece o vnculo entre o que os homens so intrinsecamente capazes de se tornar e o que
eles realmente se tornam, um por um. (GEERTZ, 1989, p.37). Desse modo, a cultura nos
modela como espcie nica e como indivduos separados, que o que o ser humano tem em
comum, ou seja, nem um ser subcultural imutvel, nem um consenso de cruzamento cultural
estabelecido. (GEERTZ, 1989, p.38)
Para o autor, o fato de, durante o desenvolvimento da mente humana,
aspectos como o sistema nervoso encefalado, a estrutura social tendo como base o tabu do
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incesto e a competncia de criar e usar smbolos terem se desenvolvido juntos, e no em srie,
sugere que o sistema nervoso do homem no permite apenas que ele adquira cultura, mas
positivamente exige que o faa para poder simplesmente funcionar. (GEERTZ, 1989, p.50).
Assim, a cultura funciona como o ingrediente que suplementa, desenvolve e amplia as
capacidades orgnicas. O que implica na importncia da cultura na constituio da mente,
pois um ser humano sem cultura seria, provavelmente, [...] uma monstruosidade (GEERTZ,
1989, p.50). Nesse caso, seria pouco provvel que um primata tenha possudo alguma cultura
verdadeira, no sentido exato de um sistema ordenado de significado e smbolos... nos
termos dos quais os indivduos definem seu mundo, expressam seus sentimentos e fazem seus
julgamentos. (GEERTZ, 1989, p.50)
Assim, para Geertz tanto as ideias quanto as emoes so, no homem,
artefatos culturais. Pois para se tomar uma deciso necessrio levar em considerao o que
se sente a respeito e para isso precisa-se de imagens pblicas de sentimentos, encontradas no
ritual, no mito e na arte.
Todos os artefatos realizados pelo homem tais como as ferramentas, a
caa, a organizao familiar, a arte, a religio e a cincia- o moldaram somaticamente, sendo
necessrios sua sobrevivncia e realizao existencial. (GEERTZ, 1989)
Diante dessa explanao possvel observar que, para o autor, a cultura
um elemento fundamental na determinao do ser humano. Assim como Cuche (2002),
Geertz defende que mediante a anlise cultural possvel compreender a coerncia
simblica que um grupo utiliza para dar sentido existncia.
Nessa mesma perspectiva alguns autores pensam o sentido da religio, da
qual trataremos no item 1.3, que seria um dos elementos desse sistema simblico (cultura) que
o homem utiliza para sustentar a existncia.
O texto exposto permite-nos pensar numa ideia de cultura que no se refere
a pessoas de um mesmo grupo tnico desenvolvendo padres de atividades restritas a uma
localidade, mas talvez como grupos heterogneos de pessoas que significam alguns elementos
da vida de forma mais ou menos convergente em lugares descontnuos.
Desse modo, a formulao do termo cultura poderia auxiliar na
sistematizao de determinados elementos de uma sociedade que alcana elevado grau de
urbanizao, em que a cidade o palco das mestiagens e hibridismos onde as identidades
culturais-locais originrias comeam a se dissolver. (MARTINS, 2001)
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Grande parte dos primeiros estudos sobre cultura estavam centrados em
sociedades antigas e isoladas, em que, talvez, fizesse sentido pensar em certa homogeneidade
no sistema simblico de um grupo num dado local, como por exemplo, o estudo sobre o culto
aos orixs desenvolvido por Pierre Verger em cls familiares na frica de 1950. No entanto,
esse mesmo olhar no mais possvel sobre essas religies a partir do momento em que foram
trazidas para o Brasil com os escravos, entre os sculos XVI e XIX, quando sofreram fuso
dando origem ao candombl, uma religio afro-brasileira inserida nas heterogneas e mestias
culturas urbanas.
1.2 A APLICAO DO CONCEITO DE CULTURA NA GEOGRAFIA
Aps a exposio do debate em torno do termo cultura, propomo-nos agora
a pens-lo dentro da cincia geogrfica, para tentar entender, assim, como os principais
gegrafos adotaram o termo em seus estudos. Primeiramente, faremos uma breve
apresentao do desenvolvimento da abordagem cultural na geografia.
A geografia cultural, segundo autores como Claval (2003), Rosendahl e
Corra (2003), j estava presente na discusso geogrfica desde o final do sculo XIX. Claval
(2003) entende que at os anos de 1970 os elementos da cultura apareceram na geografia,
mesmo que de maneira discreta, mediante trs grupos de gegrafos:
I) Vidal de La Blache e os gegrafos vidalinos;
II) Os especialistas da geografia histrica;
III) E, mais isoladamente, Eric Dardel
Nas obras de Vidal de La Blache e seus seguidores os elementos da cultura
aparecem como uma tentativa de demonstrar como os grupos se adaptam ao ambiente, qual
a distribuio dos traos culturais e a marca que eles imprimem na paisagem. (CLAVAL,
1997).
Os especialistas da geografia histrica representada pelos franceses se
destacavam por se interessarem pela evoluo particular de objetos geogrficos, tais como as
formas de paisagem, os sistemas agrrios e os planos de cidades. Dessa forma, conceberam
uma nova maneira de escrever a histria: a histria dos fenmenos de longa durao, a
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histria das evolues lentas, a histria das classes baixas e analfabetas da sociedade.
(CLAVAL, 2003, p. 154).
Para Eric Dardel a tarefa da geografia era entender qual o sentido que os
homens davam suas vidas na Terra.
Nesse momento, a geografia alem estuda a cultura maneira de Jean
Brunhes, assim analisa os traos culturais a partir da influncia da ao do homem no recuo
das florestas e de outras formaes naturais; se interessa, tambm, pela harmonia profunda
que se observa, s vezes, entre a organizao do espao, os traos visveis da paisagem e a
alma do povo que a modelou (CLAVAL, 1997, p.92)
J nos Estados Unidos, a Geografia cultural estava sendo representada por
Carl Sauer e seus discpulos da Escola de Berkeley (1925-1975). Seus estudos eram pautados
no historicismo e tinham como foco principal as sociedades tradicionais (CORREA, 2001);
tentavam reconstituir os ambientes da Amrica do Norte pr-colonial e desvendar a
diversidade dos habitats e as prticas agrcolas; tambm traziam em seus trabalhos uma
preocupao ecolgica referente ao uso da natureza pela sociedade moderna. (CLAVAL,
2007)
Segundo Claval (2007), Sauer entendia a cultura como
o conjunto de instrumentos e artefatos que permite ao homem agir sobre o mundo
exterior [...] tambm composta de associaes de plantas e de animais que as
sociedades aprenderam a utilizar para modificar o ambiente natural e torn-lo mais
produtivo. (p.31)
Para Corra (2001) a definio de cultura em Sauer pode ser resumida no
que ele chama simplesmente de modo de vida. Sauer e seus discpulos adotaram a viso de
cultura influnciada por antroplogos norte-americanos que formularam o conceito supra-
orgnico de cultura.
A princpio, o termo supra-orgnico foi criado por Herbert Spencer, o pai do
darwinismo social, tendo sido formulado pelos antroplogos Alfred Kroeber e Robert Lowie,
no incio do sculo XX (CORRA, 2001) e, posteriormente, desenvolvido por Leslie White.
Alfred Kroeber foi o difusor dessa teoria na antropologia americana,
mediante sua obra The superorganic, perspectiva que perdeu fora somente nos anos de
1950. Segundo Duncan (2003) White entendia que as pessoas eram determinadas pela cultura,
a qual se auto determinava, podendo ser considerada como um processo sui generis.
Essas teorias influenciaram veementemente Sauer e seus discpulos tais
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como Wagner e Mikesell (2003), os quais entendem que a noo de cultura sempre abrange
grupos de pessoas, nunca indivduos; refere-se s comunidades que se encontram ao longo de
um amplo e determinado espao, geralmente contnuo, onde renem comportamentos e
crenas comuns. E acreditam que
o conceito de cultura oferece um meio para classificar os seres humanos em grupos
bem definidos5, de acordo com caractersticas comuns verificveis, e tambm um
meio para classificar reas de acordo com as caractersticas dos grupos humanos que
as ocupam. (WAGNER; MIKESELL, 2003, p.28)
Duncan (2003), no artigo O supra-orgnico na geografia cultural
Americana, se dedica em apontar os problemas tericos da geografia cultural ao tomar o
conceito de cultura enquanto status ontolgico. Tendo em vista que os gegrafos dessa
vertente adotaram a cultura como uma entidade supra-orgnica, em que, nas palavras de
Duncan (2003), a cultura era vista como uma entidade acima do homem, no redutvel s
aes dos indivduos e misteriosamente respondendo a leis prprias. (p.64). Duncan (2003)
destaca que para Sauer o indivduo determinado pela cultura, sendo um mero agente das
foras culturais, um mensageiro levando informao atravs das geraes e de lugar para
lugar. (DUNCAN, 2003, p.68); e ainda, para ele a geografia humana no tem nada a ver com
os indivduos, mas apenas com as instituies humanas e culturais. Assim, como se essas
instituies culturais ou humanas fossem algo para alm do indivduo, podendo ser explicadas
e entendidas sem a compreenso dos que dela fazem parte.
Desse modo, a cultura autnoma com relao aos indivduos que, apesar
de participarem dela, so considerados como causas eficientes, agentes ou mensageiros da
cultura, que a causa formal, sendo assim reificada, ou seja, ela tem o poder de fazer as
coisas. (DUNCAN, 2003, p.73)
Duncan (2003) destaca a crtica de Wagner (1958) teoria da
homogeneidade disseminada na geografia cultural. Para ele, no momento em que se concebe a
cultura como uma fora ativa e o indivduo como um recipiente passivo, este ser um papel
em branco no qual ser impresso o padro cultural, assumindo dessa forma a homogeneidade.
Corra (2001) enfatiza que os gegrafos sauerianos aceitaram e
incorporaram uma srie de premissas que abrangem o conceito de cultura como entidade
supra-orgnica. Dentre elas, a ideia de que a realidade seja dividida num nvel orgnico e
outro supra-orgnico, nesse ltimo se encontra a cultura, que ento passa a ser coisa, entidade,
5Achamos pouqussimo provvel que o conceito de cultura classifique seres humanos em grupos bem definidos.
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ou seja, algo com poder de ao. Dessa maneira, um grupo de indivduos pode internaliz-la,
o que levaria homogeneidade cultural desse grupo. No havendo diferenas, se estabeleceria
a ausncia de conflitos internos e as mudanas seriam pouco frequentes e sempre provindas
do campo externo ao grupo.
Desse modo, Corra (2001) questiona como se explicaria, sob a gide desse
modelo de cultura, a escolha, a interao, a negociao e a imposio entre os indivduos.
Duncan (2003) tambm se contrape e considera que aceitar a cultura como fora
determinante, exclui uma srie de questes importantes inerentes sociedade, tornando
obscuras as explicaes relativas origem, transmisso e diferenciao de diversas
caractersticas culturais presentes no grupo, bem como impossibilita discusses em torno da
estratificao social, de interesses polticos de grupos especficos e dos conflitos que surgem
de seus interesses impostos. (DUNCAN, 2003, p.78).
Duncan (2003) aponta o pensamento de Geertz que considera que na
unidade supra-orgnica o indivduo simplesmente desaparece numa harmonia mstica. Sendo
assim, as explicaes so atribudas a uma entidade transcendental: dado que a existncia
do supra-orgnico no pode ser provada nem refutada, ento se torna, simplesmente, uma
questo de f. (DUNCAN, 2003, p.76)
O gegrafo cultural Denys Cosgrove (2003) entende que se ganha muito
pouco em tentar definir precisamente o termo cultura6, e faz-lo acarreta sua reduo a uma
categoria objetiva, o que nega sua subjetividade essencial, tendo em vista que o termo
central do humanismo, incapaz de adquirir uma definio clara enquanto conceito objetivo e
mensurvel, podendo ser compreendida somente mediante a prtica.
Para este autor, o uso contemporneo do termo cultura, serve para indicar a
unio dos aspectos fundamentais do ser social: o trabalho a interao direta dos seres
humanos com a natureza na produo (COSGROVE, 2003, p.104) e a conscincia: as
ideias, valores, crenas e ordem moral nas quais os seres humanos se tornaram cientes de si
mesmos como sujeitos capazes de transcender a grosseira materialidade da natureza.
(COSGROVE, 2003, p.104).
Para Paul Claval (2007) a cultura a mediao que os homens estabelecem
sobre a natureza. De maneira que a relao do homem com a natureza nunca direta, pois
6 Ao contrrio de Geertz (1989) que entende que apesar de as teorias no conseguirem explicar tudo mas, ainda
assim, tentam explicar algo. Assim destaca que o conceito de cultura evolui a partir dos esforos da antropologia
em limitar, especificar, enfocar e conter. (p.3)
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estes criam o vesturio e a casa para se protegerem do clima; vias, pontes etc., para facilitar a
circulao; a vegetao natural substituda por florestas controladas, pastagens para animais;
a fora humana foi substituda pela dos animais, vento, quedas dgua; enfim, a humanidade
criou diversos elementos que medeiam essa relao7.
Para este autor,
A cultura aparece como um conjunto de gestos, prticas, comportamentos, tcnicas,
know-how, conhecimentos, regras, normas e valores herdados dos pais e da
vizinhana, e adaptados atravs da experincia a realidades sempre mutveis.
(CLAVAL, 2003, p.163)
Claval (2007) considera que como a educao condiciona os indivduos e os
grupos, a cultura aparece como uma herana, que o resultado do jogo da comunicao, a
qual vai depender do arsenal tcnico, de conhecimento e de interpretaes de cada sociedade.
No entanto, o autor ressalta que, mesmo enquanto herana, os indivduos no a recebem
passivamente, eles reagem, interiorizam alguns elementos, rejeitam e criticam outros, criam
novos - o que torna as culturas realidades mutveis.
Corra (2003), um dos importantes gegrafos brasileiros representante da
Geografia Cultural, entende que a cultura se manifesta espacialmente permitindo com que
sejam criados mapas de significados, no apenas metafricos, mas que de fato ampliem o
arcabouo da cartografia geogrfica. Para tal afirmao o autor se utilizou da definio dos
membros do Centre for Contemporary Cultural Studies at the University of Birmingham, a
qual entende que as culturas so:
Mapas de significados atravs dos quais o mundo se torna inteligvel. As culturas
no so simplesmente sistemas de significados e valores que temos na mente.
Tornam-se concretas por meio de padres de organizao social. A cultura o modo
pelo qual as relaes sociais de um grupo so estruturadas e modeladas, mas
tambm o modo pelo qual aquelas formas so experienciadas, entendidas e
interpretadas.8 (In JACKSON, 2003, p.2).
Jackson (2003) continua a reflexo observando que a cultura implica
relaes de poder que so refletidas nos padres de domnio e de subordinao. Instituies de
domnio cultural como a BBC e o New York Times, influnciam milhes de pessoas
7Mas para ter construdo todos esses artefatos no foi necessrio a relao direta do homem com a natureza?
Entendemos que a maior parte das pessoas (em especial urbanas) no produzem as pontes ou suas prprias
calas, mas utilizam carros, poluem o ar, os rios, fazem peregrinaes degradando a mata, realizam grandes
rituais nas praias. 8 cultures are maps of meaning through which the world is made intelligible. Cultures are not simply systems of
meaning and value carried around in the head. They are made concrete through patterns of social organization.
Culture is the way the social relations of a group are structured and shaped: but it is also the way those shapes
are experienced, understood and interpreted
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estabelecendo uma leitura preferida de circunstncias locais e nacionais.9 (JACKSON,
2003, p.3). Desse modo, o Estado no exerce um controle social direto, mas sugere que certos
pontos de vista dominante so mais eficazes quando so naturalizados e tornados parte do
senso comum cotidiano.
Assim, os gegrafos sauerianos difundiram a noo do conceito supra-
orgnico de cultura, o qual foi imensamente criticado por autores que enxergam os limites
dessa anlise que colocava a cultura como uma entidade atuando sobre seres passivos,
inviabilizando as anlises numa sociedade capitalista, urbanizada, de classes. Dos autores
brasileiros, Corra tambm pontuou seus problemas e adotou como referncia a definio
apontada em Mapas dos significados, de Jackson (2003), entendendo a concretude da cultura
expressa em padres de organizaes sociais.
No entanto, nos sentimos impelidos a questionar: se possvel em nossa
sociedade urbana/informatizada/globalizada esperar padres sociais que expressem a
homogeneidade de uma cultura, ou estaramos entre culturas hbridas. (cf. Martins, 2001)
1.3 O CONCEITO DE RELIGIO
Pretende-se nesse momento realizar uma breve explanao acerca da
importncia da religio na configurao scio-espacial de uma sociedade, tendo em vista que
esse tema atrai os olhares de muitos pesquisadores, nas diversas reas do conhecimento das
Cincias Humanas. Apesar de fadada ao desaparecimento por autores como Durkheim (2003),
a religio ainda sobrevive, se transforma, se transmuta, perde e ganha adeptos, mas ainda
sobrevive. Tal fato levanta indagaes em diversos autores que tentam compreender o que
mantm a religio nesse mundo secularizado, mercantilizado, globalizado e ditado pela
verdade cientfica; e o que movimenta as paixes de milhes de pessoas no mundo inteiro e
em diversas expresses?
Nesse contexto os estudos da religio tomam relevncia. Sendo assim,
prope-se discutir o que a religio a partir de autores clssicos que buscam entender quais
so os elementos do fenmeno religioso e qual a sua importncia na constituio da
9establishing a preferred reading of local and national circumstances
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sociedade; bem como procurar entender o que a cincia geogrfica tem produzido a respeito
do tema. Sero tomados como base os trabalhos de Geertz (1989), Durkheim (2003), Eliade
(2010) e Alves (1981).
Rubem Alves (1981) em sua obra O que religio10
? Tece uma relao
entre o desejo, a cultura e a religio. Para esse autor, o homem um ser de desejo, sendo este
sentido pela ausncia de algo, quando se privado de algo que se quer. Todo o nosso
cotidiano baseado na privao dos desejos imediatos do corpo, tais como os impulsos
sexuais, as preferncias alimentares, a sensibilidade olfativa, o relgio biolgico
determinando quando acordar ou adormecer. Todos esses imperativos no so mais
expresses naturais do corpo humano, mas uma criao cultural. E a cultura s se inicia
quando o corpo deixa de dar ordens e o homem passa a imaginar e a construir mundos. O
autor ressalta que no existe cultura sem educao; cada pessoa que entra em contato com um
recm-nascido humano um professor que lhe descreve o mundo inventando e substituindo a
voz do corpo. Sendo assim, Alves (1981) declara: j que o corpo, em seu aspecto biolgico
bruto, no o motivo e nem o modelo pelo qual o homem faz cultura, as produes culturais
parecem demonstrar que o homem um ser de desejo. E a cultura feita tendo por finalidade
criar os objetos do seu desejo.
Mas ainda assim, segue o autor, por mais que a inteno da cultura seja criar
os objetos de desejo, ela no o realiza como um todo. s vezes possvel construir um jardim
e colher flores, s vezes necessrio imagin-lo. Ao mesmo tempo que se tem um jardim, este
rodeado por um deserto. O homem cria a cultura e fracassa, pois no consegue satisfazer
todos os seus desejos. Nem sempre possvel ter a pessoa amada e enquanto o desejo no se
realiza, resta cant-lo, diz-lo, celebr-lo, escrever-lhe poemas, compor-lhe sinfonias,
anunciar-lhe celebraes e festivais. (ALVES, 1981, p.22)
Desse modo, a finalidade da cultura assumida pelos smbolos, que nascem
do fracasso do homem e lhe indicam direes, j que nunca podem ser alcanados. Com isso,
a cultura no pode ser entendida a partir dos seus triunfos tcnicos/prticos, pois formada
pelos fracassos e neste ponto que nasce o smbolo, que seria a testemunha das coisas ainda
ausentes, saudade de coisas que no nasceram... (ALVES, 1981, p.22).
10
Apesar da obra de Rubem Alves pertencer coleo Primeiros Passos, achamos bastante interessante a postura
narrativa adotada pelo autor. Para explicar religio e sua importncia o autor se coloca em diversas posies,
tanto de autores importantes como Freud, Feuerbach, Marx e Durkheim, quanto a de um religioso e um cientista
(enquanto posies antagnicas). Consideramos tambm relevante os elementos histricos trazidos pelo autor,
bem como o levantamento bibliogrfico dos principais pensadores sobre o tema.
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33
Se dos fracassos nascem os smbolos, dos smbolos nasce a religio, essa
teia de smbolos, rede de desejos, confisso da espera, horizonte dos horizontes, a mais
fantstica e pretensiosa tentativa de transubistanciar a natureza. (ALVES, 1981, p.22),
composta por itens simples como altares, santurios, comidas, perfumes, lugares, capelas,
templos, amuletos, colares, livros e gestos, representados pelo silncio, olhares, reza,
encantaes, renncias, canes, poemas, romarias, procisses, peregrinaes, exorcismos,
milagres, celebraes, festas e adoraes. (ALVES, 1981)
Dentro de alguns sistemas religiosos esses objetos e gestos pertencem ao
mundo sagrado, e Alves (1981) indaga o que lhes confere essa qualidade? Que propriedades
especiais possuem para se diferenciarem de outros objetos e gestos que continuam no mundo
profano?
E o autor responde destacando que os gestos e as coisas no so sagradas
por si s, so os homens que as atribuem esse significado. Desse modo, a religio nasce a
partir do poder conferido ao homem de nomear as coisas, classificando quais so as que
direcionam seu destino, sua vida e morte, e quais so as que so secundrias existncia. Por
essa razo, a religio se apresenta como certo tipo de fala, de discurso, de rede de smbolos. E
por meio desses smbolos que os homens discriminam os objetos, tempos e espaos que
fazem parte do mundo sagrado. O autor salienta que, talvez sem esse olhar filtrado pelo
sagrado, o mundo seja por demais frio e escuro. Com seus smbolos sagrados o homem
exorciza o medo e constri diques contra o caos. (ALVES, 1981, p.24).
Quando estamos diante do mundo profano nos deparamos com coisas
concretas e visveis, tais como doenas, contas a pagar, poltica. No entanto, no mundo do
sagrado a linguagem faz referncia s coisas invisveis, coisas que s podem ser observadas
pelos olhos da f. E graas ao poder do invisvel que se instaura o sagrado. A linguagem
religiosa se refere ao invisvel quando menciona as profundezas da alma, as alturas dos cus,
o desespero do inferno, os fluidos e influncias que curam, o paraso, as bem-aventuranas
eternas e o prprio Deus. (ALVES, 1981, p.26), pois nunca ningum viu nenhuma dessas
entidades, observa o autor.
A pedra, o po, o vinho ou qualquer outro objeto por si s concreto e
visvel. Mas, quando fazem parte do mbito sagrado ganham significados misteriosos e
realizam conexes invisveis com a graa divina. Dessa forma, no parecer do autor, o discurso
religioso trabalha no sentido de transformar as entidades brutas e vazias (os objetos, as coisas)
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em portadoras de sentido, passando a fazer parte do mundo humano como extenses do
prprio indivduo.
Sendo assim, o que importa para a religio so os objetos construdos pela
fantasia e pela imaginao, as quais so fruto do desejo e da espera. Algumas pessoas
estabelecem uma relao de amizade com a natureza e envolvem seus elementos com o vu
do invisvel, fazendo com que os ventos, nuvens, rios, mares, animais, plantas sejam mais do
que mera presena na natureza.
Esse pensamento guiado por Alves (1981) para concluir que as entidades
religiosas so imaginrias. Tal constatao tem o sentido de se contrapor ao pensamento
cientfico, que exige toda objetividade e verdade, negando a imaginao. E apesar de toda a
eficcia e eficincia que a cincia consegue ao satisfazer questes da vida objetiva, no
seriam, no entanto, mediante os princpios cientficos que surgiria a flauta, a dana, as
pinturas, pois estes no tinham objetividade antes de serem inventados, foram antes
imaginados. E graas imaginao nasce a cultura.
Assim o autor se justifica, destacando que pensar as entidades religiosas
como imaginrias somente estabelecer sua filiao, reconhecendo a fraternidade que nos
une. (ALVES, 1981, p.32), e, de forma alguma, quer sugerir que as pessoas portadoras de
religiosidade so loucas, nem mesmo que a religio apenas imaginao ou fantasia, mas que
ela tem o poder, o amor e a dignidade do imaginrio. (ALVES, 1981, p.3).
O autor destaca que
o homem lana, projeta, externaliza suas redes simblico-religiosas - suas melodias
sobre o universo inteiro, os confins do tempo e os confins do espao, na esperana
de que cus e terra sejam portadores de seus valores. (ALVES, 1981, p.34)
Nessas aes o que est em jogo a ordem, esta que o homem busca para
resgatar as marcas do desejo e que corresponda s aspiraes do amor. Porm, como algo
presente, essa realidade no existe. Ento a religio aparece como a grande hiptese e aposta
de que o universo inteiro possui uma face humana.. Com isso, Alves indaga: qual cincia
seria capaz de construir esse horizonte? E responde: so necessrias as asas da imaginao
para articular os smbolos da ausncia. (ALVES, 1981, p.34)
Eis onde repousa a importncia dos smbolos e das entidades: responder a
necessidade de viver num mundo que faa sentido. A objetividade concreta apesar de
eficazmente matar a fome e saciar o desejo sexual, necessidades bsicas da sobrevivncia, no
consegue estabelecer no ser uma ordem interna que permita aos smbolos darem sentido
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vida dos seres humanos. E assim discorre o autor:
verdade que os homens no vivem s de po. Vivem tambm de smbolos, porque
sem eles no haveria ordem, nem sentido para a vida, e nem vontade de viver. Se
pudermos concordar com a afirmao de que aqueles que habitam um mundo
ordenado e carregado de sentido gozam de um senso de ordem interna, integrao,
unidade, direo e se sentem efetivamente mais fortes para viver (Durkheim),
teremos ento descoberto a efetividade e o poder dos smbolos e vislumbrado a
maneira pela qual a imaginao tem contribudo para a sobrevivncia dos homens.
(ALVES, 1981, p.35)
Essa argumentao, a de considerar os smbolos como importante pilastra
para sustentar a construo do sentido da vida do homem, vai permear todo o texto do autor e
vai se estender religio, que por ele considerada como uma rede de smbolos. Nesse
sentido, para Alves (1981) h duas perguntas: responder o que religio requer a
compreenso do que ocorreu com os smbolos que herdamos? O que fizeram conosco e o que
fizemos com eles? O que, para o autor, pode ser entendido se recorrermos histria e
tentarmos compreender como nossos smbolos foram reificados e construram nosso mundo e,
em seguida, desmoronaram.
Nossa civilizao recebeu uma herana simblica a partir de duas vertentes:
uma hebraico-crist e outra greco-romana. Estas, distintas, porm transformadas
reciprocamente no contato histrico, floresceram no perodo denominado Idade Mdia,
considerado pelo autor como inigualvel quanto ao quesito simblico, porque ali os smbolos
do sagrado adquiriram uma densidade, uma concretude e uma onipresena que faziam com
que o mundo invisvel estivesse mais prximo e fosse mais sentido que as prprias realidades
materiais. (ALVES, 1981, p.39-40)
Nessa poca, as obras de arte eram quase que exclusivamente voltadas ao
sagrado, e a natureza sempre aparecia influnciada por essa tica. Todo o universo era
compreendido como sendo dotado do sentido humano, possuindo um carter essencialmente
religioso. Todas as coisas se uniam numa nica temtica: o drama da salvao, o perigo do
inferno, a caridade de Deus levando aos cus as almas puras. (ALVES, 1981, p.40). Com
isso o autor destaca que compreensvel que todo esse drama tenha exigido e estabelecido
uma geografia que localizava com preciso o lugar das moradas do demnio e as
coordenadas das manses dos bem-aventurados11
. (ALVES, 1981, p.41).
11
Essa citao inspirou-nos a rememorar o j tratado olhar clssico da Geografia: o da localizao em seu sentido
amplo, da importncia de se entender o porqu as coisas esto onde esto e qual seu sentido histrico e social.
E o interessante que esta passagem de Rubem Alves, que telogo, socilogo e psiquiatra mas no gegrafo,
transborda essa compreenso.
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No entanto, destaca o autor, como todo sistema simblico sofre
modificaes a partir dos questionamentos sobre sua eficcia, o sistema religioso da Idade
Mdia tambm sofreu. E, certamente, essa oposio no veio da alta hierarquia sagrada, que
detinha o poder e o controle desses smbolos, e nem da camada mais pobre da populao, que
gastava toda a sua energia para lutar pelo po de cada dia; veio de uma classe que se
interessava por atividades econmicas voltadas produo, comercializao, expanso dos
mercados, lucros, riquezas.
O sistema simblico da Idade Mdia representava um grande obstculo para
a burguesia e seus interesses, pois, enquanto a sociedade medieval queria compreender e
contemplar a natureza, a nova classe almejava control-la e transform-la. E para tanto, no
poderia haver melhor instrumento investigativo do que a matemtica, pois possui uma
linguagem vazia de mistrios e dominada pela razo.
Nesse novo universo, baseado na cincia, o mundo invisvel e misterioso da
religio no teria funo, pois o que se valoriza o utilitrio e o fato observvel, dotado de
objetividade. A natureza passa a ser vista como uma entidade bruta, apenas fonte de matria-
prima, em que tanto os seus elementos quanto as pessoas perderam seu valor religioso.
Agora algum vale o quanto ganha, enquanto ganha. (ALVES, 1981, p.47). Desse modo,
ressalta Alves (1981), a religio representa uma tradio que ser sacrificada em nome da
utilidade e racionalidade da produo de riquezas, assim, tudo que no era considerado til
perante esse raciocnio deveria desaparecer.
Deus foi aprisionado no Cu e a religio ficou limitada a tomar conta
somente das coisas invisveis, no participando mais do poder de decises polticas e
econmicas. E ento o autor indaga: por que ainda permitem religio o domnio sobre as
coisas invisveis? Por que no lhe tiraram tudo?
Diante dessa nova realidade, muitos autores entenderam o fim da religio e
a completa secularizao da sociedade, porm, isso no ocorreu. O autor lembra que, mesmo
os grandes cones desse novo sistema, como os economistas, banqueiros e negociantes, ainda
pensam sobre a vida e a morte e querem ter certeza de que sua riqueza foi merecida, sendo
assim, buscam nela os sinais do favor divino e a cercam das confisses de piedade.
(ALVES, 1981, p.51). Haja vista o dlar, a maior moeda do mundo e o smbolo mximo do
sistema capitalista, trazer escrito In God We trust. E ainda tem os operrios e camponeses
que necessitam da religio para suportar seus sofrimentos.
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Se as religies ainda sobrevivem cincia e hostilidade do mundo
moderno, o que so elas? Indaga Alves (1981), o que as une num trao comum? Sua resposta
se aproxima de Eliade (2010) e Durkheim12
(2003): todas as religies apresentam o mundo
dividido em dois, um espao das coisas sagradas e outro das coisas profanas. Ambos so
estabelecidos pelas atitudes humanas diante das coisas, espaos, tempos, pessoas e aes, ou
seja, no so propriedades das mesmas.
Para o autor o mundo profano o circulo das coisas utilitrias, ou seja, as
coisas so usadas por serem teis, se no apresentam utilidade alguma so descartadas. Assim
o crculo do profano e o do econmico se superpem. Esse utilitarismo conjugado com o
individualismo, pois o indivduo torna-se dono de todas as coisas e centro do mundo, podendo
escolher o que lhe til ou no.
Em contrapartida, no mundo sagrado as coisas se transformam e so elas
que possuem o indivduo, e no o contrrio. Ele no o centro do mundo e depende de algo
superior a ele, sentindo-se ligado ao sagrado pela reverncia e respeito. No mundo sagrado h
a transgresso do utilitarismo, pois as prticas que o compreendem no so definidas por sua
utilidade, mas por atribuies sagradas da religio, tais como o sacrifcio, o jejum, o perdo, a
autoflagelao. Assim, o autor completa:
O sagrado o criador, a origem da vida, a fonte da fora. O homem a criatura, em
busca de vida, carente de fora. Vo-se os critrios utilitrios. O homem no mais
o centro do mundo, nem a origem das decises, nem dono do seu nariz. Sente-se
dominado e envolvido por algo que dele dispe e sobre ele impe normas de
comportamento que no podem ser transgredidas, mesmo que no apresentem
utilidade alguma. (ALVES, 1981, p.61)
Ento o autor enfatiza que o sagrado funciona como um crculo de poder e
no de saber, pois a essncia da religio no a ideia, mas a fora. (ALVES, 1981, p.64).
Utilizando-se de Durkheim, destaca que a conscincia do sagrado uma habilidade humana
para imaginar e pensar num mundo ideal. Desse modo, o ideal e o sagrado so a mesma coisa.
Alves (1981) destaca o pensamento de Marx, que parte da premissa de que
a vida que determina a conscincia e no o contrrio. Assim, a condio material da
humanidade que determina suas relaes espirituais, sendo ela a criadora da religio, e no o
contrrio. Se a humanidade no fosse obrigada a trabalhar contra sua vontade, mas pudesse
trabalhar com o que lhe proporcionasse prazer, ela no precisaria da religio. Pois a religio
o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem corao, como ela o esprito das
12
Os quais trabalharemos posteriormente.
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38
condies sociais de onde o esprito excludo. Ela o pio do povo.13
(MARX; ENGELS,
1968, p.37)
Marx considera que no a religio o problema, so as condies materiais
dos indivduos que exigem que ela exista. Assim, o que deve ser mudada a situao da
humanidade, no que ela seja encorajada a deixar suas religies, a exigncia de que se
abandonem as iluses sobre uma determinada situao, a exigncia de que se abandone uma
situao que necessita de iluses. (MARX; ENGELS, 1968, p.37). E segue:
A crtica arrancou as correntes que recobriam as flores imaginrias, no para que o
homem viva acorrentado sem fantasias ou consolo, mas para que ele quebre a
corrente e colha a flor viva. A crtica da religio destri as