A Gestão e o Financiamento Da TV Pública

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REVISTA DA ESPM– JULHO/ AGOSTO DE 2010 118 ASSUNTO em pauta Televisão pública: um debate fundamental s últimos anos têm sido marca- dos pela intensificação do debate na sociedade brasileira em torno do tema TV pública. Esse resgate parece ter sido resultante de alguns fatores específicos, mas também é uma consequência natural da evolução de uma sociedade democrática e da comunicação enquanto direito do cidadão. Discutir a televisão é fundamental. Contudo, entender o papel da TV pública no modelo de rádiodifusão de um país é parte importante dessa discussão. Limites do público e do privado na paisagem midiática. A gestão e o financiamento da TV pública POR MARIA C ECÍLIA A NDREUCCI C URY O } Assim como na esfera do mercado, a regu- lamentação Estatal se justifica pelo inegável interesse coletivo, presente em toda atividade de comunicação de massa, a existência de meios públicos justifica-se pela necessidade de possibilitar alternativas de comunicação, que deem entrada a todas aquelas exigências culturais que não cabem nos parâmetros do mercado, sejam elas provenientes das maiorias ou das minorias. ~ (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 75) ( ( ASSUNTO em pauta

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Artigo-2010-CURY, Maria.

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  • R E V I S T A D A E S P M julho/agosto de 2010118

    ASSUNTOem pauta

    Televiso pblica: um debate fundamental

    s ltimos anos tm sido marca-dos pela intensificao do debate na sociedade brasileira em torno

    do tema TV pblica. Esse resgate parece ter sido resultante de alguns fatores especficos, mas tambm uma consequncia natural da evoluo de uma sociedade democrtica e da comunicao enquanto direito do cidado.

    Discutir a televiso fundamental. Contudo, entender o papel da TV pblica no modelo de rdiodifuso de um pas parte importante dessa discusso.

    Limites do pblico e do privado na paisagem miditica.

    A gesto e o financiamento da TV pblica

    p o r Ma r i a Ce C l i a an d r e u C C i Cu ry

    O }Assim como na esfera do mercado, a regu-lamentao Estatal se justifica pelo inegvel interesse coletivo, presente em toda atividade de comunicao de massa, a existncia de meios pblicos justifica-se pela necessidade de possibilitar alternativas de comunicao, que deem entrada a todas aquelas exigncias culturais que no cabem nos parmetros do mercado, sejam elas provenientes das maiorias ou das minorias.~

    (MARTN-BARBERO, 2002, p. 75)( (

    ASSUNTOem pauta

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    No Brasil, as televises comerciais parecem preencher todos os espaos. Em contrapartida, as principais democracias do mundo oferecem maior equilbrio nesta equao comunicao pblica e privada possibilitando, assim, mais escolhas sociedade em geral (ou seria o con-trrio este equilbrio na comunicao que possibilita a consolidao da democracia e o exerccio da cidadania?).

    Diante da escassez de recursos pblicos, for-mas alternativas de financiamento da televiso pblica surgem e, junto a elas, um rastro de questionamentos, gerando discusses ideol-gicas, ticas e pragmticas, especialmente dos agentes envolvidos na estratgia e viabilizao desse meio de comunicao.

    So inmeras questes importantes vinculadas TV pblica. Contudo, a ideia no , nestas poucas pginas, esgotar o debate, mas sim refletir brevemente sobre a viabilizao de uma TV pblica a srie de prticas necessrias sua exequibilidade, tais como a sua gesto e o seu modelo de financiamento, um elemento fundamental de sua prxis.

    No Brasil, as televises comerciais parecem preencher todos os es-paos, onde a TV pblica no consegue entrar e, com isso, restringem-se as escolhas e opes ao telespectador.

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    A TV BRASIL a nica emissora pblica federal controlada pela socieda-de civil. Criada em 2008, possui canais abertos apenas em quatro Esta-dos, alm de formar uma Rede Pblica de TV com outros sete canais univer-sitrios e quinze emisso-ras educativas estaduais.

    A televiso pblica possvelUm ideal de televiso pblica deveria contribuir para o equilbrio do sistema de comunicao de uma nao, funcio-nando como um contrapeso ao sistema privado e fomentando a democracia e a cidadania atravs da promoo da cultura, do conhecimento e da informao de forma universal, tica e independente, com altos padres de qualidade programtica. Isso o que

    se pode sintetizar, a partir de diferentes ideias e conceitos de pensadores sobre o assunto, ainda que no parea uma tarefa simples. Entretanto, entre o mundo ideal e o real tende a existir um universo de impossibilidades.

    Duas variveis impactam mais dire-tamente em todas as prticas de um sistema de comunicao pblico sua gesto e, especialmente, suas fontes de financiamento. Isso porque tanto um ponto quanto outro vo determinar a direo, aplicao e o volume dos investimentos, sejam em contedo, tecnologia, servios, entre outros.

    Por gesto entende-se aqui o modelo de administrao, o conjunto de nor-mas, funes e cargos que exercem a funo diretiva da televiso pblica.

    Servem para imprimir-lhe rumo, ordem e par-metros nos processos decisrios que fazem desse sistema uma realidade, seja ela qual for.

    Por formas de financiamento entendem-se todas as fontes geradoras de receita ou de recursos financeiros que viabilizam qualquer iniciativa ou atividade da instituio em questo desde o pagamento de seus colaboradores, aquisio de bens, de contedo, de tecnologias, contratao de servios, treinamentos etc.

    a gesto quem decide como utilizar os recursos oramentrios da televiso pblica, assim como a possvel diversificao nas fontes de captao de recursos. A dimenso desses recursos, geralmen-te, inferior s necessidades de uma realidade ideal. E, neste caso, cabe gesto priorizar os projetos e as diversas aplicaes dos recursos, de forma a melhor aproximar-se de seus ideais.

    A gesto da TV pblicaUm modelo de gesto que se prope a cumprir os ideais da televiso pblica parte, inicialmente, da sua autonomia, da sua independncia para cumpri-los e de sua representatividade. Existem diferentes formas de gesto nos diversos sistemas pblicos espalhados pelo mundo. As possibilida-des so inmeras.

    Em geral, tende a existir um poder e um contra-poder, os quais podem ser definidos como dire-toria executiva e o conselho curador e ambos bus-cam equilbrio, pluralidade e limites em todos os aspectos da gesto da organizao. Reconhece-se aqui, contudo, que no existe uma receita pronta, e sim diferentes modelos espalhados pelo mundo, com maior ou menor sucesso, os quais podem incluir vrios conselhos ou apenas uma diretoria.

    Vista dessa forma, parece um modelo que tende a funcionar equilibradamente, mas, como todo

    }Falar sobre o que a mdia deve fazer s tem sentido se conhecidos os seus efeitos entre a sociedade.~

    (BARROS FILHO, 2003, p. 9)

    Desde 2002, o Intervo-zes Coletivo Brasil de Comunicao Social uma organizao que tra-balha pela efetivao do direito humano comu-nicao na sociedade, aumentando assim sua participao e interfern-cia na gesto da mdia, seja pblica ou privada.

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    modelo, tambm tende a apresentar suas bre-chas, suas fissuras. Os critrios nem sempre so respeitados. Ou seja, por um lado, nem sempre a diretoria executiva capacitada para as fun-es que lhe foram designadas, muitas vezes tornando-se indicaes polticas ou motivadas por interesses particulares e, por outro, muitas vezes o conselho no representa, de fato, os di-versos segmentos da sociedade, que por sua vez nem sempre sabe que est sendo sequer repre-sentada. Muitas crticas podem ser observadas, em relao, tanto a um como ao outro lado da gesto (LEAL FILHO, 2008).

    Em alguns pases a sociedade civil tambm se organiza para fazer um contra-controle paralelo, por meio de organizaes no governamentais, aumentando assim sua participao e interfern-cia na gesto da mdia, seja pblica ou privada. Quo maior for essa participao ativa e a trans-parncia do modelo de gesto, maior tende a ser a sustentabilidade social de um sistema pblico de comunicao.

    O financiamento da televiso pblicaO financiamento da televiso pblica um aspecto que, direta ou indiretamente, tende a influenciar a linha da programao, a escolha dos gestores e todos os seus processos decisrios.

    Pierre Bourdieu j ressaltou a correlao direta do grau de autonomia de um meio de difuso com a concentrao de receitas em uma ou poucas fontes, sejam privadas ou pblicas (BOURDIEU, 1997, p. 102). Estas ltimas podem ser tanto uma fonte do governo federal, estadual ou municipal e, geralmente no Brasil, caracteriza-se como uma dotao oramentria termo usado na admi-nistrao das contas pblicas, que designa uma verba consignada em oramento pblico, a qual ser usada para fazer face a uma despesa com fim especfico. Todavia, tanto as fontes pblicas quanto as fontes privadas apresentam-se em variados formatos.

    Algumas formas pblicas alternativas tornaram-se majoritrias em outros pases, como, por exem-plo, uma taxa, cobrada pelo governo do pblico em geral ou de uma parcela dele, para o fim especfico de subsidiar a viabilidade financeira da televiso pblica. Na Inglaterra, a principal fonte de receita da BBC uma taxa cobrada de todos os cidados britnicos possuidores de aparelhos de televiso em sua residncia, a chamada Licence Fee. No cabe a nenhum membro do governo ingls decidir ou no o repasse ele automtico. Isso garante um amplo espao de autonomia dos gestores das emissoras.

    Dentre as possveis fontes privadas, a nica que parece no gerar muita polmica em torno da sua presena num meio pblico de televiso aparenta ser a contribuio espontnea de pessoas fsicas e jurdicas. Essa apresenta expressiva participao no financiamento da televiso pblica apenas nos E.U.A., onde representa quase 30% de todos os recursos financeiros da emissora.

    A taxa cobrada pelo governo do pblico em geral ou de uma parcela dele, para o fim especfico de subsidiar a viabili-dade financeira da televiso pblica a principal fonte de receita da BBC, onde uma taxa cobrada de todos os cidados britnicos possuidores de aparelhos de televiso em sua residn-cia, a chamada Licence Fee.

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    Uma fonte de financiamento sig-nificativa a comercializao de contedo, de seu acervo, para outras emissoras, produtoras audiovisual, corporaes etc. Nos E.U.A. repre-senta 15% do oramento da PBS.

    Outras fontes de receita so a comer-cializao de produtos e subprodu-tos, a prestao de servios, a venda de assinatura, em canal fechado, com uma programao selecionada do acervo da TV pblica.

    Entrando numa seara bem mais dis-cutida, chegamos aos patrocnios e apoios institucionais. So formas de publicidade, as quais podem tanto estar vinculadas a determinado pro-grama, programao, ou at mesmo emissora como um todo (uma cota mster). Pode ou no implicar

    na veiculao de filmes publicitrios, podendo adicionalmente veicular-se apenas uma vinheta institucional ou uma meno ao apoio. O debate comea esquentar, especialmente, na medida em que os potenciais patrocinadores come-am a se preocupar com a audincia. Ela, como j falado anteriormente, no pode ser o fim nico de uma emissora pblica, mas conviver com ndices inexpressivos o famoso trao pode representar uma televiso pblica para nin-gum, deixando assim de cumprir sua misso. E na nsia de querer se manter o patrocinador, poder-se-ia alterar a qualidade da programao, seu contedo cultural/educativo, no ensejo de alcanar ndices mais altos.

    importante notar que as receitas privadas so uma realidade em muitas redes pblicas de co-municao. Ela, sozinha, tende a no definir a presena ou ausncia de qualidade, tampouco sua independncia. Temos bons exemplos de televises pblicas que lanam mo delas (e.g. PBS), mas tambm de outras que so estrita-mente financiadas pelo poder pblico (e.g. BBC). Na realidade, parece ser uma combinao de mecanismos de gesto, controle social e fontes de financiamento, a qual pode determinar o cumprimento ou no da misso maior.

    O grande desafio nesse cenrio preservar os ideais da televiso pblica em meio a todo esse contexto. O modelo pblico consagrado internacionalmente aquele que se mantm independente do Estado e do comrcio, poltica e financeiramente (LEAL FILHO, 2003).

    E a audincia, o que pensa sobre tudo isso? Falar sobre o que a mdia deve fazer s tem sentido se conhecidos os seus efeitos entre a sociedade (BARROS FILHO, 2003, p. 9). Nesse sentido, investigamos se a recepo da propa-ganda pelo pblico-cidado na TV pblica tem o mesmo potencial de polmica.

    Demonstramos, numa pesquisa qualitativa re-cente, que a publicidade em TV pblica, tende a ser bastante bem acolhida. No incio do debate surgiu at certo espanto do grupo quanto ao ob-jeto da discusso, j que eles sequer pensam uma televiso sem a presena da publicidade. Ela tende a fazer parte da paisagem miditica. Essa surpresa deve-se tambm ao fato de o sistema hegemni-co de comunicao no Brasil ser o comercial, ao

    }O modelo pblico consagrado internacionalmente aquele que se mantm independente do Estado e do comrcio, poltica e financeiramente.~

    (LEAL FILHO, 2003).

    Outras fontes de receita so a comercializao de produtos e subprodutos, a prestao de servios, a venda de assinatura, em canal fechado, com uma programao se-lecionada do acervo da TV pblica.

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    BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edioes 70, 1995.

    BOURDIEU, Pierre. Sobre a televiso. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

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    Janeiro: Record, 2008.

    CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidados. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.

    CURY, M. Ceclia A. Limites do pblico e privado na paisagem miditica. Televiso pblica: cidadania e consumo. 2009. So

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    GARNHAM, Nicholas, Richard COLLINS, e Gareth LOCKSLEY. The economics of television: the UK case. Londres: SAGE, 1988.

    HABERMAS, Jurgen. Mudana estrutural da esfera pblica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

    LEAL FILHO, L. A melhor TV do mundo. So Paulo: Summus, 1997.

    . Desafios para a constituio de um sistema pblico de comu-

    nicao. So Paulo, maro de 2008. Ver transcrio completa

    no Anexo I da dissertao de CURY, M. Cecilia A. acima citada.

    . Por uma rede nacional de televiso. Texto apresentado

    no seminrio O Desafio da TV Pblica, promovido TVE Rede

    Brasil. junho de 2003.

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    consumidor ao cidado, por Omar Rincn, 41-79. So Paulo:

    Friedrich Ebert Stiftung, 2002.

    RINCN, Omar. A televiso: o mais importante, do menos impor-tante. In: Televiso pblica: do consumidor ao cidado, por Omar

    RINCN. So Paulo: Friedrich-Ebert-Stiftung, 2002.

    . Televiso pblica: para saber quem somos, como temos

    sido e o que queremos ser. In: Televiso pblica: do consumidor

    ao cidado, por Omar Rincn, 327-350. So Paulo: Friedrich-

    Ebert-Stiftung, 2002.

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    BIBLIOGRAFIA

    contrrio de pases europeus, estes acostumados a outra realidade (CURY, 2009, p. 80-86).

    Se por um lado existe uma macroconvergncia, por outro, quando nos aprofundamos aos forma-tos publicitrios, percebemos algumas divergn-cias de opinio. O modelo mais bem aceito so os filmes institucionais, uma unanimidade. Os que geram algum tipo de resistncia so os filmes de varejo (tpica pea publicitria varejista com obje-tivo de incremento de vendas a curtssimo prazo, veiculando o conceito/benefcios/preo/condies de pagamento de forma rpida e enftica).

    Contudo, em aspectos gerais, a aceitabilidade irrestrita da presena da publicidade na televiso pblica alcanou uma grande maioria (63%), seguida por uma indiferena ao fato (23%). Prati-camente no existe rejeio, muito provavelmente, porque todos nasceram assistindo TV com in-seres de comerciais e, portanto, ela faz parte do imaginrio de TV, para eles.

    Nesse sentido, o financiamento privado no deve-ria ser descartado pela televiso pblica, especial-mente a publicidade, por seu potencial de captao de recursos. Mas no somente por isso, tambm porque sua presena, sozinha, no determinante na qualidade e no contedo programtico. Esses dependem muito mais de sua gesto e de sua autonomia, que, como j mencionado anterior-mente, esto diretamente ligados ao equilbrio em suas fontes de receita. A ideia horizontalizar a receita, no verticaliz-la. Ou seja, tende a ser bom depender menos do Estado, ainda que o pndulo no devesse pender totalmente para o outro lado. Com isso, no se recomenda a dependncia estrita do mercado, nem tampouco se exime o Estado da responsabilidade de subsidiar o servio pblico de comunicao. ESPM

    MARIA CECLIA ANDREUCCI CURYMestre em comunicao e prticas de consumo, pela ESPM/SP, administradora de empresas, pela PUC/RJ, ps-graduada em marketing, pela ESPM/RJ, e especializada em marketing de bens de con-sumo, pela Kellogg School of [email protected]