A GRAMÁTICA SOCIAL DA DESIGUALDADE BRASILEIRA - JESSÉ SOUZA

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No âmbito da sociologia internacional, assim como no contexto da sociologia brasileira, o para- digma dominante nas ciências sociais do século XX considera o subdesenvolvimento social brasileiro a partir do encadeamento das noções complementa- res de personalismo, familismo e patrimonialismo, de modo a fundamentar a idéia de uma sociedade pré-moderna. As mazelas sociais de países periféri- cos como o Brasil – grande desigualdade social e sua naturalização, marginalização em massa de se- tores expressivos da população e dificuldades de consolidação de uma ordem democrática e de um mercado competitivo e eficiente – seriam conse- qüências dessa expansão pré-moderna de modelos familísticos para todas as esferas sociais. A partir de um paradigma explicativo semelhante àquele do culture and personality, dominante na sociologia e na antropologia norte-americanas da primeira me- tade do século XX, 1 parte-se de uma perspectiva culturalista sem que se faça uma vinculação ade- quada com a eficácia de instituições fundamentais e onde a cultura é percebida como uma entidade homogênea, totalizante e auto-referida. Seria por conta dessa soberania do passado sobre o presen- te que nos confrontamos com solidaridades verti- cais, baseadas em critérios de favor e subcidadania para a maior parte da população e no abismo ma- terial e valorativo entre as classes e os grupos so- ciais que compõem nossa sociedade. A tese que pretendo desenvolver nesse texto parte de uma outra perspectiva. Pretendo demons- trar como a naturalização da desigualdade social e a conseqüente produção de “subcidadãos” como A GRAMÁTICA SOCIAL DA DESIGUALDADE BRASILEIRA * Jessé Souza * Este artigo discute questões desenvolvidas com maior detalhamento em Souza (2003). Agradeço a Faperj pelo financiamento parcial da pesquisa teóri- ca e empírica que permitiu este trabalho. Artigo recebido em fevereiro/2003 Aprovado em agosto/2003 RBCS Vol. 19 nº. 54 fevereiro/2004

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No âmbito da sociologia internacional, assimcomo no contexto da sociologia brasileira, o para-digma dominante nas ciências sociais do século XXconsidera o subdesenvolvimento social brasileiro apartir do encadeamento das noções complementa-res de personalismo, familismo e patrimonialismo,de modo a fundamentar a idéia de uma sociedadepré-moderna. As mazelas sociais de países periféri-cos como o Brasil – grande desigualdade social esua naturalização, marginalização em massa de se-tores expressivos da população e dificuldades deconsolidação de uma ordem democrática e de ummercado competitivo e eficiente – seriam conse-

qüências dessa expansão pré-moderna de modelosfamilísticos para todas as esferas sociais. A partir deum paradigma explicativo semelhante àquele doculture and personality, dominante na sociologia ena antropologia norte-americanas da primeira me-tade do século XX,1 parte-se de uma perspectivaculturalista sem que se faça uma vinculação ade-quada com a eficácia de instituições fundamentaise onde a cultura é percebida como uma entidadehomogênea, totalizante e auto-referida. Seria porconta dessa soberania do passado sobre o presen-te que nos confrontamos com solidaridades verti-cais, baseadas em critérios de favor e subcidadaniapara a maior parte da população e no abismo ma-terial e valorativo entre as classes e os grupos so-ciais que compõem nossa sociedade.

A tese que pretendo desenvolver nesse textoparte de uma outra perspectiva. Pretendo demons-trar como a naturalização da desigualdade social ea conseqüente produção de “subcidadãos” como

A GRAMÁTICA SOCIAL DA DESIGUALDADE BRASILEIRA*

Jessé Souza

* Este artigo discute questões desenvolvidas commaior detalhamento em Souza (2003). Agradeço aFaperj pelo financiamento parcial da pesquisa teóri-ca e empírica que permitiu este trabalho.

Artigo recebido em fevereiro/2003Aprovado em agosto/2003

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um fenômeno de massa em países periféricos demodernização recente como o Brasil, pode ser maisadequadamente percebida como conseqüência,não de uma suposta herança pré-moderna e perso-nalista, mas precisamente do fato contrário, ouseja, como resultante de um efetivo processo demodernização de grandes proporções que se im-planta paulatinamente no país a partir de inícios doséculo XIX. Nesse sentido, meu argumento implicaque nossa desigualdade e sua naturalização na vidacotidiana é moderna posto que vinculada à eficáciade valores e instituições modernas a partir de suabem-sucedida importação “de fora para dentro”.2

Assim, ao contrário de ser “personalista”, ela retirasua eficácia da “impessoalidade” típica dos valorese instituições modernas. É isso que a faz tão opacae de tão difícil percepção na vida cotidiana.

A importância de uma mudança de paradig-ma nesse campo não tem apenas repercussõesteóricas. A ausência de perspectivas de futuro empaíses periféricos como o Brasil tem a ver com aobsolescência dos antigos projetos políticos, pau-tados em análises tradicionais criticadas acima. Atendência a se criar o que poderíamos chamar de“fetichismo da economia” – como se o crescimen-to econômico por si só pudesse resolver proble-mas como desigualdade excludente e marginali-zação3 –, o hábito de se estabelecer clivagensregionais entre partes modernas e tradicionaisdentro do país ou ainda as cruzadas populistascontra a corrupção são legitimados por essa su-posta herança pré-moderna e personalista, idéiasque servem como máscara ideológica contra a ar-ticulação teórica e política dos conflitos específi-cos de classe na periferia.

A dificuldade teórica de avançar uma hipóte-se construtiva nesse terreno exige a articulação dedois passos subseqüentes: 1) reconstruir a confi-guração valorativa subjacente ao racionalismo oci-dental ao seu ancoramento institucional, ou seja,reconstruir uma versão sociocultural do tema mar-xista da “ideologia espontânea do capitalismo”;em seguida 2) refletir acerca de sua aplicação nocontexto da “modernidade periférica”. Para isso,em primeiro lugar, acredito que seja proveitosoconfrontar um insight não completamente desen-volvido por Max Weber no âmbito de sua sociolo-

gia comparada das religiões à perspectiva de duasdas mais promissoras abordagens críticas surgidasna sociologia da segunda metade do século passa-do, a saber, a teoria crítica do reconhecimento,cujo expoente principal é o filósofo social cana-dense Charles Taylor, e a sociologia de PierreBourdieu. Essas duas abordagens trazem concep-ções complementares interessantes, que podemser utilizadas, com muito proveito, para a análiseda modernidade periférica.

Na sua monumental sociologia das grandesreligiões mundiais, Weber interessa-se primaria-mente por uma análise comparativa do racionalis-mo ocidental com as grandes religiões orientais, demodo a esclarecer por que, apenas no Ocidente,surgiu, impondo transformações estruturais em to-das as esferas da vida social, uma sociedade que de-nominamos capitalista, moderna e ocidental. Comoa “revolução de consciências” do protestantismo as-cético foi considerado um momento importante naexplicação desse desenvolvimento singular do Oci-dente, a sociologia comparativa neo-weberiana foimarcada pela procura de “substitutos da ética pro-testante” para identificar tanto os processos de mo-dernização com chances de sucesso como os fada-dos ao fracasso na hipótese contrária.

Um pressuposto implícito dessa estratégiaanalítica era o fato de que se mantinha não ape-nas as premissas do “culturalismo essencialista”,mencionado anteriormente, mas também a noção“etapista” da sociologia tradicional da moderniza-ção, uma vez que se assumia que as sociedadesnão-ocidentais ou bem repetiriam os passos dassociedades ocidentais centrais por meio de sími-les da revolução protestante – o caso do Japão éo mais eloqüente nesse contexto4 –, ou estariamcondenadas à égide da pré-modernidade. Apenasa repetição do processo contingente de “moderni-zação espontânea” ocidental garantiria o passa-porte para relações modernas na economia, napolítica e na cultura. Uma grande parte da socio-logia culturalista e institucionalista que se deteveno estudo da América Latina, escrita tanto por au-tores latino-americanos como por não latino-ame-ricanos, estava e ainda está marcada explícita ouimplicitamente por essa pressuposição.

Para Max Weber, no entanto, parecia claroque a explicação do surgimento “espontâneo” do

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racionalismo ocidental na Europa e na América doNorte diferia da explicação do desenvolvimento ul-terior do arcabouço valorativo e institucional desseracionalismo como conseqüência da expansão dasociedade ocidental para todo o mundo. Funda-mentalmente, essa expansão dar-se-ia pela expor-tação, sob a forma de “artefatos prontos” – fertigenGebildes als Artefakt (Weber, 1998, p. 251) –, dasprincipais instituições do racionalismo ocidental: omercado capitalista com seu arcabouço técnico ematerial e o Estado racional centralizado com seumonopólio da violência e poder disciplinador.

A dificuldade em se discutir esse tema tem aver com a concepção necessariamente naturaliza-da que temos da eficácia social do mercado e doEstado. Às gerações que nascem sob a égide daspráticas disciplinarizadoras já consolidadas nessasinstituições, a hierarquia valorativa implícita, opa-ca e contingente que as perpassa de maneira ins-transparente e oculta assume a forma naturalizadade uma realidade tácita, que dispensa, por issomesmo, justificação. Responder aos imperativosempíricos do Estado e do mercado passou a sertão evidente quanto respirar ou andar. Somos con-tinuamente modelados para atender a esses impe-rativos. Essa realidade permite e confere credibili-dade às concepções científicas que desconhecema lógica normativa contingente desses subsiste-mas. Ela assume a forma de qualquer outra limita-ção natural da existência, como a lei de gravidade,por exemplo, contra a qual nada podemos fazer.5

Para avançar em direção a uma concepçãoalternativa acerca da lógica implícita ao funciona-mento dessas instituições, portanto, é necessárioreconstruir o que gostaria de chamar, lembrandoKarl Marx, de “ideologia espontânea do capitalis-mo”. Uso o termo “ideologia” pois tanto o merca-do como o Estado são perpassados por hierar-quias valorativas implícitas e opacas à consciênciacotidiana, cuja naturalização, que a transveste de“neutra” e “meritocrática”, é responsável pela legi-timação da ordem social que essas instituiçõesatualizam. A compreensão dessa “ideologia espon-tânea” é fundamental para que possamos percebera importância do componente simbólico e culturalna produção social da desigualdade e da subcida-dania, sem apelar para o “essencialismo culturalis-

ta”, típico das abordagens que articulam persona-lismo, familismo e patrimonialismo, as quais des-curam da articulação entre valores e seu necessá-rio ancoramento institucional, único vínculo quepoderia explicar de que modo valores influenciamo comportamento efetivo dos agentes.

Para este desiderato, no entanto, as contribui-ções dos clássicos da sociologia são precárias. KarlMarx, inventor da expressão “ideologia espontâ-nea” como a marca específica da dominação socialno capitalismo, “apenas” descreveu a descontinui-dade entre produção e circulação de mercadorias,o que faz com que a mercadoria “força de traba-lho” apareça à consciência dos envolvidos comovendida efetivamente pelo seu justo valor, tornan-do, desse modo, não transparente o processo deexploração da força de trabalho. Falta em Marxuma articulação explícita da “hierarquia valorativa”que se atualiza na ação do mercado. De outrolado, o ponto de partida weberiano, por estar pre-so às categorias da “filosofia da consciência”, queforçava Weber a perceber no sujeito a fonte detodo sentido e moralidade,7 não dá conta, em todasua dimensão, da extensão do horizonte valorati-vo, moral e simbólico presente nessas configura-ções institucionais exportadas do centro para a pe-riferia como “artefatos prontos”, segundo suaprópria formulação.

É precisamente para esclarecer esse aspectofundamental da hierarquia valorativa que perpassaa eficácia institucional do mercado e do Estado quegostaria de incorporar as reflexões de Charles Tay-lor acerca das fontes do self moderno (Taylor,1989). Aqui não me interessa o uso que Taylor fazde suas investigações no contexto do debate sobreo multiculturalismo ou sobre a querela entre libe-rais e comunitaristas, mas a idéia comunitaristacomo uma hermenêutica do espaço social quandocritica o “naturalismo” da prática científica e davida cotidiana, como meio de articular precisa-mente a configuração valorativa implícita ao racio-nalismo ocidental, que dá ensejo, como veremos,a um tipo específico de hierarquia social e a umanoção singular de reconhecimento social baseadanela. Sua crítica à concepção reificada de Estado emercado como grandezas sistêmicas, como vemosem Jürgen Habermas por exemplo, parece-me cer-

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teira e decisiva para uma compreensão mais ade-quada do processo de expansão do racionalismoocidental do centro para a periferia, o qual se rea-liza pela exportação dessas instituições como arte-fatos prontos no sentido weberiano do termo. Anegação do caráter simbólico e cultural contingen-te dessas materializações institucionais – causadapor sua percepção como grandezas regidas segun-do critérios de eficácia formal – equivaleria a re-duplicar, na dimensão conceitual, o efeito do “na-turalismo” na vida prática.

Fundamental na empreitada tayloriana, e oque leva Taylor, neste particular, muito além da re-flexão weberiana, é que ele consegue reconstruir ahierarquia valorativa que se materializa nas duasinstituições centrais do mundo moderno – merca-do e Estado –, que comanda de maneira quasesempre irrefletida e inconsciente nossas disposi-ções e nosso comportamento cotidiano. A recons-trução da “história das idéias” não é um fim em sina reflexão tayloriana, e isso suscita seu interessepara as ciências sociais. Sua estratégia é compreen-der a gênese ou a arqueologia das concepções debem e de como elas evoluíram e adquiriram eficá-cia social. Este ponto é crucial. Não interessa a Tay-lor uma mera história das idéias, mas como e porque elas lograram tomar os corações e as mentesdas pessoas comuns. Daí sua empresa ser sociolo-gicamente relevante. Em primeiro lugar, ele se in-teressa pela eficácia das idéias, e não por seu con-teúdo, o qual só é importante na medida em queexplica as razões da sua aceitação coletiva.

A obra de Platão é central nesse contexto.Ele sistematizou uma idéia fundamental para aconcepção moral do Ocidente, qual seja, a idéiade que o “eu” é ameaçado pelo desejo (em si in-saciável), devendo, portanto, ser subordinado eregido pela razão. O cristianismo adotou a pers-pectiva platônica da dominância da razão sobreas paixões, uma vez que a santidade e o “cami-nho da salvação” passaram a ser expressos nostermos da pureza platônica. Santo Agostinho, porseu turno, ao se apropriar da tradição platônica,engendrou uma idéia radical nessa concepção, eessencial para a sociedade ocidental: a noção deinterioridade. Foi essa vinculação com a necessi-dade motivada pela religião que tornou a lingua-

gem da interioridade irresistível. O vínculo entreas idéias dominantes no Ocidente e sua eficácia épercebido – em uma evidente correspondênciacom Max Weber – como um processo interno àracionalização religiosa ocidental. Desse modo, asconcepções do bem estão presas a interessesideais específicos por meio do “prêmio” religiosoda salvação. Isso explica o lugar paradigmático deSanto Agostinho na obra tayloriana.

O processo de interiorização iniciado porSanto Agostinho foi radicalizado por Descartes. Apartir daí, mudaram-se os termos e a forma comoa virtude era concebida (Taylor, 1989, pp. 159-176). Houve uma inversão da noção de virtude ede bem que imperava até então. A ética da hon-ra na Antigüidade é reinterpretada em termos doideal cartesiano de controle racional. A racionali-dade deixa também de ser substantiva, tornando-se procedural. “Racional” passa a significar pensarde acordo com certos cânones. É esse novo sujei-to moral que Taylor chama de “self pontual”. Loc-ke sistematizará o novo ideal de independência eauto-responsabilidade, interpretado como algo li-vre do costume e da autoridade local, transfor-mando o self pontual no fundamento de uma teo-ria política sistemática.

O self é pontual, porque desprendido de con-textos particulares e, portanto, remodelável pormeio da ação metódica e disciplinada. Dessa novamaneira de ver o sujeito, desenvolveram-se teoriasno campo da filosofia, da ciência, da administração,das técnicas organizacionais, todas destinadas a as-segurar seu controle e disciplina. A noção de selfdesprendido, por estar arraigada em práticas sociaise institucionais, é naturalizada. Essas idéias, germi-nadas durante séculos de razão calculadora e dis-tanciada e da vontade como auto-responsabilidade,não lograram dominar a vida prática dos homensaté a grande revolução da reforma protestante. Tan-to para Max Weber, como para Taylor, a reformatrouxe à tona a singularidade cultural e a moral doOcidente. A revolução protestante impôs no espa-ço do senso comum e da vida cotidiana essa novanoção de virtude ocidental. Daí que, para Taylor, ànoção de self pontual deve ser acrescida a idéia de“vida cotidiana”, no sentido de compreender me-lhor a configuração moral dominante hoje.

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O tema da vida cotidiana opõe-se à concepçãoplatônica ou aristotélica de exaltação da vida con-templativa por oposição à vida prática. A revoluçãode que fala Taylor é aquela que redefine a hierar-quia social a tal ponto que as esferas práticas do tra-balho e da família, precisamente esferas nas quaistodos, sem exceção, participam, passam a definir olugar das atividades superiores e mais importantes.Em contrapartida, observa-se o desprestígio das ati-vidades contemplativas e aristocráticas de outrora. Asacralização do trabalho, sobretudo do trabalho ma-nual e simples, de origem luterana e, depois, gene-ricamente protestante, ilustra a transformação histó-rica de grandes proporções que redefiniu ahierarquia social, fio condutor deste texto.

Taylor percebeu que as bases sociais parauma revolução desse porte tiveram a motivação re-ligiosa do espírito reformador. Ao rejeitar a noçãodo sagrado mediado, os protestantes rejeitaramtambém toda a hierarquia social ligada a ela. Issofoi decisivo naquele momento. Como as gradaçõesda maior ou da menor sacralidade de certas fun-ções são a base da hierarquia religiosa das socie-dades tradicionais, desvalorizar essa ordem é reti-rar os fundamentos da hierarquia social como umtodo, tanto na esfera religiosa em sentido estritocomo nas outras esferas sob sua influência. Dessemodo, dado seu potencial equalizador e igualitário,abriu-se espaço para uma nova e revolucionária,noção de hierarquia social, baseada no self pontualtayloriano, ou seja, em uma concepção contingentee historicamente específica de ser humano, presidi-da pela noção de cálculo, raciocínio prospectivo,auto-controle e trabalho produtivo como fundamen-tos implícitos tanto da auto-estima como do reco-nhecimento social dos indivíduos.

Os suportes sociais dessa nova concepção demundo, para Taylor, são as classes burguesas daInglaterra, dos Estados Unidos e da França, disse-minando-se em seguida pelas classes subordinadasdesses países e, mais tarde, por diversos paísescom desvios e singularidades relevantes (Taylor,1989, pp. 289-290). A concepção do trabalho nes-se contexto vai enfatizar não o que se faz mascomo se faz (Deus ama advérbios). O vínculo so-cial adequado às relações interpessoais passa a serde tipo contratual (e, por extensão, a democracia

liberal constitucional como tipo de governo). Emlinguagem política, essa nova visão de mundo con-sagrar-se-á sob a forma de direitos subjetivos e, deacordo com a tendência igualitária, definidos uni-versalmente. Taylor chama o conjunto de ideaisque se articulam nesse contexto de princípio da“dignidade”; por exemplo, a possibilidade de efi-ciência igualitária no que diz respeito aos direitosindividuais potencialmente universalizáveis. Emvez da “honra” pré-moderna, que pressupõe distin-ção e privilégio, a dignidade pressupõe o reconhe-cimento universal entre iguais (Taylor, 1994).

Nesse contexto, interessa-nos menos a ten-são tayloriana entre a razão disciplinadora homo-geneizante e a razão expressiva singularizadoracomo o conflito existencial e político por excelên-cia da modernidade tardia,7 e mais as repercussõesda discussão acerca dos princípios que regulam anossa atribuição de respeito e deferência, isto é, aatribuição de reconhecimento social como base danoção moderna de cidadania jurídica e política. Alocalização e a explicitação desses princípios po-dem ajudar a identificar os mecanismos que ope-ram de maneira opaca e implícita na distinção so-cial entre classes e grupos distintos. Pode aindaajudar a identificar os “operadores simbólicos” quepermitem a cada indivíduo na vida cotidiana clas-sificar os outros como mais ou menos dignos deseu apreço ou desprezo.

Assim, ao contrário do critério classificatórioda civilização hindu, por exemplo, em que o prin-cípio da pureza hierarquiza as castas sociais (We-ber, 1998, pp. 1-97), no Ocidente passa a ser ocompartilhamento de uma determinada estruturapsicossocial o fundamento implícito do reconheci-mento social. É essa estrutura psicossocial o pres-suposto da consolidação de sistemas racionais-for-mais como mercado e Estado e, depois, produtoprincipal da eficácia combinada dessas institui-ções. A generalização dessas precondições tornapossível a concepção de “cidadania”, ou seja, umconjunto de direitos e deveres no contexto do Es-tado-nação compartilhado por todos numa pressu-posição de efetiva igualdade. As considerações deTaylor sobre a “dignidade”, como fundamento daauto-estima e do reconhecimento social do indiví-duo, remetem, portanto, à relação entre o compar-

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tilhamento de uma economia emocional e moralcontingente à possibilidade de reconhecimentosocial para indivíduos e grupos: para que haja efi-cácia legal da regra de igualdade é necessário quea percepção da igualdade na dimensão da vidacotidiana esteja efetivamente internalizada.

No entanto, neste nível de abstração, nãofica claro na reflexão de Taylor de que modo essanova hierarquia se torna eficaz como base da clas-sificação social e do valor diferencial entre indiví-duos e classes sociais. Portanto, para adensar adiscussão deste ponto específico, as investigaçõesde Pierre Bourdieu são, a meu ver, imprescindíveisno sentido de pensar o reconhecimento social, pro-duzido e implementado institucionalmente comonúcleo mesmo de possibilidade do estabelecimen-to de distinções sociais a partir de signos sociaisopacos perceptíveis por todos de maneira pré-refle-xiva. Para ambos os autores, a singularidade dasociedade moderna se dá precisamente pela pro-dução de uma configuração formada por ilusõesdo sentido imediato e cotidiano, que Taylor deno-mina “naturalismo”, e Bourdieu, doxa. Tais ilusõesproduzem um “desconhecimento específico” dosatores acerca de suas próprias condições de vida.Apenas uma perspectiva hermenêutica, genética ereconstrutiva, ainda de acordo com eles, poderiarestabelecer as efetivas, ainda que não transparen-tes, precondições da vida social na sociedade mo-derna. No entanto, o desafio aqui é o de articular,sistematicamente, também as unilateralidades decada uma das perspectivas estudadas, de modo atorná-las operacionais no sentido de permitir com-preender a maneira peculiar de como moralidadee poder se vinculam no mundo moderno, e sobre-tudo no contexto periférico.

A união das perspectivas de Taylor e Bour-dieu parece-me sob vários aspectos interessante.Diria mesmo que elas se completam ao desenvol-verem aspectos que suprem deficiências impor-tantes de uma e outra. Se falta a Taylor uma teo-ria contemporânea da luta de classes, uma vezque o autor mantém o ponto de vista de um inte-lectual norte-americano ou europeu do final doséculo XX, quando as sociedades centrais, supos-tamente pacificadas dos conflitos de classe maisvirulentos, estariam entrando em uma nova fase

de articulação de suas lutas políticas,8 temos emBourdieu uma sofisticada análise da forma opacae refratada que a dominação ideológica, masca-rando seu caráter de classe, assume na moderni-dade tardia. A perspectiva de Bourdieu permite,acredito, ir além de um conceito de reconheci-mento que assume, pelo menos tendencialmente,como realidade efetiva a ideologia da igualdadeprevalecente nas sociedades centrais do Ociden-te. Esse ponto de partida parece-me também fun-damental, ainda que com modificações importan-tes no seu instrumental teórico, para uma análiseda modernidade periférica.

Em contrapartida, a genealogia da hierarquiaimplícita que comanda nosso cotidiano, desenvol-vida de forma soberana por Taylor, ajuda a escla-recer o calcanhar de Aquiles de todo o argumen-to de Bourdieu. Afinal, Bourdieu, ao se concentrarapenas no aspecto instrumental da disputa por po-der relativo entre as classes em luta por recursosescassos, não percebe que essa mesma luta se dáem um contexto intersubjetivamente produzido, oque mantém sua contingência e, com isso, a ne-cessidade de seu aperfeiçoamento crítico, mas re-tira, ao mesmo tempo, o dado arbitrário de meraimposição de poder do mais forte. A teoria do re-conhecimento pode, nesse sentido, dar conta domecanismo generativo do “consenso normativomínimo” compartilhado intersubjetivamente e que,na realidade, contextualiza e filtra as chances rela-tivas de monopólio legítimo na distribuição dosrecursos escassos pelas diversas classes sociais emdisputa em uma determinada sociedade; mecanis-mo esse secundarizado e não devidamente tema-tizado por Bourdieu. Apesar da sua unilateralida-de, no entanto, a contribuição deste autor parauma compreensão da forma ideológica específicaà modernidade tardia, seja central, seja periférica,parece-me fundamental.

O próprio Taylor, em seu texto “To follow arule” (1993), oferece uma interessante visão daaproximação entre as duas perspectivas que pre-tendemos conjugar aqui. Ele, na realidade, aproxi-ma Bourdieu e Wittgenstein tendo em vista um as-pecto essencial de sua própria teoria, a saber, anoção de “articulação”. Taylor afirma: “Se Wittgens-tein nos ajudou a quebrar a servidão filosófica do

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intelectualismo, Bourdieu explorou como a ciênciasocial pode ser refeita, desde que livre de seu pon-to de partida distorcido” (Idem, p. 59). Aqui, o ini-migo comum é a tendência racionalista e intelec-tualista dominante seja na filosofia, seja nasciências sociais. Enquanto a tradição intelectualistatende a perceber uma regra social , por exemplo,como um processo que se consuma no plano dasrepresentações e do pensamento, tanto Wittgens-tein como Bourdieu enfatizam seu componentecorpóreo e contextual. Obedecer a uma regra é an-tes de tudo uma prática aprendida, e não um co-nhecimento. Além disso, essa prática, quando de-safiada, pode explicitar as razões pelas quais agede tal maneira e não de outra, mas, na maior par-te das vezes, o pano de fundo inarticulado perma-nece implícito, comandando silenciosamente nossaatividade prática e abrangendo muito mais do quea moldura de nossas representações conscientes.

Enquanto, para Taylor, a prática não articu-lada que comanda nossa vida cotidiana implica anecessidade de articular uma hierarquia de valo-res escondida, que guia nosso comportamento, daísua empreitada de nomear e reconstruir as fontesda nossa noção de self, para Bourdieu o mesmofato torna urgente uma “psicoanálise do espaçosocial”. O que para grande parte da tradição so-ciológica é “internalização de valores”, gerandouma leitura racionalista, que enfatiza o aspectomais consciente e refletido da reprodução valora-tiva e normativa da sociedade, para Bourdieu aênfase recai, ao contrário, sobre o condiciona-mento pré-reflexivo, automático, emotivo e es-pontâneo; em outras palavras, “inscrito no corpo”de nossas ações, disposições e escolhas.

Nesta análise, a noção de habitus é funda-mental. Esse conceito, ao contrário da tradição ra-cionalista e intelectualista, permite enfatizar todo oconjunto de disposições culturais e institucionaisque se inscrevem no corpo e que se expressam nalinguagem corporal de cada indivíduo, transfor-mando, por assim dizer, as escolhas valorativasculturais e institucionais em carne e osso. Enquan-to para Marx a “ideologia espontânea” do capita-lismo era o fetichismo da mercadoria, que enco-bria, sob a máscara da igualdade do mercado,relações de produção desiguais, para Bourdieu,

trata-se do conjunto de disposições ligadas a umestilo de vida particular, o qual conforma o habi-tus estratificado por classes sociais e legitima, deforma invisível e subliminar, o acesso diferencialaos recursos materiais e ideais escassos, ou seja, a“ideologia espontânea” do capitalismo tardio.

No seu texto já clássico sobre a distinção,Bourdieu (1984), tendo como universo empírico asociedade contemporânea francesa, explora a hipó-tese de que o “gosto” seria a área por excelência da“negação do social”, ao se mostrar como uma qua-lidade inata e não produzida socialmente. O pro-cesso primário de introjeção naturalizada desse cri-tério legitimador de desigualdades se dá a partir daherança cultural familiar e da escola em todos osseus níveis. O que Bourdieu tem em mente é a for-mação de um habitus de classe, percebido comoum aprendizado não intencional de disposições, in-clinações e esquemas avaliativos, que permitem aoindivíduo perceber e classificar, numa dimensãopré-reflexiva, os signos opacos da cultura legítima.Como a distinção social baseada no gosto não se li-mita aos artefatos da cultura legítima, mas abrangetodas as dimensões da vida humana que implicamalguma escolha – vestuário, comida, formas de la-zer, opções de consumo etc. –, o gosto funcionacomo o sentido de distinção por excelência, permi-tindo separar e unir pessoas e, conseqüentemente,forjar solidariedades ou constituir divisões grupaisde forma universal (tudo é gosto!) e invisível.

Nas melhores páginas dessa obra, Bourdieulogra demonstrar, com o uso farto de material em-pírico, que mesmo as escolhas consideradas maispessoais e recônditas, desde a preferência por car-ro, compositor ou escritor até a escolha do parcei-ro sexual, são, na verdade, frutos de fios invisíveisque interligam interesses de classe, fração de clas-se ou, ainda, de posições relativas em cada campodas práticas sociais. Esses fios tanto consolidam afi-nidades e simpatias, que constituem as redes desolidariedade objetivamente definidas, como for-jam antipatias firmadas pelo preconceito.

Essa interessante idéia do habitus funcionan-do como fios invisíveis que ligam pessoas por so-lidariedade e identificação e as separam por pre-conceito, o que equivale a uma noção decoordenação de ações sociais consideradas incons-

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cientes e cifradas, impede, entretanto, a riqueza danoção de “articulação”, cara a Taylor, a qual permi-te pensar num transfer entre o refletido e o não-re-fletido. Afinal, se existe algo que possa ser articu-lado é porque existe algo para além do purohabitus irrefletido. Por conta disso, a ausência des-sa dimensão na reflexão de Bourdieu faz com quea contraposição em relação à “grande ilusão” dojogo social só seja possível de maneira reativa, semo questionamento das regras do jogo como tais.Essa posição reativa advém da concepção de Bour-dieu, elaborada como uma crítica ao subjetivismo(1990, pp. 42-51), que reduz o espaço social a umespaço de interações conjunturais, de que toda aestética e a moral (os dois termos vêm sempre ne-cessariamente juntos) de classe se contrapõem aseu duplo e contrário, mas nunca em relação a umpatamar compartilhado de regras comuns (Bour-dieu, 1984, p. 244).

Esse é o terreno onde as contradições da aná-lise de Bourdieu vêm mais facilmente à tona. O ra-ciocínio da lógica instrumental que reduz todas asdeterminações sociais à categoria do poder mostra-se aqui em toda sua fragilidade. No limite, torna-seincompreensível por que algumas estratégias so-ciais e alguns “blefes” dão certo e outros não. Parasairmos da absoluta arbitrariedade nessa dimensãoda análise, é necessário se pleitear “alguma coisa”para além da mera illusio do jogo social. Comoaponta Axel Honneth, a competição dos diversosgrupos sociais entre si só tem sentido se houver opressuposto da existência de interpretações confli-tantes acerca de um terreno comum de regras quelogram ser reconhecidas de maneira transclassista(Honneth, pp. 178-179). A falta dessa dimensãoobscurece as razões pelas quais uma dada classedirigente teria supostamente “escolhido” um obje-tivo e não outro. Do mesmo modo não se explicatambém por que ocorrem as mudanças no “co-mando” do processo social, como, por exemplo, asubstituição da aristocracia pré-moderna pela bur-guesia no alvorecer da modernidade.

Talvez o aspecto que mais explicite as defi-ciências da teoria bourdiesiana, tornando necessá-rio vinculá-la a uma teoria objetiva da moralidade,como a de Taylor, seja o radical contextualismo desua análise da classe trabalhadora francesa. Isso o

impede de perceber os processos coletivos deaprendizado moral que ultrapassam em muito asbarreiras de classe. Como se pode observar, o úl-timo patamar da análise de Bourdieu sobre o casofrancês, que fundamenta uma infinidade de distin-ções sociais, é a situação de “necessidade” da clas-se operária. O caráter histórico contingente e es-paço-temporal dessa “necessidade” mostra que elase refere à distinção de hábitos de consumo den-tro da dimensão de pacificação social, típico doWelfare State. O que é visto como “necessidade”,neste contexto, comparando-se a sociedades peri-féricas como a brasileira, adquire o sentido deconsolidação histórica e contingente de lutas polí-ticas e de múltiplos aprendizados sociais e moraisde efetiva e fundamental importância, os quaispassam desapercebidos na análise de Bourdieu.

Assim, proponho uma subdivisão à categoriade habitus, de tal modo a lhe conferir um caráterhistórico mais matizado, acrescentando, portanto,uma dimensão genética e diacrônica à temática desua constituição. Assim, em vez de utilizar o con-ceito de habitus genericamente, aplicando-o a si-tuações específicas de classe num contexto sincrô-nico, como faz Bourdieu, talvez seja mais profícuose pensar em uma pluralidade de habitus. Se parao indivíduo o habitus representa a incorporaçãode esquemas avaliativos e disposições de compor-tamento a partir de uma situação socioeconômicaestrutural, então mudanças fundamentais na estru-tura socioeconômica deve implicar, conseqüente-mente, mudanças qualitativas importantes no tipode habitus para todas as classes sociais envolvidasde algum modo nessas mudanças.

Este foi certamente o caso da passagem dassociedades tradicionais para as sociedades moder-nas no Ocidente. A burguesia, como a primeiraclasse dirigente que trabalha, conseguiu não sóromper com a dupla moral típica das sociedadestradicionais baseadas no código da honra, comotambém construir, pelo menos em uma medidaapreciável e significativa, uma homogeneizaçãode tipo humano a partir da generalização de suaprópria economia emocional – domínio da razãosobre as emoções, cálculo prospectivo, auto-res-ponsabilidade etc. Esse processo deu-se em todasas sociedades centrais do Ocidente das mais va-

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riadas maneiras. A idéia de criar um tipo transclas-sista foi um desiderato perseguido de forma cons-ciente e decidida, e não deixado a uma supostaação automática do progresso econômico. Assim,esse gigantesco processo histórico homogeneiza-dor, aprofundado posteriormente pelas conquis-tas sociais e políticas da própria classe trabalhado-ra, pode ser entendido como um processo emlarga escala de aprendizado moral e político deprofundas conseqüências. Evidentemente, nãoequalizou as classes sociais em todas as esferas davida, mas sem dúvida generalizou e expandiuconcepções fundamentais em torno do ideal deigualdade para as esferas civis, políticas e sociais,como analisou Marshall em seu célebre texto.

Precisamente esse processo histórico deaprendizado coletivo não foi adequadamente te-matizado por Bourdieu no seu estudo empíricoacerca da sociedade francesa. Ele representa o quegostaria de denominar consolidação de um “habi-tus primário”, de modo a chamar atenção a esque-mas avaliativos e disposições de comportamentoobjetivamente internalizados e incorporados, nosentido bourdieusiano do termo, que permitem ocompartilhamento da noção de “dignidade” nosentido tayloriano. É essa “dignidade”, efetivamen-te compartilhada por classes que lograram homo-geneizar a economia emocional de todos os seusmembros numa medida significativa, que me pa-rece ser o fundamento do reconhecimento socialinfra e ultra jurídico, o qual, por sua vez, permitea eficácia social da regra jurídica da igualdade, e,portanto, da noção moderna de cidadania. É estadimensão da “dignidade” compartilhada, no senti-do não-jurídico de “levar o outro em considera-ção”, denominado por Taylor (1986, p. 15) de res-peito atitudinal, que tem de estar disseminada deforma efetiva na sociedade para que se possa vis-lumbrar concretamente a dimensão jurídica da ci-dadania e da igualdade garantida pela lei. Vale apena reiterar: Para que haja eficácia legal da re-gra de igualdade é necessário que a percepção daigualdade na dimensão da vida cotidiana estejaefetivamente internalizada.

É essa dimensão, a qual exige, portanto, umefetivo consenso valorativo transclassista comocondição de existência, que não foi percebida

como tal por Bourdieu. Isso permite que ele penseas relações entre as classes dominantes e domina-das como relações especulares, reativas e de somazero. A radical contextualidade de seu argumento oimpede de perceber a importância de conquistashistóricas desse tipo de sociedade, como a france-sa, as quais se tornam evidentes em comparaçãocom sociedades periféricas, como a brasileira, emque tal consenso inexiste. Portanto, quando chamoa generalização das precondições sociais, econômi-cas e políticas do sujeito útil, “digno” e cidadão, nosentido tayloriano de ser reconhecido intersubjeti-vamente como tal, de habitus primário, é para dife-renciá-lo analiticamente de duas outras realidadestambém fundamentais: o habitus precário e o quegostaria de denominar habitus secundário.

O habitus precário seria o limite do habitusprimário em sentido descendente, ou seja, aqueletipo de personalidade e de disposição de compor-tamento que não atende às demandas objetivaspara que um indivíduo ou um grupo social possaser considerado produtivo e útil em uma socieda-de moderna e competitiva, podendo gozar de re-conhecimento social com todas as dramáticasconseqüências existenciais e políticas aí implica-das. Para alguns autores, mesmo em sociedadesafluentes como a alemã, já se observam hoje seg-mentos de trabalhadores e de indivíduos de bai-xa renda que vivem do seguro social, apresentan-do justamente os traços de um habitus precário(Bittlingmayer, 2002, pp. 225-254), uma vez que ohabitus primário tende a ser redefinido segundonovos patamares adequados às recentes transfor-mações da sociedade globalizada e da nova im-portância do conhecimento. Contudo, como ana-lisarei adiante, essa definição só adquire oestatuto de um fenômeno de massa permanenteem países periféricos como o Brasil.

O que denomino habitus secundário tem aver com o limite do habitus primário em sentidoascendente, ou seja, com uma fonte de reconheci-mento e respeito social que pressupõe, no sentidoforte do termo, a generalização do habitus primá-rio para extensas camadas da população de umadeterminada sociedade. Nesse sentido, o habitussecundário já parte da homogeneização dos prin-cípios operantes na determinação do habitus pri-

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mário e institue, por sua vez, critérios classificató-rios de distinção social a partir do que Bourdieuchama de “gosto”. Porém, para uma problematiza-ção mais adequada, a determinação conceitualdessa diferenciação triádica da noção de habitusdeve ser acoplada à discussão tayloriana das fon-tes morais ancoradas institucionalmente no mun-do moderno, seja no centro, seja na periferia.Como a categoria de habitus primário é a mais bá-sica, pois é a partir dela que se torna compreensí-vel seus limites “para baixo” e “para cima”, deve-mos nos deter ainda na sua determinação. Afinal,as pessoas não são aquinhoadas eqüitativamentecom o mesmo reconhecimento social por sua “dig-nidade de agente racional”. Essa dimensão não étão “rasa” quanto sugere a simples dimensão polí-tica dos direitos subjetivos universalizáveis e inter-cambiáveis. A esfera jurídica da proteção legal éapenas uma das dimensões – apesar de funda-mental – desse processo de reconhecimento.

Se é o trabalho útil, produtivo e disciplinadoque parece estar por trás da “avaliação objetiva dovalor relativo” de cada indivíduo nesta dimensão,então aquilo que camufla as desigualdades e quesubjaz à noção de “dignidade” do agente racionaldeve se manifestar mais facilmente nesta mesmadimensão. Reinhard Kreckel (1992) chama de“ideologia do desempenho” a tentativa de elabo-rar um princípio único, para além da mera pro-priedade econômica, a partir do qual se constituea mais importante forma de legitimação da desi-gualdade no mundo contemporâneo. A idéia sub-jacente a esse argumento é a necessidade de um“pano de fundo consensual” (Hintergrundkon-sens) acerca do valor diferencial dos seres huma-nos, de tal modo que possa existir uma efetiva –ainda que subliminarmente produzida – legitima-ção da desigualdade. Sem isso o caráter violento einjusto da desigualdade social se manifestaria deforma clara, a olho nu.

Para Kreckel, a ideologia do desempenhobaseia-se na “tríade meritocrática” – qualificação,posição e salário. A qualificação, que reflete a im-portância do conhecimento com o desenvolvi-mento do capitalismo, é o aspecto mais relevanteque condiciona os outros dois. Trata-se de umaideologia, uma vez que não apenas estimula e

premia a capacidade de desempenho objetiva,mas também legitima o acesso diferencial perma-nente a oportunidades na vida e à apropriação debens escassos (Kreckel, 1982, p. 98). Apenas acombinação da tríade torna o indivíduo um “cida-dão completo” (Vollbürger) e também reconhecí-vel, pois somente por meio da categoria do “tra-balho” é possível assegurar sua identidade,auto-estima e legitimação social. Nesse sentido, odesempenho diferencial no trabalho tem de se re-ferir a um indivíduo e só pode ser conquistadopor ele próprio. Apenas quando essas precondi-ções estão dadas é que o indivíduo pode obter suaidentidade pessoal e social de forma completa.

Isso explica por que uma dona de casa, porexemplo, passa a ter um status social objetivamen-te “derivado”, ou seja, sua importância e reconheci-mento sociais dependem de seu pertencimento auma família ou a um “marido”. Ela se torna, nessesentido, dependente de critérios adscritivos, já queno contexto meritocrático da “ideologia do desem-penho” não possuiria valor autônomo (Kreckel,1982, p. 100). A atribuição de respeito social nospapéis de produtor e cidadão passa a ser mediadapela abstração real já produzida pelo mercado epelo Estado nos indivíduos pensados como “supor-te de distinções” que estabelecem seu valor relati-vo. A explicitação de Kreckel acerca dessas precon-dições é essencial, pois é necessário não apenasfazer referência ao mundo do mercado e da distri-buição de recursos escassos como perpassado porvalores (cf., por exemplo, Nancy Fraser, 1997a),mas também explicitar que valores são esses.

Afinal, o poder legitimador do que Kreckeldenomina “ideologia do desempenho” irá determi-nar aos sujeitos e aos grupos sociais excluídos deimediato da dimensão competitiva pelo desempe-nho diferencial, em virtude da falta de pressupos-tos mínimos para uma competição bem-sucedida,a ausência de reconhecimento social e auto-esti-ma. A “ideologia do desempenho” funcionaria, as-sim, como uma espécie de legitimação subpolíticaincrustada no cotidiano, refletindo a eficácia deprincípios funcionais ancorados em insituiçõesnão transparentes, como é o caso do mercado edo Estado. Ela é intransparente posto que apareceà consciência dos indivíduos no dia-a-dia como se

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fosse um efeito de princípios universais e neutros,abertos à competição meritocrática. Creio que essaidéia ajuda a conferir concretude ao conceito de“fonte moral”, elaborado por Taylor a partir da no-ção de self pontual, embora seu poder ideológicoe produtor de distinções não tenha sido explicita-mente tematizado por este autor.

Na reconstrução que estou propondo, ao de-finir a ideologia do desempenho como um meca-nismo legitimador dos papéis de produtor e cida-dão, o que se equivale ao conteúdo do habitusprimário, é possível compreender melhor seu limi-te “para baixo”, ou seja, o habitus precário. Assim,em uma sociedade capitalista moderna se o habi-tus primário implica um conjunto de predisposi-ções psicossociais que reflete, na esfera da perso-nalidade, a presença da economia emocional edas precondições cognitivas para um desempenhoadequado ao atendimento das demandas (variá-veis no tempo e no espaço) do papel de produtor,com reflexos diretos no papel do cidadão, a au-sência dessas precondições implica a constituiçãode um habitus marcado pela precariedade.

Nesse sentido, habitus precário pode se refe-rir tanto a setores mais tradicionais da classe traba-lhadora de países desenvolvidos e afluentes (Ale-manha, por exemplo), como aponta UweBittlingmayer (2002, p. 233) – incapazes de aten-der as novas demandas por contínua formação eflexibilidade da assim chamada “sociedade do co-nhecimento” (Wissensgesellschaft), a qual exige,atualmente, uma ativa acomodação aos novos im-perativos econômicos –, como à secular “ralé” ru-ral e urbana brasileira. Nos dois casos, a formaçãode todo um segmento de indivíduos inadaptados –fenômeno marginal, em sociedades desenvolvidas;fenômeno de massa, em sociedades periféricas – éresultado de mudanças históricas, implicando a re-definição do que estou chamando habitus primá-rio. No caso alemão, a disparidade entre habitusprimário e habitus precário é causada pelo au-mento de demandas por flexibilização, o que exi-ge uma economia emocional peculiar.

No caso brasileiro, o abismo foi criado já nolimiar do século XIX, com a re-europeização dopaís, e se intensificou a partir de 1930, com o iní-cio do processo de modernização em grande es-

cala. A linha divisória passou a ser traçada entreos setores “europeizados” – aqueles que conse-guiram se adaptar às novas demandas produtivase sociais, lembrando que esse processo implica aimportação de instituições européias como “artefa-tos prontos”, no sentido weberiano, e, portanto, aimportação da visão de mundo subjacente a elas –e os setores “precarizados”, os quais tenderam,por seu abandono, a uma cada vez maior e per-manente marginalização.

Com a designação do termo “europeu”, eunão estou me referindo, vale a pena esclarecer, àentidade concreta “Europa”, nem muito menos aum fenótipo ou tipo físico, mas ao lugar e à fontehistórica de uma concepção de ser humano cultu-ralmente determinada e cristalizada na ação empí-rica de instituições, como o mercado competitivoe o Estado racional centralizado, as quais, a partirda Europa, se expandiram por todo o mundo, emtodos os seus rincões e cantos, inclusive a Améri-ca Latina. A “europeidade”, mais uma vez, estásendo usada aqui como referência empírica deuma hierarquia valorativa peculiar, que pode, porexemplo, como no caso do Rio de Janeiro do sé-culo XIX, ser personificada por um “mulato”. Essecritério transformar-se-á na linha divisória que se-para o cidadão (habitus primário) do “subcidadão”(habitus precário). Em sociedades periféricas mo-dernizadas de maneira exógena, como a brasilei-ra, é o atributo da “europeidade” que se constitui-rá no critério por excelência de segmentaçãosocial entre indivíduos e classes sociais classifica-dos e desclassificados.9

Como vimos, o princípio básico do consensotransclassista é o do desempenho e da disciplina(fonte moral do self pontual para Taylor); portantoa aceitação e a internalização generalizada desseprincípio fazem com que a inadaptação e a margi-nalização de certos setores sejam percebidas comoum “fracasso pessoal”, tanto por aqueles que se en-contram incluídos, como pelas próprias vítimas daexclusão. É também a centralidade universal doprincípio do desempenho, com sua conseqüenteincorporação pré-reflexiva, que faz com que a rea-ção dos inadaptados ocorra num campo de forçasque se articula precisamente em relação ao temado desempenho: positivamente, pelo reconheci-

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mento da intocabilidade de seu valor intrínseco,apesar da própria posição de precariedade; negati-vamente, pela construção de um estilo de vida rea-tivo, ressentido, ou abertamente criminoso e mar-ginal (Fernandes, 1978, p. 94).

Já o limite do habitus primário “para cima”tem a ver com o fato de o desempenho diferen-cial na esfera da produção estar necessariamenteassociado a uma “estilização da vida”, de modo aproduzir distinções sociais. Nesse sentido, habitussecundário aqui diz respeito ao estudo das “sutisdistinções”, analisadas por Bourdieu (1984). Énessa dimensão que o “gosto” passa a ser uma es-pécie de moeda invisível, transformando tanto ocapital econômico puro como, sobretudo, o capi-tal cultural, travestidos em desempenho diferen-cial por conta da ilusão do “talento inato”, em umconjunto de signos sociais de distinção legítima, apartir dos efeitos típicos do contexto de opacida-de em relação às suas condições de possibilidade.

Mas, também aqui, é necessário acrescentar adimensão objetiva da moralidade, a qual permite,em última instância, todo o processo de fabricaçãode distinções sociais. Como vimos, tal processo foinegligenciado por Bourdieu. Assim, também oconceito de habitus secundário10 deve ser vincula-do, a exemplo do que fizemos com os conceitosde habitus primário e precário, ao contexto moral,não obstante ser opaco e naturalizado, que lheconfere eficácia. Se percebemos na “ideologia dodesempenho”, como corolário da “dignidade do serracional” do self pontual tayloriano, o fundamentomoral implícito e naturalizado das duas outras for-mas de habitus, acredito que o habitus secundáriopossa ser compreendido na sua especificidade, an-tes de tudo, a partir da noção tayloriana de ex-pressividade e autenticidade.

O ideal romântico da expressividade e daautenticidade é interpretado pelo Taylor do Thesources of the self como uma fonte moral alterna-tiva ao self pontual e ao princípio do desempenhoque o comanda, uma vez que implica a reconstru-ção narrativa de uma identidade singular, para aqual não há modelos preestabelecidos. Assim, seo self pontual é constituído por critérios que im-plicam universalização e homogeneização, assimcomo as categorias de produtor e cidadão que o

realizam concretamente, o “sujeito” do expressi-vismo é marcado pela busca da singularidade eda originalidade, pois o que deve ser “expresso”é precisamente o horizonte afetivo e sentimentalpeculiar a cada indivíduo. Atualmente, é esseideal, formado tardiamente como uma reação ademandas racionalizantes e disciplinarizadoras doself pontual ancorado nas instituições, que estásujeito a se transformar em seu oposto. O motedo disgnóstico da época levado a cabo por Tay-lor em The ethics of authenticity (1991) é precisa-mente a ameaça crescente de trivialização desseideal, de seu conteúdo dialógico e de auto-inven-ção em favor de uma perspectiva auto-referida,simbolizada no que o autor denomina quick fix –solução rápida (Idem, p. 35).

O tema do “gosto”, como base das distin-ções sociais fundadas no que estamos chamandode habitus secundário, compreende tanto o hori-zonte da individualização “profunda”, baseada noideal da identidade original dialógica e constituí-da em forma narrativa, como o processo de indi-viduação superficial, pautado no quick fix. Bour-dieu não cogita a diferença entre essas duasformas, já que, para ele, por força de suas esco-lhas categoriais, a estratégia da distinção é sempreutilitária e instrumental. Para os fins deste ensaio,no entanto, essa diferença é fundamental. Afinal,a recuperação da dimensão trabalhada por Tayloré o que explica, em última instância, o apelo e aeficácia social, inclusive da versão pastiche dessapossibilidade de individualização.

A personificação do “gosto” para Bourdieuserve, antes de tudo, para a definição da “perso-nalidade distinta” que surge como resultado dequalidades inatas, como expressão de harmonia ebeleza e como reconciliação entre razão e sensibili-dade – a definição do indivíduo perfeito e acabado(Bourdieu, 1984, p. 11). As lutas entre as diversasfacções da classe dominante ocorrem, precisamen-te, pela determinação da versão socialmente hege-mônica do que é uma personalidade distinta e su-perior. A classe trabalhadora, que não participadessas lutas, seria um mero negativo da idéia depersonalidade, quase uma “não-pessoa”, comodeixa entrever as especulações de Bourdieu acer-ca da redução dos trabalhadores à pura força físi-

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ca (Idem, p. 384). Nesta dimensão do habitus se-cundário não me parece existir qualquer diferençarelevante entre as sociedades modernas do centroe as da periferia. Nessa dimensão da produção dedesigualdades, ao contrário do que proclama aideologia da igualdade de oportunidades nos paí-ses avançados, os dois tipos de sociedade encon-tram-se no mesmo patamar.

A distinção fundamental entre esses dois ti-pos de sociedade parece-me localizar-se na ausên-cia de generalização do habitus primário, ou seja,do componente responsável pela universalizaçãoefetiva da categoria de produtor útil e de cidadão.Em todas as sociedades que lograram homogenei-zar de maneira transclassista, este aspecto funda-mental, tratou-se de um objetivo perseguido e es-tabelecido na forma de uma reforma política,moral e religiosa de grandes proproções, não dei-xada ao encargo do “progresso econômico”. Osgreat Awakenings dos séculos XVIII e XIX nos Es-tados Unidos conseguiram levar à fronteira e aoSul escravista a mesma semente moral e fervoro-samente religiosa das treze colônias originais (Bel-lah, 1975). As poor laws inglesas podem tambémser compreendidas como uma forma autoritária deforçar os inadaptados da revolução industrial àadoção dos requisitos psicossociais da sociedadeque então se criava. Também na França, comomostra de modo exemplar o livro clássico de Eu-gen Weber, cujo título Peaseants into Frenchmen(1976) já denota o processo de transformação so-cial de homogeneização, que é o pressuposto daeficácia social da noção de cidadania.

Um exemplo concreto talvez ajude a esclare-cer o que tenho em mente quando procuro ressal-tar a importância desse aspecto para uma percep-ção adequada daquilo que é específico nassociedades modernas central e periférica. Dessemodo, se estou certo, seria a efetiva existência deum consenso básico e transclassista – representa-do pela generalização das precondições sociaisque possibilitam o compartilhamento efetivo, nassociedades avançadas, do que estou chamando dehabitus primário – que faz com que, por exemplo,um cidadão alemão ou francês de classe média aoatropelar por negligência um compatriota prove-niente da classe baixa seja, com altíssima probabi-

lidade, punido de acordo com a lei. Se essa cenafosse transposta para a realidade brasileira, aschances de a lei ser efetivamente aplicada nestecaso seria, ao contrário, baixíssima.11 Isso não sig-nifica que as pessoas não se importem de algumamaneira com o ocorrido. O procedimento policialé geralmente aberto e segue seu trâmite burocrá-tico, mas o resultado é, na grande maioria dos ca-sos, a simples absolvição ou o estabelecimento depenas dignas de mera contravenção.

Com certeza, na dimensão infra e ultra jurídi-ca do respeito social compartilhado socialmente, ovalor do brasileiro pobre “não-europeizado” – ouseja, aquele que não compartilha da economiaemocional do self pontual, criação cultural contin-gente da Europa e América do Norte – é compa-rável ao que se confere a um animal doméstico, oque caracteriza objetivamente seu status subhu-mano. Existe, em países periféricos como o Bra-sil, toda uma classe de pessoas excluídas e des-classificadas, posto que não participam docontexto valorativo de fundo – o que Taylor cha-ma de “dignidade” do agente racional –, primeiracondição de possibilidade para o efetivo compar-tilhamento, por todos, da idéia de igualdade nes-sa dimensão fundamental para a constituição deum habitus que, por incorporar as característicasdisciplinarizadoras, plásticas e adaptativas básicaspara o exercício das funções produtivas no con-texto do capitalismo moderno, podemos denomi-nar habitus primário.

Permitam-me tentar precisar ainda melhoressa idéia central para meu argumento neste en-saio. Falo de habitus primário, já que se trata efe-tivamente de um habitus no sentido que essa no-ção adquire em Bourdieu. São esquemasavaliativos compartilhados objetivamente, emboraopacos e insconscientes, que guiam nossa ação enosso comportamento efetivo no mundo. É ape-nas esse tipo de consenso, como que corporal,pré-reflexivo e naturalizado, que pode permitir,para além da eficácia jurídica, uma espécie de acor-do implícito, em que alguns estão acima da lei,como sugere o desenrolar daquela cena de atro-pelamento no Brasil. Existe uma espécie de redeinvisível que une desde o policial na abertura doinquérito até o juiz na sentença final, passando

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por advogados, testemunhas, promotores, jornalis-tas etc., os quais, por meio de um acordo implíci-to e jamais verbalizado, terminam por inocentaraquele que incorreu no delito. O que liga todas es-sas intencionalidades individuais de forma subli-minar, constituindo o acordo implícito entre elas,é a idéia objetiva e ancorada institucionalmente dacondição subhumana da vítima do atropelamento,já que o valor diferencial entre os seres humanosestá atualizado de forma inarticulada em todas asnossas práticas institucionais e sociais.

Não se trata de intencionalidade. Nenhumbrasileiro europeizado de classe média confessa-ria, em sã consciência, que considera seus com-patriotas das classes baixas não-europeizadas“subgente”. Grande parte dessas pessoas votamem partidos de esquerda e participam de campa-nhas contra a fome e coisas do gênero. A dimen-são aqui é objetiva, subliminar, implícita e nãotransparente. Ademais, ela não precisa ser media-da pela linguagem nem simbolicamente articulada;implica, como a idéia de habitus em Bourdieu,toda uma visão de mundo e uma hierarquia mo-ral que se sedimentam e se mostram como signosocial de forma imperceptível a partir de signossociais aparentemente sem importância, como,por exemplo, a inclinação respeitosa e incons-ciente do indivíduo “inferior” na escala socialquando encontra com um “superior”, pela tonali-dade da voz mais do que pelo que é dito etc. Oque existe aqui são acordos e consensos sociaismudos e subliminares, mas por isso mesmo tantomais eficazes, que articulam, como que por meiode fios invisíveis, solidariedades e preconceitosarraigados. É este tipo de acordo, para usar oexemplo analisado, que está por trás do fato deque todos os envolvidos no processo policial e ju-dicial na morte por atropelamento do subhomemnão-europeizado, sem qualquer acordo conscien-te e até contrariando expectativas explícitas demuitas dessas pessoas, terminem por inocentarseu compatriota de classe média.

Bourdieu não percebe, pelo seu radical con-textualismo, que implica um componente a-histó-rico, a existência do componente transclassista,que faz com que, em sociedades como a francesa,exista um acordo intersubjetivo e transclassista

que pune, efetivamente, o atropelamento de umfrancês de classe baixa, posto que a vítima é con-siderada, na dimensão subpolítica e subliminar,“gente” e “cidadão pleno” e não apenas uma for-ça física e muscular ou uma mera tração animal. Éa existência efetiva deste componente, no entanto,que explica o fato de que, na sociedade francesa,numa dimensão fundamental, independentementeda pertença a uma determinada classe social, to-dos sejam cidadãos. Isso não implica, contudo,que não existam outras dimensões em torno daquestão da desigualdade, manifestadas de formatambém velada e não transparente, como tão bemdemonstra Bourdieu em sua análise da sociedadefrancesa. Mas a temática do gosto, separando aspessoas por vínculos de simpatia e aversão, podee deve ser analiticamente diferenciada da questãoda dignidade fundamental da cidadania jurídica esocial, a qual estou associando aqui ao que chamode habitus primário.

A distinção a partir do gosto, tão magistral-mente reconstruída por Bourdieu, pressupõe, nocaso francês, um patamar de igualdade efetiva na di-mensão tanto do compartilhamento de direitos fun-damentais como do respeito atitudinal de que falaTaylor, no sentido de que todos são consideradosmembros “úteis”, ainda que desiguais em outras es-feras. Ou seja, à dimensão do habitus primário seacrescenta uma outra, que também pressupõe aexistência de esquemas avaliativos implícitos, ins-conscientes e compartilhados, a saber, o habitus se-cundário. Este corresponde a um habitus específico,demonstrado de maneira exemplar por Bourdieuquando analisa as escolhas do gosto.

Essas duas esferas, evidentemente, interpe-netram-se de diversas maneiras. No entanto, deve-mos separá-las analiticamente, uma vez que obe-decem a lógicas distintas de funcionamento. Comodiria Taylor, as fontes morais são distintas em cadacaso. No caso do habitus primário, o que está emjogo é a efetiva disseminação da noção de digni-dade, que torna o agente racional um ser produti-vo e cidadão pleno. Em sociedades avançadas,essa disseminação é efetiva, e os casos de habitusprecário são fenômenos marginais. Em sociedadesperiféricas, o habitus precário – que implica aexistência de redes invisíveis e objetivas que des-

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qualificam os indivíduos e os grupos sociais pre-carizados como subprodutores e subcidadãos, eisso, sob a forma de uma evidência social insofis-mável tanto para os privilegiados como para aspróprias vítimas da exclusão – é um fenômeno demassa e justifica minha tese de que a produção so-cial de uma “ralé estrutural” é o que diferenciasubstancialmente esses dois tipos de sociedades.

Essa circunstância não elimina a existência,nos dois tipos de sociedade, da luta pela distinção,baseada no que chamo de habitus secundário.Isso diz respeito à apropriação seletiva de bens erecursos escassos, e constitue contextos cristaliza-dos e tendencialmente permanentes de desigual-dade. Mas a consolidação efetiva, em grau signifi-cativo, das precondições sociais que permitem ageneralização de um habitus primário nas socieda-des centrais torna a subcidadania, como fenôme-no de massa, circunscrita apenas às sociedadesperiféricas, o que marca sua singularidade e cha-ma a atenção para o conflito de classes específicoda periferia do capitalismo.

O esforço dessa construção múltipla de ha-bitus serve para ultrapassar as concepções subje-tivistas da realidade, que a reduzem a interaçõesface a face. A situação descrita a propósito doexemplo do atropelmento seria explicada, dessaperspectiva, pelo paradigma personalista hibridis-ta.12 Em outras palavras, as “relações pessoais” doinfrator de classe média constituiriam o suportepara sua impunidade. Esse é um exemplo típicodo despropósito subjetivista de interpretar socie-dades periféricas, complexas e dinâmicas, como abrasileira, como se o papel estruturante coubessea princípios pré-modernos – por exemplo, o capi-tal social em relações pessoais. Nesse terreno, nãohá qualquer diferença entre países centrais e pe-riféricos. Relações pessoais são importantes nadefinição de carreiras e chances individuais de as-cenção social tanto num caso, como no outro. En-tretanto, nos dois tipos de sociedade, os capitaiseconômico e cultural são estruturantes, o que nãoé válido para o capital social de relações pessoais.

Se minha análise estiver correta, o esquemainterpretativo que proponho permite explicitartanto a hierarquia valorativa e normativa subjacen-te ao funcionamento do mercado e do Estado, em-

bora de forma subliminar e não transparente,como a forma peculiar com que esses signos opa-cos adquirem visibilidade social, ainda que demodo pré-reflexivo. Esse ponto de vista permiteainda discutir a especificidade das sociedades pe-riféricas, ao analisar a desigualdade, a complexida-de e a dinâmica que lhes são peculiares, sem ape-lar para essencialismos culturalistas ou explicaçõespersonalistas, algumas de nova roupagem como asabordagens “hibridistas”, que são obrigadas a de-fender a existência de um núcleo pré-modernoquando analisam as causas das mazelas sociaisnessas sociedades. O anacronismo desse tipo deanálise, que nunca enfrenta teoricamente a ques-tão central de explicitar de que modo os princí-pios “híbridos” se articulam, parece-me evidente.13

No entanto, o Estado e o mercado não são asúnicas instituições fundamentais das sociedadesmodernas. Habermas (1975) apresenta a esferapública como a terceira grande instituição da mo-dernidade, destinada precisamente a desenvolvera crítica reflexiva e as possibilidades de aprendiza-do coletivo. No entanto, como o próprio Haber-mas aponta, uma esfera pública efetiva pressupõe,entre outras coisas, um mundo da vida “racionali-zado”, ou seja, uma efetiva generalização do habi-tus primário em suas virtualidades de comporta-mentos público e político. Isso implica que, nocaso do Brasil, por exemplo, a esfera pública seriatão segmentada internamente quanto o Estado e omercado. Esse aspecto vai de encontro a certasanálises excessivamente otimistas acerca das vir-tualidades dessa instituição fundamental entre nós.

Porém, as sociedades modernas, mais umavez, sejam centrais ou periféricas, também desen-volvem “imaginários sociais” mais ou menos explí-citos e refletidos, para além da eficácia subliminardo aparato institucional típico do que denomino“ideologia espontânea do capitalismo”. Certamen-te, esses imaginários possibilitam a produção deidentidades coletivas e individuais a cada contex-to cultural ou nacional (Taylor, 2003). Quandopensamos no imaginário social da sociedade bra-sileira, constatamos que sua versão mais definitivae duradoura se formou com a consolidação deuma nation building sedimentada pelo Estadocorporativo e arregimentador de 1930. Nesse sen-

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tido, a ideologia explícita apenas corrobora e jus-tifica a dimensão implícita da “ideologia espontâ-nea”, constituindo as condições específicas doimaginário social brasileiro. Gilberto Freyre, quese não foi certamente o iniciador, já que muito an-tes dele essa construção simbólica vinha se cons-tituindo e ganhando contornos mais ou menosclaros, foi o grande formulador da versão definiti-va dessa ideologia explícita, que se tornou a dou-trina de Estado, passando a ser ensinada nas esco-las e disseminada nas mais diversas formas depropaganda estatal e privada, a partir de 1930.

Segundo Freyre, a singularidade de nossa cul-tura é a propensão para o encontro cultural, para asíntese das diferenças, para a unidade na multipli-cidade. É por isso que somos únicos e especiais nomundo. Devemos, portanto, ter orgulho e não ver-gonha de sermos “mestiços”; o tipo físico funciona-ria como um referente de igualdade social e de umtipo peculiar de “democracia”. Uma maior afinida-de com a doutrina corporativa que passa a imperara partir de 1930, em substituição ao liberalismo an-terior, é difícil de ser imaginada. Essa visão hoje fazparte de nossa identidade individual e coletiva. To-dos nós “gostamos” de nos ver dessa forma; a ideo-logia adquire, assim, um aspecto emocional incom-patível com uma ponderação mais racional, o quecria dificuldade para quem se propõe a problema-tizar essa verdade tão agradável aos nossos ouvi-dos. O poder de influência desse imaginário coleti-vo é impressionante.

A partir de Freyre, essa maneira de entender asociedade brasileira tem uma história de glória. Peloconceito de “plasticidade”, importado diretamente deFreyre, tal concepção passa a ser central em todo oargumento do homem cordial de Sérgio Buarque deHolanda, alicerce de sua visão do personalismo e dopatrimonialismo, que representam a singularidadevalorativa e institucional da formação social brasilei-ra. Sérgio Buarque torna-se o criador da auto-inter-pretação dominante dos brasileiros no século XX. Nocontexto deste ensaio, convém destacar a idéia dohomem cordial reproduzindo a essencialização e in-diferenciação características da noção de hibridismoe de singularidade cultural como uma unidade subs-tancializada. O homem cordial é definido como obrasileiro de todas as classes, uma forma específica

de ser gente humana, que tem sua vertente tanto in-tersubjetiva, na noção de personalismo, como insti-tucional, na noção de patrimonialismo.

Para os meus objetivos, no entanto, o funda-mental é que essa ideologia explícita se articula como componente implícito da “ideologia espontânea”das práticas institucionais importadas e operantestambém na modernidade periférica, construindo umcontexto extraordinário de obscurecimento das cau-sas da desigualdade, seja para os privilegiados, seja,e muito especialmente, para as vítimas desse proces-so, com conseqüências para a reflexão teórica e paraa prática política.14

Este, parece-me, é o ponto centralquando se discute a questão da naturalização dadesigualdade, abissal como ela é, entre nós.

Notas

1 Uma excelente exposição da pré-história, desenvol-vimento e contradições internas ao paradigma dateoria da modernização pode ser encontrada emWolfgang Knöbl (2001).

2 A interpretação dominante considera o processo demodernização brasileiro como endógeno, tendoSão Paulo como núcleo. Confunde-se aqui causa eresultado. Para uma crítica em detalhe a esse respei-to, ver Souza (2003)

3 O fato de o Brasil ter sido o país de maior cresci-mento econômico do mundo entre 1930 e 1980,sem que as taxas de desigualdade, marginalização esubcidadania tivessem sido alteradas significativa-mente, deveria ser um indicativo evidente do enga-no dessa pressuposição.

4 Ver sobre esse tema o clássico trabalho de Bellah(1985) e a coletânea de Eisenstadt (1968).

5 Não admira que até uma teoria crítica como a ha-bermasiana, que admite esse tipo de construção,perceba os conflitos sociais preferencialmente ape-nas no front entre sistema e mundo da vida, e nãomais no interior das realidades sistêmicas. Ver a crí-tica de Joahannes Berger (1986).

6 O mesmo acontece com a noção, meramente descri-tiva, de “carisma”. Como não existe a pressuposiçãode “sentidos coletivos” inarticulados, os quais cabe-ria ao líder articular e conferir uma direção própria,o vínculo do líder com seus seguidores torna-se“misterioso” e passa a depender da suposição de

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existência, por parte da população, em atributos ex-tracotidianos ou mágicos da personalidade do líder.

7 Esse aspecto foi desenvolvido de forma polêmica eestimulante, servindo de pano de fundo para umagramática das lutas políticas contemporâneas a par-tir dos pólos de distribuição e reconhecimento, emFraser (1997b). Para os aspectos problemáticos en-tre as dimensões individuais e coletivas do tema doreconhecimento, ver Benhabib (1999, pp. 39-46).

8 Para uma crítica das posições de Taylor e de Fraser,ver Honneth (2001, pp. 52-53).

9 A discussão acerca da especificidade da moderniza-ção brasileira, levada a cabo em detalhe em Souza(2003), não poderia ser feita no espaço restrito des-te ensaio.

10 Axel Honneth, em sua interessante crítica a Bour-dieu, tende a rejeitar in toto o conceito de habitus,dado o componente instrumental e utilitário que operpassa. Ao fazer isso, no entanto, Honneth correo risco de “jogar a criança fora junto com a águasuja do balde”, como os alemães gostam de dizerem um provérbio popular, pois o que me pareceimportante é, precisamente, reconectar o conceitode habitus a uma instância moral que permita ilu-minar, nas dimensões individual e coletiva, além dodado instrumental que é irrenunciável, o tema doaprendizado moral. Ver Honneth (1990).

11 Este exemplo poderia ser, no caso brasileiro, facil-mente multiplicado. Há, inclusive, casos notórios dediscriminação de classe amparados por estatuto le-gal – como no caso da prisão especial para os por-tadores de diploma universitário – e não apenasexemplos retirados efetivamente do cotidiano, eque se impõem apesar da regra legal inclusiva. Oobjetivo principal deste texto é precisamente escla-recer o por quê e como se dá a sobreposição da re-gra social da desigualdade em relação à regra legalda igualdade no caso brasileiro.

12 Na versão, por exemplo, de DaMatta (1978). Cabeesclarecer – o que talvez não tenha feito em outrosmomentos – que em minha polêmica contra o per-sonalismo assumo como interlocutor principal Ro-berto DaMatta porque reconheço a importância desua obra e o considero nosso intérprete mais sofis-ticado e sistemático das últimas décadas. Sua atua-lização do ponto de partida personalista articula fa-tos observáveis com uma explicação dosmecanismos societários profundos que a explicam,o que é um desempenho raro.

13 A esse respeito, ver Souza (2000, esp. pp. 183-204).

14 Ele explica, também, o fato de que o potencial de in-surreição da ralé durante todo o século XIX até hojese reduza a rebeliões localizadas e passageiras – que-bradeiras, arrastões e violência pré-política – emque a articulação consciente de seus objetivos ja-mais chega a ocorrer.

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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS

A GRAMÁTICA SOCIAL DADESIGUALDADE BRASILEIRA

Jessé Souza

Palavras-chaveSubcidadania; Naturalização dadesigualdade; Modernização peri-férica; Reconhecimento social;Ideologia do desempenho.

Este artigo pretende fundamentaruma alternativa teórica acerca dostemas da construção social da subci-dadania e da naturalização dadesigualdade no contexto desociedades periféricas como abrasileira. Para isso, são aproveitadasde maneira seletiva e pessoal, nocontexto do debate sociológico efilosófico-social contemporâneo, asdiscussões acerca do reconhecimen-to social e de teorias sobre adesigualdade que enfatizam seucomponente sociocultural. O objeti-vo é elaborar uma concepção teóricaalternativa, tanto em relação às abor-dagens personalistas, patrimonialistase “hibridistas” desses fenômenos,paradigmas intimamente relaciona-dos entre si e ainda dominantes entrenós, como em relação às percepçõesconjunturais e pragmáticas que per-dem o vínculo com qualquer reali-dade mais ampla e totalizadora.

A SYSTEMATIC SOCIALSTUDY ON THE BRAZILIANUNEVENNESS

Jessé Souza

KeywordsSub-citizenship; Naturalizationof unevenness; Peripheral mo-dernization; Social recognition;Performance ideology.

This article aims at establishing atheoretical alternative on the themesof the social construction of the so-called sub-citizenship as well as thenaturalization of unevenness inperipheral societies such as theBrazilian one. Both the discussionsabout social recognition and thetheories about unevenness thatemphasize its social and culturalcomponents are used in a selectiveand personal way in the context ofthe sociological and contemporarysocial-philosophical debate. Theobjective is the elaboration of analternative theoretical conceptionrelated to the personalist, patrimona-list, and hybrid approaches to suchphenomena, paradigms intimatelyrelated to one another and still pre-eminent among us, as well as to theconjunctural and pragmatic percep-tions that have lost connection to anyother wider and totalizing reality.

UNE EXPLICATION SOCIALEÀ L’INÉGALITÉ BRÉSILIENNE

Jessé Souza

Mots-clésSous citoyenneté; Naturalisationde l’inégalité; Modernisationpériphérique; Reconnaissancesociale; Idéologie de l’accom-plissement.

Cet article propose une nouvelleapproche théorique de la construc-tion sociale de la sous citoyenneté etde la naturalisation de l’inégalité dansle contexte de sociétés périphériques,comme c’est le cas de la sociétébrésilienne. Pour cela, l’auteur sefonde, de façon subjective et person-nelle, dans le contexte du débat soci-ologique, philosophique et socialcontemporain, sur les discussions àpropos de la reconnaissance socialeet des théories sur l’inégalité qui met-tent l’accent sur la composante socio-culturelle. L’objectif est de proposerune conception théorique alternativede ces phénomènes, aussi bien en cequi concerne les abordages person-nalistes, ceux fondés sur le patri-moine ou, encore, ceux qui sonthybrides, c’est-à-dire, qui prennenten compte ces deux systèmes. Cesphénomènes constituent des para-digmes intimement liés entre eux ettoujours dominants entre nouscomme, par exemple, par rapportaux perceptions conjoncturelles etpragmatiques qui perdent le lien avectoute réalité plus ample etenglobante.