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A GRAVURA DE REPRODUÇÃO COMO MEIO DE SOBREVIVÊNCIA DA IMAGEM: OS ÁLBUNS DE GRAVURAS DE COLEÇÕES. ENTRE A CÓPIA E O ORIGINAL REPRODUCTIVE PRINT AS A WAY OF IMAGE SURVIVAL: THE COLLECTION PRINT ALBUMS. BETWEEN COPY AND ORIGINAL Fabio Fonseca / UFU RESUMO O presente texto tem como objetivo analisar a contribuição das gravuras de reprodução com o processo de sobrevivência das imagens. É feita a análise comparativa de uma gravura de Nicolas de Larmessin, em um álbum com reproduções de obras de arte, datado de 1729, com a obra original, uma pintura de Rafael Sanzio, de 1506, com a imagem de São Jorge e o dragão. É levantado o aspecto técnico de reprodutibilidade da gravura, e a facilidade de transportar e de arquivar esse tipo de objeto produzido em papel, como aspectos que contribuíram com a sobrevivência da imagem. O referencial teórico adotado se apoia fundamentalmente nas obras de Hans Belting e Georges Didi-Huberman. PALAVRAS-CHAVE Gravura; Gravura de reprodução; Sobrevivências; História da arte; História das imagens. ABSTRACT The aim of this work is to analyse the contribution made by the reproductive print to the survival process of the images. A comparative analysis is made between a print by Nicolas de Larmessin, part of a reproductions album, dated 1729, and the original work, a painting by Rafael Sanzio, dated 1506, with the image of Saint George and the Dragon. It addresses the technical components of reproducibility of the print, and the ease of transportation and storage for this paper produced object, as contributing factors for the survival of the image. The works of Hans Belting and Georges Didi-Huberman are followed as theoretical references. KEYWORDS Print; Reproductive print; Survival; Art History; Image History.

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A GRAVURA DE REPRODUÇÃO COMO MEIO DE SOBREVIVÊNCIA DA IMAGEM: OS ÁLBUNS DE GRAVURAS DE COLEÇÕES. ENTRE A CÓPIA E O

ORIGINAL

REPRODUCTIVE PRINT AS A WAY OF IMAGE SURVIVAL: THE COLLECTION PRINT ALBUMS. BETWEEN COPY AND ORIGINAL

Fabio Fonseca / UFU

RESUMO O presente texto tem como objetivo analisar a contribuição das gravuras de reprodução com o processo de sobrevivência das imagens. É feita a análise comparativa de uma gravura de Nicolas de Larmessin, em um álbum com reproduções de obras de arte, datado de 1729, com a obra original, uma pintura de Rafael Sanzio, de 1506, com a imagem de São Jorge e o dragão. É levantado o aspecto técnico de reprodutibilidade da gravura, e a facilidade de transportar e de arquivar esse tipo de objeto produzido em papel, como aspectos que contribuíram com a sobrevivência da imagem. O referencial teórico adotado se apoia fundamentalmente nas obras de Hans Belting e Georges Didi-Huberman. PALAVRAS-CHAVE Gravura; Gravura de reprodução; Sobrevivências; História da arte; História das imagens. ABSTRACT The aim of this work is to analyse the contribution made by the reproductive print to the survival process of the images. A comparative analysis is made between a print by Nicolas de Larmessin, part of a reproductions album, dated 1729, and the original work, a painting by Rafael Sanzio, dated 1506, with the image of Saint George and the Dragon. It addresses the technical components of reproducibility of the print, and the ease of transportation and storage for this paper produced object, as contributing factors for the survival of the image. The works of Hans Belting and Georges Didi-Huberman are followed as theoretical references. KEYWORDS Print; Reproductive print; Survival; Art History; Image History.

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FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.

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A gravura de Nicolas de Larmessin, entre o original e a cópia

A partir do reconhecimento da pintura, da escultura e da arquitetura como

pertencentes ao campo das artes liberais, com a criação das primeiras academias

de arte e uma consequente valorização do estatuto social dos artistas, as obras

produzidas por essa nova categoria de profissionais passaram a ser celebradas e

cultuadas como um tipo de objeto até então inexistente: a obra de arte. Na medida

em que a reputação alcançada por alguns artistas e suas obras crescia, passou a

haver a prática de produzir álbuns com coleções de obras, reproduzidas por meio de

gravuras impressas a partir de matrizes em metal. O objetivo desse texto é analisar

a contribuição das imagens contidas nesse tipo de álbum com o processo de

sobrevivência das imagens. Mais especificamente, procura explicar como uma

reprodução de uma pintura de Rafael Sanzio, contida em um desses álbuns, pode

ter atuado no processo de sobrevivência dessa representação de São Jorge. O

álbum foi impresso em Paris na l'Imprimerie royale entre 1729 e 1742.1 A matriz para

essa gravura de São Jorge e o dragão foi feita por Nicolas de Larmessin e a cópia

está na primeira parte do primeiro tomo, na prancha 31 (Figura 1).2 A obra original

de Rafael (Figura 2) é uma pintura a óleo sobre painel, datada de 1506, com a

representação de São Jorge e o dragão, situada na National Gallery of Art, em

Washington.3

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Figura 1: Nicolas de Larmessin, segundo Rafael Sanzio - São Jorge e o dragão, 1729 Gravura a buril em papel

dimensões da prancha 63,4 x 42,5 cm dimensões da gravura 31 x 22,1 cm

Paris, Bibliothèque nationale de France, inv. IFN-6956036 Fonte: <catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb42003190j>

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Figura 2: Rafael Sanzio - São Jorge e o dragão, 1506 Óleo sobre madeira, 28.5 x 21.5 cm

Washington, National Gallery of Art, inv. 1937.1.26 Fonte: <http://www.nga.gov/content/ngaweb/Collection/art-object-page.28.html>

O álbum tem o longo título de Recueil d’estampes d’aprés les plus beaux tableaux et

d’aprés les plus beaux desseins, qui sont en France dans le cabinet du Roy, dans

celuy de Mgr le Duc d'Orléans, & dans d'autres cabinets, divisé suivant les

différentes écoles, avec un abbrégé de la vie des peintres et une description

historique de chaque tableau.4 O livro está organizado em dois tomos e contém

gravuras que reproduzem obras de arte famosas de artistas célebres.

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FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.

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Essa composição da representação da luta de São Jorge com o dragão, criada por

Rafael, é repetida em uma grande variedade de imagens devocionais produzidas por

autores desconhecidos. É como se um modelo original fosse utilizado como

referência para a produção de imagens do santo. Como se a imagem ultrapassasse

sua dimensão material e se formulasse no imaginário. Para Hans Belting a imagem

não é o meio material, mas usa esse meio para tornar-se visível, podendo até migrar

entre diferentes meios. Procura distinguir a imagem do artefato (BELTING, 2005. pp.

73 – 74). Nesse sentido, entendemos a imagem como um modelo a partir do qual os

artefatos são criados. As suas variações são meios para uma mesma imagem.

A obra e a história da arte, campo de estudo e fronteiras

Quando o livro com gravuras foi produzido, uma obra já havia iniciado um campo de

estudo sobre as obras de arte; escrita pelo arquiteto e pintor Giorgio Vasari, Le vite

de' più eccellenti pittori, scultori e architettori (As Vidas dos mais Excelentes

Pintores, Escultores e Arquitetos). O livro de Vasari foi dedicado ao grão-duque

Cosme de Médici e publicado em Florença pela primeira vez em 1550, com

frequência é mencionado como a obra fundadora da história da arte. Isso porque,

até então, mesmo com a fama e prestígio social alcançada por alguns pintores, essa

atividade estava mais próxima de uma operária do que intelectual ou criativa. Os

ofícios praticados pelos biografados por Vasari, conforme o sistema de divisão dos

conhecimentos em artes liberais e artes mecânicas, eram considerados, durante a

Idade Média e no início da Idade Moderna, como artes mecânicas, ou seja, uma

atividade manual. O autor procurou elevar as atividades de pintores, escultores e

arquitetos à condição de intelectuais. Sua obra apresenta inicialmente um tratado

sobre materiais e técnicas, em seguida uma longa lista de artistas, descrevendo

seus feitos e obras (VASARI, 2011). Vasari não atribuiu à gravura a condição de

uma arte liberal, ainda assim a técnica era utilizada por pintores como meio de

expressão artística. Porém, havia desde esse momento uma distinção clara entre a

gravura artística, que é uma obra original, e uma gravura de reprodução, como é o

caso da gravura escolhida para esse estudo.

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FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.

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Apesar de ter sido feita com a finalidade de reproduzir uma obra original de Rafael, e

por isso se diferir das gravuras artísticas, a gravura de Larmessin se trata de uma

nova imagem. É notavelmente semelhante quanto à organização da composição das

figuras e a representação das formas, porém é absolutamente diferente na

linguagem por meio da qual é expressa. Trata-se de uma linguagem gráfica, e não

pictórica. Nesse tipo de gravura, que reproduz uma pintura colorida, as linhas pretas,

paralelas e entrecruzadas, definem a forma, estabelecem os relevos e

profundidades, e criam uma variada gama de tonalidades de cinza. Equivalem, na

visão do gravador, às cores e aos efeitos de luz e sombra da pintura original. Logo,

mesmo se tratando de uma reprodução, o conjunto de escolhas adotadas pelo

gravador e o emprego de uma técnica para a obtenção de um resultado formal são

elementos próprios à produção da arte. Apresenta um resultado específico a partir

de um conjunto de operações e escolhas, trata-se de um objeto original.

Para Didi-Huberman a “ciência da arte” (Kunstwissenschaft) desejada por Warburg

se formulou como um questionamento sobre as imagens no âmbito de uma “ciência

da cultura” (Kulturwissenschaft). Houve uma abertura no campo dos objetos

passíveis de interessar à história da arte, pois a obra de arte deixou de ser um

objeto fechado em sua própria história e passou a ser um ponto de encontro

dinâmico de instâncias históricas heterogêneas (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 41). Por

isso a história da arte não deve se restringir apenas às imagens da arte. Mas deve

considerar um universo amplo das imagens, do qual as imagens da arte fazem

parte, com o qual elas se conectam. Como se estivessem em uma rede irregular e

assimétrica, feita de lembranças e esquecimentos, de imagens e da ausência delas.

Hans Belting discorre sobre o fim da história da arte não como o fim da disciplina,

mas como uma mudança no discurso, pois o objeto mudou e os antigos

enquadramentos se demonstraram insuficientes para abordar esse objeto

(BELTING, 2006, p. 8). O autor se refere a uma história da arte que nasceu com

Vasari. A disciplina que criou a obra de arte no Renascimento, esse objeto que

surgiu dentro de um campo próprio de expressão. Porém, mesmo que operem a

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partir de um campo autônomo de expressão e se direcionem a ele, as imagens da

arte estão conectadas com a memória coletiva e as inúmeras representações visuais

e verbais. Por isso, para estudar um tema no âmbito da história da arte, é

fundamental considerar as imagens e suas funções, como as gravuras de

reprodução.

O conhecimento catalogado

A demanda por livros de coleções de estampas foi grande e existem muitas gravuras

como essa; que tem a função de reproduzir outra imagem. Como foi mencionado, a

gravura em questão faz parte de um álbum, um conjunto maior que organiza e

apresenta um conjunto de obras de arte. A capa de apresentação do livro, além do

título, contém as informações: Tomo Primeiro. Contendo a Escola Romana. Mais

abaixo o local: a Paris, de l'Imprimerie Royale, e a data 1729 em algarismos

romanos. Há um segundo livro com a segunda parte do primeiro tomo, apenas com

imagens, além da página de abertura. O terceiro livro é o segundo tomo que se

difere por conter “a sequência da escola romana e a escola veneziana”. O livro trata-

se de uma espécie de catálogo de obras de arte. Especificamente de um conjunto

de obras localizadas na França naquele momento. Contém biografias dos artistas,

seguindo o modelo criado por Vasari, todavia se difere fundamentalmente por se

tratar de uma apresentação das obras. É composto por um conjunto de páginas

escritas, impressas tipograficamente, e um conjunto de gravuras em talho doce e

água forte.

A gravura reproduz a imagem original com uma notável precisão. Porém ela

apresenta pequenas diferenças. Não somente aquelas por se tratar de outra

linguagem, produzida por outra técnica, mas algumas alterações no desenho

original. Alguns detalhes da vegetação e dos relevos foram modificados, porém

significativamente, pode-se perceber a supressão da auréola do santo, presente na

obra original, e o acréscimo da cruz na pequena torre que aparece junto ao

horizonte. Se essa técnica de gravura possibilita a obtenção de detalhes claros e

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bem definidos, a agilidade das pinceladas soltas e seguras de Rafael não podem ser

reproduzidas. Aquilo que Vasari havia qualificado como graça, ligada à rapidez e à

facilidade de execução não é próprio para essa técnica de gravura, que envolve a

remoção do metal da superfície da matriz por um buril, deixando sulcos que definem

as linhas. É uma operação que envolve uma força incompatível com a leveza e a

facilidade próprias à pintura. Ainda assim o gravador obtém resultados que

impressionam pela delicadeza dos detalhes.

Esse tipo de gravura ficou conhecida como gravura de reprodução, ou gravura de

tradução, um objeto que se diferencia da gravura de artista. Ou seja, na primeira

entende-se que não haveria o ato criador, mas técnico, na segunda a técnica é

utilizada como linguagem expressiva. As características físicas da gravura impressa

em papel e sua possibilidade de obter várias cópias de uma imagem a partir de uma

matriz a tornavam adequada para serem usadas para esse tipo de livro.

Para Michel Melot, a gravura permite a acumulação de "tesouros”, no sentido

econômico do termo, mas sobretudo uma acumulação metódica do conhecimento.

Esse objeto “leve e autônomo” contribuiu para os estudiosos do século XVI ávidos

por constituir corpus e thesaurus. Mais ainda na primeira metade do século XVII,

quando se manifestou o gosto pelas grandes organizações enciclopédicas. Por meio

de coleções de emblemas, de medalhas ou de homens ilustres, a estampa difundiu

o espírito do conhecimento enciclopédico. O apreço por galerias gravadas conheceu

seu apogeu com o Gabinete do Rei, de Luís XIV. (MELOT, 1981, pp 32 – 33)

O Gabinete do Rei foi iniciado em 1663. Tratava-se de um gabinete de curiosidades,

algo que fazia parte do arsenal indispensável do homem esclarecido na época, o

cartão de estampas tinha um papel fundamental, era um objeto de curiosidade e

também um documento sobre a curiosidade. (MELOT, 1981, p 62) O livro com a

coleção de estampas faz parte desse pensamento enciclopédico. É uma forma de

catalogar obras de arte. É um objeto que oferece a possibilidade de um conjunto de

obras, muitas situadas em locais privados, serem conhecidas por um público maior,

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FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.

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incluindo pessoas que escreviam sobre arte. E, se os gabinetes de curiosidades são

precursores dos atuais museus, esses livros com coleções de estampas são

precursores dos atuais catálogos de suas coleções e exposições. São livros com

imagens feitas a partir de um modelo, por um lado operam uma redução da imagem

original no sentido de modificá-la, de suprimir sua condição pictórica, por outro

promovem uma ampliação na sua difusão.

Apesar de ter sua função projetada até o presente, o livro de estampas se enraíza

em uma tradição de produção de livros impressos, não por sua função, pois a noção

de obra de arte era recente, mas pela técnica por meio da qual foi produzido. Desde

o século XV já se produziam livros impressos com imagens. Os textos e as imagens

eram gravados conjuntamente em blocos de madeira, dos quais se obtinham as

cópias. Esses livros em papel substituíram progressivamente os códices iluminados

e se dirigiam a um público mais amplo que do que os livros manuscritos em páginas

de pergaminho. O gravador era um profissional que não existia anteriormente e

atuou, em parte como criador, em parte como artesão.

Em 1660 o rei da França reconheceu a liberalidade da profissão de gravador, seu

caráter de obra do espírito. Além do prestígio, essa posição conferia a liberdade da

produção de estampas, não sujeitas ao controle das corporações de ofícios. Por

outro lado, a entrada na Academia significava a renúncia ao comércio. O gravador

saiu do grupo social dos comerciantes e artesãos para entrar naquele das pessoas

do espírito. Porém a gravura permaneceu, por natureza, uma indústria e um

comércio. Na Inglaterra, onde os gravadores não foram admitidos na Academia

Real, a gravura não era reconhecida como uma arte, porém era protegida como uma

indústria. (MELOT, 1981, p. 63)

O livro de recolha de gravuras tem a finalidade de catalogar um conjunto de obras.

Sua condição de objeto reprodutível e transportável promove a propagação das

imagens, mas ao mesmo tempo apresenta o patrimônio artístico de um rei e nobres

franceses. Pode ser entendido como forma de demonstrar o apreço do rei pelas

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artes, mas também como forma de divulgar e valorizar o próprio patrimônio artístico

francês.

A produção de gravuras, as matrizes

Além das dimensões, a gravura tem uma notável semelhança com seu modelo. O

gravador reproduziu a obra com grande fidelidade, tanto no que diz respeito ao

desenho das figuras, suas formas e expressões, como na tradução das cores, seus

matizes e luminosidade, em tonalidades de cinza produzidas pela justaposição e

cruzamento de linhas com maior ou menor espessura. Pode-se mesmo verificar que

a gravura apresenta uma precisão maior na definição de pequenos detalhes. De

modo que essa tradução de uma pintura em uma gravura corresponde à construção

de uma imagem em uma nova linguagem, com características bastante distintas de

seu modelo.

As diferentes clientelas – popular ou erudita – foram servidas por diferentes técnicas

(que determinam os diferentes preços) e, sobretudo por diferentes tipos de

fabricantes. Enquanto os gravadores em madeira eram recrutados entre os artesãos

e às vezes nos mosteiros, os gravadores em metal se originavam nos ateliês de

ourives e poderiam rivalizar ou mesmo se confundir com os pintores.

Consequentemente a produção de gravuras surgiu não no coração do domínio

artístico, a pintura, mas ao lado dele, como uma promessa para alguns e uma

ameaça para outros. (MELOT, 1981, p. 45) A prática da ourivesaria foi muito

desenvolvida durante a Idade Média, na produção de joias e relicários. Também foi o

período quando se desenvolveram as corporações de ofícios entre as quais os

ourives possuíam uma posição de privilegiada. Os gravadores, assim como os

ourives, atuavam em um campo diferente da pintura, mas também com a produção

de imagens.

As matrizes gravadas em buril possibilitavam a tiragem de uma grande quantidade

de exemplares. Dessa maneira o livro de coleção de estampas ampliou a visibilidade

das imagens utilizadas como modelo. Por se tratar de uma nova imagem, a matriz

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também pode ser entendida como o modelo. Uma espécie de arquétipo original a

partir do qual são produzidas as cópias que, embora semelhantes, cada uma possui

suas próprias particularidades e é um objeto único.

A gravação das matrizes à buril trata-se de um trabalho longo, que envolve um

grande conhecimento do ofício. Para exercê-lo, além do conhecimento de uma

diversidade das ferramentas e a função de cada uma delas, deveria haver a

destreza no uso desses utensílios e o aprendizado do desenho. Mesmo os

gravadores que produziam gravuras de reprodução, produziam gravuras com

criações originais na medida em que também tinham prestígio como artistas. O autor

da gravura com São Jorge, Nicolas de Larmessin era filho e sobrinho de dois

gravadores e editores de estampas homônimos, foi nomeado gravador do Gabinete

do Rei. Também ficou conhecido como Nicolas II de Larmessin. Se dedicou

principalmente às gravuras de reprodução, mas também produziu retratos da

nobreza francesa e outras obras de autoria própria. Aprendeu o ofício em sua

própria família no contexto das corporações de ofícios.

As corporações de ofícios eram associações compostas pelos próprios artesãos,

que regulamentavam os trabalhos artesanais em cada cidade. Eram diferentes das

confrarias, porém sua criação está relacionada a elas. Para Gabriel Le Bras,

mercadores e artesãos se colocavam sob a proteção de seu santo, para assistência

mútua. As primeiras confrarias profissionais de Paris apareceram na segunda

metade do século XII, e no século XIV se generalizaram no modo de organização

dos profissionais. (LE BRAS, 1956, p. 432)

Ao lado das grandes confrarias existia uma massa de pequenas associações de

artesãos. Até o fim do Antigo Regime, todo ofício, em princípio, teve sua confraria.

Ainda nesses últimos séculos, às vezes a organização religiosa precede a

profissional e às vezes ela sucede a organização profissional. As mutualidades se

fundiam sobre o patronato de um santo, e a fronteira do espiritual e do temporal era

mal definida. Por outro lado, a confraria não coincidia sempre com a corporação:

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uma corporação pode ter várias confrarias, uma confraria receber pessoas

estranhas à profissão e mestres obterem dispensa de adesão. (LE BRAS, 1956, p.

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A impressão, o livro

A impressão se constituiu como uma nova possibilidade de uso da imagem. Isso foi

possível pelo desenvolvimento das técnicas de gravação, tanto em blocos de

madeira como em chapas metálicas. Outros dois fatores foram fundamentais nesse

processo: a invenção do papel e da tinta preta para impressão. Na Idade Média,

além dos afrescos, era corrente o uso de painéis de madeira e do pergaminho, para

as imagens pintadas. Os pintores passaram a usar um tecido fixado em um chassi,

que progressivamente substituiu os painéis. O custoso pergaminho, utilizado nos

códices manuscritos e iluminados, foi substituído pelo papel, e sua fabricação em

grande quantidade possibilitou a obtenção de um suporte mais barato para as

imagens. Isso promoveu uma expansão na quantidade de imagens, não apenas nos

livros e coleções, mas também com as impressões em folhas avulsas.

Por um lado, a gravura se apoiou na tradição dos ourives para obtenção das

matrizes, por outro, se conectou com um ofício que acabava de surgir; o dos

impressores. Como fruto dessa relação uma nova tinta foi incorporada. As primeiras

impressões xilográficas utilizavam uma tinta como a medieval, mais rala, produzida à

base de água, com algum aglutinante, como ovo ou goma arábica. Essa tinta era

depositada na superfície da madeira, que não foi gravada, e transferida por fricção

manual para um papel. Isso resultava em uma qualidade preto. O preto da tinta

gráfica, porém, é muito mais intenso e escuro. Essa tinta foi obtida com o mesmo

recurso que van Eyck utilizou em suas pinturas, o óleo de linho como meio para

dissolver os pigmentos.

Nas impressões a partir de chapas metálicas, diferente das matrizes em madeira, a

tinta se deposita no sulco gravado na chapa, e não em sua superfície. É espalhada

por toda a chapa e removida da superfície, onde mantém o branco do papel. A tinta

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FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.

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precisava ser suficientemente viscosa para não ser removida dos sulcos, produzir

linhas muito finas e com um preto intenso e escuro, a partir dos finos entalhes

gravados com buril. Ao ser transferida, por meio de uma forte compressão entre a

matriz e o papel, a tinta não se deposita apenas na superfície, ela se mistura com

suas fibras. Da mesma maneira que ocorre com a tinta das impressões tipográficas

utilizadas para a produção de livros.

Segundo Pastoureau, essa tinta foi desenvolvida pelos primeiros impressores, talvez

pelo próprio Gutenberg. A Bíblia de Gutenberg, impressa em 1455, já a utilizou.

Salvando pequenas diferenças nas receitas e segredos próprios de cada oficina,

essa tinta permaneceu a mesma até o início do século XIX. A adição de óleo de

linho tornou a tinta mais viscosa, o sulfato de ferro ou de cobre proporcionou um

aspecto preto e brilhante, e o uso de sais metálicos facilitou a secagem.

(PASTOUREAU, 2011, p. 115)

A difusão do livro impresso e da imagem gravada foi o principal vetor que fez com

que o branco e o preto fossem considerados como cores à parte, mais ainda a

imagem impressa com tinta preta sobre papel branco. As imagens medievais eram

quase todas policromáticas, a maior parte nos livros impressos, ou fora deles, na

época moderna, são imagens em preto e branco. Trata-se de uma revolução

cultural, não apenas no domínio dos conhecimentos, mas também das

sensibilidades. Os primeiros papéis utilizados na Europa não eram verdadeiramente

brancos, mas com uma tonalidade de bege. Com o aumento do consumo promovido

pela tipografia se tornou com melhor qualidade, mais durável, liso e, sobretudo, mais

branco. Nos manuscritos medievais a tinta preta à base de têmpera, não tem a

mesma intensidade que o preto gráfico, e o pergaminho não é branco. Nas gravuras

e nos livros impressos, há uma tinta muito preta, sobre um papel realmente branco.

Isso afetou não apenas o livro, mas principalmente a imagem (PASTOUREAU,

2011, pp. 112 - 116). Afetou até mesmo a percepção da imagem colorida ou do que

se pensou que elas seriam. Como o São Jorge de Rafael que foi reproduzido por

Larmessin. A pintura estava confinada em um único gabinete, com acesso a poucas

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FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.

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pessoas, mas as suas reproduções se espalharam. As gravuras, como o álbum com

a gravura de Larmessin, tornavam público o acesso a muitas imagens. Até mesmo

aqueles que estudavam a arte recorriam às reproduções impressas apenas em

preto.

A gravura se constitui a partir de um conjunto de aptidões. A primeira é a autonomia,

flexibilidade e leveza dessa imagem. Essas qualidades são exigidas para poder

transportá-la, e acumular em casa, em cartões ou nas paredes. É um objeto de arte

móvel, que viaja facilmente. Essas qualidades fazem dela um objeto individualmente

apropriável, se opondo assim, às imagens conhecidas até então: afrescos ou

retábulos. A segunda característica é a transferência, a possibilidade de reprodução.

É um objeto multiplicável, distribuível, intercambiável. A gravura é um objeto de arte

que pode ser vendido e eventualmente susceptível de uma produção industrial.

(MELOT, 1981, p. 23)

Além de leve e fácil de ser transportada e acumulada, a possibilidade de ser

produzida em grande quantidade, fez da gravura um objeto mais barato, mais

acessível do que as caríssimas pinturas coloridas, produzidas individualmente.

Consequentemente, a matriz passou a ser um objeto de grande valor, pois poderia

produzir muito mais dinheiro do que uma pintura. Uma chapa de cobre gravada

permite a impressão de milhares de exemplares. As matrizes, em sua maior parte,

eram propriedade dos editores. Em alguns casos podiam ser utilizadas em

diferentes publicações. Alguns artistas mais renomados, porém, podiam ser

proprietários de uma oficina de gravuras, e manter o controle sobre todas as etapas

da produção, como foi o caso de Dürer ou Schongauer.

Modelo e origem

Entre a obra original de Rafael e a cópia de Larmessin, a imagem de São Jorge

passou por transformações. Não há uma linha evolutiva, suas transformações se

operam a partir de algo que se assemelha a ramificações. Essas ramificações não

partem de um único modelo, mas vários, e elas podem se entrecruzar

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FONSECA, Fabio. A gravura de reprodução como meio de sobrevivência da imagem: os álbuns de gravuras de coleções. Entre a cópia e o original, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 402-417.

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estabelecendo conexões entre um universo de imagens, com formas e funções

diferentes. De acordo com Didi-Huberman, Warburg desconstruiu os modelos

epistêmicos de Vasari e Winckelmann. Substituiu o modelo dos ciclos de “vida e

morte”, “grandeza e decadência”, por um modelo cultural da história. Na qual os

tempos “se exprimiam por extratos, blocos híbridos, rizomas, complexidades

específicas, retornos frequentemente inesperados e objetivos sempre frustrados”.

Substituiu o modelo das “boas imitações” e “serenas belezas”, por um “modelo

fantasmal” da história, no qual os tempos “se exprimiam por obsessões,

sobrevivências, remanescências, reaparições das formas” (DIDI-HUBERMAN, 2013,

p. 25). Podemos considerar a pintura de Rafael como uma imagem original em

relação à gravura, porém ela mesma pode ser entendida como mais um artefato no

qual a imagem de São Jorge se faz visível.

Antes das imagens digitais, fotografias e impressões em offset, foram as gravuras de

reprodução que divulgaram e tornaram conhecidas muitas obras de arte. Como as

obras originais eram acessíveis apenas à poucas pessoas, dificilmente teriam um

processo de ampla divulgação da imagem sem as cópias, que multiplicavam um

modelo. Enquanto a pintura permanecia confinada em um gabinete, as gravuras

poderiam ser transportadas, espalhadas e alcançar lugares inimagináveis para a

obra original.

Notas

1 Recueil d'estampes d'apres les plus beaux tablaux…, 1729 – 1742, livro impresso em três tomos. Paris, Bibliothèque nationale de France. cotas nº AA-57-BOITE FOL (primeiro tomo, primeira parte), AA-58-BOITE FOL (primeiro tomo, segunda parte), AA-59-BOITE FOL (segundo tomo). Disponível em: https://gallica.bnf.fr/services/engine/search/sru?operation=searchRetrieve&version=1.2&collapsing=disabled&query=dc.relation%20all%20%22cb42001892p%22. Acesso em: 20 mai. 2019. 2 Saint Georges, 1729, gravura em buril e água forte sobre papel, 31 x 22,1 cm. Paris, Bibliothèque nationale de France. cota nº AA-57-BOITE FOL. Disponível em: https://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb42003190j. Acesso em: 20 mai. 2019. 3 Saint George and the Dragon, 1506, óleo sobre painel, 28.5 x 21.5 cm. National Gallery of Art, Washington, cota nº 1937.1.26. Disponível em: https://www.nga.gov/collection/art-object-page.28.html. Acesso em: 20 mai. 2019. 4 Coleção de estampas segundo os mais belos quadros e segundo os mais belos desenhos que estão na França No Gabinete do Rei, naquele do Monsenhor o Duque de Orleans, e em outros Gabinetes. Dividido seguindo as diferentes escolas; com um resumo da Vida dos Pintores, e uma Descrição Histórica de cada Quadro.

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Referências

BELTING, Hans. Por uma antropologia da imagem. Concinnitas, Rio de Janeiro, 01, julho 2005. 15.

______. O fim da história da arte: uma revisão dez anos depois. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 320 p.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

LE BRAS, Gabriel. Études de sociologie religieuse. Paris: Presses Universitaires de France, 1956.

MELOT, Michel. La nature et le rôle de l'estampe. In: MELOT, M., et al. L'estampe. Genève: Albert Skira, 1981.

PASTOUREAU, Michel. Preto: história de uma cor. Tradução de Lea P. Zylberlicht. São Paulo: Senac São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011.

VASARI, Giorgio. Vidas dos artistas. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. 1ª. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

Fabio Fonseca

Docente do curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) na subárea de Desenho. Doutor em Teoria e História da Arte pela Universidade de Brasília (UnB), com período sanduíche no Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Atualmente desenvolve sua pesquisa sobre o processo de sobrevivência das imagens, procurando integrar sob um viés teórico-metodológico, a pesquisa em Teoria e História da Arte com a produção prática em Artes. Contato: [email protected]