A guerra e sua regulamentação pelo Direito Internacional Público

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Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011 1 A guerra e sua regulamentação pelo direito internacional Eveline Vieira Brigido 1 Resumo O presente ensaio aborda o tema dos conflitos internacionais e as tentativas do Direito Internacional em regulamentá-los. Para uma noção introdutória, faz-se necessária uma abordagem quanto à definição de guerra e suas alterações no decorrer dos anos. Na seqüência, passa-se à análise das tentativas de tornar a guerra ilegal por meio de tratados e organizações internacionais. Ao final, discutem-se os casos em que as intervenções militares são permitidas pelo Direito Internacional. Palavras-chave: guerra; segurança internacional; paz; Organização das Nações Unidas. Abstract This essay concerns about the international conflicts and the attempts of international law to regulate them. First of all, it is necessary an approach about the definition of war and its changes over the years. Afterwards, it pass to the analysis of attempts to make the war illegal through international treaties and organizations. At the end, it discusses the cases in which military interventions are allowed under international law. Keywords: war; international security; peace; United Nations. Introdução Os conflitos internacionais têm sido constantes no decorrer dos séculos, de forma que não se pode dizer que são novidade para o Direito Internacional. É certo que mudaram os motivos, trazendo os conflitos mais recentes questões étnicas e religiosas, por exemplo. Também mudaram os meios, em razão da disseminação de novas tecnologias. Seja como for, não deixam de ser conflitos. No entanto, embora as guerras não sejam um fato novo para a humanidade, não faz muito tempo que o Direito Internacional vem tentando regulamentá-las. Sendo assim, o 1 Professora do curso de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing/ESPM-Sul. Mestre em Direito Internacional pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutora em Política Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Endereço eletrônico: [email protected].

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Amicus Curiae V.7, N.7 (2010), 2011

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A guerra e sua regulamentação pelo direito internacional

Eveline Vieira Brigido1

Resumo

O presente ensaio aborda o tema dos conflitos internacionais e as tentativas do Direito

Internacional em regulamentá-los. Para uma noção introdutória, faz-se necessária uma

abordagem quanto à definição de guerra e suas alterações no decorrer dos anos. Na seqüência,

passa-se à análise das tentativas de tornar a guerra ilegal por meio de tratados e organizações

internacionais. Ao final, discutem-se os casos em que as intervenções militares são permitidas

pelo Direito Internacional.

Palavras-chave: guerra; segurança internacional; paz; Organização das Nações Unidas.

Abstract

This essay concerns about the international conflicts and the attempts of international law to

regulate them. First of all, it is necessary an approach about the definition of war and its

changes over the years. Afterwards, it pass to the analysis of attempts to make the war illegal

through international treaties and organizations. At the end, it discusses the cases in which

military interventions are allowed under international law.

Keywords: war; international security; peace; United Nations.

Introdução

Os conflitos internacionais têm sido constantes no decorrer dos séculos, de forma que

não se pode dizer que são novidade para o Direito Internacional. É certo que mudaram os

motivos, trazendo os conflitos mais recentes questões étnicas e religiosas, por exemplo.

Também mudaram os meios, em razão da disseminação de novas tecnologias. Seja como for,

não deixam de ser conflitos.

No entanto, embora as guerras não sejam um fato novo para a humanidade, não faz

muito tempo que o Direito Internacional vem tentando regulamentá-las. Sendo assim, o

1 Professora do curso de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing/ESPM-Sul.

Mestre em Direito Internacional pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutora em Política Internacional

pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Endereço eletrônico: [email protected].

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objetivo do presente artigo é analisar justamente essa questão: a regulamentação da guerra

pelo Direito. Qual foi a primeira tentativa em âmbito multilateral de regulamentação?

Quando que os conflitos se tornaram proibidos? Em que situações seria permitida uma

agressão armada?

A fim de responder essas questões, dividiu-se este ensaio em três partes. Primeiramente,

será estudado o conceito de guerra, assim como algumas modificações que tal conceito sofreu

no decorrer dos anos. Logo após, passar-se-á à análise das tentativas de regulamentação da

guerra, especialmente pela Liga das Nações, pelo Pacto Briand-Kellog e pela Organização das

Nações Unidas (ONU). Por fim, serão discutidas quais as circunstâncias que o Direito

Internacional permite as intervenções militares.

Este artigo será realizado por meio de fontes primárias e secundárias. Foram utilizados

como fontes primárias o Pacto da Liga das Nações, a Carta da ONU, o Pacto Briand-Kellog, o

Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), o Tratado do Atlântico Norte e a

Convenção para Repressão e Prevenção do Crime de Genocídio. Como fontes secundárias

foram utilizados artigos científicos, livros e pesquisas no sítio da ONU.

1. A guerra

Um grande estrategista militar e teórico da guerra, Clausevitz (general da antiga

Prússia) já afirmava no século XIX que a guerra constitui “[...] um ato de violência destinado

a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade.” (2003, p. 7). Assim, tem como meio a

violência, o qual é usado para um determinado fim: impor-se sobre o inimigo (2003, p. 8). A

idéia é, portanto, de total aniquilação militar e política do inimigo, submetendo-o ao vencedor.

O autor vai mais além, afirmando que a guerra é também um meio para se atingir

objetivos políticos. Daí surgiu a sua mais conhecida frase: “A guerra é uma simples

continuação da política por outros meios.” (2003, p. 27).

Embora louvável seus conceitos, deve-se salientar que estes eram baseados nos Estados-

nações, ou seja, a idéia era da guerra entre Estados. Sua teoria desconsidera questões que,

atualmente, são fortes motivos de conflitos, como, por exemplo, o radicalismo religioso e a

proliferação das armas de destruição em massa.

Visto o conceito de guerra de um grande estrategista militar, também é importante

destacar o conceito do célebre jurista Hugo Grotius, que foi um dos precursores do Direito

Internacional Público. Segundo ele, “A guerra é o estado de indivíduos, considerados como

tais, que resolvem suas controvérsias pela força” (2004, p.71-72). Percebe-se, assim, que tem

sempre por base o emprego de meios violentos para resolver controvérsias.

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Ressalte-se que é possível classificar a guerra em “guerra internacional” e “guerra

civil”. A internacional seria o conflito entre Estados, enquanto que a guerra civil são conflitos

entre duas ou mais partes dentro de um único Estado, isto é, população civil que luta contra o

governo. Observe-se que, numa guerra civil, se outro país apoiar o governo contra seus

manifestantes internos, o conflito permanecerá sendo nacional. Contudo, se ocorrer o inverso,

ou seja, se esse outro país apoiar os manifestantes contra o seu próprio governo, o conflito

deixará de ser doméstico e passará a ser internacional (DISTEIN, 2004, p.06-12). Como bem

observa Distein, tudo “[...] depende do grau de envolvimento do estado estrangeiro nas

hostilidades voltadas ao Governo central de um determinado Estado” (2004, p.12).

2. Legalidade da guerra

Antes de adentrar especificamente nas questões jurídicas acerca da legalidade da guerra

é importante destacar o entendimento do ilustre jurista Hans Kelsen sobre o tema. O autor

classifica as questões jurídicas acerca da guerra em antes de depois da criação da ONU.

Antes, considera que a guerra somente é legal quando for uma penalidade contra uma

violação ao direito internacional. Ou seja, caso um Estado tenha violado alguma norma de

Direito Internacional, seria válido um ataque contra ele. Já após a ONU, a guerra só seria

juridicamente válida se fosse uma “contraguerra”, ou seja, se fosse uma legítima defesa

(KELSEN, apud DISTEIN, 2004, p.93).

De fato, até a criação da ONU é possível dizer que o recurso à guerra era juridicamente

legítimo. Não obstante, a primeira tentativa de se regulamentar os conflitos internacionais foi

com a Liga das Nações. Antes dessa organização, embora existissem alguns tratados bilaterais

de não-agressão, a guerra era legal. Portanto, foi somente com a Liga que se iniciaram os

trabalhos para regulamentar os conflitos internacionais.

2.1 A Liga das Nações

Logo após o fim da Primeira Grande Guerra, surgiu o projeto de criação da Liga das

Nações, a qual foi idealizada pelo Presidente estadunidense Woodrow Wilson. Ele estava

“convencido de que todas as nações do mundo tinham igual interesse na paz, e, portanto,

agiriam em conjunto para punir quem a perturbasse [...].” (KISSINGER, 1999, p. 51). Nos

anos seguintes, esse conceito viria a se chamar segurança coletiva.

A fim de implementar esse conceito nas relações internacionais, os Estados, ao

reunirem-se, na Conferência de Paz de Paris, em 1919, concordaram em criar a Liga das

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Nações (BRÍGIDO, 2010, p.18). O objetivo era, portanto, manter a paz, por meio de um

sistema de segurança coletiva: “a ação comum internacional resolveria conflitos e dissuadiria

agressões.” (BARACUHI, 2005, p. 38). Assim, no caso de um Estado-membro da Liga

agredir outro membro, tal ato significaria ato de guerra contra os demais membros.

O conceito de segurança passou, então, a ter embasamento jurídico, deixando de se

sustentar exclusivamente no poder dos Estados. Contudo, a guerra permaneceu juridicamente

legítima, embora como último recurso. Ou seja, caso todos os procedimentos legais de

solução pacífica de controvérsias resultassem infrutíferos, poder-se-ia recorrer à guerra. O

Pacto da Liga das Nações, portanto, não proibiu as intervenções armadas, apenas impôs

algumas restrições específicas, conforme se pode observar na combinação dos seguintes

artigos:

Art. 12. Todos os Membros da Sociedade convêm que, se entre eles houver um

litígio que possa trazer rompimento, o submeterão ao processo de arbitragem ou ao

exame do Conselho. Convêm mais que, em nenhum caso, deverão recorrer à guerra

antes de expirar o prazo de três meses depois da sentença dos árbitros ou do parecer

do Conselho.

Art. 13. Os membros da Sociedade acordam que, se houver entre eles um litígio

suscetível, na sua opinião, de uma solução arbitral e se esse litígio não puder ser

resolvido, de modo satisfatório, por via diplomática, será submetido integralmente à

arbitragem.

Art 15. Se entre os Membros da Sociedade houver um litígio capaz de produzir um

rompimento e se essa divergência não for submetida à arbitragem prevista pelo

artigo 13, os Membros da Sociedade convirão em submetê-lo ao Conselho. Para isto

basta que um deles avise do litígio o Secretário Geral, que tomará todas às

disposições para um inquérito e um exame completo.

O Conselho se esforçará em assegurar a resolução do litígio. Se a conseguir,

publicará, na medida que julgar útil, uma exposição relatando os fatos, as

explicações que comportam e os termos da resolução.

Se o litígio não puder ser resolvido, o Conselho redigirá e publicará um relatório,

votado por unanimidade ou por simples maioria de votos, para fazer conhecer as

circunstâncias da divergência e as soluções que recomendar como mais equitativas e

melhor apropriadas à espécie.

Se o parecer do Conselho for aprovado por unanimidade, não entrando no computo

da mesma unanimidade o voto dos Representantes das Partes, os Membros da

Sociedade comprometem-se a não recorrer à guerra contra qualquer Parte que se

conforme com as conclusões do referido parecer.

No caso em que o Conselho não consiga fazer aceitar seu parecer por todos os

membros que não os Representantes de qualquer Parte do litígio, os Membros

da Sociedade reservam-se o direito de agir como julgarem necessário para a

manutenção do direito e da justiça. (GARCIA, 2000) (grifo nosso)

Percebe-se, então, que os países tinham plena liberdade de recorrer à guerra na ausência

de unanimidade do Conselho. Por outro lado, os casos de intervenção armada que não se

enquadrassem nos artigos acima, significariam ato de agressão contra toda a comunidade

internacional, sendo que deveria haver uma ação conjunta de todos os Estados-membros da

organização.

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Reza o artigo 16:

Se um Membro da Sociedade recorrer à guerra, contrariamente aos compromissos

tomados nos artigos 12, 13 ou 15, será "ipso facto" considerado como tendo

cometido um ato de beligerância contra todos os outros Membros da Sociedade.

Estes comprometer-se-ão a romper imediatamente com ele todas as relações

comerciais ou financeiras, a interdizer todas as relações entre seus nacionais e os do

Estado que rompeu o Pacto, e a fazer cessar todas as comunicações financeiras,

comerciais ou pessoais entre os nacionais desse Estado e os de qualquer outro

Estado, Membro ou não da Sociedade.

Neste caso, o Conselho terá o dever de recomendar aos diversos Governos

interessados os efetivos militares ou navais pelos quais os Membros da Sociedade

contribuirão, respectivamente, para as forças armadas destinadas a fazer respeitar os

compromissos da Sociedade.

Aos Membros da Sociedade convêm, além disso, emprestarem uns aos outros

auxílio mútuo na aplicação de medidas econômicas e financeiras a tomar em virtude

do presente artigo, a fim de reduzir ao mínimo as perdas e inconvenientes que dele

possam resultar.

Prestar-se-ão igualmente apoio mútuo para resistir a toda medida especial dirigida

contra um deles pelo Estado que romper o Pacto. Tomarão às disposições

necessárias para facilitar a passagem através do seu território das forças de qualquer

Membro da Sociedade que participe duma ação comum para fazer respeitar os

compromissos da Sociedade.

Poderá ser excluído da Sociedade todo membro que se tiver tornado culpado de

violação de um dos compromissos resultantes do Pacto. A exclusão será

pronunciada pelo voto de todos os outros membros da Sociedade representados no

Conselho. (GARCIA, 2000).

Deve-se salientar que, em 1924, a Assembléia da Liga das Nações criou o “Protocolo de

Genebra sobre o Estabelecimento Pacífico de Disputas Internacionais”, o qual estabelecia que

os países estavam de acordo em não recorrer à guerra, salvo no caso de resistência contra

agressão ou, então, com a aprovação do Conselho. Todavia, tal Protocolo jamais entrou em

vigor (DISTEIN, 2004, p.115).

De qualquer forma, a Liga não obteve êxito em seus objetivos, tendo sido substituída

em pela ONU, após a Segunda Guerra Mundial. Seu fracasso foi devido ao fato de que nem

todas as nações têm igual interesse em reagir a um ato de agressão e em aceitar os mesmos

riscos para opor-se a ele. Ademais, o Congresso estadunidense acabou por não ratificar o

Pacto, o que acarretou na não-participação americana. E, além disso, a Conferência de Paz de

Versailles não incluiu as potências derrotadas (BRIGIDO, 2010, p. 20). Para Henry Kissinger,

“[...] uma doutrina geral de segurança coletiva jamais poderia funcionar [...] enquanto não

incluísse três das nações mais poderosas do mundo: os Estados Unidos, a Alemanha e a União

Soviética (URSS).” (KISSINGER, 1999, p. 267).

A Liga das Nações funcionou entre 1920 e 1939, quando eclodiu a Segunda Guerra.

Teve sua última reunião oficial em 1946 (BRIGIDO, 2010, p. 22).

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2.2 O pacto Briand-Kellog

É importante ressaltar que, além da Liga das Nações, houve, antes da criação da ONU,

outra tentativa de se regulamentar a guerra: o pacto de não-agressão conhecido por Pacto

Briand-Kellog, de 1928. Trata-se de um pequeno tratado, sendo composto por apenas três

artigos, por meio dos quais se procurou tornar a guerra ilegal (DISTEIN, 2004, p. 117-120).

De fato, apenas os dois primeiros artigos regulamentavam a guerra, uma vez que o terceiro

tratava somente das questões de ratificação e adesão de países.

Art. 1. As Altas Partes contratantes declaram solenemente, em nome dos respectivos

povos, que condenam o recurso à, guerra para a solução das controvérsias

internacionais, e a ela renunciam como instrumento de política nacional nas suas

mútuas relações.

Art. 2. As Altas Partes contratantes reconhecem que o ajuste ou a solução de todas

as controvérsias ou conflitos qualquer natureza ou origem, que se suscitem entre

elas: nunca deverá ser procurado senão por meios pacíficos.

(PACTO BRIAND-KELLOG. 27 ago. 1928. Disponível em:

<http://www2.mre.gov.br/dai/renguerra.htm>. Acesso em: 01 mar. 2008).

Houve algumas críticas em relação ao Pacto, pois a guerra ainda permaneceu legal sob

algumas circunstâncias. A saber:

a) Legítima defesa: quando um Estado fosse atacado, este teria o direito de se defender.

De fato, não houve críticas quanto a esse ponto, visto que a autodefesa trata-se de um direito

dos Estados.

b) Como instrumento de política internacional: observando-se atentamente o artigo

primeiro, é possível perceber que a guerra é proibida como instrumento de política nacional,

nada sendo previsto acerca da política internacional.

d) Fora do âmbito das relações entre os Estados-Partes: tratava-se de um tratado

multilateral, do qual nem todos os países participavam. Assim, ficava claro que a guerra era

proibida, como instrumento de política nacional, apenas entre os países que ratificaram o

Pacto. Eram sessenta e dois no total (PACTO BRIAND-KELLOG, 2008).

2.3 A Organização das Nações Unidas

Não obstante o fracasso da Liga das Nações, as idéias básicas desta deveriam ser

mantidas e estendidas após a Segunda Guerra Mundial. Assim, o objetivo era criar uma nova

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organização internacional que garantisse a paz e a segurança internacionais: a ONU

(BRIGIDO, 2010, p.23).

Tratava-se agora, com base nos ensinamentos da experiência fracassada da Liga das

Nações, de criar um novo sistema de segurança coletiva que garantisse a paz,

obrigando todos os Estados a com ele se comprometer, renunciando ao uso da força,

aceitando as fronteiras estabelecidas e garantindo a cada um a possibilidade de se

organizar, política e economicamente, como lhe conviesse.(GUIMARAES, 1999, p.

104-105).

O presidente Roosevelt idealizou um cenário internacional do pós-guerra no qual os

Estados Unidos, a Inglaterra, a União Soviética (URSS) e a China formariam o conselho de

administração do mundo2. Para tanto, foram realizadas algumas conferências, a fim de colocar

em prática esse objetivo. Por meio dessas conferências foi criada as Nações Unidas, cuja

Carta Constitutiva entrou em vigor em 24 de outubro de 1945 (UNITED NATIONS, 2008).

No que concerne ao uso da força nas relações internacionais, a ONU constitui um

importante marco. Foi com essa organização que a guerra se tornou ilegal, ou seja, o uso da

força passou a ser proibido. Há, contudo, duas exceções:

a) legítima defesa;

b) resoluções do Conselho de Segurança da ONU.

2.3.1 Legítima defesa

A essência da legítima é a auto-ajuda e, desde os tempos mais remotos, sempre foi

reconhecida como um direito dos Estados: o direito de autodefesa. Assim, tem como base o

direito costumeiro. E, com o advento da Carta da ONU, está também prevista num tratado

internacional (assim como já estava no Pacto Briand-Kellog).

Reza o artigo 51 da Carta supracitada:

Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual

ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações

Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para

a manutenção da paz e da segurança internacionais.

As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de legítima defesa

serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de

2 “[...] Roosevelt esboçou sua idéia dos „quatro guardas‟ para manter a ordem no mundo de pós-

guerra”. “[...] estava decidido a evitar os erros da Liga das Nações e o sistema estabelecido após a Primeira

Guerra Mundial. Queria alguma forma de segurança coletiva, mas sabia [...] que segurança coletiva exigia

compulsão, e compelir seria papel dos Quatro Guardas”. In: KISSINGER, Henry. Diplomacia. 2ª ed. Rio de

Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1999. p. 427-428.

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modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui

ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à

manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais.

Percebe-se, portanto, que, quando um país for atacado, ele terá o direito de se defender

utilizando os recursos necessários. É possível, inclusive, que essa defesa seja coletiva, isto é,

outros Estados poderão auxiliar o que foi atacado. É a legítima defesa coletiva.

Sobre esse ponto, cabe aqui ressaltar a Organização do Tratado do Atlântico Norte

(OTAN), que tem como princípio básico a legítima defesa coletiva de seus membros,

conforme previsto em seu tratado constitutivo:

Art. 5 - As Partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas

na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas, e,

conseqüentemente, concordam em que, se um tal ataque armado se verificar, cada

uma, no exercício do direito de legítima defesa, individual ou coletiva, reconhecido

pelo artigo 51.° da Carta das Nações Unidas, prestará assistência à Parte ou Partes

assim atacadas, praticando sem demora, individualmente e de acordo com as

restantes Partes, a ação que considerar necessária, inclusive o emprego da força

armada, para restaurar e garantir a segurança na região do Atlântico Norte.

Qualquer ataque armado desta natureza e todas mais providências tomadas em

conseqüência desse ataque são imediatamente comunicados ao Conselho de

Segurança. Essas providências terminarão logo que o Conselho de Segurança tiver

tomado as medidas necessárias para restaurar e manter a paz e a segurança

internacionais. (NORTH ATLANTIC TREATY ORGANIZATION, 2008).

Assim, um ataque sofrido por um Estado-membro será considerado um ataque aos

demais.

No mesmo sentido é o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR),

firmado entre os países do continente americano. Prevê o seu artigo 30:

As Altas Partes Contratantes concordam em que um ataque armado, por parte de

qualquer Estado, contra um Estado Americano, será considerado como um ataque

contra todos os Estados Americanos, e, em conseqüência, cada uma das ditas Partes

Contratantes, se compromete a ajudar a fazer frente ao ataque, no exercício do

direito imanente de legítima defesa individual ou coletiva que é reconhecido pelo

Artigo 51 da Carta das Nações Unidas. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS

AMERICANOS, 2008).

Como se pode observar nos artigos supracitados, tanto o tratado da OTAN quanto o

TIAR estabelecem a legítima defesa coletiva de seus membros, com fulcro no artigo 51 da

Carta da ONU.

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2.3.2 As resoluções do Conselho de Segurança da ONU

O Conselho de Segurança é o órgão da ONU que tem o poder decisório para tratar de

questões relacionadas à manutenção ou restabelecimento da paz e segurança internacionais.

Assinala o artigo 24 (1) da Carta da ONU:

A fim de assegurar pronta e eficaz ação por parte das Nações Unidas, seus membros

conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na manutenção da

paz e da segurança internacionais, e concordam em que, no cumprimento dos

deveres impostos por essa responsabilidade, o Conselho de Segurança aja em nome

dele.

O órgão é composto por quinze membros, sendo cinco permanentes (os Estados Unidos,

o Reino Unido, a França, a China e a Rússia) e dez membros não-permanentes. Estes são

eleitos pela Assembléia Geral da ONU e permanecem apenas por período de dois anos, sem

direito à reeleição ao período imediato. Importante ressaltar que os permanentes têm,

individualmente, o poder de vetar qualquer decisão do Conselho (UNITED NATIONS, 2008).

De acordo com a Carta da ONU, é o Conselho que decidirá quando um determinado

caso pode ser caracterizado como ameaça ou ruptura da paz. Reza o artigo 39 da Carta supra:

O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz,

ruptura da paz ou ato de agressão, e fará recomendações ou decidirá que medidas

deverão ser tomadas de acordo com os Artigos 41 e 42, a fim de manter ou

restabelecer a paz e a segurança internacionais.

E, caso constate que se trata de ameaça ou ruptura da paz, o Conselho pode adotar

medidas coercitivas não-militares e militares, conforme assinalam os artigos 41 e 42,

respectivamente:

Art. 41 - O Conselho de Segurança decidirá sobre as medidas que, sem envolver o

emprego de forças armadas, deverão ser tomadas para tornar efetivas suas decisões e

poderá convidar os Membros das Nações Unidas a aplicarem tais medidas. Estas

poderão incluir a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos

meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos,

radiofônicos, ou de outra qualquer espécie, e o rompimento das relações

diplomáticas.

Art. 42 - No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas

no art. 41 seriam ou demonstraram que são inadequadas, poderá levar a efeito, por

meio de forças aéreas, navais, ou terrestres, a ação que julgar necessária para manter

ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá compreender

demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou

terrestres dos Membros das Nações Unidas.

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Percebe-se, assim, que a Carta da ONU centraliza o uso da força militar em prol do

Conselho de Segurança. Ou seja, legitima-se o uso da força por meio bélico em nome da paz e

segurança internacionais (CONVENÇÃO PARA A REPRESSÃO E PREVENÇÃO DO

CRIME DE GENOCÍDIO, 2008).

3. O uso da força e a questão da responsabilidade de proteger

Um dos grandes debates atuais sobre o uso da força é a seguinte questão: seria possível

agredir militarmente um Estado em razão de este não impedir graves violações aos direitos

humanos em seu território? Ou seja, seria possível o usa da força para a proteção de direitos

humanos?

Antes de se adentrar nessa discussão, deve-se analisar um importante tratado sobre o

tema: a Convenção para a Repressão e Prevenção do Crime de Genocídio, de 1948

(BRIGIDO, 2010, p.44). Reza seu artigo 1o: “As Partes Contratantes confirmam que o

genocídio, seja cometido em tempo de paz ou em tempo de guerra, é um crime do direito dos

povos, que desde já se comprometem a prevenir e a punir.” Caberia a intervenção armada?

A Convenção nada diz. Mas, seu artigo 9 dispõe que qualquer problema relacionado à

interpretação deve ser submetido à Corte Internacional de Justiça.

As controvérsias entre as Partes Contratantes relativas à interpretação, aplicação ou

execução da presente Convenção, incluindo as controvérsias relativas à

responsabilidade de um Estado em matéria de genocídio ou de qualquer dos atos

enumerados no artigo 3.º, serão submetidos ao Tribunal Internacional de Justiça, a

pedido de uma das partes da controvérsia.

Ademais, o artigo 8o da Convenção estabelece que os Estados, ao invés de agirem

sozinhos, recorram às Nações Unidas:

As Partes Contratantes podem recorrer aos órgãos competentes da Organização das

Nações Unidas para que estes, de acordo com a Carta das Nações Unidas, tomem as

medidas que julguem apropriadas para a prevenção e repressão dos atos de

genocídio ou dos outros atos enumerados no artigo 3º.

Sendo assim, entende-se que qualquer intervenção armada para conter o genocídio deve

ter a autorização do Conselho de Segurança da ONU. Não sendo possível intervenção

unilateral.

Ademais, deve-se salientar que não há autorização expressa na Carta da ONU para usar

a força em prol dos Direitos Humanos. Entretanto, já houve intervenções do Conselho nesse

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sentido, denominadas de “intervenções humanitárias”, caso da intervenção no Kosovo, por

exemplo.

Não obstante, a Assembléia Geral da ONU estabeleceu uma Comissão para tratar do

tema: International Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS). O objetivo é

estudar o uso da força com fins humanitários, sugerindo uma alteração na doutrina da

intervenção humanitária para a doutrina da responsabilidade de proteger. Tal doutrina

alteraria, portanto, a noção do direito de soberania como um direito absoluto para um direito

que deve ser exercido com responsabilidade. Ou seja, imporia limites no exercício da

soberania (JUBILUT, 2009, p.161).

Enfim, não se trata de questão pacífica e ainda não há previsão em tratado internacional.

Mas, nada impede que o Conselho de Segurança adote essa doutrina. Conforme já explanado,

cabe a ele decidir as circunstâncias que ameaçam à paz e a segurança internacionais, ou seja,

o texto da Carta da ONU é muito amplo, concedendo grande discricionariedade ao Conselho.

Considerações finais

Os conflitos internacionais, embora existam desde a antigüidade, somente passaram a

ser regulamentados no âmbito multilateral a partir do surgimento da Liga das Nações.

Contudo, essa primeira tentativa não trouxe resultados práticos, visto que o uso da força ainda

continuou permitido, embora como último recurso.

Alguns anos depois, houve nova tentativa, com o Pacto Briand-Kellog. Mas, conforme

foi explanado, essa nova tentativa também não trouxe muitos resultados. As intervenções

armadas ainda continuaram permitidas como instrumento de política internacional, bem como

para os países que não faziam parte do Pacto.

As intervenções somente passaram a ser proibidas com a criação das Nações Unidas, em

1945. Assim, com o advento da ONU, o uso da força somente é permitido em caso de

legítima defesa ou por meio de resoluções do Conselho de Segurança, que é o órgão

encarregado da manutenção da paz e da segurança internacionais. Contudo, críticas devem ser

feitas sobre essa questão, uma vez que é evidente que o Conselho detém um poder ilimitado,

podendo decidir quando um determinado caso se trata ou não de um conflito internacional,

além de decidir quais as penalidades que lhe são pertinentes, incluindo aí o uso da força.

Com as grandes mudanças que ocorreram no cenário internacional após a Guerra Fria, o

houve grande amplitude em relação ao número de casos que o Conselho considera como de

ameaça e ruptura da paz. Merece destaque especial as questões envolvendo direitos humanos,

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já tendo havido conflitos em que o Conselho justificou a intervenção como defesa desses

direitos.

Tal modalidade de intervenção está, atualmente, ganhando ainda mais contornos com o

surgimento da doutrina da responsabilidade de proteger, em que se argumenta que a soberania

do Estado viria acompanha da responsabilidade de proteção. Ou seja, se o Estado não proteger

os seus nacionais de graves crimes contra os direitos humanos, isso justificaria intervenção.

É importante lembrar que existem órgãos específicos para tratar dos problemas

envolvendo direitos humanos na própria ONU. Ademais, não há embasamento jurídico que

sustente o uso a força em prol desses direitos. Portanto, levar essa questão para o Conselho de

Segurança seria ampliar ainda mais o grande poder discricionário do órgão.

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