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ENSAIOS ACADÊMICOS A Hora da Estrela

A Viagem do Grivo

L P Baçan

Edição Eletrônica: L P Baçan

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 4

A HORA DA ESTRELA .................................................................................................. 5

A VIAGEM DO GRIVO ................................................................................................ 18

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INTRODUÇÃO

Antes de mais nada, devo reconhecer que esta não é a minha área.

Minha ocupação tem sido criar personagens, histórias e textos, jamais

buscar analisar as implicações do que fiz.

Por força de trabalhos acadêmicos durante o curso de Especialização

de Literatura Brasileira que fiz na UEL, em Londrina, deparei-me com

estes dois desafios e, confesso, a princípio me senti deslocado em fazê-los.

Depois, percebi que se tornava fácil penetrar na mente criativa dos autores,

porque, de certa forma, tínhamos a mesma genética criadora. Era como se

estivéssemos conversando, trocando ideias, descobrindo e redescobrindo

detalhes que aparentemente escapam da simples leitura.

Foi um processo interessante, revelador, que resultou nestes dois

ensaios.

L P Baçan

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A HORA DA ESTRELA

Clarice Lispector

RODRIGO S.M. ou

A COERÊNCIA DO GRITO OU

A HORA DO GRITO OU

O MORTICÍNIO DOS POMBOS OU

UM ESCRITOR SEM RESPOSTA OU

NO TEMPO DE MORANGOS OU

O DIREITO DO GRITO OU

A DENTINA EXPOSTA OU

(A EXPLOSAO) OU

O BEIJO NA PAREDE OU

MAIS VALE UM CACHORRO VIVO!

PROPOSIÇAO:

O objetivo do trabalho é demonstrar que, em A HORA DA ESTRELA, Clarice Lispector criou uma de suas mais ricas e coerentes personagens. Para tanto, devem set abstraídas todas e quaisquer conotações plurisignificativas que a entendem retratada na personagem, atentando-se tão somente a personagem em si. Falaremos de Rodrigo S.M., o narrador-escritor-personagem.

Antes, porém, de nos concentrarmos nele, julgamos oportuno algumas considerações de caráter teórico sobre o escritor, a personagem e o homem do nosso tempo. Isto porque Rodrigo é UM ESCRITOR E UM HOMEM DOS TEMPOS

MODERNOS: UM ESCRITOR MODERNO.

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A PERSONAGEM DE FICÇAO:

Exige-se da personagem de ficção "a coerência interna no que tange ao mundo imaginário das personagens e situações miméticas", conforme Antônio Cândido, em A Personagem de Ficção. Em outras palavras, a verossimilhança de Aristóteles ou a genuinidade, sinceridade ou autenticidade, sem que isso a transforme numa pessoa, porém. No microcosmo criado ou recriado da obra elas ganham vida ficcional, integram-se no denso tecido de valores ali presentes, debatem-se entre esses valores e passam por conflitos terríveis, onde evidenciam aspectos essenciais da vida humana, ameaçando, por vezes, romper o frágil e tênue fio que separa a realidade da ficção.

Desvendar esses aspectos resulta num processo laborioso, mas enriquecedor, propiciando crescimento e apreensão da natureza humana.

Ao buscar um entendimento maior da obra literária através da análise de suas personagens, vamos nos deparar com uma terminologia toda própria: Forster as classifica em redondas ou planas; Vladimir Propp, dentro de esferas de ação (papéis pré-determinados) e Greimas as sintetiza em seis tipos actantes. Todas essas classificações visam, cada uma a sua maneira, penetrar o mais fundo possível nesse ser contraditório, que existe (no papel), não existindo (na realidade). Entretanto, fruto de valores, testemunhos, observações, criatividade ou imaginação, guarda íntimas relações com a realidade do autor e do leitor. Quem escreveu, conhece ou estabeleceu esse modelo e pode descrevê-los em seus mínimos detalhes. Em sua mente, a figura existe, real como uma fotografia ou uma recordação viva. Para o leitor, essa personagem assume um aspecto próprio, decorrente de sua própria imaginação, experiências, valores, etc., num processo onde a palavra evoca a imagem, construída a partir dos elementos de que dispõe o leitor.

Para tornar-se válida e se aproximar o máximo possível da linha que separa o não-existir do existir, a personagem tem de reunir elementos de identificação que a tornem inserida no contexto da obra, como parte harmoniosa da narrativa e de todos os elementos ali presentes: tempo, espaço, cultura, grupo social retratado, etc.

Dentre as personagens de uma obra e em decorrência do propósito deste trabalho, uma vai adquirir uma característica própria: a personagem-narradora, o Eu como testemunha, como classifica Friedman, só que, no caso de A Hora da Estrela, um Eu como testemunha que é uma das personagens principais, confundindo-se com a própria autora, Clarice Lispector, e recebendo, por isso, uma missão toda especial: o eu como testemunha, onisciente e intruso protagonista da obra.

O PAPEL DO ESCRITOR:

No artigo O Escritor e o Público, do livro Literatura e Sociedade, Antônio Cândido ressalta que "o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o

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indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade, (que o delimite e especifica entre todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores e auditores. A matéria e a forma de sua obra dependerão em parte da tensão entre as veleidades profundas e a consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo entre criador e público."

Freud concebia o escritor como "um neurótico obstinado", que através de sua obra, defende-se da alienação, mas também da cura. No Capítulo Literatura e Psicologia, da Teoria da Literatura de Renés Welleck e Austin Warren, lemos que o escritor se afasta da realidade para um mundo de fantasias, onde dá livre curso aos seus desejos. Ali descobre uma via de regresso, amoldando essa fantasia a uma nova espécie de realidade que os outros homens passam a entender como um reflexo válido da vida real.

A DIMENSAO DO HOMEM

Em O Ensino da Literatura, Nelly Novaes Coelho apresenta a gradação porque passou o antropomorfismo, desde o Renascimento até os nossos dias: "... o que se implanta com maior valor, na Era Clássica, é a ideia de homem como sinônimo de Gênero Humano; com o tempo, a ideia vai-se limitando mais e no Romantismo/Realismo temos o indivíduo como centro do universo; no Simbolismo surge o sentido profundo do eu como valor absoluto; um eu que se adentre cada vez mais em si mesmo e que se torne ego e logo mais se transforma no id. Esta gradação pode ser concretizada com a figura de um funil."

HUMANIZADO - IDADE MÉDIA HOMEM - CLASSICISMO

INDIVÍDUO - ROMANTISMO/REALISMO EGO - SIMBOLISMO

EU - MODERNISMO (INÍCIO) ID - MODERNISMO (EVOLUÇAO)

Observa-se nessa gradação o isolamento progressivo a que o homem vai se impondo, e esse processo vai se refletindo nas obras literárias, resultando num curioso paradoxo: quanto mais livre, mais só e mais preso e desamparado ele se torna. Nesse processo de isolamento e interiorização, o homem se afasta da ideia de Deus, do Próximo e da Natureza. Com isso, a autora explica, com relativa facilidade, as raízes da angústia que vai aparecer no homem no homem moderno.

ANÁLISE DA PERSONAGEM-NARRADOR DE A HORA DA ESTRELA

Rodrigo S.M., um homem em plena idade, mora no Rio de Janeiro, mas se criou no Nordeste. Gosta de solidão, fuma, não teme a natureza, mas tem

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medo de pessoas e não aguenta bem ouvir um assovio no escuro e o som de passos. Teve pelo menos uma namorada com quem dormiu e a quem não esqueceu: "... jamais se esquece a pessoa com quem se dormiu." Não tem classe social definida. Gosta de animais, possui um cão e um cavalo. Dá-se melhor com bichos do que com gente. Tem uma cozinheira e mais dinheiro do que os que passam fome. Recorre a Deus só quando precisa, mesmo assim ao "vosso Deus que nos mandou inventar", não ao seu Deus.

As evidencias de que se trata de uma personagem do nosso tempo estão presentes em todo o texto: há máquinas de escrever, carros, as Lojas Americanas, a Rádio Relógio, metalúrgicas, telefone, etc.

Observando Rodrigo de perto, em nada ele se diferencia de tantos homens do Século XX, vivendo numa cidade como o Rio de Janeiro. Em nada, exceto pelo fato de ser um escritor e reunir nessa característica certas particularidades que o fazem único. Ao delinear-se nas páginas do livro, ele deixa transparecer todo o seu caráter contraditório, de neurótico obstinado, buscando livrar-se da alienação em sua própria obra. Para não se destruir, ele destrói sua personagem. Para não morrer e por temer a morte, ela mata Macabéa, pretendendo, com isso, descobrir a sua via de acesso a realidade refeita. Ao invés disso, encontra a realidade mais crua:

"Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. mas eu também?!"

Por isso volta a sua fantasia:

"... por enquanto é tempo de morangos."

A PERSONAGEM

Rodrigo é um ser contraditório, centrado em si mesmo, que se diz um eu que precisa de outros para se manter em pé, mas que só encontra força na solidão. Procura viver no presente.

"... pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanha será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento."

Julga-se um marginalizado e demonstra sua coerência:

"A classe alta me tem como um mostro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim."

Nesta afirmação aparentemente despretensiosa, ele retrata todo o drama cultural do povo brasileiro, que o afeta direta e dolorosamente em sua atividade de escritor. Mas isto não o demove do objetivo maior: narrar é uma obrigação, é o grito puro que precisa ser lançado, que o sufoca se não for lançado, embora isso o angustie.

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Aparentemente caótico em sua narrativa, Rodrigo revela método e organização em seu processo criador. Isso reforça seu aspecto de neurótico obstinado, mas o neurótico compromissado com seu papel social. Mesmo a fórceps, o grito tem de ser lançado.

Vejamos como Rodrigo, um escritor marginalizado, num país do Terceiro Mundo, processa sua criação.

A INSPIRAÇAO

Norah Chadwick, em Poetri and Prophecy, conforme citada em Teoria da Literatura (op. citado), afirma: "Nos tempos modernos, considera-se que a inspiração tem os traços essenciais da subitaneidade..."

E como Rodrigo explica o gênese de sua obra?

"Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda desconheço? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina."

Conhecido o assunto de sua obra, ele vai ser internalizado e processado:

"Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira."

Nesse processo de convivência com a ideia e com a personagem que vai sendo delineada, o escritor, que a tirou da realidade enquanto "inspiração", leve-a para a ficção e realiza o oposto: trazê-la de volta a vida, como um ser que respira, como ele mesmo o afirma enfaticamente.

Isso é tão forte que o assusta, pois "... mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa inteira..."

Esse processo de internalizarão e delineamento da personagem angustia, é doloroso e prolongado: ele se gruda nele como melado pegajoso ou lama negra.

Tudo isso, porém, não é tão simples quanto parece. Ao mesmo tempo em que a personagem parece exigir a narrativa, assumindo a necessidade do grito, o ato de escrever é, para o escritor, assustador, pois exigirá uma transgressão dos limites. Isto o fascina e, ao mesmo tempo, suscita dúvidas:

"O que narrarei será meloso? "

A personagem parece delinear-se por si mesma e isso não agrada o escritor, que se irrita com sua passividade. Ela o suga, esvazia-o, enraivece e força-o a procurar compensações: amar o cão que tem mais comida do que ela.

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Só que agora o processo é irreversível. Ele quer terminar a história para voltar ao "domínio mais irresponsável de apenas ter leves prenúncios."

A afirmação de Freud de que o escritor é um neurótico obstinado se evidencia agora no decorrer do processo de criação: o escritor passa a admitir que não inventou a moça, que ela forçou dentro dele a sua existência. Está tão próximo do tênue fio entre a realidade e a ficção que não resta alternativa senão apressar a narrativa.

Ele ainda tenta se rebelar contra a "missão" assumida:

"É. Eu me acostumo mas não amanso."

Só então ele começa, verdadeiramente, a contar a história. Mas sua angústia ainda vai se evidenciar ao longo do texto. Num significativo "insight" entre parênteses ele confessa:

"( Mas e eu? E eu que estou contando esta história que nunca me aconteceu e nem a ninguém que eu conheça? Fico abismado por saber tanto a verdade. Será que o meu ofício doloroso é o de adivinhar na carne a verdade que ninguém quer enxergar? Se sei quase tudo de Macabéa é que já peguei uma vez de relance o olhar de uma nordestina amarelada. Esse relance me deu ela de corpo inteiro. Quanto ao paraibano, na carta devo ter-lhe fotografado mentalmente a cara -- e quando se presta atenção espontânea virgem de imposições, quando se presta atenção a cara diz quase tudo. )"

A PREPARAÇAO:

Da inspiração ao deslanchar da narrativa, ocorre todo um processo de elaboração da personagem, que consiste em pegá-la da realidade, torná-la imaginária, dar-lhe vida e narrar sua história.

Paralelamente a isso, Rodrigo desenvolve todo um processo de preparação para a narração da história, uma espécie de ritual que doma e dá gradação a impaciência. Em Literatura e Psicologia, da Teoria de Literatura de R. Wellek e Austin Warren, são citados escritores e suas idiossincrasias:

"Schiller tinha sempre maças podres na sua mesa de trabalho; Balzac escrevia revestido de uma hábito de frade."

Mencionam, ainda, escritores que escreviam deitados, outros que careciam de silencio, outros que preferiam o ruído da casa ou dos cafés e os que escreviam apenas a noite.

Rodrigo, como escritor, também tem suas idiossincrasias. Para escrever, ele precisará:

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a) Pôr-se no nível da nordestina, não fazendo a barba, adquirindo olheiras, só cochilando de pura exaustão e vestindo-se com roupa velha rasgada (para falar dela).

b) Domar-se (para desenhá-la).

c) Alimentar-se frugalmente de frutas, beber vinho branco, abster-se de sexo e de futebol, não entrar em contato com ninguém (para captar sua alma).

E enquanto isso:

"Estou esquentando o corpo para iniciar, esfregando as mãos uma na outra para ter coragem."

O MÉTODO:

Rodrigo vai se delineando como escritor e homem moderno em meio as informações que são atiradas aparentemente a esmo. Descobre-se nele um escritor preocupado e consciente de seu papel. Ele sempre soube o que seria e como seria a história. Apenas vai adiando até o momento final da maturidade da "sua" personagem Macabéa, a espera do parto. Ela é gerada como uma molécula dizendo sim a outra e nascem para a vida.

Rodrigo seleciona como conter, buscando a transgressão de seus próprios limites:

"Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e "gran finale" seguido de silencio e de chuva caindo."

Evidencia a maneira como vai escrever:

"Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Aliás o material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os personagens são poucas e não muito elucidativas, informações essas que penosamente me vem de mim para mim mesmo, é trabalho de carpintaria."

É um processo difícil, mas criativo, que parece agradá-lo ao se descobrir mudando:

"É. Parece que estou mudando de modo de escrever. Mas acontece que só escrevo o que quero, não sou um profissional..."

A mudança e a presença de Macabéa vão sendo internalizadas, processadas, assimiladas:

"Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito dentro de mim."

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Finalmente, chega ao detalhe de fixar o tom de sua narrativa:

" Esqueci de dizer que tudo o que estou agora escrevendo é acompanhado pelo ruflar enfático de um tambor batido por um soldado."

E a definir a sensação que sua narrativa deve provocar:

"...é acompanhada do principio ao fim por uma levíssima e constante dor de dentes, coisa de dentina exposta."

Rodrigo, a personagem a beira do real, confunde-se agora com o real ao assumir seu caráter sinestésico, que transfere a sua obra.

Ainda em Literatura e Psicologia, os autores afirmam:

"Outro traço característico por vezes atribuído ao homem literário -- mais especificamente ao poeta -- é a sinestesia..."

Para finalizar, Rodrigo sabe, como escritor, que a simplicidade só é conseguida através de muito trabalho.

"O que me proponho contar parece fácil e a Mao de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho de tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama."

E isso ele o diz com uma rude e bela metáfora sinestésica.

O MOTIVO:

Escrever é o grito necessário para Rodrigo, um ritual que obedece a um método, uma angústia que se avoluma em impaciência até que a narrativa se firma e passa a fluir.

Rodrigo escreve:

a) Enquanto tem perguntas sem resposta;

b) Com algum prévio pudor;

c) É uma obrigação e um dever;

d) Porque há o direito ao grito;

e) Porque captou o espírito da língua;

f) Por motivo grave de força maior;

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g) De ouvido;

h) Sem mentir;

i) Por não ter nada a fazer no mundo;

j) Porque é um desesperado e está cansado;

l) Porque não suporta mais a rotina;

m) Para não morrer (porque mais vale um cachorro vivo).

O ESCRITOR E SUA OBRA:

Em um trecho do livro, Rodrigo traça todo o processo de criação de personagem e de narrativa. A partir daí, ela é o centro das atenções (Macabéa), num processo instigante de destruição, que pode ser assim resumido graficamente:

A Inspiração> A Gestação > O Parto> A Lenta Destruição > A Morte

TEMPO DECORRIDO: DOIS ANOS E MEIO

Macabéa desapareceu no "grito estertorado de uma gaivota", mas a necessidade do grito permanece, "pois morrer é insuficiente, não me completa, eu que tanto preciso." É um processo cruel o de dar vida, criar, para depois destruir. Todo o texto nada mais é que a redução do grito/Macabéa a nulidade de um cavalo morto. Talvez só neste momento Rodrigo ame sua personagem, ele que gosta de animais.

Na realidade, Macabéa cumpre o seu papel de levar Rodrigo a realidade afinal, a morte, mas ainda assim, prevalece o neurótico obstinado a procura do novo grito, da fantasia que recria a realidade idealizada onde ele encontra seu mundo a parte. Afinal.

"Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos."

CONCLUSAO: A COERÊNCIA DO GRITO

Rodrigo S.M. é uma personagem confessa, ao afirmar, sem falsa modéstia:

"A história - determino com falso livre arbítrio - vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes, é claro."

Em Clarice Lispector - Literatura Comentada, os autores dizem:

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"O narrador do romance é Rodrigo S.M., escritor que ironiza, através de contínuas instruções no texto, o estilo de narrativa que ele próprio utiliza. Coloca-se assim, pela frequência com que dialoga com o leitor sobre a construção da narrativa, como uma das personagens centrais do romance."

No mesmo livro, afirmam que vai sendo moldada a "imagem e solidão" de Rodrigo, que é um escritor moderno. Ao caracterizá-lo ao longo de um terço do livro, através dele próprio, Clarice Lispector primou pela coerência, fazendo-o fiel a realidade, tão fiel que o limite que o separa da realidade, e da autoria verdadeira do livro, é tão sutil que apenas o crédito na capa do livro pode livrar o leitor desavisado do engano.

Rodrigo se revela um escritor moderno num país terceiro-mundista, onde esta função é marginalizada triplamente:

- pela classe alta (que o considera um monstro esquisito);

- pela classe média (que desconfia dele)

- pela classe baixa (que nunca chega a ela).

Rodrigo não só é coerente como é consciente de seu papel como escritor, lutando contra a tensão entre suas veleidades e o seu meio, conforme citado por Antônio Cândido. Isso fica bem evidente na seguinte afirmação:

"...pois faz calor neste cubículo onde me tranquei e de onde tenho a veleidade de querer ver o mundo."

Como uma personagem que se caracteriza pelo fato de ser um escritor, ele atinge a verossimilhança aristotélica por dominar o processo criativo conscientemente (Inspiração, Preparação, Método, Motivo e Obra), evidenciando em seus conflitos aspectos humanos da vida de um escritor e de seu trabalho, confundindo-se com a realidade.

Forster talvez o classificasse como uma personagem redonda; Propp como um Agressor ou um Falso Herói, que se desmistifica, ao mesmo tempo em que desmistifica e destrói sua criação: Greimas poderia vê-lo como um sujeito/Escritor contra um Oponentes: sua própria criação.

Independente de classificação, Rodrigo continuaria existindo no não-existir, harmonizado com seu tempo (da obra), com a cultura de sua época (marginalização), integrado ao seu grupo social. De quebra, desmistificaria também a onisciência do narrador intruso, não pelo testemunho, mas por revelar a origem de sua onisciência: a criação a partir da subitensidade (um súbito olhar).

Ao denunciar o drama de Macabéa, cumpre seu papel social duplamente:

a) pela denúncia de condição de uma migrante e

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b) pela valorização do papel do escritor, atacando a marginalização.

Tudo isso sem perder, ao longo do texto, sua característica de "neurótico obstinado", conforme Freud, tentando refugiar-se numa fantasia que, fatalmente, num círculo-vicioso angustiante, termina sempre por devolvê-lo ao início da fuga, num processo continuo de "grito".

Ao ser caracterizado tão centrado em si mesmo. Rodrigo é um homem dos tempos modernos, buscando o entendimento do "ID", enquanto tenta a liberdade que o aprisiona cada vez mais em sua busca pela resposta. Sua descrença em Deus, no Próximo e na sua própria Natureza humana torna-o, tragicamente, o retrato cruel e real do homem moderno.

Na perda de contato com essa trilogia sustentadora, surge sua angústia por resposta, que o força a escrever em busca do encontro.

Para Rodrigo, Deus é:

- a última menção na sua dedicatória do livro;

- o mundo;

- o vosso Deus que nos mandou inventar;

- que aparece na distração;

- de quem pegar;

Sua descrença e falta de fé se resumem na ironia da afirmação:

"Sim, quem espera sempre alcança. É? "

E o próximo para ele?

"... eu e dou melhor com os bichos do que com gente."

Buscando a máxima liberdade de só escrever o que quer, ele vai de fracasso em fracasso, reduzindo-se a si mesmo, querendo encontrar o mundo e seu Deus, a flauta doce em que se enovelará em macio cipó.

E quem é afinal Rodrigo S.M.?

"A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique."

O vazio:

"Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar."

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O desconhecimento de si mesmo:

"Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido..."

A consciência:

"Também eu, de fracasso, me reduzi a mim mas pelo menos quero encontrar o mundo e seu Deus."

A angústia criadora:

"Ah que medo de começar..."

O Desespero:

"Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser..."

O resumo:

"Sim, é verdade, as vezes também penso que eu não sou seu..."

Enfim, o retrato do homem moderno, descrente, sem fé, sem confiança no próximo e em si mesmo. Por tudo isso, Rodrigo se confunde, finalmente, com a autora, Clarice Lispector, que:

- era escritora;

- fumava;

- tinha uma cozinheira;

- gostava de animais;

- era Solitária;

- não era lida/entendida (marginal);

- dizia: não sou nenhum bicho-papão, mas alguns a consideravam uma pessoas difícil;

Apenas essa identidade bastaria para fazer de Rodrigo S.M. uma instigante, coerente e bem elaborada personagem. Uma personagem tão sutil e solidamente construída que chega ao desplante de ironizar e marginalizar a própria criadora:

"... o que escrevo um outro escrevia. Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas."

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BIBLIOGRAFIA:

01) Antônio Cândido - "Literatura e Sociedade, Cia. En. Nacional, São Paulo, 1967.

02) Antônio Cândido e outros - "A personagem de Ficção", Perspectiva, São Paulo, 1987.

03) Beth Brait - "A Personagem", Ática, São Paulo, 1987.

04) Clarice Lispector - "A Hora da Estrela", Francisco Alves Editora, Rio de Janeiro, 1992.

05) Donaldo Schuller - "Teoria do Romance", Ática, São Paulo, 1989.

06) Lígia C. M. Leite - "O Foco Narrativo", Ática, São Paulo, 1989.

07) Massaud Moisés - "A Análise Literária", Cultura, Sao Paulo, 1977.

08) Nelly Novaes Coelho - "O ensino de Literatura", FTD, São Paulo, 1966.

09) René Wellek e Austin Warren - "Teoria de Literatura", Publicações Europa América, Lisboa, 1962.

10) Samira Youssef Campedelli e Benjamim Abdala Jr - "Clarice Lispector - Literatura Comentada", Abril, São Paulo, 1981.

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A VIAGEM DO GRIVO

"O Cara-de-Bronze" - Guimarães Rosa

Em seu brilhante artigo, "A Viagem do Grivo", Benedito Nunes disseca magistralmente as estruturas e interpreta a misteriosa viagem do Grivo, no conto "O Cara-de-Bronze", de Guimarães Rosa. Para o autor:

"A viagem apresenta-se em "Cara-de-Bronze" como Demanda da Palavra ou da Criação Poética."

Sua conclusão a respeito da viagem resume-se no seguinte parágrafo:

"Mas o único bem, finalmente alcançado em "Cara-de-Bronze" que o Grivo entrega, na volta, ao mandante do feito, é relato das coisas vistas e imaginadas durante o percurso: a viagem transformada em palavras, súmula da atividade poética, que abriu os espaços do sertão e os converteu na profissão do mundo natural e humano."

Que o relato da viagem, "a viagem dessa viagem", para o Cara-de-Bronze era importante, não restava a menos dúvida. Através dela pôde certificar-se de uma escolha e aprovar seu escolhido. O que Benedito Nunes não explora em seu artigo é o significado da viagem para Urubuquaquá e para o próprio Grivo, a personagem da viagem, aquele que empreendeu a "travessia", não apenas para atender seu patrão, mas para pôr-se à prova e demonstrar-se à altura da intenção do seu patrão: prepará-lo, submetendo-o a todo um ritual de iniciação para substituí-lo.

Acreditamos que, a par do objetivo de resgatar a palavra, a viagem do Grivo foi a prova final de sua preparação, a travessia, o bem complementar aos objetos dessa viagem, aquele que premia a atuação do viajante.

Segisberto Saturnino Jéia Velho, filho, não tinha filhos e, consequentemente, a quem deixar a fazenda. Era lógico que desejasse deixá-la a um homem de sua confiança, identificando com ele, capaz de perceber os "olhos gázeos" da noiva e o "labirinto da rede". Que conhecesse os Gerais e toda a sua aridez para valorizar o paraíso que era a Urubuquaquá.

Fugindo de uma tragédia familiar, o Cara-de-Bronze isolou-se na fazenda, tornou-se seu objetivo, seu castelo, seu feudo onde dispunha de toda uma corte, conforme Benedito Nunes bem analisa em seu artigo. Chegando, enfim, "nessa idosa idade", sem família, completamente sozinho, acometido de uma doença que o prendia no interior de seu quarto, consolando-se apenas com os versos do Cantador, a quem espicaçava batendo na parede, era lógico que se preocupasse com os destinos de sua fazenda, após sua morte.

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Como dispor dela? Vendendo-a? Para quê? Não precisaria de dinheiro. Seus laços com aquele paraíso eram muito estreitos. A quem destiná-la, senão a um escolhido que a preservasse? Um eleito entre os outros, preparado para a tarefa.

Metodicamente o Cara-de-Bronze iniciou sua tarefa: encontrar um substituto, antes que chegasse ao fim, conforme as palavras de um de seus vaqueiros:

"O vaqueiro Sacramento: Há de ser alguma coisa que o velho carecia, por demais, antes de morrer. Os dias dele estão no fim-a-fim..."

Antes que isso acontecesse:

"O vaqueiro Cicica: Se sabe que mandou vir o pessoal para o testamento."

A hipótese da venda surge, inclusive, entre os vaqueiros:

"O vaqueiro Doím: Por isso, que digo, ele vai vender o que tem, tudo."

"O vaqueiro Sacramento: Pode, por ele não ser daqui. Não tem amor. Terras em mão dele são perdidas..."

Mas comentam porque desconhecem o que se passa na casa a tudo que a envolve:

"O vaqueiro Adino: O que Cicica está falando, é por causa que ninguém não sabe de nenhuma razão."

O que se confirma, igualmente, na intervenção do narrador, quando resume os acontecimentos:

"Para os vaqueiros, aquilo que estava-se passando, tão encobertamente, não era maior que um acontecimento, não preenchia-os? Mas do que a curiosidade, era o mesmo não-entender que os animava..."

Após construir toda a sua fortuna e transformar a Urubuquaquá num paraíso, o Cara-de-Bronze estava à morte:

"Homem morgado de morte, com culpas em aberto, em malavento malaventurado, podendo dar beija-mão a seus quarenta vaqueiros, mas escolhendo um só para o remitir."

Haver construído tudo aquilo por nada deveria ser trágico. Poderia distribuí-la a seus vaqueiros, mas escolheu apenas um, aquele em quem se veria perdoado, porque seria preparado, iniciado, enriquecido em virtude para assumir o posto que logo se tornaria vago.

"Oé, o Cara-de-Bronze tinha uma gota-d’água dentro de seu coração. Achou o que tinha. Pensou. Quis. Mas isto são coisas deduzidas, ou adivinhadas, que ele não cedeu confidência a ninguém."

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A decisão fora tomada: "... isto é porque era signo de ser..."

Iniciou-se, então, o trabalho de seleção:

"Cara-de-Bronze começou, mas vagaroso, feito cobra pega seu ser do sol. Assim foi-se notando. Como que, vez em quando, ele chamava os vaqueiros, um a um, jogava o sujeito em assunto, tirava palavra."

Suas questões confundiam os vaqueiros. Ele queria a percepção máxima em seu eleito ou, como dizem os vaqueiros:

"O vaqueiro Pedro Francisco: eu acho que ele queria era ficar sabendo o tudo e o miúdo."

"O vaqueiro Tadeu: ... Queria era que se achasse para ele o quem das coisas!"

Inicialmente separou sete vaqueiros: Mainarte, Noró, José Uéua, O Grivo, Abel, Fidélis e Sãos. Noró foi descartado logo, "porque vivia sem cabeça"; em seguida, rejeitou Abel, Fidélis e Sãos, restando, portanto, Mainarte, José Uéua e o Grivo. A partir daí, a seleção tornou-se mais apurada, mais difícil para os vaqueiros:

"O Velho mandava. Tinham de ir, em redor, espiar a vista de lá-de-cima do morro e depois se afundar no sombrio de todo vão de grota, o que tem em toda beira de vertente, e lá em alta campina, onde o sol estrala; e quando o vento roda a chuva, quando a chuva fecha o campo."

O Velho escolheu, finalmente, o Grivo e apenas ele sabia o motivo da escolha. Para os demais, tudo eram conjecturas, cada qual com sua opinião. O que o patrão havia encontrado, afinal poderia ser a síntese de todas essas opiniões:

"O vaqueiro Mainarte: — Assim. O Velho gostou do Grivo. Por uma destas, como uma vez, que eles conversaram:

Cara-de-Bronze — A gente pode gostar de repente?

Grivo — Pode.

Cara-de-Bronze — Como-é-que? como que pode?

Grivo — É no segundo dum minuto que a paineira-branca se enfolha..."

O vaqueiro Calixto. — Aprendeu porque já sabia em si, de certo. Amadureceu..."

O vaqueiro Pedro Francisco. — O Grivo era de boa inclinação, sem raposia nenhuma. Nunca foi embusteiro.

O vaqueiro Abel. — O Grivo, ele era rico de muitos sofrimentos sofridos passados, uai."

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Feita a escolha, o Grivo recebeu a missão. A missão de ir e contar, mas ao mesmo tempo, de efetuar a travessia, a preparação final para "remitir" o patrão. Essa tarefa apenas poderia ser realizada por alguém escolhido por suas virtudes, preparado.

O próprio Grivo conta o início de sua viagem:

"Saí dezembro-janeiro-fevereiro, quando o coco do buriti madura em toda a parte. Assim em ínvios de inverno, os rios sobressenchendo."

Ao narrar sua viagem aos demais, o Grivo o faz parcialmente. Há segredos que não estão ao alcance dos demais. Há um objetivo que apenas a ele e ao patrão interessa. O Grivo não pode abrir-se, não pode expor seu longo e penoso aprendizado de dois anos, deixando o Urubuquaquá, terra de fartura, o paraíso, para conhecer o sertão "onde não tem buriti". Apenas conhecendo o mundo lá fora ele poderia entender o real valor da Urubuquaquá. Esta nos parece a lição maior que tiraria da viagem, pois "todo buriti é uma esperança".

Em sua volta, os vaqueiros o pressionam. Querem saber da viagem. Querem saber como foi o começo, como eram os pássaros, as árvores, se sentiu saudades, como era o luar, o sol, a poeira, os bichos, o frio, o vento, tudo. Como um Grivo, ser mitológico que na tradição cristã representa o próprio Cristo, o Grivo imita a santidade, respondendo por parábolas. Mostra que aprendeu e sofreu. Descobriu a vida (A vida é boba. Depois é ruim. Depois cansa. Depois, se vadia. Depois a gente quer uma coisa que viu. Tem medo. Tem raiva de outro. Depois cansa. Depois a vida não é de verdade... Sendo que é formosa!). Pensou em desistir, mas não podia voltar atrás (Por causa que quando o Velho manda, ordena. Por causa que o Velho começa sempre é fazendo com a gente sociedade...).

O Grivo não cumpria ordens. A ideia da viagem estava delineada em sua mente e ele compartilhava dela. Não era um reles pau-mandado. Era alguém que estava solidário com o objetivo, aceitando-o em sociedade.

Conheceu pessoas, conheceu a terra e os Gerais. Penetrou nos mistérios da cultura popular, levando seu Anjo-da-Guarda "a pé, de banda-da-mão-direita" e o saci na garupa. Religião e mitos foram suas companhias. Presenciou a miséria e foi tentado pela prostituta Nhorinhá. Não estava apenas a serviço. Bebia a sua viagem.

Ao contá-la, o Grivo deixa seus amigos cheios de curiosidade. Querem saber se se casou. Ele nega. Não era esse o objetivo da viagem. Suas "parábolas" semeiam a confusão.

"O vaqueiro Sãos: de cães para cachorro, diacho de tanto bobo segredo. Isso é que me invoca."

"O vaqueiro Cicica: Que casou, ou não, isso logo se sabe. Mas, o que será, nessa viagem, à razão de feitiço, que ele foi buscar, para o Cara-de-Bronze?"

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E os vaqueiros, que antes imaginavam a venda da Urubuquaquá, agora já têm outros pensamentos:

"O vaqueiro Doím: sorte é a desse Grivo, que vai ganhar... No gratidão... No bem me lambe..."

"O vaqueiro Cicica: Os homens do testamento estão por chegar. O Grivo melhorou de sombra."

"O vaqueiro Sãos: Figuro que. Heranças, no corpo de uma escritura."

A viagem do Grivo chegou ao fim. Ele estava preparado para "remitir" o patrão e assumir seu posto, não porque tivesse feito a viagem, mas porque dele tirara o proveito desejado pelo Velho.

O Grivo já não era o mesmo vaqueiro "humildezinho de caminho, caxêxo... Feio feito peruzinho saído do ovo..." Seus amigos perceberam a mudança.

"O vaqueiro Fidélis: Homem, não sei, o Grivo voltou demudado."

"O vaqueiro Parão: Aprendeu o sõe de segredo. Já sabe calar a boca..."

"O vaqueiro Sacramento: Aprendeu a fechar os olhos..."

"O vaqueiro Tadeus: Sabe não ter medo."

"O vaqueiro Mainartes: Como pessoa que tivesse morrido de certo modo e tornado a viver..."

As palavras do vaqueiro Mainarte resumem a viagem de iniciação do Grivo: ele renascera. Somente assim poderia "remitir" o patrão:

"GRIVO: ... Ele, O Velho, disse, acendido: — Eu queria alguém que me abençoasse..." — ele disse. Aí, meu coração tomou tamanho."

Então o Cara-de-Bronze chorou, de alegria, redimindo e abençoando pelo discípulo habilitado a continuar fazendo da Urubuquaquá "Este mundo, que desmede os recantos."

Todo esse ritual de iniciação do Grivo encontra-se implícito na simbologia que permeia o conto. Benedito Nunes soube captar muito bem o mito da viagem, como demanda. Sem perder de vista esta noção, vale lembra que as viagens são encaradas como uma série de provas preparatórias e iniciáticas. Há referências sobre elas na Grécia, na maçonaria e nas sociedades secretas. O que o Grivo vai buscar é a Branca-de-todas-as-cores. O branco, soma de todas as cores do espectrógrafo, é também a cor (candidus) do candidato, daquele que vai mudar de condição. Ao retornar, o Grivo está "demudado", como quem "tivesse morrido de certo modo e tornado a viver..." O cristianismo e as sociedades secretas exploram muito bem essa condição de "morte para nascer

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para a vida eterna", aquela morte que representa o fim aos olhos do mundo, enquanto superação da condição profana.

Para perdoar e abençoar seu patrão, o Grivo teria de alcançar essa iniciação mítico-religiosa, superando o profano, atingindo o espiritual. É isto que acontece, pois ele aprende "a fechar os olhos" ao profano e "calar a boca". Isto é bastante significativo, quando nos reportamos ao simbolismo desse ato. Nas sociedades iniciáticas, fechar a boca simboliza a obrigação de respeitar rigorosamente os segredos. Detalhe levado a sério na Maçonaria, por exemplo.

Não é isto que o Grivo fez?

"Narrará o Grivo só por metades? Tem ele de pôr a juros o segredo dos lugares, de certas coisas? Guarda consigo o segredo seu; tem. Carece."

Ao que ele confirma:

"GRIVO: Fui e voltei. Alguma coisa mais eu disse?! Estou aqui. (...) Falei sozinho, com o Velho, com Segisberto. Palavras de voz. Palavras muito trazidas. De agora, tudo sossegou. Tudo estava em ordem..."

Concluindo, ao fixar a demanda da palavra como objetivo de viagem do Grivo, Benedito Nunes atingiu apenas parte desse mesmo objetivo. Toda ela, a viagem, foi também o clímax do ritual de preparação e iniciação do Grivo para a perpetuação da Urubuquaquá. O Cara-de-Bronze demonstra todo o seu amor àquelas terras, tão diferentes dos Gerais que a cercam, escolhendo e preparando alguém para substituí-lo. O Grivo foi o escolhido. A viagem foi sua travessia da condição de neófito para a de iniciado, capaz de manter os segredos daquela terra mágica e mística, inserida na desolação dos Gerais.

O Grivo passou pelo CRIVO!

Bibliografia:

Nunes, Benedito. A Rosa o que é de Rosa" - Org. Victor Sales Pinheiro, Difel,

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Sobre o autor

http://www.acasadomagodasletras.net/mago.htm