A iconicidade e arbitrariedade na Libras - VANESSA.pdf
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A ICONICIDADE E ARBITRARIEDADE NA LIBRAS
Vanessa Gomes Teixeira (UERJ)
RESUMO
Lngua um sistema de signos constitudo arbitrariamente por convenes sociais,
que possibilita a comunicao entre os indivduos. Alm disso, ela constituda por
meio da cultura de uma sociedade, que tambm auxilia na construo da identidade
desses indivduos. No caso da lngua de sinais brasileira (libras), essa no ser apenas
a lngua natural da comunidade surda, como tambm ir refletir as singularidades do
mundo surdo, onde ser surdo fazer parte de uma realidade visual e desenvolver sua
experincia na lngua de sinais. No entanto, mesmo sendo a sua lngua materna, a
libras s teve seu status lingustico oficializado em 2002 e, at os dias de hoje, ainda
sofre preconceito por parte de alguns estudiosos, que reduzem essa lngua a simples
gestos aleatrios ou a comparam com a mmica. Levando em conta essas considera-
es, o presente trabalho visa abordar questes ligadas descrio da libras, pesqui-
sando de que forma o conceito de iconicidade de Peirce e os conceitos de arbitrarieda-
de de Saussure esto presentes nessa lngua. A partir da anlise do tema em questo e
da pesquisa sobre a iconicidade e arbitrariedade na libras, esperamos que, alm da
descrio da lngua brasileira de sinais, sejam discutidas questes que desconstruam
preconceitos em relao lngua.
Palavras-chave: Iconicidade. Arbitrariedade. Signos. Libras. Sinais.
1. Introduo
Lngua um sistema de signos constitudo arbitrariamente por
convenes sociais, que possibilita a comunicao entre os indivduos.
Alm disso, ela constituda por meio da cultura de uma sociedade, que
tambm auxilia na construo da identidade desses indivduos.
No caso da lngua de sinais brasileira (libras), essa no ser ape-
nas a lngua natural da comunidade surda, como tambm ir refletir as
singularidades do mundo surdo, onde ser surdo fazer parte de uma
realidade visual e desenvolver sua experincia na lngua de sinais.
No entanto, mesmo sendo a sua lngua materna, a libras s teve
seu status lingustico oficializado em 2002 e, at os dias de hoje, ainda
sofre preconceito por parte de alguns estudiosos, que reduzem essa ln-
gua a simples gestos aleatrios ou a comparam com a mmica.
Levando em conta essas consideraes, o presente trabalho visa
abordar questes ligadas descrio da libras, pesquisando de que forma
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o conceito de iconicidade de Peirce e os conceitos de arbitrariedade de
Saussure esto presentes nessa lngua.
2. A iconicidade na libras
A ideia de iconicidade estudada pela pesquisa semitica de
Charles Sanders Peirce (1999), filsofo norte-americano contemporneo
de Saussure. Para Peirce (1999), em Semitica, o signo uma ideia e o
mundo onde vivemos est rodeado deles. Como explica o filsofo:
[...] para que algo possa ser um Signo (expresso ou representamen), esse algo
deve representar, [...] alguma outra coisa, chamada seu Objeto, apesar de ser talvez arbitrria a condio segundo a qual um Signo deve ser algo distinto de seu objeto. (PEIRCE, 1999, p. 47)
Antes de falarmos sobre iconicidade, importante diferenciarmos
trs conceitos de sua teoria: o smbolo, o ndice e o cone. Segundo Mar-
telotta (2011) em Manual de Lingustica:
O smbolo, de acordo com Peirce, refere-se a determinado objeto, repre-
sentando-o, com base em uma lei, hbito ou conveno, estabelecendo uma re-
lao entre dois elementos. Para citar alguns exemplos, a cruz o smbolo do cristianismo, e a balana, o smbolo da justia. Uma caracterstica importante
do smbolo relaciona-se ao fato de que ele parcialmente motivado, ou seja,
h entre o smbolo e o contedo simbolizado alguns traos relacionados.
H uma diferena fundamental entre o smbolo, de um lado, e o ndice e o
cone, de outro, j que nesses dois ltimos h um nvel ainda menor de arbitra-
riedade. No caso do ndice, ocorre uma relao de contiguidade com a realida-de exterior: a fumaa, por exemplo, o ndice do fogo, e a presena de nuvens
negras, o ndice de chuva iminente.
O cone, por sua vez, tem uma natureza imagstica, apresentando, portan-to, propriedades que se assemelham ao objeto a que se refere. A fotografia de
um indivduo, por exemplo, uma representao icnica desse indivduo, as-
sim como o mapa do Rio de Janeiro representa a cidade. Assim, um cone qualquer coisa que seja utilizada para designar algo que lhe seja semelhante
em algum aspecto. (MARTELOTTA, 2011, p. 73)
Dessa forma, a iconicidade ser as caractersticas semelhantes que
o cone tem em comum com o objeto que representa. Por ser uma lngua
de modalidade vsuo-espacial, a iconicidade est presente em grande
parte dos sinais da libras, pois a relao entre a forma e o sentido mais visvel. Helosa Maria M. L. Salles (2004), em Ensino de lngua
portuguesa para surdos: caminhos para a prtica pedaggica, comenta:
Um aspecto que se sobressai no contraste entre as modalidades vsuo-
-espacial e oral-auditiva a questo da arbitrariedade do signo lingstico. Es-
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se conceito estabelece que, na constituio do signo lingustico, a relao entre o significante (imagem acstica/fnica) e o significado arbitrria, isto , no
existe nada na forma do significante que seja motivado pelas propriedades da
substncia do contedo (significado). Uma caracterstica das lnguas de sinais que, diferentemente das lnguas orais, muitos sinais tm forte motivao
icnica. No difcil supor que esse contraste se explique pela natureza do ca-
nal perceptual: na modalidade vsuo-espacial, a articulao das unidades da substncia gestual (significante) permite a representao icnica de traos se-
mnticos do referente (significado), o que explica que muitos sinais reprodu-
zam imagens do referente; na modalidade oral-auditiva, a articulao das uni-
dades da substncia sonora (significante) produz sequncias que em nada evo-
cam os traos semnticos do referente (significado), o que explica o carter
imotivado ou arbitrrio do signo lingustico nas lnguas orais. (SALLES, 2004, p. 83)
Dois exemplos que podemos destacar na libras so os sinais r-vore e cadeira, constitudos a partir de caractersticas da imagem dos objetos aos quais se referem. Enquanto o primeiro lembra a imagem do
tronco e das folhas de uma rvore, o segundo lembra as pernas de uma
pessoa, representadas pelos dedos indicador e mdio, sentada no objeto
em questo.
Fig. 1. Fonte: SALLES, 2004, p. 88-92
Alm de ocorrer nos substantivos, a iconicidade tambm acontece
em alguns verbos na libras, porm ela se manifesta de modo diferente.
H alguns verbos que variam de acordo com o sujeito que sofre a ao,
como, por exemplo, o verbo cair. Se o sujeito for uma pessoa, a confi-gurao de mo ser os dedos indicador e mdio em p, representando a
imagem das pernas do indivduo em p, e o movimento da queda ser
feito a partir do deslize desses dois dedos pela palma da mo, represen-
tando a queda de um ser humano. No entanto, se o sujeito for um objeto,
como uma folha de papel, a configurao de mo ser o sinal de papel e o ato de cair se relacionar com o movimento que esse objeto faz em
direo ao cho. Logo, o verbo cair tem natureza icnica, pois sua
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constituio influenciada pelo modo como o sujeito ao qual ele se refe-
re se comporta.
Fig. 2. Fonte: SALLES, 2004, p. 93.
No entanto, apesar da iconicidade estar mais presente na lngua de
sinais, no podemos considerar essa uma caracterstica exclusiva das
lnguas vsuo-espaciais, pois, nas lnguas orais auditivas, ela tambm est
presente, como o caso das onomatopias1. Alm disso, no podemos
afirmar que a libras uma lngua exclusivamente icnica, pois, como nos
mostra Gesser (2009 apud SAUSSURE, 1916):
[...] mesmo os sinais mais icnicos tendem a se diferenciar de uma lngua de si-
nais para outra, o que nos remete ao fato de a lngua ser um fenmeno conven-cional mantido por um acordo coletivo tcito entre os falantes de uma deter-minada comunidade. (GESSER, 2009, p. 24 apud SAUSSURE, 1916)
3. A arbitrariedade na libras
Na viso saussuriana, uma unidade lingustica, chamada tambm
de signo, formada de duas partes: um conceito, que ele chamar de
significado, e uma imagem acstica2, que ser denominada de signifi-
1 De acordo com Gesser (2009) Podemos verificar [a iconicidade] no clssico exemplo das onoma-topias como pingue-pongue, ziguezague, tique-taque, zum-zum cujas formas representam, de acordo com cada lngua, o significado. (GESSER, 2009, p. 24)
2 Em relao ideia de imagem acstica, importante lembrar que esse conceito no se relaciona com o som material, pois, como explica Saussure (1916), esta no o som material, coisa pura-mente fsica, mas a impresso psquica desse som, a impresso que dele nos d o testemunho de nossos sentidos; tal imagem sensorial e, se chegamos a cham-la material, somente neste sentido, e por oposio ao outro termo da associao, o conceito, geralmente mais abstrato. (SAU-SSURE, 1916, p. 80)
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cante. Alm disso, para o linguista, a relao entre essas duas partes arbitrria3. Como ele explica:
Assim, a ideia de mar no est ligada por relao alguma interior se-qncia de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada
igualmente bem por outra sequncia, no importa a qual; como prova, temos as diferenas entre as lnguas e a prpria existncia de lnguas diferentes.
(SAUSSURE, 1916, p. 80)
Logo, a ideia de arbitrariedade da lngua se relaciona com a ideia
de conveno: enquanto a palavra cadeira icnica na lngua de sinais, na lngua portuguesa, por exemplo, ela arbitrria, pois s recebe esse
nome devido a uma conveno que estabelece esse conceito e no porque
h uma relao entre o som da palavra e o objeto que ela designa.
No caso da libras, alguns exemplos que podemos citar so os si-
nais do substantivo biscoito e pessoa e do verbo desculpar. Dife-rente dos exemplos acima, os sinais abaixo no tm seus constituintes
influenciados pela imagem dos objetos aos quais eles se referem. Eles
mostram que, mesmo a libras sendo uma lngua de forte motivao ic-
nica, alguns dos seus sinais so arbitrrios.
Fig. 3. Fonte: SALLES, 2004, p. 87-88
Outros exemplos que tambm podem ser citados so alguns ver-
bos, como ter e querer. Nesses casos, seus sentidos foram estabeleci-dos a partir de conceitos convencionais criados e no porque seus signifi-
cantes nos do pistas ou tm alguma relao direta com seus sentidos.
3 Segundo Saussure, a palavra arbitrrio no deve dar a ideia de que o significado dependa da livre escolha do que fala (ver-se-, mais adiante, que no est ao alcance do indivduo trocar coisa alguma num signo, uma vez que esteja ele estabelecido num grupo lingstico); queremos dizer que o significante imotivado, isto , arbitrrio em relao ao significado, com o qual no tem nenhum lao natural na realidade.
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Fig. 4. Fonte: TEIXEIRA & LEITO, 2013, p. 93
4. Consideraes finais
O presente trabalho teve como objetivo trabalhar questes relacio-
nadas a iconicidade e arbitrariedade na libras, conceitos propostos por
Peirce e Saussure, respectivamente. A partir da anlise do tema em ques-
to, alm da descrio da lngua brasileira de sinais, foram discutidas
questes que justificam o status lingustico da libras e desconstroem
preconceitos em relao lngua.
Apesar de inmeras lutas e sculos de opresso, podemos observar
progressos significativos no que diz respeito comunidade surda, como a
oficializao da libras, o direito do surdo de ter um intrprete nas insti-
tuies educacionais, a obrigatoriedade da incluso do ensino de libras
nas reas de licenciatura no ensino superior para surdos etc. No entanto,
para que a libras seja realmente reconhecida como lngua, necessrio,
alm da implementao de polticas pblicas, estudos que descrevam
suas singularidades e que desconstruam esteretipos equivocados.
Eliminar o preconceito e reducionismos da sociedade um cami-
nho difcil, mas mudar a perspectiva e o olhar que temos em relao
comunidade surda um fator fundamental para que haja a real incluso.
Alm disso, so necessrias modificaes de modo que as especificida-
des da comunidade surda sejam atendidas e, principalmente, sua singula-
ridade lingustica respeitada. preciso que seja desenvolvida uma viso
crtica em relao ao contexto social atual, direcionando o olhar para os
surdos e criando a conscincia de que essa comunidade composta por
integrantes ativos em nossa sociedade.
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