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606 A IGUALDADE FORMAL E A DESIGUALDADE MATERIAL DO NEGRO NO BRASIL THE FORMAL EQUALITY AND THE MATERIAL INAQUALITY OF THE BLACK IN BRAZIL Alex Ferreira Batista Rodolfo Grellet Teixeira da Costa RESUMO Com o presente trabalho pretendemos colocar a realidade jurídica da desigualdade racial existente no país, expondo a partir de uma análise das primeiras Leis promulgadas no Brasil Colônia, onde existia o negro escravo, bem como quais eram o real intento do legislador nessa época. Traremos para uma análise, as conseqüências desses atos legislativos para a sociedade naquela época e principalmente os reflexos negativos projetados para nossos dias. Abordaremos ainda a ineficácia das Leis que protegem a desigualdade racial e procuraremos identificar a razão pelo qual essas Leis são ineficazes, partindo da premissa de que as leis deveriam regular as relações entre as pessoas. PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS CHAVE: NEGRO, ESCRAVIDÃO, FORMALIZAÇÃO, DESIGUALDADE RACIAL. ABSTRACT This paper intends to show the justice reality of the racial differences exist in this country, exposing from an analysis of the first Laws in the Brazilian colonial period with the black man slave and the legislator‘s real intention at that time. The consequences of those legislative acts toward that society as well the negative reflexes to our present days were analyzed. The ineffectiveness of the laws that protect the racial differences and the reason why they are ineffective were exposed. KEYWORDS: KEY-WORDS: BLACK MAN, SLAVERY, FORMALIZE, RACIAL DIFFERENCES Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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A IGUALDADE FORMAL E A DESIGUALDADE MATERIAL DO NEGRO NO BRASIL

THE FORMAL EQUALITY AND THE MATERIAL INAQUALITY OF THE BLACK IN BRAZIL

Alex Ferreira Batista Rodolfo Grellet Teixeira da Costa

RESUMO

Com o presente trabalho pretendemos colocar a realidade jurídica da desigualdade racial existente no país, expondo a partir de uma análise das primeiras Leis promulgadas no Brasil Colônia, onde existia o negro escravo, bem como quais eram o real intento do legislador nessa época. Traremos para uma análise, as conseqüências desses atos legislativos para a sociedade naquela época e principalmente os reflexos negativos projetados para nossos dias. Abordaremos ainda a ineficácia das Leis que protegem a desigualdade racial e procuraremos identificar a razão pelo qual essas Leis são ineficazes, partindo da premissa de que as leis deveriam regular as relações entre as pessoas.

PALAVRAS-CHAVES: PALAVRAS – CHAVE: NEGRO, ESCRAVIDÃO, FORMALIZAÇÃO, DESIGUALDADE RACIAL.

ABSTRACT

This paper intends to show the justice reality of the racial differences exist in this country, exposing from an analysis of the first Laws in the Brazilian colonial period with the black man slave and the legislator‘s real intention at that time. The consequences of those legislative acts toward that society as well the negative reflexes to our present days were analyzed. The ineffectiveness of the laws that protect the racial differences and the reason why they are ineffective were exposed.

KEYWORDS: KEY-WORDS: BLACK MAN, SLAVERY, FORMALIZE, RACIAL DIFFERENCES

Trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.

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1. INTRODUÇÃO

A chegada dos Portugueses no Brasil trás consigo a implantação de mão-de-obra escrava, pois no período em que os portugueses se dedicaram ao extrativismo perceberam que a mão de obra seria muito cara, com a necessidade de garantir seus direitos sobre a colônia, ameaçada pelos franceses, cada vez mais presentes nesses trópicos, o Rei de Portugal a partir da terceira década do século XVI, convence-se de que é preciso efetivar a ocupação no território. Porém realizar esse trabalho não seria fácil, pois não havia ninguém interessado seriamente pelas terras; menos ainda para habitá-las. E para atingir seus objetivos não tendo outra opção senão a de tornar o mais atrativo possível aos olhos de ambiciosos aventureiros na árdua tarefa de colonizar o Brasil, ofereceu então nada menos do que a partilha da soberania: os que aceitaram os desígnios reais adquiriram soberania sobre as Capitanias Hereditárias.

Iniciando assim o efetivo projeto extrativista e de uma colonização sem braços dispostos a enfrentar desafios de povoar produtivamente a terra e desenvolver a colônia, os europeus recorrem à escravidão primeiramente do nativo que se tornava cada vez mais revolto sendo fácil à fuga devido o conhecimento das matas e sem desprezar a não submissão do caráter indígena; depois dessa frustração, os portugueses recorreram aos corpos africanos trazidos como escravos da África para o Brasil.

Os portugueses que comercializavam escravos bateram o recorde de tráfico, conforme registros do Historiador Décio de Freitas (3ª edição, 1991, p. 24) esses navegadores trouxeram para o Brasil quarenta por cento dos nove milhões e quinhentos mil negros que foram importados da África para as Américas; tirando muita vantagem dessa atividade em função de trazerem diretamente da África, sem passar por Lisboa garantindo-lhes assim uma ótima rentabilidade.

2. EVOLUÇÃO FORMAL VICIADA

No entanto, podemos verificar que as manobras políticas realizadas no período do Brasil Colônia foram extremamente maléficas aos escravos, ou seja, enquanto se avançava nas conquistas formais pela abolição por meio das leis e tratados que eram editados e firmados, retroagíamos nas conquistas materiais, significando dizer que quanto mais Leis eram promulgadas, mas longe da liberdade ficavam os escravos.

A Independência política do Brasil não teve para os escravos o menor significado. Neste período político delicado em que o Brasil se desligou politicamente de Portugal deixando de ser colônia, não foi cogitada em nenhum momento a abolição da escravatura, só existia um receio da classe dominante, uma revolução escrava. O domínio político brasileiro foi obra exclusiva da classe dos senhores-de-escravos, que a dirigiu em proveito próprio. Mas na verdade, quando a independência se declarou como uma irreversível necessidade histórica, temos que admitir que não havia no Brasil uma outra classe apta a realizá-la senão os senhores de escravos. O maior desafio desta classe consistia em fazer a revolução anticolonial sem parecer que se tratava de uma revolução social.

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Podemos considerar que o Brasil teve a independência mais tranqüila do que todos as outras colônias do novo mundo. Os políticos dispensaram muita atenção para que o movimento abolicionista não se beneficiasse da agitação referente à independência. Pois neste período havia um grande fortalecimento dos conglomerados de negros fugitivos, que instigavam as fugas em massa dos escravos das senzalas em direção aos grandes centros de produção agrícola e harmonia social dos negros denominados de Quilombos. Já havia também nessa época alguns escravos alforriados, essa pequena minoria de negros recebiam um certo apoio e prestígio desses políticos que os tornavam capitães do mato, feitores e outros cargos de nenhum prestígio para os brancos, mas de grande valor para alguns negros, e isso tinha uma razão:

[...] se o curso dos acontecimentos, a imprevidência dos partidos ou a imprudência dos governantes, provocarem um dia uma revolta de escravos, só será possível dominá-los mediante o apoio da população livre de homens negros. É por conseguinte muito importante ligá-los, definitivamente, aos brancos, por um interesse comum. (Décio de Freitas, 3ª edição, 1991, p. 55).

A independência feita por esta forma teve, no entanto um cunho contraditório, na verdade, trágico. A independência não se interessou pelos escravos e os escravos não se interessaram por ela. Se os senhores não podiam admitir a emancipação dos escravos, os escravos por sua vez não podiam se comover e promover a emancipação política. A independência foi igualmente madrasta para os libertos, como por exemplo: permaneceu em vigor a disposição das ordenações que permitia ao antigo senhor revogar a alforria por ingratidão. Tudo era justa causa de revogação, pode se dizer que se tratava de uma verdadeira rede em que o liberto podia facilmente cair e ser arrastado impiedosamente de volta à escravidão bastava uma simples injúria verbal contra o antigo senhor, se não fosse em sua presença chamava-se isso “ingratidão verbal em ausência”, conhecem-se inúmeras escrituras de revogação de alforria.

A partir de 1829 houve uma pressão muito forte por parte dos Ingleses em prol da

Abolição da escravidão, pressão essa com interesse próprio, dividido por duas idéias, a Profª Emília Viotti da Costa no seu livro “Da Senzala à Colônia”, diz que o interesse da Inglaterra estava centrado em acabar com a mão de obra escrava em função da revolução industrial, ou seja, estavam na busca de um mercado consumista, a mão de obra escrava não tem rendimentos para consumir os produtos industrializados agora em série pelas “modernas” máquinas que vinham sendo inventadas. Já o Profº Décio de Freitas em seu livro “Escravismo Brasileiro”, defende a idéia de que os Ingleses precisavam de mão de obra em suas áreas conquistadas nas Antilhas, residindo ai a razão de tantas apreensões de navios negreiros nas costas das Américas, segundo este raciocínio, os ingleses na verdade se apropriavam dos navios negreiros levando-os para as Antilhas sem custo. Há ainda o entendimento de alguns historiadores de que a pressão da Inglaterra se deu principalmente pelo fato de que a mão-de-obra escrava, não dava grandes produções, e o Brasil era um dos principais fornecedores de matéria-prima para as indústrias inglesas.

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O processo de desescravização teve início com a pressão estrangeira, e foi imposta de maneira covarde pelos estrangeiros, principalmente pela Inglaterra que condicionava o reconhecimento da Independência do Brasil à cessação total do tráfico. Por se tratar da nação mais poderosa da terra naquela época visto que se estava em meio a um período marcante da história conhecido por “Revolução Industrial”, a 23 de Novembro de 1826, o imperador D. Pedro I assina um tratado entre o Império e a Inglaterra, pelo qual esse se comprometia a restringir o tráfico e a suprimi-lo em Março de 1830. Em 7 de Novembro de 1831 foi ele interdito, significando dizer, que o Império a partir daquela data trataria o Tráfico de escravos como pirataria, significando que o Brasil não daria autorização para os Navios negreiros descarregar nos portos brasileiros os escravos ao mesmo tempo em que se consideravam libertos os negros que, a partir de então, entrassem no país. Houve é claro uma tremenda confusão em face disso, muitos alegavam que o Imperador estava se tornando abolicionista, foi quando o imperador disse essa frase que não entrou para a história, “Assinarei nem que me custe a coroa”, após as ratificações em 13 de Março de 1827 começa o declínio do imperador, o tratado da abolição do tráfico, à deserção de D. Pedro do partido patriota, contribuiu seriamente para a queda do fundador da nação brasileira, que fora devidamente advertido por José Bonifácio que figurava como uma espécie de embaixador do Império junto a Inglaterra. Em abril de 1831 foi forçado a abdicar, iniciando o período da regência, e em 7 de novembro de 1831 foi promulgada a Lei que proibia a importação de escravos. Mas não se ouviu falar de nenhuma ação de punição ao constante desrespeito a essa lei, pois nessa época, as fazendas de café se multiplicavam, necessitando cada vez mais de mão de obra, desenvolvida apenas pelos negros. A lei permaneceu letra morta.

Desde 1811, a Inglaterra empreendia esforços tenazes contra o comércio negreiro, que ficou considerado como pirataria, ou seja, surgiu em conseqüência dessas providências a categoria dos chamados “negros de contrabando”. Dessa forma o cerco se apertava em torno dos traficantes luso-brasileiros. A França e outros países europeus se preparavam nessa altura para seguir o exemplo da Inglaterra. Em 1818, o rei da França concluiu a obra liberal que decretou de uma vez a abolição do tráfico dos negros na África. Como resultado dessas pressões a Espanha, então segundo maior importador de negros do continente assumiu o compromisso de abolir o tráfico em 1820. Diante disso o conde de Palmela, principal negociador diplomático de Portugal, assinalou, em correspondência a João VI, o crescente isolamento do escravismo luso-brasileiro:

O governo britânico não cessará de empregar todos os meios que estiverem ao seu alcance, sem excluir mesmo os da violência... somos já agora os únicos que nos achamos em campo para sustentar a continuação do tráfico da escravatura além do ano de 1820... o Brasil é já agora o único país do mundo para onde se levam, sem ser por contrabando, novos escravos... em todo o resto da América se acha esse tráfico abolido. (Décio de Freitas, 3ª edição, 1991, p. 79).

Em conseqüência dessa resolução e de outras que se sucederam, embora a Inglaterra tivesse sido o país que com mais intensidade praticou o tráfico negro, os traficantes tinham nas costas do Brasil um ótimo mercado para a carne humana.

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A Lei Aberdeen, que o Parlamento britânico votou em 1845, colocava os navios brasileiros que faziam o comércio de escravos sob jurisdição inglesa, determinando a sua perseguição até em águas brasileiras. Os escravocratas diziam que era derrogatória a honra, interesse, dignidade, independência e soberania brasileira a pressão feita pela Inglaterra o que importava um abuso de força.

Sobre essa providência do governo inglês, escreveu Joaquim Nabuco que só por um motivo essa lei Aberdeen não foi um título de honra para a Inglaterra. Como se disse por diversas vezes no Parlamento Inglês, “a Inglaterra fez com uma nação fraca o que não faria com uma nação forte”. Contra a humilhação moral dessa intervenção, o Brasil não podia alegar nenhum motivo que atraísse as simpatias do mundo civilizado. A Inglaterra estava com os trunfos nas mãos, embora fosse ditada mais “para proteger os produtos de suas colônias que por humanitarismo”. (Nabuco, 2000, p. 65).

Ninguém se declarava a favor do tráfico de negros, pelo contrário, todos protestavam a favor da extinção de tal prática. Mas diziam que a supressão não poderia ser feita bruscamente. José Bonifácio justificou perante os ingleses a impossibilidade de tomar medidas decisivas sem aprovação da assembléia constituinte. O que equivaleria a não tomar medida alguma, pois a assembléia constituinte era composta exclusivamente de senhores-de-escravos. O próprio José Bonifácio era um senhor-de-escravos, e ao mesmo tempo em que se manifestava contra o tráfico nada fez de efetivo para aboli-lo durante os seis meses de funcionamento da Constituinte, quer nos dois primeiros meses, como ministro, quer nos subseqüentes, como oposicionista. O patriarca da Independência sequer colocou a questão em debate. José Bonifácio só entrou para a lista dos “abolicionistas” em face ao seu posicionamento durante seu exílio na França, por meio de uma publicação na qual em quarenta páginas, condenava com veemência a prática de compra e venda de carne humana e dizia que, com a extinção da escravatura, os brasileiros livrariam suas famílias de exemplos domésticos de corrupção e tirania.

O Abolicionista Euzébio de Queiroz ocupou em 29 de setembro de 1843 a Pasta da Justiça, é nesse posto que ele conquista o seu maior título de glória, vinculando-se à luta contra a escravidão, é neste período que ele cria e leva a votação a lei de nº 581 de 4 de setembro de 1850. Esta lei ficou conhecida como a lei “Eusébio de Queiros” e estabelece medidas para a repressão do tráfico de africanos no Império. Porém esta lei só vem para regulamentar a ineficácia do Tratado que integrou o ordenamento jurídico brasileiro desde de 7 de novembro de 1831, data que foi assinada pelo Imperador do Brasil. Confirmamos esta informação transcrevendo na íntegra o artigo primeiro da Lei nº 581 de 1850, conforme segue:

Art. 1º - As embarcações brasileiras encontradas em qualquer parte, e as estrangeiras encontradas nos portos, enseadas, ancoradouros, ou mares territoriaes do Brasil, tendo a seu bordo escravos, cuja importação he prohibida pela Lei de sete de Novembro de mil oitocentos trinta e hum, ou havendo-os desembarcado, serão apprehendidas pelas Autoridades, ou pelos Navios de guerra brasileiros e consideradas importadoras de escravos.

Aquellas que não tiverem escravos a bordo, nem os houverem proximamente desembarcado, porêm que se encontrarem com os signaes de se empregarem no trafico de escravos, serão igualmente apprehendidas, e consideradas em tentativa de importação de escravos.

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Conforme o disposto nesta Lei o próprio Euzébio de Queiroz disse “Foi um crime geral do Brasil”. Um dos aperfeiçoamentos da convenção de 1831 feito pela lei nº 581 de 1850 foi que todos os negros desembarcados nos portos Brasileiros depois de 07de novembro de 1831 deveriam ser declarados livres, conforme disposto em seu artigo 8º:

Art. 8º - Todos os apresamentos de embarcações, de que tratão os Artigos

primeiro e segundo, assim como a liberdade dos escravos apprehendidos no alto mar, ou na costa antes do desembarque, no acto delle, ou mediante depois em armazens, e depósitos sitos nas costas e portos, serão processados e julgados em primeira instancia pela Auditoria de Marinha, e em segunda pelo Conselho d’Estado. O Governo marcará em Regulamento a fórma do processo em primeira e segunda instancia, e poderá crear Auditores de Marinha nos portos onde convenha, devendo servir de Auditores os Juizes de Direito das respectivas Comarcas, que para isso forem designados.

Neste artigo podemos entender que os negros a bordo de um navio capturado estavam livres, no entanto a mesma lei em seu artigo 6º dispunha que esses negros “livres” deveriam ser reexportados por conta do Estado, conforme o texto que segue:

Art. 6º - Todos os escravos que forem apprehendidos serão reexportados por conta do Estado para os portos donde tiverem vindo, ou para qualquer outro ponto fóra do Imperio, que mais conveniente parecer ao Governo; e em quanto essa reexportação se não verificar, serão empregados em trabalho debaixo da tutela do Governo, não sendo em caso algum concedidos os seus serviços a particulares.

Os negros eram libertados, mas era uma liberdade completamente escrava, pois o Parlamento que era composto por escravocratas, nunca reenviou os negros de volta aos seus países de origem conforme explícito no texto legal. Esses negros eram enviados a repartições do Estado para prestarem serviços gratuitos e a viverem de maneira subumana, que na maioria dos casos recebiam tratos piores do que os recebidos pelos negros escravos que viviam nas senzalas. Quando os parlamentares eram interpelados sobre o porquê da não reexportação, alegavam que o Estado não tinha recursos financeiros para custear estas viagens, assim sendo os negros acabavam por tornarem-se escravos espontaneamente para trabalhar em alguma fazenda, preferindo os maus tratos do seu Senhor, do que as condições subumanas aplicadas pelo Estado.

Luiz Gama, verdadeiro herói da abolição, nasceu na Bahia a 21 de Julho de 1830, foi sua mãe uma preta muçulmana liberta, seu pai foi um homem de ricos haveres, mas muito esbanjador, vítima do jogo caiu um dia na miséria e cometeu a grande barbaridade de vender seu próprio filho como escravo. Em 1848 depois de passar de mão em mão, já sabendo ler e escrever, Luis Gama fugiu do seu último “Senhor”, levando consigo as provas incontestáveis de seu direito de homem livre. A partir de então passou a desenvolver atividades em defesa dos escravos e dos oprimidos,

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iniciando sua agitada vida de advogado dos negros, mantendo bem alto a grande bandeira da liberdade humana. Dizia ele “Todo escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata em legítima defesa” (Palha, 1965 p. 68). Luis Gama orador arrogante e impetuoso teve sucessos formidáveis em sua carreira utilizando-se de um dispositivo legal descrito no já mencionado artigo 8º da Lei nº 581 de 04 de setembro de 1850, como o fez num julgamento na qual tinha como adversário no júri popular um tribuno da marca de José Bonifácio, a despeito disso conseguiu de uma só vez, a liberdade de mais de cem escravos. Embora o abolicionista Luis Gama tenha conseguido muitas alforrias baseado nesta lei, podemos dizer que no geral, foram pouquíssimos os escravos beneficiados com essa estratégia legal desenvolvida e defendida por esse notório advogado abolicionista.

Mesmo sendo pouquíssimos os escravos que se emanciparam a partir deste mecanismo legal, não podemos deixar de atribuir e reconhecer a importância e conseqüências legais e culturais desses feitos. Como por exemplo, um acontecimento de grande importância cultural realizado no tribunal do júri, onde Luiz Gama defendia um homem negro que matou outro homem negro, acusado com excessiva veemência pelo doutor Fernando Coelho que também não era branco. Em dado momento, Luiz Gama levanta-se rapidamente, e voltando-se para o júri diz:

Vede, senhores jurados, tudo é negro nesse processo: O advogado de defesa é negro; o promotor público é negro; o acusado é negro; a pretendida vítima também é negra. Somente vós, senhores jurados, sois brancos. Que tem brancos que se meter em negócios de negros? Mandai, pois, embora esse desgraçado. (Palha, 1965 p. 68)

O acontecimento supramencionado deu origem ao conhecido ditado popular que depois de distorcido ficou conhecido com os dizeres: “Vocês são brancos, vocês que se entendam”. Pois o promotor jamais admitiria que era negro, principalmente naquele instante e lugar, por muito ter falado negativamente sobre a raça, que era na verdade a sua própria raça

por descendência.

Neste calor de algumas libertações alcançadas legalmente por Luiz Gama, logo os escravocratas providenciaram um meio legal para impedir que os escravos livres se apropriassem de terras e se tornassem pequenos produtores, o instrumento jurídico elaborado foi a lei de terras de 1850, a partir desse momento, as terras deixam de ser objeto de doação ou ocupação e tornam-se mercadorias, ou seja, objeto de compra e venda. Estava instaurado o princípio da propriedade privada.

Suprimido o tráfico dos escravos a própria natureza do sistema excluía por completo a possibilidade de uma recuperação da força do trabalho escravo, principalmente por verificar-se no Brasil um índice muito alto de mortalidade infantil, atingindo 95% de crianças que não alcançavam a idade de oito anos. As dificuldades, maltrato e vida sofrida levavam as mães dos crioulos (negros nascidos nas senzalas), a tirarem a vida de seus filhos durante ou depois da gestação findar, a fim de salvaguardá-los das terríveis crueldades que a vida escrava lhes proporcionariam.

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À vista do acima exposto é de se perguntar como foi que a produção escravista continuou dominante por mais quarenta anos depois da cessação do tráfico.

A resposta está na perspicácia desonesta e cruel do sistema escravocrata, ou seja, na formalização de leis abolicionista para a materialização do regime escravista.

Uma das mais importantes manobras políticas diz respeito à Lei nº 2040 de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Nascituro, ou Lei de Rio Branco. O responsável de elaborar esta lei foi o Visconde de São Vicente, porém a reação dos escravistas foi tão severa que aquele ilustre estadista declinou da tarefa que julgou impossível de realizar. Foi quando José Maria da Silva Paranhos, sendo agraciado com o título de Visconde de Rio Branco em 1870. Foi chamado ao poder, e recebeu a incumbência de montar o Gabinete, reservando para si as pastas da fazenda e da Guerra, junto com o cargo recebeu a designação de elaborar a mencionada lei de emancipação do ventre escravo. Levando o problema emancipador aos debates parlamentares na câmara. A oposição escravocrata moldou esta lei de maneira à beneficiar somente aos senhores de escravos, conforme analisaremos a partir do texto legal reproduzido na íntegra abaixo:

Art. 1.º Os filhos de mulher escrava, que nascerem no Império desde a data desta Lei, serão considerados de condição livre.

§ 1.º Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mais,os quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até a idade de oito anos completos.

Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãi terá a opção,ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 annos completos.

No primeiro caso o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei.

A indemnização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro annual de 6%, os quaes se considerarão extintos no fim de 30 annos.

A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquelle em que o menor chegar á idade de oito annos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.

§ 2.º Qualquer desses menores poderá remir-se do ônus de servir,mediante prévia indemnização pecuniária, que por si ou por outrem offereça ao senhor de sua mãi, procedendo-se á avaliação dos serviços pelo tempo que lhe restar a preencher, se não houver accôrdo sobre o quantum da mesma indemnização.

§ 3.º Cabe também aos senhores criar e tratar os filhos que as filhas de suas escravas possam ter quando aquellas estiverem prestando serviços.

Tal obrigação, porém, cessará logo que findar a prestação dos serviços das mais. Se estas fallecerem dentro daquelle prazo, seus filhos poderão ser postos à disposição do Governo.

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§ 4.º Se a mulher escrava obtiver liberdade,os filhos menores de oito annos, que estejam em poder do senhor della por virtude do § 1.º, lhe serão entregues, excepto se preferir deixal-os, e o senhor annuir a ficar com elles.

A Lei nº 2040 de 1871, acima reproduzida, teve várias missões, uma delas foi a de emancipar formalmente e protelar ao máximo a real emancipação material dos escravos. Esse método consistia em fazer com as genitoras dos negros acreditassem que sua prole seria livre e não mais impedissem que esses crioulos nascessem e vivessem. Com essa medida a classe escravocrata conseguiu suprir a falta de escravos ocorrida mediante a crise causada pela vigilância ostensiva da Inglaterra na observância da lei que proibia o tráfico de escravos. Ou seja, os senhores de escravos não poderiam importar novos escravos, e os que nasciam a mães matavam para poupar seus filhos do sofrimento da escravidão, então veio a lei para incentivar o criadouro de escravos.

A parte que conhecemos da lei começa por declarar que seriam desde então livres os filhos da mulher escrava; a parte que não conhecíamos da Lei é a continuação, ou seja, seus parágrafos, que dispunha que o Senhor teria a faculdade de se utilizar gratuitamente dos serviços do menor até que ele atingisse a idade de 21 anos completos. Dessa forma os crioulos ou ingênuos, precisamente durante o tempo em que economicamente era mais produtivo, continuava tão escravo quanto o próprio escravo. Esta parte da Lei não nos era apresentada.

Porém a Lei dos Nascituros esconde mais informações importantes em seus parágrafos. Esta é uma outra parte que não nos foi apresentada. Trata-se da disposição legal sobre a opção que o senhor tinha de alienar o menor, quando este atingisse oito anos de idade, ao Estado, mediante uma indenização de Seiscentos mil réis, quase o preço de um escravo adulto, paga em título de renda, com juro anual de 6% (seis por cento), pelo prazo de trinta anos. Caso o Estado adquirisse o ingênuo (forma que eram chamados os escravos menores de 21 anos), este seria entregue pelo governo a associações autorizadas que explorariam gratuitamente seus serviços até os 21 anos. Digamos que dessa forma a Lei de Nascituros beneficiaria de maneira direta o senhor, e de nenhuma maneira o escravo, ou seja, foi criada somente para que os senhores pudessem aumentar a população escrava e ao mesmo tempo se formalizou um meio possibilitando aos senhores de escravos a levantarem enormes somas em dinheiro junto ao governo. Pois o proprietário podia ter a certeza de que seria generosamente indenizado pelo Estado.

A Lei fixava a idade de oito anos como limite para o ingênuo ser alienado ao Estado com a generosa indenização, porque era na idade de sete aos oito anos que os menores começavam a fazer o trabalho pesado, e já dava para saber se seria um escravo apto para o trabalho pesado ou se tinha algum problema de saúde, problema físico, pois, devido a prática das mães negras pouparem seus filhos da vida escrava e pela perversa situação em que as negras davam a luz somente 5% das crianças chegavam aos 8 anos de idade, conforme observou Perdigão Malheiros, “a maior mortandade era até os sete anos”(Décio, 3ª edição, 1991, p. 109), portanto, somente seria interessante aliena-lo ao Estado antes dos oito anos, pois depois desta idade a probabilidade de morte era remota

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e a lucratividade com seus serviços gratuitos eram maiores. Portanto a Lei de Rio Branco, Lei dos Nascituros, ou como ficou vulgarmente conhecida “Lei do ventre Livre”, na verdade, tratava-se de uma arrojada estratégia política, onde os benefícios eram exclusivamente dos senhores, ou seja, os proprietários de escravos. Com essa Lei tinham-se duas opções: Se o escravo era apto para o trabalho, ficava; se fosse inapto para o trabalho, era apto para aliená-lo ao Estado.

No entanto vemos vários autores declararem que uma das mais importantes medidas para chegarmos à abolição da escravatura no Brasil, foi a chamada Lei dos Nascituros, ou Lei Rio-Branco, de 1871. Muitos desconhecem o real cenário histórico da mesma, pois não se tratava de um super-avanço no que se refere a real abolição da escravatura, e sim um infalível plano de ação visando protelar ao máximo a libertação dos escravos.

Pela lei de 28 de setembro de 1871, a escravidão tem por limite a vida do escravo nascido na véspera da lei. Mas essas águas mesmas não estão ainda estagnadas, porque a fonte do nascimento não foi cortada, e todos os anos as mulheres escravas davam milhares de escravos por vinte e um anos aos seus senhores. Por uma ficção de direito ou uma mera formalidade, eles nascem livres, mas, de fato, vale por lei aos oito anos de idade 600$000 (seiscentos mil réis), cada um. A escrava nascida a 27 de setembro de 1871 pode ser mãe em 1911 de um desses ingênuos, que assim ficaria em cativeiro provisório até 1932. Essa era a lei, e o período de escravidão que ela ainda permitia.

Sem dúvida alguma a forma que nos é apresentada a Lei dos Nascituros, nos influencia a acreditar que foi a maior conquista dos negros escravos e abolicionistas, porém seu autor diz que uma outra missão dessa lei era a de que a mesma viesse para “re-estabilizar a vida econômica e social do país, reparar os danos causados pela polêmica em torno da escravatura e revitalizar o crédito agrícola” (Freitas, 3ª edição, 1991, p. 110). E essa missão, (de revitalizar o crédito agrícola) foi fielmente alcançada, graças a indenização de 600$000 (seiscentos mil réis) assegurada pela segunda parte do parágrafo 1º do artigo 1º, e o que preceituava o artigo 3.º, conforme segue:

Art. 3.º Serão annualmente libertados em cada Província do Império tantos escravos quantos corresponderem á quota annualmente diponível do fundo destinado a emancipação.

Neste dispositivo vemos um meio que o legislador usou para indenizar os proprietários de escravos que precisassem de dinheiro. Este “Fundo de Emancipação” funcionava da seguinte forma: O senhor poderia emancipar, mediante a indenização paga pelo Estado, seus escravos velhos, doentes ou aleijados. Na hipótese do escravo libertado mediante indenização fosse fisicamente apto para o trabalho, incluía-se na alforria uma clausula de serviços durante certo tempo, ou seja, o escravo deveria ficar a mercê do senhor, conforme o artigo 4º, em seu § 5.º da Lei nº 2040:

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§ 5.º A alforria com a clausula de serviços durante certo tempo não ficará annullada pela falta de implemento da mesma clausula, mas o liberto será compellido a cumpril-a por meio de trabalho nos estabelecimentos públicos ou por contractos de serviços a particulares.

Se não cumprisse o acima estabelecido, o escravo poderia ser preso por vadiagem e obrigado a trabalhar gratuitamente em estabelecimento do governo que normalmente eram mais insalubres do que as senzalas, não que as senzalas fossem bons lugares, e sim por serem os estabelecimentos e trabalhos prestados para o Estado muito piores, de maneira que todos os escravos preferiam mesmo depois de liberto por meio do fundo de emancipação, permaneciam trabalhando nas fazendas de seus senhores sem nem mesmo sair da senzala da qual teoricamente estariam libertos. O fundo de emancipação transformou-se em um grande negócio para os senhores de escravos. Uma vez que podiam escolher os escravos a serem libertados, escolhiam doentes, cegos, velhos e rebeldes, e mesmo quando não tinha mais escravos nessa situação, poderia ainda escolher um saudável que permaneceria trabalhando ainda em sua fazenda. O preço médio pago pelo governo situava-se bem acima do preço de mercado, esses escravos eram libertados sob indenização equivalente ao preço de meia dúzia de escravos prontos para o trabalho, houve comentários em periódicos escritos naquela época, que esse fundo serviu até para libertar escravos mortos.

Um exame atento da lei demonstra que ela teve a finalidade de salvar os grandes Senhores do Café e Senhores do Engenho da falência, e prolongar a duração do sistema escravista, pois nesta época situação econômica estava péssima e as pressões exercidas pelos países da Europa, principalmente pela Inglaterra em função da revolução Industrial, eram muito fortes.

Como se ainda não fosse o bastante, temos um outro dispositivo legal, que também tem cunho econômico e não social, como o disposto no art 8.º da mencionada lei nº 2040, que diz:

Art. 8.º O Governo mandará proceder á matricula especial de todos os escravos existentes no Império, com declaração do nome, sexo, estado, aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se fôr conhecida.

Este artigo tinha uma missão especial, a partir dele se conseguiu salvar financeiramente os senhores de escravo situados no estado de São Paulo, ou seja, os cafeicultores. Pois todo projeto dessa lei foi redigido em segredo, e antes de sua apresentação ao Parlamento Brasileiro, foi enviado à consideração da Sociedade Emancipadora de Londres. Depois de sua aprovação, os agentes diplomáticos Brasileiros divulgaram pela Europa que a lei praticamente extinguia a escravatura no Brasil. Porém, procedendo com a matrícula dos escravos em todo o Império, era só uma forma de legalizar a posse de escravos importados ilegalmente depois de 1831. A medida contribuía para que os plantadores de Café levantassem altas somas em dinheiro junto aos banqueiros ingleses. Esse empréstimo era feito por meio de se dar os escravos como hipoteca, garantindo a operação financeira. No entanto os bancos ingleses

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somente concluíam essa operação, mediante a apresentação da matricula que comprovava a condição legal do escravo, esse documento quando atendia todos os requisitos legais, atribuía a propriedade do senhor sobre o escravo. O sucesso dessa operação de matricula especial dos escravos estava em atribuir aos escravos uma idade superior à real, como se houvessem sido importados antes de 1831.

Dessa forma, os senhores cafeicultores, fraudavam desavergonhadamente, o sistema antiescravismo inglês, aliás, esse ditado: “Coisa para inglês ver”, é derivado da perspicácia escravocrata brasileira em submeter a Lei do ventre Livre a apreciação dos Ingleses, receber elogios por demonstrarem por meio dela um processo de desescravização, quando na verdade estavam levantando muito dinheiro e prorrogando de maneira ardilosa a abolição da escravidão.

Depois da promulgação da Lei nº 2040 de 28 de setembro de 1871 houve um período de trégua dado pelos abolicionistas e Ingleses em favor dos escravocratas. Apenas depois de catorze anos promulgou-se uma outra lei em favor da abolição.

Em 1884 é proposta a lei do sexagenário, este foi o chamado Projeto Dantas apresentada no parlamento pelo Presidente do Conselho, este projeto foi redigido por Rui Barbosa, este projeto de lei rezava em seu artigo 1º que o escravo de sessenta anos, completados antes ou depois desta lei adquiria liberdade.

O único problema no estabelecimento desta lei é que o senhor de escravo teria que fazer nova matrícula geral dos escravos, na qual entre outras coisas constaria o valor arbitrado em declaração pelo próprio senhor. Para fins de indenização, entretanto o projeto estabelecia valores máximos. Os proprietários de escravos atribuíam valores que superavam os praticados nos mercados. Os proprietários seriam indenizados com os recursos de um novo fundo de emancipação, para o qual seria arrecadada uma taxa adicional de 6% incidente sobre todos os impostos, salvo o de exportação, pois esse era o único imposto que os proprietários de escravos pagavam.

A grande celeuma estabeleceu-se em torno desta matrícula geral que era necessária

para começar a libertação dos sexagenários nos termos propostos pelo Projeto Dantas, este ato devastaria gravemente os proprietários de escravos das províncias cafeeiras. Para compreender melhor essa devastação é preciso recapitular a questão dos escravos importados depois de 1831.

O meio milhão de escravos importados entre 1831 e 1851 haviam sido adquiridos predominantemente pelas províncias do café. No intuito de possibilitar a legalização da propriedade de tais escravos, a Lei Rio Branco criou a falácia da matrícula obrigatória. Uma vez que a lei de 7 de novembro de 1831 declarava que todos os africanos que chegaram depois desta data no Brasil seriam declarados automaticamente livres, os donos desses escravos haviam matriculado os mesmos com idade superior a real, como se importados antes da proibição do tráfico de 1831. É sabido que somente no ano de 1849 foram importados aproximadamente 54.000 negros. Esses negros tinham uma idade média de dezoito anos no momento do desembarque, portanto no ano de 1884 eles teriam cinqüenta e três anos. Mas para que constasse que haviam sido importados antes de 1831, os donos haviam tido que acrescentar dezoito

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anos à sua idade real, o que lhes dava, em 1884, uma idade legal de setenta e um anos. Nessas condições seriam abrangidos e conseqüentemente libertados pelo Projeto Dantas, os negros sexagenários que na realidade tinham menos de sessenta anos.

Mas não seria apenas na questão dos sexagenários que o projeto Dantas prejudicaria os escravocratas das províncias do café. Os valores das indenizações pelo Fundo de Emancipação variavam segundo a idade dos escravos; quanto mais velhos, menor a indenização. Assim, os escravos das províncias do café seriam indenizados na base de uma idade legalmente superior à verdadeira, o que importaria em receberem uma indenização inferior à que em realidade fariam jus. É claro que esse projeto não foi aceito.

Em 1885 os escravocratas elaboraram um projeto que veio a se chamar Lei Saraiva - Cotegipe, nome de seus autores. Concernente aos sexagenários, a lei compensava os proprietários das províncias cafeeiras da prematura libertação de escravos cuja idade real fosse inferior à idade legal. Para que isso funcionasse, os sexagenários ficavam obrigados a prestar serviços gratuitos a seus senhores pelo espaço de três anos, a título de indenização pela alforria. Preenchido esse tempo de serviço, os libertos continuariam à disposição dos ex-senhores, que usufruíam de seus serviços. Facultava-se a esses libertos buscarem em outra parte os meios de subsistência, desde que devidamente autorizado pelo juiz de órfãos.

Como era de se esperar, o valor dos escravos a serem alforriados pelo Fundo de Emancipação era aumentado em pelo menos ao dobro do valor de mercado, em alguns casos, o triplo dos preços praticado no mercado.

A intenção de beneficiar os proprietários paulistas se revelava de maneira igualmente clara no tocante a utilização do Fundo de Emancipação, que seria dividido em três partes iguais. Uma terça parte se destinaria a subvencionar a colonização, por meio de efetuar o pagamento do transporte de colonos europeus que fossem trabalhar nos cafezais de São Paulo. Dessa forma, todo o país pagaria para que os cafezais paulistas se reprovizionassem de força-de-trabalho. Outra terça parte seria aplicada na “emancipação dos escravos de maior idade”, ou seja, aqueles que não tinham mais que sessenta anos, mas também não eram escravos jovens. E a última terça parte era destinada, nos termos da lei, a libertação por metade ou menos da metade de seu valor, dos escravos de lavouras e mineração cujos senhores quisessem converter em livres os estabelecimentos mantidos por escravos, esta metade do valor aplicada neste caso, correspondia a normalmente mais do que os preços praticados no mercado. A disposição não aproveitava, por exemplo, aos proprietários nordestinos, eis que já haviam promovido a venda interprovincial restando pouquíssimos escravos nas províncias nordestinas que já estavam em condições de homens livres desde a proclamação da abolição naquela província em 25 de março de 1884.

Mas isso ainda não é tudo, a indenização seria paga mediante títulos emitidos pelo

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Estado a juros de 5%. Uma vez indenizado do valor do escravo, o ex-senhor poderia explorá-lo, na condição de liberto, pelo espaço de cinco anos, pagando em troca uma “gratificação” cujo valor era afixado pelo proprietário do escravo. Calculou-se que as primeiras gratificações arbitradas depois da Lei Saraiva - Cotegipe correspondiam a 1/12 dos juros pagos pelo Estado, significava que pelo prazo de trinta anos, o Estado pagaria as gratificações do liberto. A aprovação do projeto convertendo em lei foi de 73 votos contra 17. Significando, em essência, a abolição mediante indenização.

Percebemos a partir daí que a Lei do Sexagenário também não favoreceu aos escravos e sim novamente os senhores, em função de que os escravos com mais de sessenta anos não eram aptos para o trabalho pesado. Estes escravos somente davam despesas para os donos de escravos. Foi uma lei de proprietários de escravos, feita para proprietários de escravos, sem vislumbrar se quer uma única partícula de benefício ao escravo.

De todas as maneiras, as leis testemunhavam a vontade dos senhores de escravos, e de maneira mais acentuada, dos senhores de escravos paulistas, que eram a classe dominante brasileira. Os abolicionistas desencadearam um movimento de ação direta, instigando os poucos escravos ainda existentes a fugirem das propriedades. Nas províncias do café, criou-se uma situação pré-insurrecional. O colapso do Estado escravista se configurou claramente quando a polícia e o exército se recusaram a reprimir as fugas. Com o apoio dos dois grandes partidos da classe dominante, o Conservador e o Liberal, sobreveio a 13 de maio de 1888 a Lei nº 3353 que formalizou jurídica e institucionalmente uma situação de fato, conforme segue:

A princesa Imperial Regente, em Nome de sua Magestade o Imperador o Senhor C. Pedro II, Faz saber a todos os súbditos do Império que a Assembléia Geral decretou e Ella sanccionou a Lei seguinte:

Art. 1,º E’ declarada extincta, desde a data desta Lei, a escravidão no Brazil.

Art. 2.º Revogam-se as disposições em contrario.

Manda, portanto a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar ta inteiramente como nella se contém.

O Secretario de Estado dos Negócios da agricultura, Comercio e Obras Publicas e interino dos Negócios Estrangeiros, Bacharel Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho de Sua Magestade o Imperador, a faça imprimir, publicar e correr.

Dada no Palácio do Rio de Janeiro em 13 de Maio de 1888, 76º da Independência e do Império.

A data de 13 de maio é tão insignificante, que entre os militantes negros, buscavam uma data a que se comemorar, por unanimidade decidiram que essa data não tinha razão de ser o 13 de maio, foi quando, depois de várias pesquisas, decidiram comemorar a data de 20 de novembro, em homenagem ao Grande líder do Quilombo

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Zumbi dos Palmares, essa foi a data de sua morte. O primeiro ato evocativo dessa data foi em 20 de novembro de 1971, sete anos mais tarde, passaria a ser referida como o dia nacional da consciência negra.

3. Continuação da Desigualdade e suas Conseqüências

O negro no Brasil logo após a pseudo-abolição da escravidão, depois de haver produzido durante três séculos todas as grandes riquezas deste País ingressou o ano de 1889 como o povo mais deserdado que se tem notícia.

Sua preciosa mão-de-obra foi substituída pela mão-de-obra remunerada dos imigrantes europeus, sob a legação de que os negros não tinham capacidade laborativa, e que não eram inteligentes o suficiente para produzir.

No entanto vemos uma página repassada de eloqüência, Joaquim Nabuco fez um quadro memorável do trabalho escravo no Brasil, exposta por Décio de Freitas:

Há trezentos anos que o africano tem sido o principal instrumento da ocupação e da manutenção do nosso território pelo europeu, e que os seus descendentes se misturam com o nosso povo. Onde ele não chegou ainda, o país apresenta o aspecto com que surpreendeu aos seus primeiros descobridores. Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para a habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo, que existe no país, como resultados do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha à que faz trabalhar.(1991, p.10)

É possível explicarmos por meio de todo o processo escravista a situação de pobreza e de conseqüentemente tamanha má distribuição de renda verificado em nosso país. A lei de terras, promulgada em 1850 conforme já mencionada anteriormente criou as condições jurídico-institucionais para não permitir que o negro ascendesse econômica ou politicamente. Num regime de terras livres, o trabalho era cativo; num regime de trabalho livre, a terra era cativa.

O nosso ordenamento jurídico nos dias de hoje tem sancionado alguns mecanismos que inibe o caráter absoluto da propriedade, dentre eles o de maior cunho social é o que prevê a perda de um imóvel que não esteja cumprindo sua função social, porém este sistema começou a ter um espaço somente a partir do novo código civil que passou a vigorar a partir de 01 de janeiro de 2003, permitindo que este lapso de tempo propiciasse este reflexo político e econômico de tamanha desigualdade material proporcionado pela política que tornava a propriedade um bem absoluto não constando nenhum dispositivo que permitisse um entendimento de que as terras cumprissem sua função social. Dessa maneira, a discriminação racial e essa política protecionista do bem imóvel, imposta desde a promulgação da lei de terras em 1850 deu origem, neste caso, a falta de direito formal e material dos Negros no Brasil. Essa situação de extrema mau

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distribuição de renda e conseqüentemente tamanha pobreza refletido pelo exposto acima foi plenamente previsível pelo então na época candidato à deputado Joaquim Nabuco em um pronunciamento na cidade do Recife em 05 de novembro de 1884 falando da praça de São José do Ribamar, que disse:

A propriedade não tem somente direitos, tem também deveres, e o estado da pobreza entre nós, a indiferença com que todos olham para a condição do povo, não faz honra à propriedade, como não faz honra ao Estado. Eu, pois, se for eleito, não separarei mais as duas questões – a da emancipação dos escravos e a da democratização do solo. Uma é o complemento da outra. Acabar com a escravidão não nos basta; é preciso destruir a obra da escravidão. (...) Sei que falando assim, serei acusado de ser um nivelador. Mas não tenho medo de qualificativos. Sim, eu quisera nivelar a sociedade, mas para cima, fazendo-se chegar ao nível do art. 179 da Constituição do Império que nos declara todos iguais perante a lei. (2000, p. –XVII-).

Lendo a base do discurso de Joaquim Nabuco, não precisamos nem dizer que ele não foi eleito, permitindo assim que os escravos permanecessem mesmo depois de libertos num profundo convívio com a miséria que o Brasil lhe deixou. O treze de maio de 1888 marcou um momento crucial de um processo iniciado ainda nos tempos do Brasil colonial: A luta do cativo pela liberdade. O escravo emancipado perceberá que este processo ainda não findou e sim foi posto, ou melhor, a população negra é expulsa de um Brasil moderno, cosmético, europeizado, para dentro dos porões do capitalismo nacional, tangido de maneira sórdida e brutesca. O senhor liberta-se do escravo e trás ao seu domínio o assalariado, migrante ou não. Não se decretava oficialmente o exílio do ex-cativo, mas este passaria a vivê-lo como um estigma na cor da sua pele.

nos últimos cinco séculos da nossa história. Não há dúvida de que todas as culturas dos povos que no Brasil se encontraram foram beneficiadas por um processo mas entre o modelo, a estratégia política montada e a realidade empírica, existem certa margem, que não pode ser negligenciada nas considerações sócio-antropológicas da realidade racial brasileira. Sem dúvida a infusão do sangue “branco”, pelo intenso processo imigratório de origem ocidental por um lado, e as baixas nas taxas de fecundidades e de natalidade no meio da população negra acompanhada de altas taxas de mortalidade, por outro lado, ajudaram na diminuição sensível da população negra. Sem dúvida, o processo de mestiçamento no Brasil foi talvez o mais alto e intenso do continente americano de empréstimos e de transculturação desde os primórdios da colonização e do regime escravocrata.

No Brasil, a classificação racial dá ao mestiço uma posição e um lugar que nada têm a ver com as classificações norte-americana e sul-africana. Em primeiro lugar, trata-se de uma classificação racial cromática, ou seja, baseada na marca e na cor da pele, e não na origem ou no sangue como nos Estados Unidos e na África do Sul. Dependendo do grau de miscigenação, o mestiço brasileiro pode até atravessar a linha ou a fronteira de cor e se reclassificar ou ser reclassificado na categoria “branca”.

No caso do Brasil, o racismo extravasou o tal “mito da democracia racial”, pois analisando o cotidiano dos mulatos brasileiros, verificamos que na categoria espécie

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humana, estes são classificados como raça negra conforme o conceito de raça dado pela historiadora Maria Luiza Tucci Carreiro:

Raça é a subdivisão de uma espécie, formada pelo conjunto de indivíduos

com caracteres físicos semelhantes, transmitidos por hereditariedade: cor da pele, forma do crânio e do rosto, tipo de cabelo, etc. Raça é um conceito apenas biológico, relacionado somente a fatores hereditários, não incluindo condições culturais, sociais ou psicológicas. Para a espécie humana, a classificação mais comum distingue três raças: branca, negra e amarela. (1997, p. 5).

Com o movimento do embranquecimento tivemos o sério problema da completa perda da identidade do negro e afrodescendentes. Mesmo com o processo de embranquecimento prevalece sempre o padrão imposto pela maioria branca, que consiste em: quanto mais claro o indivíduo, maior a sua beleza e melhor o seu caráter e sua capacidade intelectual.

Esse acontecimento verídico de nossa história retrata a atual saga do afro-descendente em ser ou não ser negro, para destruir o mito da democracia racial, negros e afro-descendente em geral têm que enfrentar um inimigo inesperado e, por isso, o pior inimigo: o próprio negro não querendo ser negro. O mito da democracia racial é tão eficaz no controle da população negra que muitos negros acabam por incorporar a idéia de que não existe problema de raça no país. Mas, ao observar que os brancos conseguem progredir e eles não, e traduzindo esse insucesso pela suposta incapacidade e falta de vontade, esses negros querem “ser brancos”. Assim, o ideal da branquitude passa a ser perseguido de maneira incansável por eles. Essa procura pelo negro de aceitação social por meio do embranquecimento e incorporação de valores e comportamentos que negam a existência do racismo, faz com que o negro não querendo ser negro e não conseguindo ser branco, por conta da herança genética, coloca-se como pessoa, num impasse que só se resolve quando ele na verdade assumir sua identidade própria de negro, só ai então será capaz de combater e se livrar da identidade negativa imposta pelo branco. Ao ser considerado e reconhecer-se como negro, tem a possibilidade de lutar por um tratamento igual. Na introdução do livro “Ser Negro no Brasil Hoje”, da Professora Ana Lúcia E.F. Valente, Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), temos uma reprodução de uma estrofe de autoria de Caetano Veloso, que nos explica bem a situação da miscigenação no Brasil:

Só pra mostrar aos outros quase pretos

(e são quase todos pretos)

e aos quase brancos pobres como pretos

como é que pretos, pobres e mulatos

e quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados. (1994, p. 07).

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Os movimentos negros brasileiros contemporâneos, nascidos na década de 1970, retomaram a bandeira de luta dos movimentos anteriores representados pela Frente Negra, mudando a base do trabalho contra a discriminação racial, substituindo o racismo diferencialista pelo racismo universalista. Sob a influência dos movimentos negros americanos, eles tentam dar uma redefinição do negro e do conteúdo da negritude no sentido de incluir neles não apenas as pessoas fenotipicamente negras, mesmo aqueles que a ideologia do branqueamento já teria roubado. Esta definição do ponto de vista do movimento negro corresponde à classificação dualista ou bi-racial negro/branco que nada tem a ver com a classificação cromática plural, populares, cujo levantamento, a partir do censo de 1980 deu cerca de 136 cores. Essa divergência sobre a sua “autodefinição”, observada entre os afros politicamente mobilizados através dos movimentos negros de um lado, e as bases negras constituindo a maioria não mobilizada, de outro lado, configura o nó do problema na formação da identidade coletiva do negro. Como formar uma identidade em torno da cor e da negritude não assumidas pela maioria cujo futuro foi projetado no sonho do branqueamento? Como formar uma identidade em torno de uma cultura até certo ponto expropriada e nem sempre assumida com orgulho pela maioria de negros mestiços?

Nos primeiros meses de campanha política às eleições presidenciais de 1994, o então candidato mais cotado, Fernando Henrique Cardoso, fez uma declaração à imprensa alegando que é “mulatinho e tem os pés na cozinha”. Esse exemplo, embora considerado depois pelo próprio autor como brincadeira, tem um fundo de verdade. Mostra que a possibilidade de realizar o “passing” embora difícil, não é impossível. Muitos entre “nós” já teriam atravessado a fronteira.

Podemos considerar que para os efeitos maléficos não importa se trata de negro, mulato (branco/negro), cafuzo (negro/índio), mameluco ou caboclo (índio/branco), ou crioulo (negros nascidos nas senzalas), basta não ser branco, e não é por aspectos formais, ou seja, não somente as leis ordinárias, mas também as constitucionais asseguram formalmente esses direitos:

A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, e recompensará em proporção dos merecimentos de cada um. (Artigo 179, inciso XIII da Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824)

Todos são iguais perante a lei. (Artigo 72 § 6º da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1891)

Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivos de nascimentos, sexo, raça, profissões próprias ou dos Paes, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas. (Artigo 113, § 6º da Constituição da Republica dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934).

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Identificamos que ao longo dos anos, sempre se formalizou meios buscando a

igualdade racial e até mesmo a social, porém, essas Leis nunca conseguiram materializar, por meio de tornar “todos iguais perante a Lei”.

Partindo de tantas formalizações e poucas materializações, o Negro começa a sair em busca da efetivação dessas Leis, esperando que as mesmas pudessem ter eficácia, porém o norte que os negros buscaram nesse contesto, foi continuando a formalizar.

Um avanço ocorreu no ano de 1951, quando foi aprovada em 03 de julho de 1951 a Lei 1.390 que ficou conhecida como Lei Afonso Arinos, que definia o preconceito como contravenção penal, porém inexiste estatística oficial sobre os números de ações processuais movidas a partir desse dispositivo legal.

Porém uma das conquistas mais expressivas para combater o racismo no Brasil se deu no Plano jurídico Constitucional, com a promulgação da Constituição em 05 de outubro de 1988, a partir de então, o racismo foi definido como crime inafiançável e imprescritível conforme seu artigo 5º inciso XLII:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei.

Até 1988, apenas o artigo da Constituição brasileira que declara que todos são iguais, independentemente de cor, raça, ou credo, e a Lei Afonso Arinos poderiam ser utilizados na tentativa de coibir o racismo contra os negros no Brasil. Na verdade, assim como as demais já existentes, não passavam de mera formalidade. No que diz respeito ao artigo constitucional, a teoria da igualdade é simplesmente desmentida na prática das relações entre brancos e negros. A Lei Afonso Arinos era ineficaz, embora tenha sido criada, com o objetivo de impedir que os negros continuassem sendo discriminados. Essa lei tratava as atitudes de preconceito racial como contravenção e previa o pagamento de multas irrisórias, para que fosse dado fim aos processos penais.

Após a Constituição de 1988, quem pratica o racismo não deixa de estar sujeito a punição, pagando uma mera multa ou fiança. Também o autor do crime do racismo, em qualquer tempo e a qualquer momento pode ser punido. Ou seja, não se extingue a sua punibilidade por não haver o Estado exercido o seu direito de ação contra o agente, no tempo legal, ou por não ter efetivado a condenação imposta, ou seja, é imprescritível.

O inciso XLII do artigo 5º da Constituição de 1988 coloca, ainda, a necessidade de serem estabelecidos em quais termos da Lei o racismo seria punido. A

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Câmara dos Deputados já havia aprovado um projeto de lei de autoria de Carlos Alberto Caó que, além de ter sido deputado federal pelo Rio de Janeiro durante a Assembléia constituinte, é um militante negro. Esse projeto de lei, de número 668, foi apresentado ao então presidente da republica, José Sarney, que após vetar apenas quatro artigos do projeto de lei original, sancionou-o em 05 de janeiro de 1989 como Lei 7.716 que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

Apesar das formalizações estarem agora bem aprimoradas ainda não foi possível

materializá-las há uma tentativa de explicação, ou mesmo uma previsão do futuro nas palavras de uma reportagem publicada, em julho de 1988, na revista Veja, de circulação nacional:

O negro não progride porque há racismo e só poderá progredir quando o racismo acabar, mas como ele não progrediu, isso jamais acontecerá. (VALENTE, 1994, p. 79).

Um exemplo da falta de materialização das Leis são as estatísticas, segundo um levantamento do Ministério das Relações Exteriores feito para ser apresentada na III Conferência da ONU contra o Racismo, realizada na África do Sul no mês de Setembro de 2001, apurou que há apenas 142 processos por crime de racismo hoje nos Tribunais no Brasil2. Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo a Advogada Maria da Penha Guimarães afirma que “O Poder Judiciário reflete a sociedade brasileira, e a sociedade não reconhece que há discriminação”. No entanto os dados estatísticos são alarmantes e entristecedores, por exemplo:

O índice de discriminação racial e o preconceito de cor por parte da polícia é maior do que dos seguintes quesitos institucionais: escola, trabalho, saúde e lazer. (fonte: Fundação Perceu Abramo, 2003)

91% dos jovens negros do Estado de São Paulo já foram abordados pela Polícia. (fonte: Datafolha, 2004)

Sobre 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% deles são negros. (fonte: Ipea, 2001)

Algo em torno de 2% dos alunos das universidades brasileiras são negros. (fonte: Dieese, 2003)

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Nos quatro últimos anos, 91% das crianças que foram adotadas no Rio de Janeiro tinham até 4 anos e pele clara...(fonte: Folha de São Paulo, março de 2004)

Existem muitas outras pesquisas que não temos espaço para tratar, todas de grande relevância na abordagem do tema, demonstrando de maneira mais que explícita, mesmo com todas as Leis que temos visto para promover a igualdade racial e não permitir que haja discriminação racial, vemos que a falta de materialização em meio a tantas formalidades, é fato.

Para uma definição, ou até mesmo uma explicação do assunto acima exposto, pode levar em consideração a opinião do Deputado Plínio Barreto, que foi relator da Comissão de Constituição e Justiça, por ocasião da tramitação do projeto de lei sobre preconceitos de raças ou de cor que veio a se transformar na já citada Lei 1.390/51, opinião que apesar do transcurso do tempo, permanece atual:

Nunca haverá lei que os destruam. Nunca houve lei alguma que pudesse desarraigar sentimentos profundos e trocar a mentalidade de um povo. Mas isso não impede que, por meio de leis adequadas, se eliminem algumas das manifestações públicas desse preconceito. (Valente,1994, p. 79)

No entanto, temos algumas medidas que poderão ajudar nesse processo, não podemos nos esquecer de que a mentalidade de um povo não se transforma da noite para o dia, sem que se invista num processo educativo. Que esse processo parta, sim, da obviedade de que as pessoas devem ser educadas para que aprendam a se respeitarem mutuamente, independentemente da cor, e que seja esclarecedor a ponto de as pessoas serem acostumadas a acreditar e recorrer à lei.

Esse método esclarecedor está praticamente dividido em duas etapas, consistindo a primeira delas na implementação da Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Essa lei reconhece oficialmente a data de 20 de Novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra e introduz essa data no calendário oficial das escolas, bem como institui como necessidade a instituição do ensino da história e da cultura do povo brasileiro afrodescendente como currículo escolar.

Parece mais uma Lei de letra morta, porém uma vez que se coloque a disposição dos alunos a história afro-brasileira, buscando nas raízes africanas, poderemos reverter a mentalidade do povo em relação aos negros, esses cursos se bem ministrados nas escolas, transformará o caráter do negro de vagabundo, ladrão, sujo e outros qualitativos que foi incutido na mente do povo, para, o negro que construiu o país, para o negro que trouxe cultura, para o negro que ganhou a guerra do Paraguai, para o negro que é a base do povo brasileiro, para o negro que é simplesmente quase a metade da população brasileira, que formam o segundo maior país negro do mundo, perdendo somente para a Nigéria situada no continente africano. É uma enorme chance de resgatarmos nossa identidade, ajudando os negros e afrodescendentes sentirem orgulho de sua raça, resgatando assim a auto-estima.

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CONCLUSÃO

O tema da Igualdade Racial é de fundamental importância para a melhoria de vida de brasileiros e brasileiras, particularmente neste momento de transformações pelas quais passa o Brasil nos mais diversos campos, sobretudo na política e na economia. Torna-se necessário um efetivo trabalho conjunto nas diversas instâncias de governo e da sociedade civil, pois, desde a abolição da escravatura, em 1888, até os dias de hoje, é a primeira vez, que a sociedade brasileira se mobiliza para um debate público relacionado diretamente ao assunto.

O resultado esperado é a construção de um Plano de Ação que atualize a atual Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, e concretize uma Política de Estado voltada para a erradicação das desigualdades raciais, de uma maneira mais do que formal e sim com a efetiva materialização dessas medidas ou Ações Afirmativas, que possam ter uma mudança significativa na realidade do povo brasileiro.

O fim do sistema escravista no Brasil impôs a alteração do regime jurídico dos antigos escravizados, abrindo caminho para a construção do reconhecimento da sua igualdade formal diante dos demais cidadãos brasileiros. Entretanto, a abolição da escravatura no Brasil, embora necessária e constituída por muitos, da forma como se deu, foi um verdadeiro golpe às aspirações da população afrodescendente. A abolição enquanto uma medida institucional teve seu conteúdo resumido a dois parágrafos que simplesmente decretava extinta a escravidão, revogando as disposições em contrário. Esta abolição não trouxe consigo a perspectiva de libertação com plena inserção dos descendentes de negros escravizados na sociedade como um todo, isto é, no mercado de trabalho, no sistema educacional, no acesso à moradia digna, à posse da terra, entre outras.

REFERÊNCIAS

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