A impermanência do processo: poeira, caminhos, objetos

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Artes Cristiana Nogueira A impermanência do processo: poeira, caminhos, objetos Rio de Janeiro 2009

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Artes

Cristiana Nogueira

A impermanência do processo: poeira, caminhos, obje tos

Rio de Janeiro 2009

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Cristiana Nogueira

A impermanência do processo: poeira, caminhos, obje tos

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, área de concentração em Arte e Cultura Contemporânea

Orientadora: Prof.ª Dr. Leila Maria Danziger

Rio de Janeiro 2009

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CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CEHB

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação

__________________________ __________________ Assinatura Data

N778 Nogueira, Cristiana. A impermanência do processo: poeira, caminhos, objetos /

Cristiana Nogueira. – 2009. 110 f. : il. Orientadora: Leila Maria Danziger Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, Instituto de Artes. 1. Arte Contemporânea – Séc. XX – Teses. 2. Poeira na arte –

Teses. 3. Melancolia na arte – Teses. 4. Memória na arte – Teses. 5. Arte conceitual – Teses. 6. Arte e fotografia – Teses. I. Danziger, Leila Maria Brasil. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. III. Título.

CDU 7.036

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Cristiana Nogueira

A impermanência do processo: poeira, caminhos, obje tos

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre ao Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, área de concentração em Arte e Cultura Contemporânea

Aprovado em: Banca Examinadora: Prof.ª Dr.ª Leila Maria Brasil Danziger Instituto de Artes da UERJ

(Orientadora)

Prof. Dr. Roberto Corrêa dos Santos Instituto de Artes da UERJ Prof. Dr. Cezar Tadeu Bartholomeu EBA-UFRJ

Rio de Janeiro

2009

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Para Hílio (In memoriam)

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AGRADECIMENTOS

A minha mãe por sempre acreditar Ao Breno pelas madrugadas de risadas em meio aos inúmeros livros A minha avó por me acolher nos momentos difíceis Ao Rogério por ser ele mesmo Ao Claudio Castro pelo apoio constante A todos os meus amigos que entenderam o sumiço necessário Ao Roberto Corrêa pelas observações poéticas em minha qualificação Ao Cezar Bartholomeu pela grande inspiração Ao Roberto Conduru por acompanhar minha longa caminhada sempre com questões pertinentes A Malu Fatorelli pelas importantes contribuições ao meu trabalho A Ricardo Basbaum pelas conversas sempre enriquecedoras A todos os integrantes do Programa de Pós-Graduação de Artes da UERJ pelas diversas formas de ajuda E a minha querida orientadora, em especial, pela paciência, encorajamento e direcionamento

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RESUMO GOMES, Cristiana Nogueira Menezes. A impermanência do processo: poeira, caminhos, objetos. 2009. 110 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. Essa dissertação levanta um conjunto de questões relacionadas à reflexão do processo artístico. Focando em conceitos como poeira, melancolia, flânerie e memória, foi desenvolvido um diálogo entre Walter Benjamin, W.G. Sebald, Georges Perec, Susan Sontag, Georges Bataille e Giorgio Agamben e, também, foram pesquisados os trabalhos de Marcel Duchamp, Joseph Cornell e Robert Smithson. O texto é dividido em três momentos nos quais as principais questões são expandidas em fragmentos que consistem em proposições inseridas na arte contemporânea. Junto com o texto é apresentada uma série de imagens que pertencem ao conjunto de fotos que serão expostas durante a defesa. Palavras chave: Poeira. Melancolia. Flânerie. Memória. Arte Contemporânea.

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ABSTRACT This dissertation raises a set of questions related to the reflection of the artistic process. Focusing on concepts like dust, melancholy, flânerie and memory, it was developed a dialogue among Walter Benjamin, W.G. Sebald, Georges Perec, Susan Sontag, Georges Bataille and Giorgio Agamben and also, the works from Marcel Duchamp, Joseph Cornell and Robert Smithson were researched. The text is divided in three moments, which the principal questions are expanded in fragments that consist in propositions inserted in the contemporary art. Along with the text is showed a series of images that belong to a set of photos that will be exposed during the presentation. Keywords: Dust. Melancholy. Flânerie. Memory. Contemporary Art.

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LISTA DE IMAGENS

Jeff Wall - A Sudden Gust of Wind (after Hokusai), 1993 p 9 Sherrie Levine - After Walker Evans, 1981 p. 9 Sophie Calle - Exquisite Pain (Day 12), 2000 p.11 Christian Boltanski - Sans-Souci, 1991 p.11 Marcel Duchamp – Boîte Verte, 1934; Élevage de Poussière,1920 p.12 Joseph Cornell – Spent Meteor: Night of Feb. 10, 1843 (for E.A.Poe.), 1943 p.12 Robert Smithson – A Non-site (Franklin, New Jersey), 1968 p.12 Água, 1998-2001; Stressbugs, 2006; Onde estou?, 2007; Qual o peso do mundo, 2007 p.13 Cartas, 2007; Monumentos Urbanos 2005-2008, Onde estou?, 2007-2009 p.14 Onde estou?, 2007-2009 p.16 Marcel Duchamp - Élevage de Poussière, 1920 p.17 Marcel Duchamp – Boîte –en- valise, 1934-1931 p.18 Joseph Cornell – Spent Meteor: Night of Feb. 10, 1843 (for E.A.Poe.), 1943 p.19 Passage de l'Opéra, Paris p.20 Diorama. Paris Exposition, 1889 p.20 Imagem do verbete ‘Dust’ do Dicionário Crítico p.21 Marcel Duchamp – Boîte Verte, 1934 p.24 Fac-símile anotações sobre ‘Onde estou? p.26 Fac-símile anotações sobre ‘Onde estou? p.27 Onde estou?, 2007-2009 p.29 Joseph Cornell- L'Egypte de Mlle Cleo de Merode, cours élémentaire d'histoire naturelle,1940 p.34 Eugen Atget - Avenue des Gobelins, 1927 p.34

Programa de Referência Visual do Rio de Janeiro, 2001 p.35 Maxime Du Camp- Tebe, 1849-1851 p.36

Onde estou?, 2007-2009 p.42 Robert Smithson - Monuments of Passaic, 1967 p.43 Lara Almarcegui-Guia de terrenos baldios de S.P.- uma seleção dos lugares vazios mais interessantes da cidade,2006 p.46 Robert Smithson - A Non-site (Franklin, New Jersey), 1968 p.47 Ajudantes, 2008 p.58 Sem título p.60 Gordon Matta-Clark – Conical Intersect, (Paris) 1975 p.63 Gordon Matta-Clark - Fake States, (New York), 1974 p.65 Fac-símile anotações sobre ‘Onde estou? p.67 Onde estou?, 2007-2009 p.68 Onde estou?, 2007-2009 p.69 Cartas, 2007 p.70 Robert Walser, Microgramme p.73

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9

1. POEIRA

1.1 .Dust Breeding 17 1.2 .Melancolia 20 1.3 .Sísifo 30

2. CAMINHOS

2.1 .Flâneur 34 2.2 .Entropia 40

3. OBJETOS

3.1 .Memória 52 3.2 .Coleções 58 3.3 .Pedras 61 3.4 .Ajudantes 70

CONCLUSÃO 76 BIBLIOGRAFIA 77 ANEXOS 81

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INTRODUÇÃO

Em meu projeto inicial, apresentado por ocasião de

meu ingresso no PPGARTES, pretendia explorar questões

relativas ao Pós-Modernismo1 a partir da análise de artistas

como Sherrie Levine e Jeff Wall. De início era coerente com

meus propósitos, já que, ingenuamente, achei poder dar

conta da conceitualização deste período selecionado e

também de minha produção. É claro que a escolha inicial de

artistas deveu-se a aspectos presentes em seus trabalhos

que seriam também pertinentes a minha produção até então.

A principal questão abordada por estes artistas era a

apropriação e citação, que de fato me interessam ainda, mas

que tiveram um novo direcionamento nos últimos dois anos.

Percebo agora que a memória é um conceito muito presente

em meu trabalho, assim como a escrita. Se nos trabalhos

anteriores a apropriação se dava de forma mais ‘literal’,

agora há algo mais sutil, pois ela se dá em outro contexto.

Penso meu trabalho muito mais próximo de uma narrativa do

que como uma análise conceitual envolvendo críticas de

autoria e percepção do espectador, tal como o trabalho de

Sherrie Levine. Assim, Jeff Wall seria mais interessante para

minha pesquisa ao recriar espaços da modernidade na

contemporaneidade, criando um espaço narrativo através de

suas fotografias gigantes. Porém, vejo que a idéia de

estudar tais artistas já se integra às minhas investigações,

que caminham para a percepção dos restos, das ruínas.

Busco pensar a apropriação não como algo

retirado de sua autoria, mas sim como algo retirado de seu

contexto inicial. Por mais similar que isto seja, não quero

1 Partindo de conceitos tais como: pluralismo, ‘entropia estética’ de Arthur Danto, caos desordenado, perda de referente, ‘neovanguarda’ de Peter Bürger e ‘dimensão de simultaneidade‘, de Hans Ulrich Gumbrecht, pretendia analisar o Pós-Modernismo.

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reproduzir uma obra tal Jeff Wall, ao trazer para a

contemporaneidade o Manet ou um gravurista japonês. Ou

mesmo não quero causar no espectador um choque de

valores ao refotografar um 'clássico' da fotografia. Aproprio-

me de restos da cidade que ninguém quer ou percebe.

Aproprio-me de restos de meu corpo que já perderam sua

utilidade. E ainda de objetos que perderam seu valor

simbólico. Ao realizar este gesto, procuro atribuir outro

significado a este objeto, outra significação simbólica. É

neste momento que fatos biográficos entram em jogo, pois

para aqueles objetos fazerem novamente sentido no

mundo, eles precisam fazer sentido para mim.

Assim como minha pesquisa artística mudou, a

reflexão teórica também caminhou para algo distante da

análise do Pós-Modernismo como um período a ser

estudado. Este estudo ampliou-se, quer dizer, afastou-se do

vínculo inicial com a história e a crítica de arte que meu

projeto inicial apresentava. Acredito que, em grande parte, o

motivo do projeto, inicialmente, aproximar-se muito mais da

linha de história e crítica do que propriamente da linha de

processos, relaciona-se ao fato de toda a minha graduação

ter sido muito mais voltada para a História da Arte do que

para a prática artística, desenvolvida de modo paralelo e

autônomo. Se antes o Pós-Modernismo era importante para

se entender a produção dos artistas supracitados, agora vejo

que isto não representa um fator primordial em minha

pesquisa. No lugar de pensadores voltados para a

conceituação deste período, busco autores que dialoguem

com conceitos mais próximos de minha produção.

Vejo como muito mais pertinentes autores que

tenham o colecionismo, a memória ou mesmo a melancolia

como assunto, do que qualquer outro que eu tenha

escolhido como fonte, baseado na temática anterior. No

entanto, não percebo uma mudança tão radical em minha

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produção quanto percebo na conceituação de meu trabalho.

Isso talvez ocorra por conta não de minha mudança de

interesse nos trabalhos dos artistas, mas sim de uma nova

abordagem deles. A partir desta mudança, vejo o

pensamento de Walter Benjamin muito mais próximo de meu

trabalho. A construção do livro ‘Passagens’, em que o autor

se apropria de variados textos, de diversos meios, assim

como a sempre presente questão da construção de coleções

que incluem os restos gerados pela rápida urbanização,

aproxima-se muito de trabalhos onde procuro selecionar

restos e vestígios, sejam eles urbanos, corporais ou

culturais.

Outro autor que considero importante é Georges

Bataille. Ao partir de elementos presentes em sua obra,

como por exemplo, transgressões e interditos, penso que

certas atitudes de prática artística estejam relacionadas a

atitudes que fogem ao que seria socialmente aceito.

Considero o ensaio de ‘Noção de Despesa’ e seu ‘Dicionário

Crítico’ como particularmente importantes, na medida em que

utilizo as ruínas, os restos, como elementos de meu trabalho.

Em relação aos artistas, vejo que atualmente

despertam meu interesse artistas que trabalhem a memória,

seja ela uma memória pessoal ou mesmo inventada. Em

meus trabalhos, a memória sempre esteve presente de

alguma forma. Seja ela como apenas um indício fotográfico2,

ou mesmo de forma mais explícita, em que há uma relação

com a minha memória pessoal ou coletiva. De início, o

trabalho de Sophie Calle interessou-me por ela buscar criar

uma narrativa própria a partir de sua observação. A

observação do mundo ao redor é o que me aproxima muito

de sua investigação artística. Essa maneira de perceber

2 Neste caso, não quero entrar em toda uma discussão acerca do que seria índice (ou que não seria ) dentro da fotografia. O índice seria mesmo algo físico, da materialidade do registro, ou melhor, da suposta presença do objeto fotografado.

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pequenos detalhes, de buscar situações fora do comum e

retratá-las de modo a criar uma narrativa de mundo e, ao

mesmo tempo, criar uma memória que nem sempre

existiu, faz com que eu busque novas maneiras de pensar

esta questão. Outro artista sobre o qual busquei mais

referências foi Christian Boltanski. Sua maneira de criar

espaços a partir de trabalhos fotográficos, com imagens

que também recontam uma memória fictícia, é algo que

me interessa, já que minha ligação com a fotografia é

muito anterior a qualquer perspectiva de uma prática

artística. Apesar de não terem sido incluídos na presente

dissertação, estes artistas foram fundamentais para a

minha pesquisa e o desenvolvimento de meu trabalho

poético.

Dentro de minha dissertação, três artistas foram

escolhidos e pesquisados: Marcel Duchamp, Joseph

Cornell e Robert Smithson. Duchamp foi abordado a partir

de dois trabalhos: ‘Élevage de Poussière’ e ‘Boîte verte’; já

que ambos desenvolvem duas questões presentes em

minha produção que são a poeira e a memória. Joseph

Cornell, apresenta questões pertinentes à melancolia,

principalmente em seu trabalho ‘Spent Meteor: Night of

Feb. 10, 1843 (for E.A.Poe)’. Em relação a Robert

Smithson, seus escritos sobre a entropia e a analogia,

entre o Site e o Non-site, foram particularmente

importantes no desenvolvimento de minha conceituação

sobre a prática artística.

O fato de me sentir muito mais próxima às

questões relativas à bidimensionalidade, enfrentar a

plenitude do espaço e partir para experimentações

tridimensionais, é algo bem mais complexo do que parecia.

E foi justamente no mestrado que senti necessidade de dar

um passo além da fotografia, que sempre me

acompanhou. Não penso em abandoná-la, mas sim em

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explorar novos caminhos em que seja possível trabalhá-la

de maneiras diferentes. O objeto surge como mais um

elemento em meus trabalhos. Ir além da fotografia,

ultrapassar o que era confortável e relativamente

conhecido. Buscar desafios para minhas idéias, desafios

espaciais, em outra dimensão desconhecida.

Vejo uma tentativa incipiente disto em dois

trabalhos: em ‘Água’, de início um exercício de aula da

graduação, que resolvi como uma instalação com três

projetores simultâneos no mesmo espaço, que alternavam

imagens relativas ao título, juntamente com um som

ambiente produzido por mim. O segundo trabalho foi

‘Stressbugs’, em que as imagens eram expostas em

backlights na parede. Creio que foram momentos distintos,

mas em que já havia uma necessidade de se pensar algo

além da construção da imagem.

No mestrado, os primeiros exercícios foram quase

todos voltados para a ‘construção’ de um objeto. Seja na

mala com a carta de ‘Onde estou?’ ou na vitrola com o disco

infantil em ‘Qual é o peso do mundo?’, a imagem está na

tridimensionalidade do próprio objeto e não mais na foto.

Resolver isso no espaço tornou-se um problema novo para

minha produção que até então se pautava muito na imagem.

Até mesmo em outro exercício que a imagem era o resultado

final (Cartas), a produção da mesma deu-se a partir de uma

‘ação no mundo’, ela surgiu do recolhimento de restos de

papéis encontrados no chão durante uma caminhada. Ora,

deixei de ser o fotógrafo moderno que sai de casa com sua

câmera em busca da ‘imagem perfeita’, do instante decisivo,

e passei a buscar objetos, restos que seriam utilizados numa

imagem criada, ficcional, pertencente a uma narrativa

inventada (como todas são aliás).

Acredito que até minha maneira de pensar a

fotografia tenha mudado, já que antes de fotografar as

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ruínas (Onde estou?) e as frases que busco pela cidade

(Monumentos Urbanos), passo várias vezes pelo local, vejo

várias vezes, com diferentes luzes aquele lugar, antes de

fazer o tão esperado ‘click’. Toda a minha vida eu pensei em

comprar câmeras portáteis para carregar sempre na bolsa,

em busca deste instante que não podia ser perdido. Vejo

hoje, que tenho não só uma câmera portátil, seja ela a do

celular, a digital ou qualquer outra que esteja ali presente,

mas que isso não faz nenhuma diferença no meu trabalho.

Ele não está de forma alguma associado a este conceito

moderno da caça ao instante, do momento que não pode ser

perdido. Pelo contrário, as coisas precisam ser absorvidas,

eu preciso de um tempo para conviver com aquela idéia,

com aquela mudança de percepção da paisagem. Ao

perceber que aquilo existe, que aquilo sempre (ou nunca)

esteve presente em meu caminho, eu preciso digerir,

interagir, para só então ‘registrá-lo’. Mas isso não será um

mero registro. Isso será toda uma vivência, um processo

entre que o que está ali e eu. Essa é a observação do

mundo no meu ritmo. Propus que minha pesquisa seja

composta por ensaios diversos, baseados em influências

teóricas, observação de outros artistas, que estão divididos

em três capítulos. O primeiro capítulo tem como tema

principal a poeira e todos os aspectos relevantes presentes

em minha produção. No segundo capítulo, trabalho os

caminhos que proporcionaram a realização das fotografias e,

no terceiro capítulo a importância dos objetos colecionáveis

e a relação com a minha coleção de imagens desses locais.

Para pensar minha produção, busquei referências teóricas

nas obras de Walter Benjamin, Georges Bataille, Rosalind

Krauss, Susan Sontag, Giorgio Agamben, além de trazer

para o texto autores e artistas que foram importantes para

pensar e visualizar meu processo, como Robert Smithson,

Marcel Duchamp, W.G. Sebald, Georges Perec, Edgar Allan

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Poe e Italo Calvino. No decorrer do texto falo sobre minha

ação artística, intercalando minha experiência, vivência,

com questões conceituais pertinentes a este processo.

Junto com o texto são apresentadas imagens de trabalhos

citados de outros artistas e outras do trabalho chamado

‘Onde estou?’, no qual me baseei para a escrita da

dissertação. As imagens fazem parte de um grupo de várias

fotografias, divididas em pequenas séries, na qual uma foi

apresentada no dia da qualificação do mestrado e outras

duas serão apresentadas, juntamente com esta, no dia da

defesa da dissertação.

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1. POEIRA

1.1 Dust Breeding

A fotografia feita por Man Ray do trabalho

“Grande Vidro” de Duchamp - (Dust Breeding) - aproxima-se

muito do tipo de memória que procuro em meus trabalhos.

Sobre esta fotografia, Rosalind Krauss diz que a poeira

acumulada é “uma espécie de indício físico da passagem do

tempo”. 3 Tratamos aqui não só deste indício direto do

tempo (poeira) como também podemos analisar a questão

da fotografia em si como o próprio índice4. (A fotografia seria

o próprio índice da passagem do tempo, já que há uma

ligação física entre a imagem e seu referente).5 Essa poeira

é o que denuncia a passagem de tempo e, também, coloca

‘materialmente’ o trabalho na própria história. O que faz esta

poeira acumulada despertar o interesse é justamente a

questão sensível deste tempo passado. Além do acúmulo

dos indícios, há a materialidade do desenho formado, uma

paisagem aérea, tão melancólica quanto a própria poeira.

Ambos denunciam a qualidade de abandono de que trata a

fotografia.

A idéia da utilização da poeira como elemento

principal deste trabalho de Man Ray e Duchamp é um dos

aspectos que desperta interesse para esta fotografia. Ao

fazer uso da poeira, Duchamp se apodera de várias

pretensas (ou não) referências, tanto no campo da arte

quanto no da filosofia, o que segundo Arturo Schwarz, pode

3 KRAUSS, Rosalind. The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths. Cambridge: MIT Press, 1986. Pág. 202-203. 4 Segundo Dubois, “(…) a fotografia pertence a toda uma categoria de ‘signos’ (sensu lato) chamados pelo filósofo e semiótico americano Charles Peirce de ‘índice’ por oposição a ‘ícone’ e a ‘símbolo’.” - DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 2003. Pág.61. Em relação ao Duchamp, o próprio Dubois diz que a obra dele é essencialmente indicial, quer dizer, pertencente à lógica do índice.(páginas 254 e 256). 5 “A foto é literalmente uma emanação do referente.” - BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro, Nova. Fronteira, 1984. Pág. 121

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ser mais um de seus ‘jogos’. Podemos dizer que isto se

relaciona bem com a questão da passagem de tempo.

Marcel Jean, no livro ‘The complete works of Marcel

Duchamp’ nos lembra:

Nas anotações de Leonardo da Vinci, podemos encontrar a mesma idéia humorada de utilização da queda da poeira como medida do tempo; o procedimento de Duchamp é quase idêntico ao que Leonardo formula a seguir: ‘O vidro deve ser envernizado ou raspado em seu interior, de modo que a poeira que caia do funil possa se fixar ao vidro; e o lugar onde ela atinge vai permanecer marcado; e isso significa que você verá e será capaz de com certeza discernir a exata altura onde a poeira se fixou, porque ela vai permanecer presa lá.’ Podemos finalmente notar que a queda da poeira é um importante tema no pensamento Zen-Budista Chinês: o que não surpreende, em vista do objetivo final do Budismo, de domínio sobre o tempo. Mas Duchamp parece ter aperfeiçoado as disciplinas chinesas, de alguma maneira mística, introduzindo sua própria ironia afirmativa: ele não varre a poeira fora do ‘Mirror of the mind’, e nem elimina isso com a idéia de vazio – ele a aumenta.6

Duchamp apresenta uma convivência

peculiar com a poeira. Além de estar presente neste trabalho

(segundo o próprio Duchamp, esta foto foi feita a partir de

restos que se acumularam durante alguns meses sobre o

Grande Vidro), ela parecia ser um elemento de contato

diário. Ela habita seus estúdios de uma forma que

impressiona não só Georgia O’Keefe como também Jeanne

Reynal, como pode ser visto no trecho a seguir:

“Depois que Georgia O’Keeffe visitou o estúdio de Duchamp em NY em 1918, ela relatou que ‘O quarto parecia que nunca tinha sido varrido... e a poeira por todo o lugar era tão espessa que era difícil de acreditar.’ Duchamp eventualmente

6 SCHWARZ, Arturo. The complete works of Marcel Duchamp. London: Thames and Hudson, 1997. Pág. 130-131.

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usou verniz para capturar uma parte da poeira do estúdio na representação das ‘peneiras’ quando o Grande Vidro estava deitado. Condições similares persistiram no seu estúdio em NY na rua 14, como recordado por Jeanne Reynal no final dos anos 40: ‘A poeira se depositou no chão em uma camada grossa de duas polegadas com um caminho estreito a partir da porta da frente e outro seguindo para o banheiro 7...”.

Essa poeira indicial vai permear também as obras

de Joseph Cornell, que apresenta grande ligação com

Duchamp. Além de terem desenvolvido uma relação de

amizade, Cornell foi um dos que ajudou Duchamp na

construção de réplicas da Boîte-en-valise. Cornell

desenvolveu uma série de caixas temáticas, que, assim

como as caixas desenvolvidas por Duchamp, foram

chamadas de museus-portáteis. A aproximação dos dois

artistas pode ser também feita através de aspectos

melancólicos que ambos os trabalhos carregam. Se Joseph

Cornell faz uma homenagem a Edgar Allan Poe8 em um de

seus trabalhos, Duchamp encarnará o próprio ‘Homem da

Multidão’, quando se muda para NY e cria a figura do

‘celibatário9’; ele deixa a Paris que se torna obsoleta e sai

7 PHILADELPHIA MUSEUM OF ART AND MENIL COLLECTION. Joseph Cornell/Marcel Duchamp ... in Resonance. Houston/New York: Distributed Art Publishers, 1998. Pág. 250-251. 8 “Poeira é outro material implausível para o artista, ainda que ambos os artistas ficassem intrigados pelas partículas da existência cotidiana.(...)Cornell freqüentemente falava de maneira encantadora da tarefa mundana de limpar restos no chão do seu porão. Ele tinha tanta ligação com a poeira que chegou a adicionar um pouco dela na caixa chamada ‘Mouse Material’. Ele citou um precedente artístico: ‘Refletindo sobre Morandi – a poeira cobria suas amadas garrafas usadas, utensílios de metal etc., o acordo feito com sua mãe permitia que ela só limpasse metade do quarto!’. Na mesma edição da View de janeiro de 1943 que publicou pela primeira vez o Cristal Cage, Cornell incluiu um quadro fotográfico dedicado ao Edgar Allan Poe, intitulado Spent Meteor: Night of Feb. 10, 1843 (for E.A.Poe) que combinava três símbolos recorrentes para evocar o tema de Vanitas: um livro objeto recoberto de poeira e vidro quebrado. Enquanto tomado por verdadeiro, o acúmulo de poeira realmente marca um aspecto profundo do temperamento de ambos os artistas, quer dizer, uma elevada consciência dos processos naturais. A fotografia de Harry Roseman tirada na garagem de Cornell captura isto de maneira essencial – a imagem da bailarina do século XIX Fanny Cerrito em uma caixa deteriorada é envolvida por restos, sujeira e folhas secas. Para Duchamp e Cornell, poeira era uma companhia agradável.” – PHILADELPHIA MUSEUM OF ART AND MENIL COLLECTION,1998.Op.cit. Pág. 250-251. 9 “Nova York era uma cidade moderna e Duchamp, um indivíduo da metrópole. (...) Só na grande

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em busca de algo que o instigue: é o próprio flâneur

entediado, que viaja e vai atrás de novidades. O diálogo com

pensadores da modernidade se faz presente de maneira

direta, com citações ou mesmo com a criação de uma

identidade tão forte quanto os seus trabalhos que, segundo

Calvin Tomkins10, consegue separar bem as figuras do

‘homem que sofre’ do ‘artista que cria’ e com isso alternar

entre personagens, tal como o dândi (de um terno só) ou o

caçador/flâneur que atuava na sociedade para criar uma

nova maneira de se fazer e divulgar a arte.

1.2. Melancolia

A poeira estaria presente como algo análogo ao tédio,

como afirma Benjamin na frase que relaciona a pelúcia como

depósito de poeira, no capítulo ‘Tédio, Eterno Retorno’ de

seu livro ‘Passagens’.11 O local do acúmulo, juntamente com

a sensação de uma perspectiva sufocada e poeirenta do

panorama12 ou mesmo a poeira que se acumula nas

passagens e suja os vestidos das mulheres quando chove.

Essa poeira que sufoca o passado, que se perde em meio a

uma modernidade que se faz presente. A poeira que alerta

para um local que não faz mais sentido, anacrônico frente a

cidade, lançado a sorte, ao inesperado do acaso, pode existir o ‘celibatário’, projeto existencial e intelectual que Duchamp traçou para si e, quem sabe, para o homem moderno. (...) De situações fortuitas e aleatórias Duchamp tira mais valia. Daí o flâneur ser o grande caçador de acasos da sociedade de consumo nascente; o consumidor das vitrinas onde os objetos são como a passante de Baudelaire que, à distância, perversamente, se oferece à fantasia e à imaginação. À sua maneira, O Grande Vidro é também uma vitrina.” - TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. São Paulo. Cosac & Naify, 2005.pág. 9 10 TOMKINS, Op.cit., 2005.pág. 7-8. 11 BENJAMIN, Walter. Passagens. Ed. org. por Willi Bolle. Belo Horizonte / São Paulo: Ed. UFMG / Imprensa Oficial SP, 2006. Pág. 143. 12 Além dessas construções terem o aspecto melancólico por ficarem expostas ao ‘tempo’ e com isso, apresentarem o indício da poeira, elas serviam como uma forma de reviver cidades destruídas, paisagens que haviam sumido, trazendo com isso a questão das ‘ruínas românticas’, que tanto encantou os pensadores da modernidade, em um paradoxo inerente aos seus textos. Segundo Sonia Hilf Schulz, em seu livro ‘Estéticas Urbanas’, “(...) os panoramas registravam cenários de cidades desaparecidas e possibilitavam, assim, a análise das mutações no ambiente construído (...).” Benjamin diz que as “passagens são casas ou corredores que não têm o lado exterior – como o sonho.” Os panoramas vão geralmente se localizar na entrada ou na saída de uma passagem, o que seria quase como um sonho dentro do outro.

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uma cidade que insiste em mostrar sua modernidade.

Esta poeira que se acumula, que revela o tempo

passado/perdido, é a mesma de que fala Bataille em seu

Dicionário Crítico13, de uma maneira bem singular ao referir-

se à poeira e às teias de aranha que estariam supostamente

acumuladas na Bela Adormecida depois de seu sono

profundo e que se dissipariam ao menor movimento de seus

cachos. Temos aqui não só o aspecto temporal como

também o melancólico. Não é à toa que Bataille vai trazer

uma personagem do imaginário infantil (que nunca

envelhece, apenas vive feliz para sempre) com camadas de

poeira para retratar a passagem do tempo e a melancolia14.

A idéia desta passagem do tempo no conto de fadas

inexiste. O tempo passa mas nada se modifica. Todos

permanecem congelados em um espaço-tempo em que não

há envelhecimento nem provas físicas de que houve alguma

modificação. A figura dos personagens traz também a

questão da melancolia porque estão distantes, fazem parte

de uma época que já passou, seja ela a infância (momento

em que ouvimos tais histórias) ou mesmo a época em que

são ambientadas (Idade Média). Adorno, em seu livro

‘Minima Moralia’, coloca que o conto da Branca de Neve,

através de sua ambientação, caracterização dos

personagens ou a própria história e seu conteúdo moral é

um dos que ‘exprime melhor do que nenhum outro a

melancolia.’ Melancolia esta que percebemos na grande 13 BATAILLE, Georges, “Dust” in Bataille et al., Encyclopedia Acephalica. London: Atlas Press, 1995. Pág.42-43. 14 Segundo o Dicionário de Psicanálise, de modo simplificado, a melancolia é um “termo derivado do grego melas (negro) e kholé (bile), utilizado em filosofia, literatura, medicina, psiquiatria e psicanálise para designar uma forma de loucura caracterizada pelo humor sombrio, isto é, por uma tristeza profunda, um estado depressivo capaz de conduzir ao suicídio, e por manifestações de medo e desânimo que adquirem ou não o aspecto de um delírio. (...) a teoria hipocrática dos quatro humores, que durante séculos, permitiu descrever, de maneira mais ou menos idêntica, os sintomas clínicos dessa doença: ânimo entristecido, sentimento de um abismo infinito, extinção do desejo e da fala, impressão de hebetude, seguida de exaltação, além de atração irresistível pela morte, pelas ruínas, pela nostalgia e pelo luto.” PLON, Michel; ROUDINESCO, Elizabeth. Dicionário de Psicanálise. Jorge Zahar: Rio de Janeiro, 1998. Pág. 505-506.

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maioria dos contos de fadas que ouvimos na infância15.

No filme Samsara16, de Pan Nalin, temos uma

idéia semelhante, mas de forma inversa. O filme conta a

história de um monge tibetano e sua dúvida entre seguir a

vida no monastério ou experimentar viver como um homem

comum, pois apenas conheceu a vida dentro dele. O que

aproxima este filme dos contos de fada é justamente o fato

de que aqui temos a passagem de tempo muito bem

representada. O monge; depois de três anos, três meses,

três semanas e três dias; é tirado da caverna onde estava

fazendo um retiro espiritual. Se a Bela Adormecida acorda

sem que nada houvesse mudado, o monge está com seus

cabelos, sua barba e unhas muito além do comprimento

normal. Além disso, seu corpo não agüenta o esforço, pois

não exercita sua musculatura há muito tempo. Mas o que

importa mesmo é o fato de estar coberto de pó, pois, como

se não bastasse os indícios corporais de que o tempo

passou, temos o melhor indício para isso: a poeira que cobre

tudo que é abandonado ou deixado de lado; que alimenta

este estado ‘vegetativo’.

Numa direção oposta, Italo Calvino vai entender a

melancolia como algo associado à leveza, em seu livro ‘Seis

propostas para o novo milênio’. Ele conceitua, em

determinado momento, a melancolia como

(...) um véu de ínfimas partículas de humores e sensações, uma poeira de átomos como tudo aquilo que constitui a última substância da multiplicidade das coisas17.

Novamente temos a poeira permeando a

melancolia, porém esta poeira é mais fina, brilha e não pesa

tanto quanto a poeira de Bataille. Ele ainda diz que “a

15 ADORNO, T.W. Mínima Moralia. Lisboa: Ed.70, 2001. Pág. 122-123. 16 Samsara – Dir. Pan Nalin (Alemanha/India) (2001). 17 CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Pág.32 -33.

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melancolia é a tristeza que se tornou leve (...) [é] a gravidade

sem peso18.” Ela é a poeira que está na canção ‘Stardust19’,

é ‘a busca da leveza como reação ao peso do viver20.” A

melancolia é vista com esperança, como um estado possível

de sofrer transformação.

Neste mesmo verbete, ‘Dust21’, Bataille associa a

poeira também com ambientes que trariam lembranças

assombradas, espaços decadentes, abandonados (velhos

quartos e sótãos), em que a poeira estaria ali presente para

‘alimentar’ tais aspectos. A poeira é algo que não deveria

estar nestes lugares, que não queremos ver, que aspiramos,

limpamos freneticamente para não termos o indício de

passagem de tempo. Ela é quase invisível, mas também se

faz presente e essa presença é indesejada. Buscamos

sempre retomar o aspecto ‘novo‘, o viço de tudo que

limpamos para não termos que conviver com a melancolia

que a poeira traz.

Na história ‘Max Aurach’, do livro ‘Emigrantes’ de

W.G. Sebald, temos um exemplo de narrativa que expõe a

melancolia na própria forma de construir a narrativa. Além do

texto fazer uma descrição minuciosa do ateliê do artista, ela

é arrastada, lenta, com longos parágrafos e frases que

nunca chegam ao final. São várias imagens que o escritor

cria, que formam uma única rede, com pequenas referências

do cotidiano melancólico do artista, pequenos detalhes que

compõem o cenário perfeito para o artista ‘saturnino’, como

pode ser visto no trecho a seguir:

Entrando no ateliê leva um bom tempo até os olhos se acostumarem à estranha luz reinante, (...) A escuridão acumulada nos

18 Idem. Pág.32. 19 Stardust - 1927 - Hoagy Carmichael 20 CALVINO, 2001. Op.Cit. Pág. 39. 21 BATAILLE, Georges, “Dust” in Bataille et al., Encyclopedia Acephalica. London: Atlas Press, 1995. Pág.42-43.

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cantos, o reboco de cal inchado com manchas de sal, e a pintura descascando nas paredes, as prateleiras cobertas de livros e montes de jornais, as caixas, (...) Aurach instalou seu cavalete, na claridade cinzenta que entra pela janela do norte, coberta por décadas de poeira. (...) o chão está coberto por uma massa de vários centímetros de altura já endurecida, com uma crosta, misturada com pó de carvão, (...) Certa vez Aurach disse em tom casual que sempre considerara muito importante que nada mudasse em seu local de trabalho, que tudo ficasse do jeito que ele organizara, assim como estava agora, e nada se acrescentasse além do lixo que caía enquanto ele pintava nem da poeira que baixava incessantemente e que, como lentamente aprendeu, era mais ou menos a coisa que mais amava no mundo. A poeira, disse ele, lhe era muito mais próxima do que a luz, o ar e a água. Nada lhe era tão insuportável quanto uma casa em que se limpava o pó, e em nenhum lugar sentia-se melhor do que ali onde as coisas podiam ficar imperturbadas e abafadas22 (...).

Esta poeira que Aurach tanto venera é uma poeira

que, ao mesmo tempo dá vida ao ateliê e que denuncia o

seu estado de abandono melancólico. Por mais que ele viva

e sinta que o tempo passa ao trabalhar, é na poeira que a

passagem de tempo está mais bem representada. Por isso

não se pode limpar o cômodo, por isso a poeira tem de cair

lentamente, acumular todo dia, formar camadas tal como a

tinta que se mistura ao piso. É como se ele fosse um

prisioneiro deste indício de tempo, destes pequenos

resquícios de sua vida.

Quando Bataille afirma que a

poeira é uma espécie de alimento para estes locais, de

alguma forma deixados de lado, (incluindo as coisas que são

depositadas/abandonadas nestes espaços para depois

serem revisitadas), temos o mesmo movimento melancólico,

22 SEBALD, W. G. Os emigrantes. Rio de Janeiro: Record, 2002. Pág.160-161

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pois a fotografia do ‘Grande Vidro’ fará parte de uma espécie

de memorabilia23 habitante de uma caixa (Caixa Verde) e

que deverá ser ‘lida’ junto com a obra do ‘Grande Vidro’. A

‘Caixa Verde’ será o depositário de todas as ‘lembranças’

sobre ele (Grande Vidro), tudo o que importa, mas que não

pode estar junto da própria obra. São os indícios que

contribuíram para a formação do próprio trabalho.

Esta idéia da limpeza do ateliê, dessa poeira que

se acumula, da ‘Élevage de Poussière’ relaciona-se com

questões presentes no item ‘Dust Breeding’, em que Cornell

e Duchamp ‘representam’ na vida real a composição deste

personagem descrito por Sebald. Tanto Duchamp quanto

Cornell apresentam uma relação análoga com a poeira,

como vimos anteriormente. Seus ateliês ficavam cobertos de

pó e chegaram a utilizá-la como material de trabalho.

A presença do impalpável e do sensível em um mesmo lugar.

Dust

Poussière

Ao buscar estes locais abandonados pela cidade, pensei

que agiria em um movimento de recuperação, de valorização de um 23 “Quase duas décadas depois da primeira iniciativa desse tipo, quando havia reproduzido dezesseis notas e um desenho, Duchamp decide reproduzir em fac-símile todas as suas notas, esboços, desenhos e algumas pinturas sobre ‘O grande vidro’ realizadas entre 1912 e 1920, e reuni-las sem nenhuma ordem em uma caixa que, em setembro desse ano, edita sob o título La Mariée mise à nu par sés Célibataires, même (A Noiva despida por seus celibatários, mesmo) também conhecida como Caixa Verde, devido à cor do material aveludado com que a caixa era forrada. Para Duchamp, a caixa devia ‘(...) acompanhar o Vidro e ser consultada quando se olha o Vidro, já que, pelo menos para mim, não deve ser ‘olhado’ no sentido estético da palavra. Deve-se consultar o livro e olhá-los juntos. A conjunção de ambas as coisas remove completamente o sentido retiniano que não me agrada.’” – FILIPOVIC, Elena (org.) et.al. Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra ‘de arte’. Buenos Aires: Fund. Proa; São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, MAM-SP, 2008. Pág.58.

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ambiente que não apresentava valor real. Ao apontar minha câmera

para eles eu os trazia para a realidade, para a cidade, como se eu os

contextualizasse novamente. Este trabalho começou quando eu

passei a perceber, nos meus caminhos diários, alguns desvios,

locais que faziam meu olhar ter um estranhamento. Quer dizer,

eles me tiravam de uma espécie de transe, de um olhar que vagava

sobre uma superfície contínua. Os terrenos eram uma interrupção

no ritmo contínuo, um buraco que tropeçamos na calçada quando

andamos sem prestar muita atenção e que nos faz olhar para trás

para ver o que realmente ocorreu. Mas no caso dos terrenos a

sensação de choque era maior pois eu não tinha como voltar. Esses

caminhos cotidianos eram feitos de carro e ao passar por uma

localidade que apresentasse essa peculiaridade, já era tarde demais

quando me dava conta do que havia ocorrido. A única maneira de

preservar este momento era anotar em um pequeno bloco que

carrego na bolsa, para poder observar com mais calma quando

fosse passar novamente.

De fato, poderia voltar já com a câmera para

registrar logo a existência deste espaço fugidio, já que eles

costumam desaparecer rapidamente, mas isso nunca ocorria.

Costumava voltar e observar este local inúmeras vezes até achar

que era necessário fazer a fotografia. Na maioria das vezes, só

tomava a decisão quando sentia que o local estava novamente se

transformando, quando havia uma ocupação por moradores de rua

ou quando uma empresa começava a limpar o terreno para uma

nova construção. Precisamente este era o momento perfeito, o

momento em que a entropia era percebida, a mudança de estado era

visível. Acredito que esta não-ação em relação à fotografia era

uma atitude de resistência, um modo de achar que aquela situação

poderia permanecer por mais tempo. Observava constantemente,

numa ilusão de que aquilo era minimamente duradouro. Mas, ao

menor movimento inerente à cidade (seja de crescimento ou

destruição) se fazia necessário guardar esse pequeno instante. Seria

a paráfrase do ‘instante decisivo’ de Henri Cartier-Bresson. Se ele

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P á g i n a | 28

estava sempre pronto, com sua câmera à mão para poder fazer a

melhor foto, eu quase perco este momento ideal por preferir

observar e acreditar que ele vá durar para sempre sem a minha

interferência.

Esses lugares em relação à cidade representam o

indício de sua entropia, o local em que isso pode ser percebido de

maneira mais clara, mas que ao mesmo tempo, nem sempre é

notado. São espaços de transição e, justamente por isso, não são

apreendidos por todos que passam perto deles. Ao fotografá-los,

crio um duplo indício (duplo índice). Eles simbolizariam a poeira

do ambiente urbano, o que não pode ser contido, o que extravasa.

Quando são fixados em forma de imagem, tornam-se o indício de

sua existência. A fotografia, o trabalho, transforma-se na afirmação

desta poeira. Duplamente, ela faz com que a poeira nunca deixe de

existir, pelo contrário, a poeira encontra ali sua maneira de

eternizar-se. Segundo Elio Grazioli, em seu livro ‘Polvere

nell’arte’, assim como os objetos, os lugares a natureza e o homem

se transformam, se ‘consomem’, todos tendemos ao

desaparecimento, onde a poeira é o índice deste mundo moderno

que morre a cada dia, aquele local tem apenas na fotografia a

chance de ultrapassar o presente e chegar ao futuro24.

A poeira seria como um símbolo de morte e vida,

de transformação entre um lugar que não é mais o que era e que

pode ser uma nova coisa a qualquer momento. O local da entropia

per se, onde não há volta para aquele resquício de construção e o

que virá nunca será igual àquilo que se foi. Poeira como a

passagem entre o antigo e o novo, como metáfora25 da eterna

transformação ‘você é pó, e ao pó voltará.26’

A busca por esses lugares ocorre de maneira

24 GRAZIOLI, Elio. La polvere nell’arte. Milano: Bruno Mandatori, 2004. Pág. 44. 25 “A metáfora da poeira é evidentemente antiqüíssima já que Deus na Bíblia a utiliza para criar o corpo do primeiro homem. Subitamente é ligada à origem, à matéria e ao tempo.” – GRAZIOLI, 2004. Op.cit. Pág. 1. 26 SBCI . Bíblia Sagrada - edição pastoral. São Paulo: Paulus, 2000, 40º reimpressão. Pág. 17 – Gênesis 3,19

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semelhante a flânerie parisiense. Análogo porque a apreensão da

cidade também está relacionada com a observação tediosa que leva

a uma descoberta. O ‘belo’ que desperta do habitual. Porém, não

tenho o mesmo tempo do flâneur. Tento criar este tempo quando

retorno ao local. Entretanto, a experiência sempre ocorre através de

um filtro. Ela não é direta como a do flâneur que vaga pelas ruas

sem rumo atrás de um momento que o desperte do tédio. Estou

sempre atrás de uma janela, seja ela a do carro ou da câmera. O

meu caminho é sempre tedioso, é o caminho da casa para o

trabalho ou derrubados, mas que deixaram impressos nas paredes,

que cercam o terreno ao qual pertenceram, a sua poeira, o seu

índice de que um dia ali estiveram com toda a sua força

construtiva. Os restos frágeis tentam reproduzir o que havia ali. Ao

mesmo tempo, percebe-se o vazio, a sensação de não-existência, de

alguma coisa que tenta resistir, mas não consegue. Ao refazer esse

caminho, a repetição das fotos traz de volta as inúmeras

observações que foram feitas do terreno antes da apreensão das

imagens. Uma monotonia e, de alguma maneira, uma tentativa de

armazenar, reter a memória fugaz do local.

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1.3. Sísifo

Segundo Yve-Alain Bois, no verbete ‘Zone’27

do livro ’Formless’, a poeira tem um duplo índice, já que na

escala urbana, os locais em que ela aparece28, representam

a poeira na escala residencial. Se em casa temos aqueles

objetos velhos empoeirados que queremos não ver (e por

isso eles acabam em locais que também são abandonados),

nesta escala urbana, os locais inóspitos representam o asco

da poeira residencial. São locais que não desejamos ver e,

se pudéssemos, evitaríamos sua existência. Além disso,

estes espaços seriam o lixo, a perda inevitável da produção,

resultado de uma ‘overproduction’, segundo Bataille29.

Ao mesmo tempo, podemos dizer que em sua

teoria econômica, Bataille trata da ‘despesa improdutiva30’.

Este conceito abre possibilidade para pensarmos estes

espaços vazios sob outro aspecto. Ao trabalhar o princípio

de perda como algo importante para a sociedade, Bataille

chega a relacioná-lo com a arte, as jóias, os jogos e a

religião e o que significa sua importância para os homens31.

Podemos aproximar isto do fato de que estes espaços

‘desperdiçados’, de alguma maneira, são necessários para o

equilíbrio da cidade, pois os gastos visivelmente

empregados e perdidos nestas construções fazem com que

percebamos melhor tudo que está a sua volta. Eles são os

espaços ‘inúteis’, indefinidos, em que quanto maior o

desperdício maior sentido eles fazem para o equilíbrio

urbano. Eles carregam um valor agregado simbólico que faz

com que olhemos para eles com certo receio de que aquilo

27 BOIS, Yve Alain; KRAUSS, Rosalind E. Formless: A User's Guide. New York: Zone Books, 2000. Pág. 224-231. 28 Terrenos baldios, estacionamentos fora de uso, prédios abandonados etc. 29 Conceito que Bataille trabalha em seu livro ‘A noção de despesa’. 30 BATAILLE, Georges. A Parte Maldita (precedida de "A Noção de Despesa"). Rio de Janeiro: Imago, 1975. Pág. 29. 31 A importância de gastar uma quantia grande ao comprar uma jóia; a importância da arte para uma sociedade, já que ela é inútil por princípio; a questão da competição esportiva etc.

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tome uma proporção maior do que já têm, tal como a poeira

que pode se acumular indefinidamente se deixarmos de

limpar.

Essa poeira que se acumula nas casas à revelia

de tantos esforços também poderia ser relacionada com

estes espaços vazios, abandonados, que estão em

constante movimento de reaproveitamento pela cidade

(quando estão adormecidos em sua poeira) ou ficarem por

um tempo sem utilização adequada (quando perdem sua

função anterior). Os locais passam sempre pela ‘limpeza’

para serem renovados, modificados e deixarem de ser o

‘local sagrado urbano32’ para virarem um local ’produtivo’.

Ou passam por todo um processo de degradação para

virarem um não-lugar. Nesse movimento entre produtivo ou

sagrado, estes espaços proporcionam alterações

significativas na paisagem urbana. Segundo Marc Augé,

(...) por ‘não-lugar’ designamos duas realidades complementares, porém, distintas: espaços constituídos em relação a certos fins (transportes, trânsito, comércio, lazer) e a relação que os indivíduos mantêm com esses espaços33.

Podemos aproximar esta idéia sobre o não-lugar de Marc

Augé com as heterotopias de Foucault, que ele conceitua

em seu texto ‘Outros Espaços34’. Na verdade, o próprio

Augé chega a fazer isso em seu livro quando classifica o

não-lugar como o contrário da utopia.35

Para Foucault, existem dois posicionamentos: as

utopias e as heterotopias. A primeira é um posicionamento

32 Sagrado no sentido que Bataille emprega em relação às despesas improdutivas, em que a religião, principalmente ao realizar cultos, estaria associada. 33 AUGÉ, Marc. Não- lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas: Papirus, 1994. Pág. 87 34 FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: MOTTA, Manoel Barros (org.). Michel Foucault. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. (Ditos & Escritos. v. III) pág. 411-422. 35 AUGÉ, 1994. Op. Cit.Pág. 102.

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sem lugar real. A segunda é uma espécie de utopia

concreta, com posicionamentos reais. São locais opostos, tal

como a conceituação de Augé. Já para Miwon Kwon, em seu

artigo ‘O lugar errado36’, diz que estes locais, que podem ser

chamados de ‘não-lugares’ e heterotopias, são relacionados

com uma sensação de inadequação, de estar em trânsito.

Em todos os casos há um ponto em comum. Esses são

locais em que a disjunção está presente. Em que habitamos

um ‘entre’, uma fresta, um espaço provisório, de passagem.

É um espaço que na maior parte das vezes não é percebido

como tal e, por isso, quando ele chega a ser percebido,

sentimos esta sensação de ‘lugar errado’.

Apesar dessas conceituações se referirem

sempre a locais que representam lugares de passagem,

podemos perceber como isso pode ser aplicado aos locais

tratados neste trabalho. Estes terrenos ou construções

imprecisas não deixam de apresentar características

similares aos locais que são apresentados pelos autores

(hotéis, aeroportos, barcos, ônibus, jardins, cemitérios).37 Ao

vermos os terrenos/construções a partir de uma escala

urbana, percebemos que estes locais são os espaços em

que a cidade vive de fato. Se isso representa uma espécie

de posicionamento, é justamente o de poder trabalhar o

caos, de ser entrópica.

Isto seria, ainda segundo Yve-Alain Bois, o trabalho

eterno de Sísifo ou mesmo o mito de Hidra de Lerna e suas

cabeças que sempre nascem novamente. A cidade sempre

trabalha por modificar este espaço urbano em ações

entrópicas já que estão sempre em um moto-contínuo. Ora,

36 KWON, Miwon. O lugar errado. Trad. Jorge Menna Barreto. Art Journal. Spring 2000. Pág. 33. 37 Não deixa de ser interessante notar que Benjamin, em sua obra ‘Passagens’ caracterizou estes lugares como “moradas de sonho do coletivo: passagens, jardins de inverno, panoramas, fábricas, museus de cera, cassinos, estações ferroviárias.” - BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1987. Pág. 449.

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a poeira que estava lá no ‘Grande Vidro’ era um sinal de

abandono, de algo que fora deixado de lado por algum

tempo.

A reconstrução é eterna e, assim como Sísifo, sempre estaremos

impossibilitados de perceber nossa ação como um todo, presos que

estamos nesse moto-perpétuo.

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2. CAMINHOS

2.1. Flâneur

Esses indícios ou/e espaços que comportam

estes indícios (tratados no capítulo anterior) irão interessar

os artistas de maneira geral, a partir das Vanguardas, e mais

precisamente, como escreve Susan Sontag, a partir da

estética do Surrealismo. Em seu ensaio sobre a melancolia e

a fotografia denominado ‘Objetos de melancolia’, Sontag

afirma:

De fato, a fotografia - a exemplo do próprio gosto surrealista preponderante - revelou um apego inveterado ao lixo, a coisas repugnantes, dejetos, superfícies esfoladas, bugigangas estranhas, kitsch.38

E mais adiante, complementa:

(...) foram o Breton e os outros surrealistas que inventaram a loja de mercadorias de segunda mão como um templo do gosto de vanguarda e alçaram a visita aos brechós à condição de um tipo de peregrinação estética.39

É perceptível que este movimento de procura dos

restos de uma sociedade ainda se faz presente na

contemporaneidade. Se dentro deste universo citado por

Sontag (as fotografias de vitrines de Atget, as caixas de

Joseph Cornell ou outros artistas que utilizaram este

procedimento) temos uma peregrinação pelos centros ou

pelas periferias da cidade para se conseguir o material

adequado, atualmente não deixa de apresentar tanta

disparidade. Assim como ela diz em seu ensaio sobre este

flâneur de Baudelaire e Benjamin, que olha o mundo de

forma diferente, ao caminhar pela feira de antiguidades da

38 SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. Pág. 93. 39 SONTAG, 2004. Op.cit. Pág. 93.

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Praça XV, ou mesmo pelos inúmeros sebos e brechós do

centro da cidade, sinto-me o próprio flâneur tupiniquim, o

próprio João do Rio em seus passeios e descobertas pelo

centro do Rio de Janeiro.

Ora, não é lá que se localiza o que há de mais

exótico na cidade? Não é lá que os personagens de uma

suposta classe que perdeu seu status vendem suas

pequenas preciosidades para quem quiser ouvir uma boa

história? Encontra-se de tudo, desde raridades kitsch até um

lixo tecnológico produzido recentemente, tais como controles

remotos velhos, teclados usados e sem função. Nestes

lugares têm-se sempre a sensação de que poderemos

encontrar alguma raridade a preço de banana ou mesmo um

objeto estranho, desprovido de toda função, mas que possui

algo que desperta interesse visualmente.

A caça deixou de ser pelo instante decisivo e

passou a ser pelo objeto perfeito. Esse personagem

andarilho, que busca um “je ne sais quoi” tal como o

“Homem da Multidão”40, está sempre em busca de algo, em

busca dele mesmo, de ser invisível e visível ao mesmo

tempo. Se na Modernidade a procura era por alguma coisa

que ainda mantivesse resquícios de um mundo que se

perdia (daí a melancolia); tal como as passagens eram para

Benjamin ou o próprio flâneur que buscava sempre algo

relacionado ao transitório (moderno) e ao eterno (passado);

atualmente temos esta pesquisa não só a partir destes

resquícios, mas também por qualquer coisa que surpreenda,

que nos tire do lugar-comum, através desse olhar pelo

exótico. O exótico que se relaciona com o outro, que nos faz

ver, através do outro, nós mesmos. Esse olhar que é voltado

para o passado seria muito similar ao olhar que temos

quando observamos o que está distante. De certa forma, 40 POE, Edgar Allan. Ficção Completa, Poesias & Ensaios. Trad. de Oscar Mendes e Milton Amado. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. Pág. 392-400.

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quando nos distanciamos temporalmente, estamos também

distantes espacialmente e, por isso, podemos entender este

olhar para o passado como o olhar para os povos

‘primitivos’, como um interesse que faz ressaltar nossas

qualidades e nossos defeitos, já que esse outro é criação

nossa, ele só existe para nós. A apropriação do passado, do

outro, não deixa de ser uma afirmação do eu, já que vemos

neste passado algo que faz parte de nós.

Em seu livro ‘Polvere nell’arte’, Elio Grazioli faz

uma analogia entre a poeira e o exótico representado pelas

fotografias do século XIX de grandes expedições e viagens

arqueológicas ao redor do mundo41. Ele comenta que a

mesma poeira que não suportamos em nossas casas e que

nos faz limpar freneticamente o ambiente, é a mesma

poeira que nos faz perceber essas fotografias como

exóticas pois nelas a poeira executa um papel quase

pitoresco, que nos distancia e permite entender aquele local

como inatingível, tal como a questão da poeira nos contos

de fada já comentada no capítulo da poeira. Ao mesmo

tempo, essa poeira coloca essas fotos em outro patamar do

passado, um passado que desloca nosso olhar para este

exotismo, o mesmo exotismo que habita os objetos nas

feiras de antiguidades ou os locais inóspitos buscados pelo

flâneur.

Este flâneur vai vivenciar a cidade, experimentar

cada canto, beco, lugares desacolhedores, tais como os

lugares habitados pela poeira comentada anteriormente.

Lugares que mantêm o cheiro de mofo, mas que estão no

presente pelo fato de existirem (afinal somos

contemporâneos). Ele se deixa embriagar por aquela

atmosfera, deixa-se contaminar por esta poeira e depois sai

incólume do lugar, tal como o ‘Homem da Multidão‘. O

41 GRAZIOLI, 2004. Op. Cit. Pág 45.

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P á g i n a | 38

devaneio é temporário, está presente apenas no momento

de se percorrer a cidade em busca deste belo moderno

baudelairiano. Benjamin diz que

O homem que lê, que pensa, que espera, que se dedica à flânerie, pertence, do mesmo modo que o fumador de ópio, o sonhador e o ébrio, à galeria dos iluminados42.

Ele é o homem que se deixa levar pelas

sensações, que apura os canais de comunicação para poder

sentir melhor o que a cidade pode dar a ele. Ele aprecia

cada instante que os seus sentidos proporcionam. Georges

Perec também vai se descrever como um flâneur que além

de se deixar vagar, gosta de fazer jogos, criar situações para

andar pela cidade de Paris, como uma maneira de perceber

essa cidade de várias formas, entretendo-se com o que ele

já viu, já reconhece. Ele conta que

Eu adoro andar por Paris. Às vezes numa tarde inteira, sem nenhum objetivo, não casualmente, ou aleatoriamente, mas tentando deixar-me levar. Às vezes tomando o primeiro ônibus que para (você não pode mais pegar ônibus quando eles estão em movimento). Ou então preparando um cuidadoso e sistemático itinerário. Se eu tivesse tempo, eu gostaria de criar e resolver problemas análogos ao da ponte de Königsberg ou, por exemplo, encontrar um caminho que cruzasse Paris de um lado ao outro utilizando somente ruas começando com a letra C43.

O flâneur tornou-se um personagem de fácil

vestimenta, que ainda produz bons resultados em suas

buscas. Sai sem rumo pela cidade, para experienciar,

entrega-se ao devaneio e volta como qualquer outro homem,

sem rótulos, sem distinção aparente. Benjamin afirma:

42 BENJAMIN, Walter. “O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia”. In ‘Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura’. São Paulo: Brasiliense, 1985. Pág. 33 43 PEREC, George. Species of Space and Other Pieces. London & New York: Penguin Books, 1997. Pág. 63.

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A figura do flâneur prenuncia a do detetive. O flâneur devia procurar uma legitimação social para seu comportamento. Convinha-lhe perfeitamente ver sua indolência apresentada como aparência, por detrás da qual se esconde de fato a firme atenção de um observador seguindo implacavelmente o criminoso que de nada suspeita.44.

Essa figura do detetive que procura, no detalhe,

nas minúcias, as pistas para a solução do crime, deriva, de

acordo com a citação de Benjamin, deste homem que busca

na multidão qualquer coisa destacável, algo que o diferencie

do resto e, que é ao mesmo tempo, o olhar para o banal,

para o que está ao seu lado, o prosaico. É interessante

perceber que Poe, vai ser o escritor que se ‘especializa’ em

contos fantásticos, policiais e de terror. O detalhe será o

ponto principal em sua obra.

Em outro capítulo, citado anteriormente, Benjamin

aborda o “Tédio e o Eterno Retorno”. A idéia deste eterno

retorno estaria associada a uma noção de mistura, uma

fantasmagoria do passado presente no moderno, em que, de

alguma forma, sempre buscamos algo do passado ‘extinto’ e

dialogamos com o presente45. Sem este movimento, não há

presente. Essa revisitação do passado, num movimento de

espiral, em que o retorno não seria em um mesmo ponto,

mas sim em um ponto paralelo, é o que faz o flâneur em sua

busca pela cidade-labirinto. Ele retorna aos elementos do

passado, experimenta esta história e transforma esta

experiência em algo interessante. Na verdade, para que ele

apreenda alguma coisa, é necessário também outro tempo,

outro ritmo. A multidão tem a velocidade da modernidade.

44 BENJAMIN, 2006. Op. cit. Pág. 485. 45 “O eterno retorno é uma tentativa de unir os dois princípios antinômicos da felicidade: ou seja, o da eternidade e o do ‘mais uma vez ainda’. A idéia do eterno retorno faz surgir por encanto, da miséria do tempo, a idéia especulativa (ou a fantasmagoria) da felicidade.” - BENJAMIN, Walter, Obras escolhidas. Vol. 3. São Paulo: Brasiliense, 1987. Pág. 174.

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Ele vai ser a velocidade do tédio, da melancolia. Ao mesmo

tempo, esse eterno retorno também pode ser visto como o

tédio que proporciona o extraordinário.

Apesar de C. Guys46 afirmar que o homem que

sente tédio no meio da multidão é um tolo, será justamente

através do tédio, (o tédio que também proporciona o olhar

para o banal, cotidiano etc.), que o extraordinário surgirá.

Exatamente por nos encontrarmos no meio de um círculo

vicioso do banal (nada desperta a atenção, pois tudo é

prosaico) é que será possível a curiosidade ser despertada,

já que, será através deste ‘olhar tedioso’ que o novo surgirá.

Ao estarmos tão anestesiados com o banal, qualquer coisa

de diferente que surja nos despertará a atenção. Em seu

ensaio “Sob o Signo de Saturno”, Susan Sontag destaca que

o olhar de Benjamin é o olhar do melancólico: aquele que

nada vê, que não enxerga quase nada à sua frente.47

O olhar precisa ser apontado48 para algo não

visto, algo novo; é através do espanto pelo óbvio que esta

curiosidade surge, um olhar quase infantil que se surpreende

com o que está bem à sua frente, mas ainda não foi

percebido. Georges Perec diz que isso só pode ocorrer na

cidade, pois é nela que a surpresa existe. Segundo ele

Eu sou um homem da cidade; nasci, cresci e vivi em cidades. Meus hábitos, ritmos e meu vocabulário são os hábitos, ritmos, e vocabulário de um homem urbano. A cidade pertence a mim. Estou em casa lá: asfalto, concreto, trilhos, a rede de ruas, o entediante

46 BAUDELAIRE, Charles. (org. Teixeira Coelho). A Modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.pág. 171. 47 “E desta obstinação deriva, ‘acima de tudo, um olhar contemplativo que parece não enxergar um terço do que vê.” - SONTAG, Susan. Sob o Signo de Saturno. Porto Alegre: LP&M, 1986. - pág. 89 48 Assim como a câmera é apontada para os momentos decisivos, o olhar sem o dispositivo também fará este papel. Agamben faz uma observação sobre este vagar sem rumo atrás de imagens no conto ‘O dia do juízo’ no qual diz que “(...) Dondero, que, assim como Robert Capa, sempre se manteve fiel ao jornalismo ativo e muitas vezes praticou o que se poderia denominar a flânerie (ou ‘andar a deriva’) fotográfica: passeia-se sem meta e se fotografa tudo o que aparece.” - AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. Pág. 27.

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cinza das fachadas que se estendem além da visão, essas são as coisas que podem me surpreender ou me chocar, mas de um mesmo modo que eu posso ser surpreendido ou chocado pela, por exemplo, extrema dificuldade que temos quando queremos olhar atrás do nosso pescoço ou a injustificável existência dos seios da face (frontal ou maxilar). No interior, nada me choca; eu posso ser convencional e dizer que tudo me surpreende; na realidade tudo me deixa mais ou menos indiferente.49

Não deixa de ser um eterno retorno ao tédio da multidão.

Esse olhar para a multidão traduz-se como o olhar para sua

época, mas que de maneira nenhuma está desvinculado do

passado, “(...) a cidade não conta o seu passado, ela o

contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das

ruas50.”

Este olhar ‘moderno’ percebe o transitório e o eterno

simultaneamente.

2.2. Entropia

A busca pelos locais inóspitos da cidade ocorre

sem percebermos. Ao caminhar pela cidade, estamos

sempre vagando, sem distinguir direito as coisas, já que o

hiperestímulo é constante. Sons, cheiros, outdoors, letreiros,

pessoas, tudo ao mesmo tempo concorrendo por sua

atenção. Olhamos a esmo, tentamos entender a informação,

mas tudo também parece pasteurizado, parecido. Olhamos

mas não apreendemos nada. Só saímos deste torpor

quando algo sai do comum, quando percebemos alguma

coisa que não pertence àquele lugar, momento. Aí surge o

terreno baldio, a construção abandonada, o vazio.

A cidade absorve as construções de diversas

49 PEREC, 1997. Op.cit. Pág. 69. 50 CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Pág. 16.

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formas, inclusive as deixando tornarem-se ruínas ou não. É

interessante pensar isso, principalmente a partir de uma

frase do Argan em que ele vê a ‘(...) cidade como espaço

visual’51. A cidade passa a ser a tela para qualquer

manifestação visual. Logo adiante ele complementa:

Cada um de nós, em seus itinerários urbanos diários, deixa trabalhar a memória e a imaginação: anota as mínimas mudanças, a nova pintura de uma fachada, o novo letreiro de uma loja; curioso com as mudanças em andamento, olhará pelas frestas de um tapume para ver o que estão fazendo do outro lado; imagina e, portanto, de certa forma projeta, que aquele velho casebre será substituído por um edifício decente, que aquela rua demasiado estreita será alargada, que o trânsito será mais disciplinado ou até mesmo proibido naquele determinado ponto da cidade; lembra-se de como era aquela rua quando, menino, a percorria para ir à escola ou quando, mais tarde, por ela passeava com a namorada; ou o famoso incêndio, o crime de que falaram todos os jornais, etc. (...) Como o espaço da pintura de Pollock, o espaço da cidade interior tem um ritmo de fundo constante, mas é infinitamente variado, muda de figura e de tom do dia para a noite, da manhã para a tarde – o espaço da rua que percorremos de manhã para ir trabalhar é diferente do espaço da mesma rua percorrida à tarde.52

51 ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995. Pág.228. 52 Idem. Pág. 232 e 233.

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Se para Argan temos um movimento curioso que

se aproxima do olhar do detetive benjaminiano ao buscar

essa relação corporal com a cidade, para Nelson Brissac,

essa não-percepção ocorre a partir do momento em que não

há um deslocamento físico do espectador em relação ao que

é percebido. Ele diz que:

O pitoresco pressupõe um caminhante, alguém que constrói sua percepção a partir do movimento, não do olhar. O espaço não é apreendido oticamente, mas de modo físico. Em vez do dispositivo ótico, uma visão peripatética.53

Em outro momento, ele diz que:

A metrópole é o paradigma da saturação. Contemplá-la leva à cegueira. Um olhar que não pode mais ver, colado contra o muro, deslocando-se pela sua superfície, submerso em seus despojos. Visão sem olhar, tátil, ocupada com os materiais, debatendo-se com o peso e a inércia das coisas. Olhos que não vêem. 54

Na verdade, nem sempre estamos aptos a

enxergar estes locais. Pelo contrário, eles nos percebem

primeiro. Verdadeiramente, na maioria das vezes, a cidade

absorve estes locais muito antes do que eles sejam

percebidos. Assim como muitas vezes ‘perdemos’ o prédio

que sempre víamos em certo lugar e só notamos muito

tempo depois, quando ele já está em ruínas. O terreno

baldio desaparece para a cidade, numa espécie de

mimetismo, de uma não distinção entre figura e fundo.

Em uma parte do texto ‘Um passeio pelos

monumentos de Passaic’, Robert Smithson cita uma

experiência com areia para explicar o que é entropia e

provar a ‘irreversibilidade da eternidade’. O exemplo é

simples mas significativo. Ao pegarmos uma caixa de areia

53 PEIXOTO, Nelson Brissac . Paisagens Urbanas. São Paulo: Ed. SENAC, 1996. P. 179. 54 PEIXOTO, 1996. Op.cit. Pág. 175.

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em que metade tem areia branca e a outra metade areia

preta e misturarmos no sentido horário, teremos uma caixa

com areia cinza. Porém, se fizermos o movimento reverso,

girando no sentido anti-horário, a areia não volta para o

início, quando era separada entre branco e preto. Na

verdade, haverá um aumento da mistura, ela ficará ainda

mais cinza55. Quer dizer, ao relacionarmos isso com a

questão urbana, veremos que um terreno abandonado não

volta ao que era antes depois de reformado; um edifício

restaurado não será o mesmo de antes; uma construção que

ocupe este terreno nunca será como que o ocupou da

primeira vez. É um processo sem volta.

Neste mesmo texto o artista faz um passeio pelas

ruínas da cidade de Passaic. Ao passear pela cidade munido

de sua câmera, (que o controla), Smithson faz uma análise

do que seriam certos ‘monumentos’ estabelecidos por ele

como tal. Ele categoriza como monumentos certos locais da

cidade que não têm nenhum apelo visual, a não ser pelo fato

de que poderiam ter sido alguma coisa que nunca chegaram

a ser. São monumentos que trazem a carga da destruição.

Segundo ele

Esse panorama zero parecia conter as ruínas às avessas, isto é, todas as novas edificações que eventualmente ainda seriam construídas. Trata-se do oposto da ‘ruína romântica’ porque as edificações não desmoronaram em ruínas depois de serem construídas, mas se erguem em ruínas antes mesmo de serem construídas56.

Essa antinomia que o artista propõe ao enxergar

uma não-ruína, um local cheio de futuros locais, aproxima-se

um pouco da idéia de que os locais que fotografo estão em

constante movimento. Quer dizer, ao olhar para o terreno em

55SMITHSON, Robert. Um passeio pelos monumentos de Passaic, in: O nó gordio - jornal de metafísica, literatura e artes, ano 1, n.1, dezembro de 2001. Pág. 47 56 SMITHSON, 2001. Op.cit. Pág. 46

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ruínas, vemos uma futura construção e ao vermos uma

construção no início de sua degradação, imaginamos um

futuro terreno vazio. A idéia de que ali sempre haverá uma

mudança, atualiza a ruína, pois não a deixa ficar

romantizada. É como se esses lugares tivessem um

potencial a ser ainda explorado, quase como um ‘futuro

abandonado.57’ Um pouco depois no texto, ele diz que o

centro de Passaic poderia servir para uma galeria, pois ele

era um ‘típico abismo ou um vácuo comum58’.

Se em Smithson o vagar por Passaic é um tipo de

vagar afirmativo, onde ele fotografa aqueles monumentos,

investiga locais sem significação, locais que não chegam a

ser ruínas; os lugares pelos quais os personagens de Sebald

passam estão muito mais associados com uma ruína

romantizada das cidades arruinadas do pós-guerra.

Smithson busca uma não-ruína por não querer um

fetichismo, enquanto Sebald tenta recriar uma atmosfera

melancólica e culposa.

Essa atração pelo local degradado, decomposto,

existe na narrativa de Sebald através dos passeios que seus

personagens fazem sempre no início de seus livros

carregados de uma atmosfera de desencanto, como

observado nesta passagem:

(...) e outra coisa é num entardecer sombrio passar pelas filas de casas com fachadas arruinadas e grotescos jardinzinhos da frente e, quando finalmente se chega ao centro da cidade, não encontrar nada senão salões de jogo ou bingo, betting shops, videolocadoras, bares de cujas entradas escuras sai um cheiro de cerveja azeda, lojinhas de artigos baratos e duvidosas pousadas59 (...)

Sebald descreve o local com uma riqueza de

57 Idem. Pág. 46 58 Idem. Pág. 47 59 SEBALD, Winfried Georg. Os anéis de Saturno. Rio de Janeiro: Record, 2002. Pág. 51.

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detalhes, de maneira desprezível, em que chegamos a sentir

como esses lugares são repulsivos mas ao mesmo tempo

temos uma atração visceral por estarmos próximos de algum

modo deles (seja em nossa vivência urbana, seja através da

leitura desses textos).

No trabalho ‘Guia de terrenos baldios de São

Paulo- uma seleção dos lugares vazios mais interessantes

da cidade’, de Lara Almarcegui apresentado na 27ª Bienal

de São Paulo, a principal questão é este local da cidade que

não é exatamente um local; uma presença que não é uma

presença. É chamar a atenção para estes espaços que

ocupam a cidade. Segundo ela,

O principal interesse dos terrenos baldios é que eles estão entre os poucos lugares da cidade que não estão ligados à realização de um projeto, ainda que tenham proprietário e sua existência esteja relacionada a planos de urbanismo do futuro ou do passado que, por diversas razões, estão parados. Os terrenos baldios são lugares em que quase tudo é possível, porque neles não há nada, são lugares de possibilidades em que o cidadão pode se sentir livre. (...) Outros terrenos baldios estão relacionados a situações conflituosas em algum momento, e seus restos ficam como resíduos arqueológicos de um fracasso. (...) Como os terrenos costumam carecer de manutenção, neles se podem observar processos naturais de decadência, mistura e entropia que se escondem no resto da cidade60.

Estes locais, na verdade, são locais de transição,

em que a entropia nunca deixa que fiquem como estão,

sempre faz com que eles se transformem em seu oposto. Ao

se transformarem em seu oposto, em alguma coisa que se

completa, estes locais apresentam um equilíbrio provisório,

uma troca de posições constante, uma tentativa de dar

ordem ao caos que a entropia promove. Essa maneira de 60 ‘Guia de terrenos baldios de São Paulo- uma seleção dos lugares vazios mais interessantes da cidade’, de Lara Almarcegui apresentado na 27ª Bienal de São Paulo - 2006

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P á g i n a | 48

ver a natureza buscar um equilíbrio no caos estabelece

relação com o que Smithson diz ao definir o que seria o Site

e o Non-Site. Ao criar estes trabalhos, ele, grosso modo, cria

um vínculo entre o mundo e o espaço expositivo, como pode

ser visto no trecho a seguir:

O alcance da convergência entre Site e Non-site consiste no curso do acaso, um duplo caminho feito de signos, fotografias, e mapas que pertencem a ambos os lados da dialética. Ambos os lados estão presentes e ausentes ao mesmo tempo. A terra ou solo do Site está na arte (Non-site) ao invés da arte localizada no solo. O Non-site é um contêiner dentro de outro contêiner – a sala. O terreno ou pátio externo é ainda outro contêiner. Coisas bidimensionais e tridimensionais trocam de lugar entre si para alcançar a convergência. Grande escala torna-se pequena. Pequena escala torna-se grande. Um ponto no mapa expande-se para o tamanho de uma porção de terra. Uma porção de terra contrai-se em um ponto. É o Site uma reflexão do Non-site (espelho) ou é de outro jeito? As regras desta rede de signos são descobertas assim que você caminha por trilhos incertos tanto mental quanto fisicamente61.

Podemos também fazer uma relação entre as

ruínas que são encontradas, vistas pela cidade e os objetos

com que nos deparamos nas andanças pela feira de

antigüidades. Se os terrenos, com seus restos, suas

construções inacabadas são as ‘ruínas’ da cidade, pode-se

dizer que os objetos nessas feiras são o que restaram das

vidas das pessoas, seus resquícios, que de alguma

maneira, precisam sofrer uma mudança, deixar de pertencer.

Assim como os prisioneiros que se apegam aos poucos e

pequenos objetos que lhes são permitidos durante sua pena,

esses objetos funcionam como o último laço entre lembrar e

esquecer. Eles representam uma mudança necessária, por

61 SMITHSON, Robert. The Collected Writings. Berkeley: University of California Press, 1996. Pág. 153.

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P á g i n a | 49

isso estão sendo vendidos, doados, desfeitos.

Sonia Schulz faz um paralelo entre memória e

cidade que estabelece analogia entre o esquecimento e o

vagar pela cidade, no qual o fato de andarmos pelos

mesmos lugares estaria relacionado com a construção

complexa de ambas (cidade e memória). Ela diz que

A memória e a cidade são territórios labirínticos, traçados como uma rede infinita de percursos e nós, com centros e periferias mutáveis, referentes e limites fluidos, dimensões e posições instáveis. As múltiplas orientações levam à desorientação, à exploração sem mapa ou, mais precisamente, sem pontos fixos. (...) O deslocamento acelerado no tempo moderno também converteu a cidade em lugar de amnésia, da dissolução da lembrança, em esquecimento. Os movimentos na cidade e na memória da cidade constituem um persistente deslocamento para nenhum lugar específico, induzindo à perpétua redescoberta de fragmentos urbanos. A perda parcial da memória condena o nômade urbano a revisitar os mesmos espaços, a rever as mesmas paisagens, a reencontrar um passado dissimulado de presente. O antigo aparece como novo exatamente porque os registros das imagens são, muitas vezes, apagados62.

O fato de sempre voltarmos aos mesmos lugares

sem que nos lembremos pode ser analisado junto com o fato

de olharmos para a cidade e não percebermos direito o que

nos cerca, como foi colocado por Brissac anteriormente

neste texto. A memória não consegue registrar devidamente

pelo excesso de estímulo e ignora certos aspectos que

poderiam servir de referência. Assim, ao passarmos pelo

terreno que está degradado, não conseguimos perceber que

ali era a casa de chá que costumávamos ir. Somente depois

de construído um posto de gasolina é que lembramos que ali

era o local que tomávamos chá com nossa avó na tarde de

62 SCHULZ, Sonia Hilf . Estéticas urbanas: da pólis grega à metrópole contemporânea. Rio de Janeiro: LTC Editora, 2007. Pág. 156-157.

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sábado. Necessitamos de muitas idas e vindas para que

nossa memória consiga apreender as várias etapas de

degradação e modificação impostas pela cidade.

A cidade é redundante : repete-se para fixar alguma imagem na mente. (...) A memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir63.

Podemos pensar que além desse flâneur

que vaga pela cidade a observar os espaços, temos também

uma série de personagens que habitam estes locais

degradados e que, de alguma maneira, também contam com

a companhia de seus ‘ajudantes’. Esses personagens vivem

à margem, assim como esses locais que queremos que

desapareçam da cidade, eles não são notados, viram parte

dessa paisagem sinestésica como a qual já estamos

acostumados. Nelson Brissac, em seu livro ‘Cenário em

Ruínas’ ressalta que

Um homem vaga por entre prédios abandonados, vasculhando os montes de móveis e objetos quebrados, examinando cada coisa que se encontra em meio aos detritos. É lá que espera encontrar a imagem de si mesmo e de seu lugar. Tudo que possa explicar o que ocorreu, como ele foi acabar ali. Objetos e paisagens, retirados do passado, ele transforma em símbolos de sua vida e de sua condição atual. É um melancólico. (...) Ele é um colecionador64.

Esses personagens também vagam

erroneamente como o flâneur, passam despercebidos, têm

um olhar treinado, quer dizer, não deixam de apresentar as

mesmas características do flâneur, mas não apresentam as

mesmas condições. Eles não são cidadãos do mundo, não

passam de um local para o outro com facilidade. Eles

pertencem a estes locais degradados. Eles fazem parte da 63 CALVINO, 1998. Op.cit. Pág. 25. 64 BRISSAC, Nelson. Cenários em ruínas. São Paulo: Brasiliense, 1987. Pág. 168.

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entropia urbana. Quando os espaços se modificam, eles

mudam de lugar para buscar um novo lugar para ‘habitar’.

Eles vagueiam sempre na mesma condição.

No subitem ‘Sísifo’, vimos a questão das

áreas chamadas ‘Zone’, do livro Formless, em que certos

espaços da cidade podem ser analisados metaforicamente

como a poeira que assombra a nossa casa. Esses espaços

são justamente estes terrenos baldios, antigas fábricas

desativadas, estacionamentos abandonados,

subaproveitados, que são deixados de lado pela sociedade,

que preferem ser esquecidos. Esses lugares são os lugares

que a cidade ‘busca, sem parar, combater a proliferação

entrópica, ao mesmo tempo em que a engendra65.’ Ou,

como Georges Perec assinala em seu livro ‘Species of

Spaces and Other Pieces’, podem ser locais que incomodam

e que precisam ser eliminados:

Os prédios se posicionavam um do lado do outro. Eles formam uma linha reta. Espera-se que eles formem uma linha, e isso se torna um defeito e é uma séria falha quando não o fazem. Eles então são ditos como ‘sujeitos ao alinhamento’, significando que podem ser demolidos ou assim como reconstruídos numa linha reta com os outros66.

Este movimento é necessário para a

sobrevivência da cidade67. É da mesma ordem da reflexão

65 PEIXOTO, 1996. Op.cit. Pág.403. 66 PEREC, 1997. Op.cit. Pág..46. 67 Italo Calvino fará uma leitura poética desta necessidade de sobrevivência da cidade no seguinte trecho do seu livro ‘Cidades Invisíveis’: “(...) quanto mais Leônia expele, mais coisas acumula; as escamas de seu passado se solidificam numa couraça impossível de se tirar; renovando-se todos os dias, a cidade conserva-se integralmente em sua única forma definitiva: a do lixo de ontem que se junta ao lixo de anteontem e todos os dias e anos e lustros. (...) Quanto mais cresce em altura, maior é a ameaça de desmoronamento: basta que um vasilhame, um pneu velho, um garrafão de vinho se precipitem do lado de Leônia e uma avalanche de sapatos desemparelhados, calendários de anos decorridos e flores secas afundam a cidade no passado que em vão tentava repelir, misturado com o das cidades limítrofes, finalmente eliminada – um cataclismo irá aplainar a sórdida cadeia montanhosa, cancelar qualquer vestígio da metrópole sempre vestida de novo. Já nas cidades vizinhas, estão prontos os rolos compressores para aplainar o solo, estender-se novo território, alargar-se, afastar os novos depósitos de lixo.” - CALVINO, 1998. Op.cit. Pág. 110-111.

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do qual Smithson fala: o Site reflete o Non-site e vice-versa.

É imprescindível que eles existam para que a cidade exista.

Não há cidade moderna sem a ruína.

Não há ruína fora da cidade.

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3. OBJETOS

3.1. Memória

Em um artigo publicado recentemente no site do

jornal ‘Folha de São Paulo’68 foi noticiado que cientistas

isolaram uma proteína para inibir lembranças evocadas pelo

cérebro humano. Esta notícia apresenta certa semelhança

com o argumento do filme “Brilho de uma mente sem

lembranças’”, de Michel Gondry, no qual a personagem

principal utiliza-se de um tratamento para apagar a

lembrança de um relacionamento amoroso, para apagar a

memória do trauma. A personagem age estranhamente e

não fica claro para o espectador o motivo. No decorrer do

filme, descobre-se que a personagem buscou os serviços de

uma empresa especializada em apagar fatos desagradáveis

da memória.

A princípio, este procedimento seria uma maneira

radical para fazer com que a lembrança de um acidente, de

uma morte de um familiar ou mesmo de uma agressão fosse

apagada. Porém, com a facilidade deste método, ele se

torna banalizado. O que ocorre durante o filme é que por

qualquer motivo, as pessoas passam a apagar brigas com

ex-namorados, morte de animais de estimação ou uma

demissão do emprego, como forma de não vivenciar a

perda. Ao voltarmos para a história da personagem principal,

depois de uma série de acontecimentos, percebemos que o

ex-namorado descobre que foi apagado da memória de sua

namorada e resolve fazer o mesmo em relação a ela.

Esse procedimento ocorria durante o sono,

quando funcionários da empresa faziam uma espécie de

eletroencefalograma computadorizado na pessoa

68 http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u397438.shtml

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inconsciente. No transcorrer de seu processo de

apagamento, ele fica semiconsciente69 e descobre que não

quer mais que a recordação de sua ex-namorada seja

apagada, empreendendo uma jornada em seu cérebro em

associação com a personificação da lembrança de sua ex-

namorada, para que qualquer reminiscência dela permaneça

em sua memória. Numa das cenas mais belas do filme, ela

pede para ser inserida em uma recordação que seja só dele,

que tenha ocorrido antes deles se conhecerem, como por

exemplo, em sua infância, pois assim os funcionários

contratados não teriam como localizá-la nem apagá-la. Isto

pode ser explicado melhor através da descrição de como o

procedimento de apagamento era realizado.

Em outro momento significativo do filme, o

médico diz para o personagem que ele precisa trazer para a

clínica objetos que estejam relacionados com a namorada,

que remetam a qualquer lembrança. Isto tem uma lógica

simples: a partir daqueles objetos, sensações de prazer e

desprazer associadas aos momentos em que eles viveram

juntos, serão apagadas da memória. Ele terá de se desfazer

desses objetos para que não tenha nenhum contato com

eles, já que este contato poderia provocar uma lembrança

do tempo em que passaram juntos, revertendo todo o

processo.

Aqui podemos fazer uma associação com o

conceito de memória involuntária70 de Proust. A partir do

69 A sensação exibida no filme é semelhante a que temos quando percebemos, durante o sonho, que estamos sonhando e tentamos acordar. 70 A memória involuntária estaria de alguma forma desvinculada do consciente. Segundo Harald Weinrich, em seu livro ‘Lete - arte e crítica do esquecimento’, a memória involuntária é “uma forma de memória que se esquiva de ser dirigida pela razão e pela vontade, fugindo habilmente ao controle de ambas. Essa memória não tenta mais evocar lembranças através de um esforço da vontade, e também desiste de assegurá-las contra o esquecimento com toda a sorte de artifícios mais ou menos hábeis. A memória involuntária antes de mais nada se dá tempo.” - WEINRICH, Harold. Lete/ Arte e Crítica do Esquecimento. Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2001. Pág. 208. Esta memória pode vir a qualquer hora/momento, não depende deste esforço de lembrança, portanto é, teoricamente, passiva e está relacionada com eventos/objetos que despertam essa memória espontânea, poética,

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P á g i n a | 55

momento em que o personagem toca ou olha para certos

objetos, a lembrança é naturalmente evocada e a mesma

sensação do passado é rememorada, trazendo o prazer ou o

desprazer. Claro que a memória involuntária de Proust,

exemplificada inúmeras vezes em sua obra ‘Em busca do

tempo perdido’, está muito mais relacionada com

lembranças perdidas da infância do que lembranças

recentes e são provocadas por sensações vindas através da

experiência que inicia a rememoração da vivência e não por

imagens. Mas, de alguma maneira, os objetos que são

usados e descartados pelo personagem do filme apresentam

uma similaridade com o processo experimentado pelos

personagens de Proust. Podemos entender melhor esta

questão através da diferenciação que Susan Sontag faz do

conceito da memória involuntária e a questão da fotografia

para Proust quando ela diz que

Toda vez que Proust menciona fotos, o faz de modo depreciativo: como sinônimo de uma relação superficial com o passado, exclusiva e excessivamente visual, e meramente voluntária, cujo resultado é insignificante quando comparado com as profundas descobertas a ser feitas ao reagir às sugestões oriundas de todos os sentidos – a técnica que ele chamou de ‘memória involuntária’. (...) Mas a razão para tal não está na incapacidade de uma foto de evocar memórias (ela é capaz disso, dependendo antes dos predicados do espectador do que da foto), mas sim naquilo que Proust esclarece acerca de suas próprias exigências no que se refere à recordação imaginativa, ou seja, que ela não se mostre apenas ampla e acurada mas dê a textura e a essência das coisas. E ao considerar as fotos apenas na medida em que podia usá-las, como um instrumento da memória, Proust como que entende de forma errada o que são fotos: não tanto um instrumento da memória como uma invenção dela, ou mesmo um substituto71.

agradável. 71 SONTAG, 2004. Op. cit. Pág.180 e 181.

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A memória involuntária de Proust não pode ser

controlada72, nem evocada, pois surge ‘naturalmente’

através da experiência. No entanto, essa experiência

raramente era visual. Proust irá privilegiar os outros

sentidos, e portanto, a fotografia (imagem) passa a ter uma

importância menor, pois é ‘essencialmente’ visual. Assim,

relacionar esta memória com o que ocorre no filme pode

parecer uma leviandade, já que os acontecimentos dos

personagens são extremamente recentes, não estão sob

camadas de esquecimento; estão perfeitamente acessíveis.

Podemos alegar que a experiência de tempo, de narrativa,

de vivência é diferente para justificar tal analogia. Até

mesmo a apreensão da imagem fotográfica como suposta

substituta da memória se modificou em relação à sociedade

atual. O conceito elaborado por Proust é perfeitamente

oportuno se levarmos em consideração tais hipóteses.

Quando o personagem sofre o processo de apagamento, a

máquina que está em sua cabeça é ligada a um computador

que revira as partes menos acessíveis de seu cérebro para

buscar pequenos resquícios de memória. Podemos entender

isso como um esforço em descobrir, desvelar essas

inúmeras camadas da vivência. Mesmo quando levamos em

consideração os objetos utilizados para relembrar as ações

dos personagens, já que isso é um processo ‘controlado’

(por ser provocado por outrem), podemos aceitar que isso

seria uma espécie de aceleração da memória involuntária.

Ao tocar os objetos, toda a lembrança surge; ao sentir o

perfume, lembra-se de uma situação prazerosa ao lado da

pessoa amada.

72 “Pois, ao contrário dos objetivos imediatos a que a memória voluntária tem de obedecer, a memória involuntária, que se serve dos sentidos inferiores, é uma memória a longo prazo, que abrange o tempo de vida da pessoa. Anos e décadas podem estar entre a percepção sensorial inicial e a vivência lembrada efetuada. (...) Em outras palavras, a memória involuntária passa por baixo de um esquecimento longo e profundo.” – WEINRICH, 2001. Op.cit. Pág. 211.

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Outro aspecto é que este processo também pode

ser relacionado com o processo da flânerie, em que, ao

caminhar pela cidade, o flâneur é despertado por inúmeras

lembranças trazidas por cheiros, texturas, disposição de

paisagens etc.73. Como afirma Benjamin, em “Princípio da

flânerie em Proust”:

Então, fora de todas essas preocupações literárias e sem estabelecer nenhum vínculo com elas, de repente, um telhado, o reflexo de sol sobre uma pedra, o cheiro de um caminho, me faziam parar por um prazer especial que me davam e também porque pareciam esconder, para além daquilo que eu via, alguma coisa que me convidavam a vir apanhar e que, apesar de todos os meus esforços, eu não chegava a descobrir.74

Essa suposta obrigação de eliminarmos da

memória certos eventos, de não vivermos mais este ’luto’, a

necessidade de estarmos aparentemente sempre felizes é

algo que o senso comum admite como verdade e que

podemos perceber em frases de efeito do tipo “O povo

brasileiro sofre, mas se diverte”; “O brasileiro vive alegre” e

que poderíamos, com algumas exceções, estender para a

sociedade global. Se no Romantismo talvez fosse ‘moda’

contemplarmos a melancolia, (o artista era aquele que quase

’dependia’ da melancolia para criar), agora temos uma

espécie de cobrança maior para não demonstrarmos certas

fraquezas. Um sintoma que pode ser visto nas páginas dos

principais semanários com a criação de uma lista de livros

de auto-ajuda mais vendidos, paralela a lista oficial de livros

de literatura de ficção e não ficção; ou mesmo com a procura

por medicamentos para o controle imediato de qualquer

73 Uma das primeiras cenas do filme é justamente a que mostra o personagem principal desistindo de ir ao trabalho para pegar um trem na direção oposta , sem saber exatamente porque, e vivenciar um novo encontro com sua ex-namorada na mesma praia onde eles se conheceram e, ao mesmo tempo sem se reconhecerem, pois já haviam passado pelo apagamento de memória. 74 BENJAMIN, 1987. Op.cit. Pág. 191.

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sensação desagradável.

Se no luto temos um processo de

elaboração saudável da perda, na melancolia isso não

ocorre tão simplesmente. A perda difusa estaria associada a

esta melancolia, o que nos faz entender, em parte, porque

ela seria o motor para alguns artistas. Na verdade, de forma

bem simplificada, enquanto no luto temos o objeto perdido

bem delineado, na melancolia, este objeto inexiste, ele se

interioriza, voltando-se para o próprio ego, numa espécie de

narcisismo.

A melancolia pode ser entendida como uma

forma de resistência, tanto ao progresso quanto ao tempo

linear e, por isso, uma tentativa de se caminhar num tempo

diferente do restante da sociedade, tal como os caminhantes

que passeavam pelas passagens parisienses e suas

tartarugas,75 afinal, o ritmo da resistência era o ritmo imposto

pela tartaruga. Uma forma de resistir ao progresso. Numa

sociedade em que a maioria das coisas é descartável, a

memória passa a ser algo do mesmo gênero. O que

acontece com os colecionadores de memória então? Creio

que eles se tornarão os detentores de lembranças alheias (já

o são, na verdade), mas com grandes possibilidades de

comercializarem as ‘melhores lembranças’ para pessoas

sem lembranças de tanto apagarem sua memória. O

colecionismo, neste sentido, está diretamente associado ao

movimento do melancólico em ‘retardar’ o tempo. Ao

recolher estes resquícios da sociedade, o colecionador de

memórias (sejam elas próprias ou alheias) tenta correr em

direção oposta ao senso comum, que busca apagar todo e

qualquer indício para não vivenciar a história. Nada mais

melancólico do que uma coleção de fotografias. Nelas, 75 “O pedestre sabia ostentar em certas condições sua ociosidade provocativamente. Por algum tempo, em torno de 1840, foi de bom-tom levar tartarugas a passear pelas galerias. De bom grado, o flâneur deixava que elas prescrevessem o ritmo de caminhar.” - BENJAMIN, 1987. Op. cit. Pág. 122.

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temos a lembrança física do esquecido.

(...) a fotografia exige que nos recordemos; as fotos são testemunhas de todos esses nomes perdidos, semelhantes ao livro da vida que o novo anjo apocalíptico – o anjo da fotografia – tem entre as mãos no final dos dias, ou seja, todos os dias. 76

Não há nada pior para alguém que queira apagar a memória ou a

lembrança de nossa finda existência do que a fotografia.

Ou como enuncia Sontag “A fotografia é o inventário da

mortalidade.”77

3.2. Coleções

Ao pensar a questão da memória, um fator

importante de ser abordado é o do arquivo. O arquivo é o

grande instrumento para o ‘desmemoriado’. É através dele

que a memória é revivida, seja este arquivo formal ou

informal, ele será de suma importância. Podemos pensar o

arquivo não só como o local de armazenamento de

informações, mas também como o local em que o

colecionismo irá aflorar. Através desse recolhimento de

resquícios materiais e sensoriais da cidade, o flâneur poderá

utilizar-se de um local onde organizar tantas descobertas. O

arquivo funcionará como uma caixa em que as lembranças

serão guardadas, tal como a ‘Caixa Verde’ de Duchamp, em

que todas as informações, todos os resquícios e

experimentações do ‘Grande Vidro’ encontram-se

organizadas.

As caixas que muitos artistas surrealistas

elaboraram são pequenos espaços não só de experiências

vivenciadas, mas também de lugares que nunca foram 76 AGAMBEN, 2007. Op.cit. Pág.30. 77 SONTAG, 2004. Op.cit. Pág. 85.

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visitados (como exemplo, as caixas de Joseph Cornell). Ao

recriar um ambiente quase ideal, com objetos, escritos ou

qualquer outra coisa que sirva para rememorar algo, esses

artistas tentam reter o tempo assim como vimos

anteriormente com Benjamin e seu temperamento

saturnino.78 Essas coleções e caixas agirão como

verdadeiras cápsulas do tempo, ou se quisermos, como

ajudantes, tal como escreve Agamben:

O ajudante é a figura daquilo que se perde, ou melhor, da relação com o perdido. (…) O que o perdido exige não é ser lembrado ou satisfeito, mas continuar presente em nós como esquecido, como perdido e, unicamente por isso, como inesquecível. 79

Eles são coisas que guardamos apenas para

saber que estão guardadas. Porque de alguma maneira,

aquilo nos transmite alguma segurança, apenas por estar ali.

O colecionismo traz um pouco este aspecto porque, muitas

vezes, perdemos a noção do que temos, mas sabemos que

ali está algo que nos dá uma sensação transitória de

saciedade. Transitória porque, não demora muito, partimos

para nosso próximo objeto de desejo. Um aspecto digno de

atenção levantado por Alberto Manguel em seu livro

‘Biblioteca à noite’ é o fato da coleção, no caso de livros, não

necessariamente ter que ser utilizado em sua totalidade. Na

verdade, em quase todos os tipos de coleção, nos perdemos

em meio aos inúmeros objetos. Ele relata que

Os visitantes costumam perguntar se li todos os meus livros; minha resposta costumeira é que com certeza abri cada um deles. O fato é que uma biblioteca, seja qual for seu tamanho, não precisa ser lida por inteiro para ser útil; todo leitor tira proveito de um sábio equilíbrio entre conhecimento e ignorância, lembrança e

78 SONTAG, 1986. Op.cit. Pág. 88-91 79 AGAMBEN, 2007.Op.cit. Pág. 35.

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P á g i n a | 61

esquecimento. 80

Esses objetos-ajudantes carregam a melancolia

porque contamos com eles para reter o tempo e também para

seguir em frente. Eles são a poeira que se acumula e nos dá a

noção de tempo, da mesma forma que nos permite perceber o

novo, ao nos desvencilharmos deles. Em outro trecho, Alberto

Manguel diz que é possível descobrir novidades em nossa

coleção, justamente por nos esquecermos do que temos:

Minha biblioteca é constituída, meio a meio por livros que lembro e por livros que esqueci. (...) Os livros esquecidos de minha biblioteca levam uma existência tácita e discreta. Mesmo assim, sua própria qualidade de livros esquecidos às vezes me permite redescobrir uma história ou um poema como se fossem perfeitamente novos. 81

Geralmente o colecionador estabelece ordens

para sua coleção. Essa ordem tediosa, melancólica, é da

mesma ordem desse olhar para o banal que faz o flâneur

descobrir o extraordinário. Por esse motivo, o colecionador

consegue descobrir o novo e partir para um novo objeto de

desejo. Benjamin, em ‘Desempacotando minha biblioteca’82,

aborda esse mesmo hábito do colecionismo. Afirma que o

colecionador está entre o caos e a organização e que a

compra é sempre o momento mais interessante para o

colecionador, pois ele tem a chance de fazer renascer um

livro, principalmente se este livro já carregar uma história

anterior (um antigo dono, por exemplo). A coleção está

diretamente relacionada à lembrança. O que temos aqui é

justamente uma ode ao colecionador e de como são os

processos para obter essa coleção. Ele descreve o

procedimento para reconhecer um bom item para sua

80 MANGUEL, Alberto. A Biblioteca à Noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Pág. 210 81 MANGUEL, 2006. Op.cit. Pág. 209 a 212 82 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. São Paulo: Brasiliense, 1987. - pág. 227-235.

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P á g i n a | 62

coleção e como essa coleção deverá ser mantida, entre

outras coisas. Esse processo de se apegar aos objetos, em

que Benjamin baseia toda sua obra, está diretamente

relacionada ao fato do melancólico estabelecer sua relação

com o mundo através dos objetos e não com as pessoas.

Portanto, a história feita através dos objetos, através da

fidelidade estabelecida com o acúmulo de coisas, através de

fragmentos e das ruínas, em que há uma totalidade em cada

fragmento vai ser a história representativa destes

personagens da modernidade e que permanecem presentes,

de alguma forma, como conceitos operacionais em meus

trabalhos.

A busca por ob jetos perd idos pe la c idade, que fazem

par te de uma memór ia u rbana ou a lhe ia ; a busca

por espaços degradados e absorv idos pe la c idade;

espaços- tempo que não são perceb idos , que

permanecem ‘conge lados ’ , à espera do o lhar ; o

renascimento de l iv ros ou imagens at ravés de uma

co leção; operar iam como meus a judantes ao fazer

com que o p rocesso abranja o novo e o e terno .

3.3. Pedras

Em um conto de Virginia Woolf chamado ‘Objetos

sólidos’83, temos a história de um personagem que se

encanta por um objeto achado na praia (pedaço de vidro) e

esta descoberta faz com que ele empenhe sua vida em uma

busca incessante por outros objetos semelhantes a este.

Seu percurso passa a ser a busca de objetos com certas

características que só ele ‘entende’ e que lhe dão um prazer

83 WOOLF, Virginia. Contos completos. São Paulo : Cosac Naify, 2005.

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P á g i n a | 63

que dispensa qualquer outra necessidade. Na verdade, ele

abandona todos os outros setores de sua vida para dirigir

toda a atenção nesta busca, que se torna cada vez mais

difícil. Esses objetos não são encontrados em qualquer

lugar. São objetos especiais, que dependem de alguns

acasos para que surjam: pedaços de garrafas de vidro que

não apresentam mais nenhuma parte pontiaguda; um

pedaço de cerâmica quebrada perfeitamente em formato de

estrela; um pedaço de ferro com uma origem extraterrestre,

além de tantos outros similares. Esses objetos são

encontrados por acaso, em seus passeios, que, de

ocasionais, tornam-se uma obsessão.

É importante notar que uma ação que começou

como um mero acidente, mero acaso (a descoberta na

praia), passa a ser um objetivo, uma necessidade vital.

Esses passeios assemelham-se aos passeios do flâneur

pela cidade, só que em vez de observar a multidão, o olhar

deste personagem volta-se para objetos informes, achados

pela cidade. Isto, de certa forma, relaciona-se diretamente à

questão do detalhe, no romance policial, que foi visto nos

capítulos anteriores, em que o olhar deste personagem vai

percorrer locais para discernir entre objetos próprios para

seu propósito e outros nem tanto. Ou mesmo, com o olhar

para o prosaico, já que estes objetos são ’banais’ mas

despertam o extraordinário no personagem (apenas ele vê

sentido neles).

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Na verdade, este personagem encarna uma série

de características do flâneur já que ele também passa a ser

um, pois nada mais interessa, apenas sua busca, seu vagar

pela cidade para ‘descobrir’ novos objets trouvés84. De

início esses objetos tinham a função de peso de papel,

porém, posteriormente, isso deixa de acontecer; o que

realmente importa passa a ser o prazer da descoberta do

novo. Um novo pedaço de qualquer coisa que não é

exatamente novo. Um novo pedaço de mais uma coisa que

se parece com a anterior e com a que segue. Ao comentar a

obra de Marcel Duchamp, Octavio Paz faz uma analogia

interessante entre o ato de se apropriar de objetos comuns e

a cultura oriental. Este movimento de se recolher cacos,

pedras pode ser relacionado com o que diz o autor no

seguinte trecho:

Uma pedra é igual a outra pedra e um saca-rolhas é igual a outro saca-rolhas. A semelhança entre as pedras é natural e involuntária; entre os objetos manufaturados é artificial e deliberada. A identidade do saca-rolhas é uma conseqüência de seu significado: são objetos produzidos para extrair rolhas; a identidade entre as pedras carece, em si mesma, de significado. Tal é, pelo menos, a atitude moderna diante da natureza. Não foi sempre assim. Roger Callois assinala que alguns artistas chineses escolhiam pedras que lhes pareciam fascinantes e as convertiam em obras de arte pelo único fato de gravar ou pintar seu nome nelas. Os japoneses também colecionam pedras e, mais ascéticos, preferem que não sejam demasiado belas, estranhas ou insólitas: verdadeiras pedras arredondadas. Buscar pedras

84 “Objeto encontrado por um artista e exposto como obra de arte, após sofrer pouca ou nenhuma alteração. Pode tratar-se de um objeto natural, como um pedregulho, uma concha ou um ramo de árvore, ou um objeto artificial, como uma cerâmica ou antigas peças de ferro ou de máquinas. A essência da concepção de objet trouvé está em que o artista reconhece no achado um ‘objeto estético’, o qual submete à apreciação de outros como o faria com uma obra de arte. (...).” – CHILVERS, Ian. Dicionário Oxford de Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Pág. 383. No conto, o personagem coloca seus achados em cima da lareira, como se eles fosse objetos que deixam as pessoas orgulhosas a ponto de exibirem na sala: porta-retratos, troféus, vasos valiosos, castiçais etc. Para ele, esses cacos são realmente motivo de orgulho, transformam sua vida numa eterna busca pelo objeto perfeito, tal um colecionar atrás de sua obra de arte mais valiosa.

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diferentes ou iguais não são atos distintos: ambos afirmam que a natureza é criadora. Escolher uma pedra entre mil equivale a dar-lhe nome85.

Estes objetos carregam certa melancolia, pois

estão entranhados de um passado desconhecido que os

moldou, ao mesmo tempo em que passam a ser novidade

quando assumem nova função com a descoberta do

personagem. Quer dizer, eles são forjados por um passado

e, quando redescobertos, assumem caráter de novidade.

Eles são os restos, a ruína de que faziam parte

anteriormente, ao mesmo tempo em que são ressignificados

pelo personagem. É o belo moderno de Baudelaire, em que

moderno e antiguidade caminham juntos. Outro aspecto

presente neste conto está relacionado com o local onde o

personagem procura seus objetos.

Como são objetos que apresentam

características particulares (precisam ser pedaços de algo,

cacos que foram abandonados, precisam apresentar a forma

‘perfeita’) eles não são encontrados em qualquer lugar. Faz-

se necessário, além de um olhar treinado (do

detetive/flâneur), o conhecimento sobre onde buscá-los.

Este conhecimento está em conexão direta com a

experiência, a vivência, pois somente através dela o

personagem percebe que apenas em locais que ninguém

enxerga (terrenos baldios, nesgas rente à linha férrea, casas

demolidas) ele poderia encontrar espécimes excelentes para

sua coleção86.

Ora, de alguma forma, esses lugares não passam

85 PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Pág. 26 e 27 86 O fato de ele iniciar esta coleção de objetos (tão estranhos) também está associado ao comportamento melancólico, de se apegar a objetos que dêem um significado para a vida da pessoa, o que não deixa de ser o caso deste personagem, já que abdica de todo o resto de suas atividades para se dedicar exclusivamente à busca destes objetos que passam a ser seu objetivo.

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de não-lugares, espaços negativos87. Eles são lugares que

não apresentam função, não podem ser alcançados, que

são deixados de lado e praticamente inexistem para a

cidade. É um espaço que está sempre entre alguma

construção. Se olharmos as intervenções que Gordon Matta-

Clark fez em casas abandonadas e que seriam demolidas

podemos entender a analogia com os espaços que o

personagem busca seus objetos. Na 27ª Bienal de São

Paulo foram exibidos vídeos em que apareciam estes

espaços escavados em prédios na cidade de NY. Esses

espaços são ausência, vazios em meio à construção; é uma

anarquitetura.88

Quando pensamos no trabalho ‘Fake States’ em

que os espaços entre os edifícios e que não pertencem a

ninguém são vendidos, temos também uma questão

afirmativa, pois se o que faz um lugar ser lugar é a

propriedade, aqueles espaços de 25 cm entre edifícios não

são lugares. Os locais onde o personagem procura seus

objetos não são locais, já que as frestas entre linhas do trem,

terrenos abandonados, casas demolidas, bueiros, são

lugares que não existem, são os espaços negativos da

cidade: o bueiro é o espaço negativo da calçada, as frestas

são da linha e os terrenos e casas abandonadas são das

casas construídas. São espaços que não são percebidos

normalmente, onde deixamos a poeira acumular89,

abandonados, como percebemos neste seguinte trecho do

conto:

Habituou-se ele também a andar de olhos no chão, especialmente nas adjacências dos terrenos baldios onde são jogados fora os refugos das casas. Tais objetos ocorriam lá com freqüência - jogados fora, de nenhuma utilidade

87 Cito esta expressão como influência direta do trabalho ‘Fake States’, de Gordon Matta-Clark em que ele compra espaços que, geralmente, não são acessíveis de terrenos ocupados por construções. 88 WISNIK, Guilherme. O ‘informe’ a partir de Matta-Clark e Rem Koolhaas. Manuscrito. 89 Questão discutida anteriormente no capítulo 1.

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para ninguém, disformes, descartados.90

Em outro trecho do conto há uma descrição

em que fica muito claro como esses lugares são

inacessíveis, já que para sua empreitada o personagem

carrega uma sacola e uma vara em que ele poderia adaptar

um pequeno gancho. Na medida em que sua procura

continuava, sua exigência aumentava. Os lugares passam a

ser mais difíceis, as descobertas mais escassas, mas, ao

mesmo tempo, são mais prazerosas. É uma necessidade de

retenção, de deter o tempo, de contê-lo para não ter que

lidar com ele. Assim como o personagem de Kafka no conto

‘Ante(s) (d)a lei‘91, que espera eternamente para entrar na lei

onde há sempre um guardião. A imagem que surge durante

o conto de vários salões que se sucedem, com inúmeros

guardiões, é a imagem da imobilidade e da incapacidade de

penetrarmos na intrincada rede que é tecida na estrutura

burocrática. De alguma forma, é quase uma tentativa de

continuar no mesmo regime da melancolia, não fazer parte

do presente e nem tentar atualizar o passado.

No entanto, o personagem do conto de V.Woolf

torna-se um pária. Seu comportamento se modifica, ele

passa a não ter prazer nas suas outras atividades, torna-se

taciturno, neurastênico. Seu trabalho deixa de fazer sentido,

seus amigos não conseguem mais conviver com ele e suas

atividades sociais são reduzidas porque ele não consegue

mais interagir com as pessoas por não ver mais graça na

vida. Sua vida passa a ser apenas sua busca insana por

outros pedaços de cerâmica, pedras ou qualquer outro resto

que ele encontre. De algum modo, os ambientes que ele

freqüenta para encontrar os objetos e as maneiras que

desenvolve para capturá-los fazem mais sentido do qualquer

90 WOOLF, Virginia. Contos completos. São Paulo : Cosac Naify, 2005. - pág. 138 91 KAFKA, Franz. Nas galerias. Org. Flávio R. Kothe. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. Pág. 91-92.

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outra coisa. Ele é contaminado pela melancolia presente

nestes lugares, nestes objetos. Tal como o homem da

multidão, ele desaparece como indivíduo e torna-se mais um

ser invisível para os outros.

Uma tentativa de viver a vida dos outros. A vida dos objetos.

A busca por locais escuros, cinzas.

Um desinteresse manso.92

Quando busco os locais que fotografo, quer dizer,

quando os encontro, sempre imagino o que havia sido construído

ali. Que tipo de casa, que tipo de empresa, como teria sido a cor

das paredes, como era a movimentação pela manhã com a chegada

dos funcionários. Parte desta minha investigação ocorre quando

volto aos lugares inúmeras vezes para observar. Paro e vejo como é

tudo ao seu redor, como as pessoas se relacionam com o que agora

é um terreno vazio. Porém, não pesquiso de fato as informações.

Elas não me interessam. Prefiro imaginar e criar situações somente

para minha satisfação. No entanto, nada é mais prazeroso que a

primeira visão do lugar. Ela é tão rápida, tão efêmera, que traz

perturbação. Às vezes acho que sonhei com o local, que foi um

lampejo criado por meu cérebro. É quase um momento de cegueira.

A partir do momento que volto ao local, a história que

crio passa a ser objeto de interesse maior. Freqüento o terreno e

vejo que a cada dia cresce mais mato, cai mais um pedaço do

emboço ou surge mais um morador para habitá-lo. Vivo a

existência daquela localidade, que nunca me pertenceu tanto quanto

agora. Na verdade, ele só pertence a partir do momento que

percebo a sutil mudança de estado. Quando ele deixa de ser aquele

resíduo urbano e passa a ser uma perspectiva do novo, ele passa a

pertencer a mim. A captura através da fotografia, das inúmeras

92 LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Pág. 172.

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imagens que faço para que nada se perca, faz com que ele deixe de

existir como o conheci. Passo a colecioná-lo em uma tentativa de

preservação daquele momento. Coleciono imagens de locais que

não existem mais, que por um instante, só eu percebia. Locais que

pertenciam apenas à cidade e que passaram a ser parte de minha

vida.

Depois disso, eles deixam de interessar, passam a ser

apenas mais um lugar que nem os outros tantos que existem na

cidade. Integram a ‘fachada contínua’ imperceptível dos locais que

passamos. Ao expor as fotografias ‘repetidas’ desses locais de

maneira contínua, recrio esta ‘fachada contínua’ mas com a

diferença que esta não é a paisagem em que perdemos a

consciência em nosso transe diário. As fotografias não são a

paisagem que olhamos pela janela do ônibus e que nos fazem

adormecer temporariamente. As imagens são, ao contrário, o que

nos desperta, o que faz ter aquele momento de estranhamento, de

não saber o que realmente aconteceu. As fotografias permitem a

contemplação do transitório diversas vezes. Imprimem a poeira em

nós.

3.4 . Ajudantes

O texto ‘Os Ajudantes’ de Giorgio Agamben

aborda personagens que surgem em narrativas que ele

classifica como ‘ajudantes’. Estes seriam indivíduos que

atravessariam não só as narrativas, como também nossas

vidas, travestidos sob diversos nomes. São pessoas que

passam despercebidas, mas que têm um papel importante

em nossas histórias, apesar de apresentarem

comportamento contraditório. Segundo o autor,

[os ajudantes] (…) são observadores atentos, ‘ágeis’, ‘soltos’; têm olhos cintilantes e, contrastando com seus modos pueris, rostos que parecem de adultos, ‘de estudantes, quase’, e

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barbas longas e abundantes. (…) sempre absortos em imaginações e projetos para os quais parecem dispor de todas as qualidades, não conseguem, porém, concluir nada, e ficam geralmente sem o que fazer. (…) São os personagens que o narrador esquece no final da história, quando os protagonistas vivem felizes e contentes até o final de seus dias (…)93.

Agamben destaca que objetos também

podem fazer este papel dos ajudantes. Acredito que, como

grande parte dos artistas, pertenço à categoria de

‘acumuladores’. Guardo desde objetos inúteis, quebrados ou

que não apresentam mais nenhuma utilidade, até panfletos

distribuídos nas ruas (ou mesmo papéis jogados nas ruas

que acabaram por se transformar em um trabalho)94. Estas

‘criaturas’ me cercam e fazem acreditar que de alguma

forma consigo reter ou mesmo deter a vida ou o tempo.

Estes objetos têm aparentemente esta capacidade, tal como

diz Agamben: “O ajudante é a figura daquilo que se perde,

ou melhor, da relação com o perdido.”95 Mesmo que esta

perda seja alheia (a busca de objetos que nunca

pertenceram a mim, por exemplo) ele, o ajudante, se faz

presente e indispensável para a manutenção de uma

‘normalidade‘.96 Por conta deste ‘poder’, a conservação

aparentemente desmedida destes objetos se faz plenamente

93 AGAMBEN, 2007. Op.cit. Pág. 31-32. 94 No trecho seguinte fica muito claro o que significam estes objetos quando assumem o papel de ajudantes para Agamben:“Também entre as coisas aparecem ajudantes. Todos conservamos certos objetos inúteis, metade lembrança e metade talismã, de que nos envergonhamos um pouco, mas aos quais não gostaríamos de renunciar por nada neste mundo. Trata-se às vezes de um velho brinquedo que sobreviveu aos estragos infantis, de uma caixinha de estudante que guarda um cheiro perdido ou de uma camiseta apertada que conservamos, sem motivo, na gaveta das camisas ‘de homem’.” - AGAMBEN, 2007. Op.cit. Pág.33. 95 Idem. Pág.35. 96 Assim como em algum transtorno psíquico, em que certos rituais são repetidos, ao obter-se estes ‘ajudantes alheios’, busca-se manter a relação com algo perdido mas que não foi jamais presentificado. Portanto, poderia ser caracterizado como uma tentativa de se criar um controle sobre algo que é aparentemente artificial apenas pelo fato de não pertencer à vida pregressa de quem buscou este ajudante. É, de fato, a invenção de uma narrativa.

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justificável.

Ao ler que “O que o perdido exige não é ser

lembrado ou satisfeito, mas continuar presente em nós como

esquecido, como perdido e, unicamente por isso, como

inesquecível.”97, relembrei a questão da fotografia e do

vídeo substituírem o evento98. Há uma tendência de o senso

comum acreditar que, atualmente, as pessoas substituem a

experiência de se estar em algum lugar pela ação de se

retratar ou filmar. Os eventos importantes de nossa vida

passaram a ser fotografados sem que o vivenciemos

realmente99. O vídeo ou a fotografia são mais importantes no

momento do que o evento em si. Quer dizer, ao nos

preocuparmos em registrar aquele momento, acabamos por

nunca vivenciarmos, já que não poderemos tê-lo de volta ao

vermos a foto ou o vídeo.100 Segundo Adorno

(…)no fim das contas, é como nas fotografias avidamente tiradas durante a viagem, em que pela paisagem se dispersam, como desperdícios, os que dela nada viram, e como recordação recolhem o que, sem memória, se despenhou no nada.101

Assim, a fotografia ou o vídeo nos faria lembrar

fisicamente do esquecido. Fisicamente não só por causa da

questão material do meio (mesmo sendo digital há uma

relação material nem que seja pela necessidade de 97 AGAMBEN, 2007. Op.cit. Pág.35. 98 “Uma foto é tanto uma pseudopresença quanto uma prova de ausência.” – SONTAG, 2004. Op.cit. Pág. 26 99 Susan Sontag esclarece este movimento de fotografar o presente no seguinte trecho de seu livro ‘Sobre a fotografia’: “Fotos são um meio de aprisionar a realidade, entendida como recalcitrante, inacessível; de fazê-la parar. Ou ampliam a realidade, tida por encurtada, esvaziada, perecível, remota. Não se pode possuir a realidade, mas pode-se possuir imagens (e ser possuído por elas) (...) Mas os resultados dessa prática de acesso instantâneo são outro modo de criar distância. Possuir o mundo na forma de imagens é, precisamente, reexperimentar a irrealidade e o caráter distante do real. (...) as fotos tiradas hoje transformam o que é presente numa imagem mental, como o passado. As câmeras estabelecem uma relação inferencial com o presente (a realidade é conhecida por seus vestígios), proporcionam uma visão imediatamente retroativa da experiência.” – Idem. Pág.180 e 183. 100 Também podemos lembrar que a questão da visão do momento através de um anteparo (câmera) é uma maneira de não vivenciar, porém, não entraremos nesta discussão. 101 ADORNO, 2001. Op.cit. Pág. 112.

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equipamentos para ver o resultado), mas também pela

questão indicial inerente ao processo; e nisso residiria a

materialidade deste ‘objeto-ajudante’.

Ao pensar todos estes pontos, do que fica

esquecido, perdido em nossa memória, ocorre a associação

com a guenizá, pois como foi exposto anteriormente, este é o

local da retenção, da memória. Segundo o livro ‘A historical

atlas of the jewish people’, editado por Eli Barnavi,

(…) o significado da palavra guenizá é

esconder. Esta seria um local designado para depositar bíblias danificadas, livros de orações amassados e objetos ritualísticos que não podem ser mais utilizados. De acordo com a lei Judaica, objetos que contêm o nome de Deus não podem ser destruídos e devem ser preservados mesmo que não tenham mais utilidade. (…) quando fica cheia, a guenizá tem que ser transferida para ser enterrada em um cemitério.102

É interessante pensar que o ajudante seria

algo que permanece guardado, perdido no limbo da

memória, tal como as escrituras que não podem ser

destruídas pelo homem e aguardam sua própria

desintegração, num processo de entropia. Nesse processo

de entropia, sempre é aproveitado algo, algo que retorna.

Assim, o ajudante viria como algo que reatualiza o passado,

pois participa sempre do ciclo do eterno retorno.

A questão da miniaturização é outro fator a

ser levantado. Ao ser utilizado como um pequeno talismã

(estes pequenos objetos que nos acompanham) cria-se uma

poética de preciosidade, de fragmentos que se aproximam

muito do trabalho de Robert Walser. Sua escrita diminuta

criava a necessidade de um aproximar-se para poder ler. É

interessante perceber que mesmo o significado de miniatura 102 BARNAVI, Eli, ed. A Historical Atlas of the Jewish People. New York: Schocken Books, 1992. Pág. 90.

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carrega indícios presentes na concepção do trabalho.

Segundo Houaiss103, a miniatura é:

1 Rubrica: desenho, pintura.

pintura ou desenho muito delicado, caprichado, em tamanho pequeno, feito em pergaminho ou outra superfície, ger. com mínio ou algumas outras cores fortes 2 Rubrica: desenho, pintura. letra inicial de capítulos dos manuscritos antigos, bastante ornamentada, inicialmente traçada em vermelho, com mínio, e posteriormente com preto, azul etc. Obs.: cf. rubrica ('letra inicial') 3 Rubrica: desenho, pintura. Estatística: pouco usado. m.q. iluminura ('desenho, grafismo') 4 Derivação: por extensão de sentido. Rubrica: artes plásticas. objeto artístico de pequenas dimensões, delicado e minucioso Ex.: neste museu, há um tesouro em m. antigas, gregas e egípcias.”

Dando continuidade, Susan Sontag aponta que

miniaturizar é ocultar (…) significa tornar inútil. Pois o que foi reduzido de forma tão grotesca, de certa forma, é libertado de qualquer sentido - a pequenez é sua característica mais notável. É, ao mesmo tempo, um todo (ou seja, completo) e um fragmento (tão pequenino, na escala errada). Torna-se objeto de contemplação desinteressada ou de devaneio.104

Esses pequenos objetos são tão reduzidos, ocultos, mas

diferente do que diz Susan Sontag, eles não deixam de fazer

sentido, mas passam a pertencer ao comportamento

contraditório, dialético no qual o ajudante está envolvido.

Passa a ser apenas um objeto de devaneio porque vaga

pelo limbo em que as imagens estão inseridas, no local em

103 HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, verbete "Miniatura". 104 SONTAG, 1986. Op.cit. Pág. 96.

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que as coisas não são acessíveis diretamente, mas apenas

através “[dos] ‘enviados’ do inimigo”105.

Eles são os intermediários necessários.

É a pequena caixa sagrada, onde referências são guardadas e não

podem ser destruídas.

Referências que assombram.

105 AGAMBEN, 2007. Op.cit.Pág.31.

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[At the club Silencio]

N o h a y b a n d a . T h e r e ´ s n o o r c h e s t r a . I l n ´ y a p a s

d e o r c h e s t r a .

I t ´ s a l l r e c o r d e d . I t ´ s a l l i n t h e t a p e .

N o h a y b a n d a ! T h e r e i s n o b a n d . I t i s a l l a n

i l l u s i o n … 106

106 Cidade dos Sonhos – Dir. David Lynch (EUA) (2001).

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(EUA) (2004).

Cidade dos Sonhos – Dir. David Lynch (EUA) (2001).

Samsara – Dir. Pan Nalin (Alemanha/India) (2001).

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ANEXOS

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O homem da multidão

"Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul."

La Bruyère

De certo livro germânico, disse-se, com propriedade, que "es lässt sich nicht

lesen" - não se deixa ler. Há certos segredos que não consentem ser ditos.

Homens morrem à noite em seus leitos, agarrados às mãos de confessores

fantasmais, olhando-os devotamente nos olhos; morrem com o desespero no

coração e um aperto na garganta, ante a horripilância de mistérios que não

consentem ser revelados. De quando em quando, ai, a consciência do homem

assume uma carga tão densa de horror que dela só se redime na sepultura. E,

destarte, a essência de todo crime permanece irrevelada.

Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a

grande janela do Café D. .. em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já

me encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num

daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado

de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o

intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que

cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. O simples

respirar era-me um prazer, e eu derivava inclusive inegável bem-estar de muitas das

mais legítimas fontes de aflição. Sentia um calmo mas inquisitivo interesse por tudo.

Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, divertira-me durante a maior

parte da tarde: ora espiando os anúncios, ora observando a promíscua companhia

reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas.

Essa era uma das artérias principais da cidade e regurgitara de gente durante o dia

todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão engrossou, e, quando as

lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam

pela porta. Naquele momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em

situação similar, e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de

uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se

passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior.

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De início, minha observação assumiu um aspecto abstrato e generalizante. Olhava

os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias.

Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso

interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblante e expressão

fisionômica.

Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam

pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas

vincadas, e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em

outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompunham-se e

continuavam, apressados, seu caminho. Outros, formando numerosa classe, eram

irrequietos nos movimentos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e

gesticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria

densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço,

interrompiam subitamente o resmungo, mas redobravam a gesticulação e

esperavam, com um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam

detido passassem adiante. Se alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de

desculpas, como que aflitos pela confusão.

Nada mais havia de distintivo sobre essas duas classes além do que já observei.

Seus trajes pertenciam àquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram,

sem dúvida, nobres, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas _ os

eupátridas e os lugares-comuns da sociedade _, homens ociosos e homens

atarefados com assuntos particulares, que dirigiam negócios de sua própria

responsabilidade. Não excitaram muito minha atenção.

A tribo dos funcionários era das mais ostensivas, e nela discerni duas notáveis

subdivisões. Havia, em primeiro lugar, os pequenos funcionários de firmas

transitórias, jovens cavalheiros de roupas justas, botas de cor clara, cabelo bem

emplastado e lábios arrogantes. Posta de lado certa elegância de porte, a que, à

falta de melhor termo, pode-se dar o nome de "escrivanismo", a aparência deles

parecia-me exato fac-símile do que, há doze ou dezoito meses, fora considerada a

perfeição do bon ton. Usavam os atavios desprezados pelas classes altas - e isso,

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acredito, define-os perfeitamente.

A subdivisão dos funcionários categorizados de firmas respeitáveis era

inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou

castanhas, confortáveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos

sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça

ligeiramente calva e a orelha direita afastada, devido ao hábito de ali prenderem a

caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para pôr ou tirar o chapéu e

que traziam relógios com curtas correntes de ouro maciço, de modelo antigo. A

deles era a afetação da respeitabilidade, se é que existe, verdadeiramente, afetação

tão respeitável.

Havia muitos indivíduos de aparência ousada, característica da raça dos batedores

de carteiras, que infesta todas as grandes cidades. Eu os olhava com muita

curiosidade e achava difícil imaginar que pudessem ser tomados por cavalheiros

pelos cavalheiros propriamente ditos. O comprimento do punho de suas camisas,

assim como o ar de excessiva franqueza que exibiam, era quanto bastava para

denunciá-los de imediato.

Os jogadores - e não foram poucos os que pude discernir - eram ainda mais

facilmente identificáveis. Usavam trajes dos mais variados, desde o colete de

veludo, o lenço fantasia ao pescoço, a corrente de ouro e os botões enfeitados do

mais desatinado e trapaceiro dos rufiões às vestes escrupulosamente desadornada

dos clérigos, incapazes de provocar a mais leve das suspeitas. Não obstante,

denunciava-os certa tez escura e viscosa, a opacidade dos olhos, assim como o

palor e a compressão dos lábios. Havia, ademais, dois outros traços característicos

que me possibilitavam identificá-los: a voz estudadamente humilde e a incomum

extensão do polegar, que fazia ângulo reto com os demais dedos. Muitas vezes, em

companhia desses velhacos, observei outra espécie de homens, algo diferentes nos

hábitos mas, não obstante, pássaros de plumagem semelhante. Podiam ser

definidos como cavalheiros que viviam à custa da própria finura. Ao que parecia,

dividiam-se em dois batalhões, no tocante a rapinar o público: de um lado, os

almofadinhas; de outro, os militares. Os traços distintivos do primeiro grupo eram o

cabelo anelado e o sorriso aliciante; o segundo grupo caracterizava-se pelo

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semblante carrancudo e pela casaca de alamares.

Descendo na escala do que se chama distinção, encontrei temas para especulações

mais profundas e mais sombrias. Encontrei judeus mascates, com olhos de falcão

cintilando num semblante onde tudo o mais era abjeta humildade; atrevidos

mendigos profissionais hostilizando mendicantes de melhor aparência, a quem

somente o desespero levara a recorrer à caridade noturna; débeis e cadavéricos

inválidos, sobre os quais a morte já estendera sua garra, e que se esgueiravam pela

multidão, olhando, implorantes, as faces dos que passavam, como se em busca de

alguma consolação ocasional, de alguma esperança perdida; mocinhas modestas

voltando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e

furtando-se, mais chorosas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo

contato direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda sorte e de toda

idade: a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de

Luciano, feita de mármore de Paros, mas cheia de imundícies em seu interior; a

repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de

jóias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina

de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta

das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igualar·se, no

vício, às suas colegas mais idosas; bêbados inúmeros e indescritíveis; uns,

esfarrapados, cambaleando inarticulados, de rosto contundido e olhos vidrados;

outros, de trajes ensebados, algo fanfarrões, de lábios grossos e sensuais, e face

apopleticamente rubicunda; outros, ainda, trajando roupas que, em tempos

passados, haviam sido elegantes e que, mesmo agora, mantinham

escrupulosamente escovadas; homens que caminhavam com passo firme, mas cujo

semblante se mostrava medonhamente pálido, cujos olhos estavam congestionados

e cujos dedos trêmulos se agarravam, enquanto abriam caminho por entre a

multidão, a qualquer objeto que lhes estivesse ao alcance; além desses todos,

carregadores de anúncios, moços de frete, varredores, tocadores de realejo,

domadores de macacos ensinados, cantores de rua, ambulantes, artesãos

esfarrapados e trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies _ tudo isso

cheio de bulha e desordenada vivacidade, ferindo nos discordantemente os ouvidos

e provocando-nos uma sensação dolorida nos olhos.

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Conforme a noite avançava, progredia meu interesse pela cena. Não apenas o

caráter geral da multidão se alterava materialmente (seus aspectos mais gentis

desapareciam com a retirada da porção mais ordeira da turba, e seus aspectos mais

grosseiros emergiam com maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus

antros todas as espécies de infâmias, mas a luz dos lampiões a gás, débil de início,

na sua luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistado ascendência, pondo

nas coisas um brilho trêmulo e vistoso. Tudo era negro mas esplêndido - como

aquele ébano ao qual tem sido comparado o estilo de Tertuliano.

Os fantásticos efeitos de luz levaram-me ao exame das faces individuais, e, embora

a rapidez com que o mundo iluminado desfilava diante da janela me proibisse lançar

mais que uma olhadela furtiva a cada rosto, parecia-me, não obstante, que, no meu

peculiar estado de espírito, eu podia ler freqüentemente, mesmo no breve intervalo

de um olhar, a história de longos anos.

Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba

quando, subitamente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns

sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de imediato se impôs

fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão.

Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de longe. Lembro-me bem

de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido

Retzsch, e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas

do Demônio.

Enquanto eu tentava, durante breve minuto em que durou esse primeiro exame,

analisar o significado que ele sugeria, nasceram, de modo confuso e paradoxal, no

meu espírito, as idéias de vasto poder mental, de cautela, de indigência, de avareza,

de frieza, de malícia, de ardor sanguinário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo

terror, de intenso e supremo desespero. Senti-me singularmente exaltado, surpreso,

fascinado. "Que extraordinária história", disse a mim mesmo, "não estará escrita

naquele peito!" Veio-me então imperioso desejo de manter o homem sob minhas

vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o

chapéu e a bengala, saí para a rua e abri caminho por entre a turba em direção ao

local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao

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cabo de algumas pequenas dificuldades, consegui por fim divisá-lo, aproximar-me

dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção.

Tinha agora uma boa oportunidade para examinar-lhe a figura. Era de pequena

estatura, muito esguio de corpo e, aparentemente, muito débil. Suas roupas eram,

de modo geral, sujas e esfarrapadas, mas quando ele passava, ocasionalmente, sob

algum foco de luz, eu podia perceber que o linho que trajava, malgrado a sujeira, era

de fina textura, e, a menos que minha visão houvesse me enganado, tive um relance

através de uma fresta da roquelaure, evidentemente de segunda mão, que ele trazia

abotoada de cima a baixo, de um diamante e de uma adaga. Essas observações

aguçaram minha curiosidade, e decidi-me a acompanhar o estranho até onde quer

que ele fosse.

Era já noite fechada, e uma neblina úmida e espessa, que logo se agravou em

chuva pesada, amortalhava a cidade. Essa mudança de clima teve um estranho

efeito sobre a multidão, que logo foi presa de nova agitação e se abrigou sob um

mundo de guarda-chuvas. A agitação, os encontrões e o zunzum decuplicaram. De

minha parte, não dei muita atenção à chuva; uma velha febre latente em meu

organismo fazia com que eu a recebesse com um prazer algo temerário. Amarrando

um lenço à boca, continuei a andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu

caminho, com dificuldade, ao longo da grande avenida; eu caminhava grudado aos

seus calcanhares, com medo de perdê-lo de vista. Como nunca voltou a cabeça

para trás, não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma

travessa que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a

avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento.

Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente do que antes; com

maior hesitação, dir-se-ia. Atravessou e tornou a atravessar a rua, repetidas vezes,

sem propósito aparente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento

seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada, e ele

caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de transeuntes

havia gradualmente decrescido, tornando-se o que é ordinariamente visto, à noite,

na Broadway, nas proximidades do Park, tão grande é a diferença entre a população

de Londres e a da mais populosa das cidades americanas. Um desvio de rota levou-

nos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante de vida. As antigas

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maneiras do estranho voltaram a aparecer. O queixo caiu-lhe sobre o peito,

enquanto seus olhos se moviam, inquietos, sob o cenho franzido, em todas as

direções, espreitando os que o acossavam. Abriu caminho por entre a multidão com

firmeza e perseverança. Surpreendi-me ao ver que, tendo completado o circuito da

praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar. Mais

atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes; quase que deu

comigo, certa vez em que se voltou com um movimento brusco.

Nesse exercício gastou mais uma hora, ao fim da qual encontramos menos

interrupções, por parte dos transeuntes, que da primeira vez. A chuva continuava a

cair, intensa; o ar tornou-se frio; os passantes se retiravam para suas casas. Com

um gesto de impaciência, o estranho ingressou num beco relativamente deserto.

Caminhou apressadamente, durante cerca de um quarto de milha, com uma

disposição que eu jamais sonhara ver em pessoa tão idosa; grande foi a minha

dificuldade em acompanhá-lo. Alguns minutos de caminhada levaram-nos a uma

grande e ruidosa feira, cujas localidades pareciam bastante familiares ao estranho, e

ali ele retomou suas maneiras primitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, sem

propósito definido, por entre a horda de compradores e vendedores.

Durante a hora e meia, aproximadamente, que passamos nesse local, foi-me mister

muita cautela para seguir-lhe a pista sem atrair sua atenção. Felizmente, eu calçava

galochas e podia movimentar-me em absoluto silêncio. Em nenhum momento ele

percebeu que eu o vigiava. Entrou em loja após loja; não perguntava o preço de

artigo algum nem dizia qualquer palavra, mas limitava-se a olhar todos os objetos

com um olhar desolado, despido de qualquer expressão. Eu estava profundamente

intrigado com o seu modo de agir e firmemente decidido a não me separar dele

antes de estar satisfeita, até certo ponto, minha curiosidade a seu respeito.

Um relógio bateu onze sonoras badaladas, e a feira começou a despovoar-se

rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu um esbarrão no velho, e, no

mesmo instante, vi um estremecimento percorrer-lhe o corpo. Ele saiu

apressadamente para a rua e olhou ansioso à sua volta, por um momento;

encaminhou-se depois, com incrível rapidez, através de vielas, umas cheias de

gente, outras despovoadas, para a grande avenida da qual partira, a avenida onde

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ficava situado o Hotel D... Esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto.

Estava ainda brilhantemente iluminada, mas a chuva caía pesadamente e havia

poucas pessoas à vista. O estranho empalideceu. Deu alguns passos caprichosos

pela antes populosa avenida e depois, suspirando profundamente, tomou a direção

do rio. Após ter atravessado uma grande variedade de ruas tortuosas, chegou por

fim diante de um dos teatros principais da cidade. Este estava prestes a fechar, e os

espectadores saíam pelas portas escancaradas. Vi o velho arfar, como se por falta

de ar, e mergulhar na multidão, mas julguei perceber que a intensa agonia do seu

semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o peito

novamente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia agora o

caminho tomado pela maioria dos espectadores, mas, de modo geral, não conseguia

compreender a inconstância de suas ações.

Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando, e sua antiga inquietude

e vacilação voltaram a aparecer. Durante algum tempo, acompanhou de perto um

grupo de dez ou doze valentões; mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que

ficaram apenas três dos componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco

freqüentada. O estranho se deteve e, por um momento, pareceu imerso em

reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápidas passadas

um itinerário que nos levou aos limites da cidade, para regiões muito diversas

daquelas que havíamos até então atravessado. Era o mais esquálido bairro de

Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das pobrezas e do mais

desesperado dos crimes. A débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos

prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e

arruinados, dispostos em tantas e tão caprichosas direções, que mal se percebia um

arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavimento jaziam espalhadas,

arrancadas de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor

horrível se desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera.

No entanto, conforme avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim,

deparamos com grandes bandos de classes mais desprezadas da população

londrina vadiando de cá para lá. O ânimo do velho se acendeu de novo, como uma

lâmpada bruxuleante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico. Subitamente; ao

dobrarmos uma esquina, um clarão de luz feriu-nos os olhos e detivemo-nos diante

de um dos enormes templos urbanos de Intemperança: um dos palácios do demônio

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Álcool.

O amanhecer estava próximo, mas, não obstante, uma turba de bêbados

desgraçados atravancava a porta de entrada da taverna. Com um pequeno grito de

alegria, o velho forçou a passagem e, uma vez dentro do salão, retomou suas

maneiras habituais, vagueando, sem objetivo aparente, por entre a turba. Não fazia,

porém, muito tempo que se ocupava nesse exercício quando uma agitação dos

presentes em direção à porta deu a entender que o proprietário da taverna resolvera

fechá-la por aquela noite. Era algo mais intenso que desespero o sentimento que

pude ler no semblante daquela criatura singular a quem eu estivera a vigiar tão

pertinazmente. Todavia, ele não hesitou por muito tempo; com doida energia,

retomou o caminho de volta para o coração da metrópole. Caminhava com passadas

longas e rápidas, enquanto eu o seguia, cheio de espanto, mas decidido a não

abandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos interesses.

Enquanto caminhávamos, o sol nasceu, e quando alcançamos novamente a mais

populosa feira da cidade, a rua do Hotel D... , esta apresentava uma aparência de

alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu presenciara na véspera. E

ali, entre a confusão que crescia a cada momento, persisti na perseguição ao

estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a caminhar de cá para lá; durante

o dia todo, não abandonou o turbilhão da avenida. Quando se aproximaram as

trevas da segunda noite, aborreci·me mortalmente e, detendo·me bem em frente do

velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a

andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se.

"Este velho", disse comigo, por fim, "é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se

a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a

seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro

mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que "es

lässt sich nich lesen".