A Importância da Nova Governança para Construir uma Outra Cultura Política no Brasil

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1 A Importância da Nova Governança para Construir uma Outra Cultura Política no Brasil Tania Zapata 1 1. Introdução Ao decidir escrever este artigo sobre a nova governança, me deparo inicialmente com o pressuposto de que, talvez, já esteja introjetada na mente de muitos brasileiros que se trata de mais um modismo - como tantos outros já disseminados por aí afora. No entanto, depois de vários anos atuando como especialista em Desenvolvimento Territorial, seja por meio de reflexões mais teóricas ou de processos de experimentação em campo, estou cada dia mais convencida de que um dos maiores desafios para construir o desenvolvimento sustentável em nosso país é a mudança da cultura política. Trata-se de mudança de paradigma e de modelos mentais. Não é possível mais admitir, na sociedade do conhecimento e da conectividade, práticas clientelistas e de tutela com as comunidades urbanas e rurais, que têm se configurado como um comportamento comum da maioria dos que exercem a política no Brasil. Essas práticas prevalecem como moeda de troca para apoios eleitorais e de manutenção do poder e dos privilégios das velhas e novas classes hegemônicas. Os inúmeros trabalhos realizados nas diversas regiões do Brasil, de norte a sul, desde os projetos de cooperação técnica com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) até hoje com o Instituto de Assessoria para o Desenvolvimento Humano (IADH), levaram-me a considerar que essa mudança de cultura política não vai acontecer de cima para baixo. Ao contrário, as transformações mais substantivas na sociedade só vão acontecer (ou se consolidar) a partir do local e das redes sociais. Ou, pelo menos, a partir de uma nova articulação entre o local e o país e, porque não dizer, e o mundo (o global). É no local, no território organizado, no espaço da vida, onde as coisas do cotidiano acontecem, onde existe a vida real e a cidadania começa a ser exercida. Por isso, estamos cada dia mais interessados no tema da governança e do desenvolvimento territorial. Por acreditar que por aí temos algum caminho a trilhar, que possa nos apontar uma luz nessa complexa trama de tutela ainda exercida pelo aparelho estatal brasileiro sobre as comunidades, especialmente as mais carentes e excluídas. 1 Tania Zapata é socióloga, sócia-fundadora e diretora técnica do Instituto de Assessoria para o Desenvolvimento Humano (IADH).

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Autora: Tania Zapata

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A Importância da Nova Governança para Construir uma Outra Cultura

Política no Brasil

Tania Zapata1

1. Introdução

Ao decidir escrever este artigo sobre a nova governança, me deparo inicialmente com o pressuposto de que, talvez, já esteja introjetada na mente de muitos brasileiros que se trata de mais um modismo - como tantos outros já disseminados por aí afora.

No entanto, depois de vários anos atuando como especialista em Desenvolvimento Territorial, seja por meio de reflexões mais teóricas ou de processos de experimentação em campo, estou cada dia mais convencida de que um dos maiores desafios para construir o desenvolvimento sustentável em nosso país é a mudança da cultura política.

Trata-se de mudança de paradigma e de modelos mentais. Não é possível mais admitir, na sociedade do conhecimento e da conectividade, práticas clientelistas e de tutela com as comunidades urbanas e rurais, que têm se configurado como um comportamento comum da maioria dos que exercem a política no Brasil. Essas práticas prevalecem como moeda de troca para apoios eleitorais e de manutenção do poder e dos privilégios das velhas e novas classes hegemônicas.

Os inúmeros trabalhos realizados nas diversas regiões do Brasil, de norte a sul, desde os projetos de cooperação técnica com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) até hoje com o Instituto de Assessoria para o Desenvolvimento Humano (IADH), levaram-me a considerar que essa mudança de cultura política não vai acontecer de cima para baixo. Ao contrário, as transformações mais substantivas na sociedade só vão acontecer (ou se consolidar) a partir do local e das redes sociais. Ou, pelo menos, a partir de uma nova articulação entre o local e o país e, porque não dizer, e o mundo (o global). É no local, no território organizado, no espaço da vida, onde as coisas do cotidiano acontecem, onde existe a vida real e a cidadania começa a ser exercida.

Por isso, estamos cada dia mais interessados no tema da governança e do desenvolvimento territorial. Por acreditar que por aí temos algum caminho a trilhar, que possa nos apontar uma luz nessa complexa trama de tutela ainda exercida pelo aparelho estatal brasileiro sobre as comunidades, especialmente as mais carentes e excluídas.

1 Tania Zapata é socióloga, sócia-fundadora e diretora técnica do Instituto de Assessoria para o

Desenvolvimento Humano (IADH).

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2. A nova governança

As idéias atuais sobre governança foram se desenvolvendo no contexto contemporâneo de rupturas e grandes mudanças sociais, provocadas pela globalização e o desenvolvimento das tecnologias da informação e comunicação, que estão transformando nossa tradicional sociedade hierárquica em uma sociedade horizontalizada e em rede.

É importante, no entanto, não confundir o conceito de governança com o de governo. O conceito de governança antecipa e ultrapassa o de governo. Governança contempla a capacidade institucional na gestão pública, com a participação de diferentes atores, ou seja, governo, agentes do mercado e sociedade civil. Estamos falando de um conceito que contempla a articulação de interesses de atores públicos e privados, com a perspectiva do interesse coletivo, visando ao longo prazo.

Queremos, ainda, deixar explícito que o conceito moderno de governança diz respeito a uma nova forma de governar, com mais cooperação e horizontalidade, diferente do velho modelo hierárquico, no qual as autoridades do Estado exerciam sempre seu poder sobre o conjunto da sociedade civil.

Passamos de uma noção de governo na qual o Estado era o centro do poder político, com o monopólio da busca do interesse coletivo, a um novo contexto em que as decisões estratégicas são produto de uma pauta de concertação entre as instituições e a sociedade.

O PNUD identificou, em 1997, quatro dimensões da governança:

Econômica: uma ordem econômica de mercado, competitiva e não discriminatória, que favoreça o crescimento econômico.

Política: instituições políticas participativas, democráticas, legítimas e pluralistas.

Administrativa: uma administração pública eficiente, transparente e responsável.

Sistêmica: instituições sociais que protegem os valores culturais e religiosos, contribuindo para assegurar a liberdade e a segurança das pessoas e que promovam a igualdade de oportunidades para o exercício das capacidades pessoais.

Consideramos o conceito de governança como algo que diz respeito a padrões e estruturas em que os atores públicos e privados interagem, consensuam e pactuam tomadas de decisões conjuntas, dentro de regimes democráticos.

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Contempla uma nova forma de governar, de tomar decisões sobre o interesse coletivo de forma mais cooperativa, diferente dos velhos modelos centralizadores. As regras do jogo condicionam a participação dos diferentes atores estratégicos, com competências e capacidades, sejam de poder de apoios, de vetos ou de fazer concertação estratégica. Ao falarmos do tema da governança, estamos também tratando da necessidade de transparência na tomada de decisões, com a explicitação dos diferentes interesses envolvidos, a construção de consensos, a resolução de conflitos e a compreensão do que seja a nova visão de liderança compartilhada. Neste sentido, alcançar uma nova e boa governança significa também a presença de líderes com visão inovadora, que expressem causas, crenças, competência empreendedora e de articulação de uma utopia viável, capaz de impulsionar mudanças históricas. Significa ainda a adoção de uma nova conduta no território, com regras sociais e políticas válidas para todos os atores.

Portanto, a boa governança se apóia em fortes interações entre a sociedade civil, os agentes do mercado e as estruturas de governo. Por isso, essa governança contempla a acumulação de capital social.

Para Francis Fukuyama (2001), o capital social é a capacidade gerada pela presença dominante de confiança em uma sociedade. De fato, a existência da confiança produz atitudes cooperativas, articulação de projetos coletivos e construção de redes produtivas e sociais. É o que alguns autores denominam como a existência de virtudes cívicas na sociedade, ou seja, normas e valores baseados na confiança e na reciprocidade, que se retroalimentam e promovem a participação da cidadania nos assuntos coletivos, para fortalecer processos sistêmicos de desenvolvimento sustentável.

Consolidando, então, nossa visão sobre a nova governança: é a estrutura de relações entre os diferentes atores, por meio da qual se toma decisões sobre a coisa pública, com visão de longo prazo. A interdependência entre os atores é inerente e fundamental para entender o conceito de governança.

3. A construção da concepção do desenvolvimento humano sustentável

Estamos vivendo um momento de transição paradigmática que afeta todas as áreas do conhecimento humano. Durante muito tempo, velhas idéias sobre desenvolvimento prevaleceram na sociedade – como a de que o desenvolvimento técnico, científico e econômico traria, no seu bojo, o desenvolvimento humano: democracia, liberdade, autonomia e ética.

Infelizmente, não foi isso que aconteceu. Existe hoje uma mente adaptada para conhecer as máquinas artificiais, mas que não serve para conhecer bem os seres

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humanos. Porque os conhecimentos que se baseiam unicamente em quantificação, em cálculo, não podem conhecer o que significa a vida: o amor, o sofrimento, o sonho e a nossa subjetividade.

Karl Marx dizia que a mercadoria iria substituir as relações humanas. Nisto teve muita percepção da evolução da sociedade. Na verdade, hoje em dia assistimos a um fenômeno que revela que não apenas as relações humanas viraram mercadoria, mas inclusive as relações biológicas, já que até os genes se converteram em mercadorias.

Estamos vivemos uma acelerada liquefação das estruturas e instituições sociais, como afirma Zygmunt Bauman. A Internet criou uma ruptura mais importante do que a gerada pela imprensa no século XV, porque molda a capacidade de comunicar, compartilhar, distribuir, trocar, formalizar, usar e colocar em rede as informações, a uma velocidade jamais experimentada antes. Estamos sob a tutela da dromocracia, do grego “dromos”, que significa velocidade.

Bauman nos relembra, com ênfase, que passamos da fase sólida da modernidade para a fase fluida da pós-modernidade, na qual os seres humanos não têm vínculos e o mais importante é acabar depressa, seguir em frente e começar de novo... Estar em movimento não é mais uma escolha! O espaço público está vazio de atores e de cidadania, devido à profunda Individualização dos problemas e suas soluções.

Há também uma crise de identidade, da qual emerge a angústia do “homo digitalis”, pois os novos grupos de pertencimento produzem insegurança. Vivemos o tempo da deificação do consumo: os shoppings e os supermercados cheios, mas são lugares sem lugar. Oferecem uma “pseudo” liberdade e segurança. De forma ilusória, os consumidores têm a impressão de fazer parte de uma comunidade, mas sem nenhum compartilhamento. Ao contrário, são espaços vazios de significados. Só existe o mapa da cidade de cada um.

Compartilhando mais uma vez a visão de Bauman, tudo o que restringe o movimento, como o que é sólido, volumoso, pesado, não é mais importante. O advento da instantaneidade conduz a cultura e a ética humana a um território não mapeado. A memória do passado e a confiança no futuro sempre fizeram parte da consciência humana. Mais do que nunca, a história e a aventura dos seres humanos no planeta continua nitidamente complexa e imanentemente incompleta.

Por que estamos trazendo à tona essas inquietações filosóficas? Que têm a ver com nossas vidas e com o tema do nosso artigo? Por que essas inquietações questionam nossos valores e angustiam as velhas e novas gerações? Talvez sigamos tendo mais perguntas do que respostas, num campo de historicidade do qual seguem convivendo os velhos e os novos paradigmas.

Em todo caso, continua para todas as gerações o grande desafio de sobrevivência e da felicidade da espécie humana. Daí o debate e a colocação na agenda global do tema da sustentabilidade e da nova governança, que podem abrir caminhos para reconstruir algumas utopias perdidas no meio da tecnificação da vida. E,

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porque não dizer, de inventar novas, capazes de oferecer algum sentido transcendente à aventura humana no planeta.

A concepção de desenvolvimento humano sustentável resulta da reflexão e do amadurecimento de várias abordagens das últimas décadas. O PNUD adota o conceito de desenvolvimento humano que começa a ser amplamente aceito nos meios acadêmicos e nas organizações do terceiro setor. Diz o PNUD: “trata-se de um processo abrangente de expansão do exercício do direito de escolhas individuais em diversas áreas: econômica, política, social e cultural. Algumas dessas escolhas são básicas para a vida humana. As opções por uma vida longa e saudável, ou por adquirir conhecimento, ou um padrão de vida decente, são fundamentais para os seres humanos. Portanto, o desenvolvimento humano é o desenvolvimento das pessoas, pelas pessoas e para as pessoas”.

Por outro lado, o novo paradigma do desenvolvimento sustentável, contemplado no conceito do Relatório Brundtland (1987), afirma que se trata “do desenvolvimento que atende às necessidades do presente, sem comprometer a possibilidade das gerações futuras atenderem suas próprias necessidades”. Ou seja, contempla dois conceitos-chaves: necessidades e limitações. As necessidades essenciais dos pobres do mundo devem receber a máxima prioridade, bem como a atenção à questão das limitações que o atual estágio de desenvolvimento da tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender às necessidades presentes e futuras. O entendimento hoje de que precisamos avançar para esse novo paradigma contempla a compreensão de que o desenvolvimento sustentável tem múltiplos aspectos: ambiental, biológico, cultural, socioeconômico, político e ético.

A ECO 92 e a Agenda 21 consolidaram conceitos e definiram um conjunto de posturas e ações para mudar os paradigmas de desenvolvimento em direção à sustentabilidade. No entanto, esse é ainda um campo em construção. Embora várias abordagens a ele vinculadas já estejam circulando há um certo tempo, não é ainda unânime a noção de que o desenvolvimento econômico não basta para garantir boa qualidade de vida para todos com durabilidade. Não é fácil definir quais as necessidades do presente e antecipar as necessidades das gerações que virão, que, por sua vez, terão novos problemas e necessidades. No entanto, alguns elementos devem estar presentes quando se fala de sustentabilidade:

integração entre economia e meio ambiente: ambas têm a mesma etimologia e devem dialogar na construção de uma “casa habitável” para todos;

obrigações inter-geracionais: reconhecimento de que decisões tomadas e práticas desenvolvidas na atualidade devem levar em consideração seus efeitos sobre as gerações futuras;

equidade social: a compreensão de que todos os cidadãos e cidadãs devem ter oportunidades de desenvolverem suas potencialidades e sonhos;

conservação e uso racional dos recursos ambientais;

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qualidade de vida: adoção de definição mais ampla sobre o que seja o bem-estar humano;

participação social: redefinir a estrutura e a função das instituições, de modo a garantir a participação dos cidadãos no processo de tomada de decisões de interesse público.

Como se pode ver, a própria compreensão de desenvolvimento com sustentabilidade leva em consideração o exercício do protagonismo das pessoas e da participação cidadã na redefinição da esfera pública, que é o espaço onde se discute o interesse coletivo. As crises do processo de acumulação têm oportunizado trazer para o debate novas propostas que apontem para uma agenda positiva, tais como: o pós-desenvolvimento, a democracia ecológica e a economia do cuidado. Esses novos conceitos marcam uma ruptura epistemológica com a noção de desenvolvimento baseada no ter para pensar no ser. Mas esses temas não deixam de colocar em suspense nossas certezas presentes. Talvez o futuro possível e mais humano nunca teve espaço para se materializar.

Qual a agenda do futuro? Qual o novo papel do Estado e de suas políticas no mundo globalizado e perplexo?

Precisamos de uma verdadeira revolução das mentalidades, que valorize e dê significado ao lugar da vida, da natureza, das idéias, da criatividade humana e das imensas possibilidades da inteligência coletiva. No fundo, talvez o que mais precisamos entender é que não dá mais para não compartir o mundo... A construção de um novo tipo de relação Estado-Sociedade-Mercado requer a reapropriação da política pela cidadania, assim como a existência dos novos espaços públicos para o debate sobre as alternativas de desenvolvimento para o século 21.

Desenvolvimento como um processo de mudanças qualitativas, como categoria central de sua filosofia, que além dos bens materiais contempla outros elementos, como o conhecimento, o reconhecimento social e cultural, os códigos éticos e espirituais de conduta, a relação com a natureza, os valores humanos e o que queremos enquanto futuro da espécie humana. E isso só acontecerá com a verdadeira participação das pessoas e das diversas institucionalidades que representem a nova cultura política, isto é, com a nova governança.

Entendemos que a lógica da participação da sociedade civil é diferente. Sua lógica é da liberdade, autonomia e diversidade. A legitimidade das organizações da sociedade civil não vem de um mandato eletivo. Sua legitimidade é de outra natureza. Está vinculada às causas que promovem e às ações que empreendem. As organizações e redes da sociedade civil são o que fazem e promovem: sua missão, idéias, valores, propostas, iniciativas e projetos.

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4. O processo de descentralização em curso no país e o desenvolvimento territorial

No contexto da discussão desse tema, torna-se importante discorrer um pouco sobre a relevância de avanços no processo de descentralização em nosso país, que são muito importantes na construção dessa nova governança.

O conceito de descentralização tem, na América Latina, um certo grau de ambigüidade. Em muitas ocasiões, confunde-se com o conceito de desconcentração, que é a cessão de atribuições e competências de um nível hierárquico a outro inferior, dentro de uma mesma instituição. Ou a simples transferência de uma entidade estatal da capital federal para outra estadual, sem que haja troca de poder e recursos. A descentralização contempla a criação de um ente distinto daquele do qual se vai transferir capacidade de decisão, o que exige dispor de personalidade jurídica própria no novo ente descentralizado, assim como a existência de recursos, competências e normas próprias de funcionamento. (Francisco Alburquerque) A ambigüidade da descentralização na América Latina se explica também pela existência de propósitos políticos diferentes. De um lado, constatou-se o interesse por esse processo como forma de reduzir a presença do Estado e de avançar na desregulamentação e nas privatizações. E, por outro lado, buscou-se a eleição de autoridades locais com nova visão da esfera pública, bem como o fortalecimento de institucionalidades territoriais como parte da nova agenda democrática. A combinação ou proporção adequada de centralização e descentralização depende do tipo de “contrato social” possível entre o Estado e a sociedade civil. A descentralização é, assim, um processo histórico mundial e com tendência visível no Brasil, sobretudo a partir da Constituição Cidadã de 1988, com o fortalecimento dos municípios e da desconcentração das políticas e programas do Governo Federal. Por outro lado, de forma clara o termo “governança” entra no discurso do desenvolvimento no fim da década de 80. O fato é que a União não tem condições políticas, administrativas nem operacionais de dar conta do tamanho e complexidade de um país como o Brasil, no contexto do mundo contemporâneo.

Precisamos, portanto, rediscutir o pacto federativo. As imensas transformações econômicas e tecnológicas e os significativos avanços gerenciais em curso no planeta estão levando à busca de alternativas inovadoras no terreno institucional. Como resposta ao Estado centralizado, ressaltamos a descentralização baseada no desenvolvimento da democracia participativa como complemento da democracia representativa, e com a possibilidade e necessidade de reforçar a organização e a atividade autônoma da sociedade civil.

A democracia que queremos não é apenas um regime representativo, senão um modo de relação entre o Estado e os cidadãos e entre os próprios cidadãos. Para

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tal, é necessário que a sociedade civil se fortaleça, seja suficientemente autônoma, com seus diferentes atores vendo contemplados seus interesses na formação da agenda pública.

Os relevantes avanços na área de gestão estão apontando alternativas interessantes no campo institucional, com mudanças na estrutura do Estado e sua relação com a sociedade. Organizações Não-Governamentais, sem fins lucrativos e com missão de servir ao público, estão ganhando espaço, pois possuem mais flexibilidade e velocidade no desempenho de suas atribuições. Essas novas institucionalidades se forem compatíveis com as exigências de qualidade, flexibilidade, velocidade e eficácia, devem exercer cada vez mais ações de natureza pública, em contrato e parceria com o Estado, mas independente do mesmo. A existência de Organizações Sociais de Interesse Público (Oscips) e das Agências de Desenvolvimento Local, só para citar duas, sinalizam que está em curso uma nova prática de implementação de programas e projetos de interesse público.

Enfatizamos aqui a importância da integração das pessoas em comunidades de base territorial, pela constatação de que existem unidades territoriais forjadas pela história e que têm uma identidade sociocultural, um patrimônio e um sentido de pertença na população. Consideramos o território como espaço de ação e poder e, portanto, ator inteligente e portador de protagonismo nos processos de mudança social. São as chamadas redes de poder socioterritorial. O território é um produto da prática social, dos atores sociais, seus nós, suas redes e suas tramas produtivas.

Assim sendo, o território é o “locus” privilegiado para construir a nova cultura política, a nova governança, por meio de pactos e agendas estratégicas na gestão do processo de desenvolvimento. Esses pactos baseiam-se num projeto e priorizam a utilização dos recursos locais, do potencial e dos ativos endógenos.

Então, quando falamos em desenvolvimento territorial, queremos ressaltar a sua dimensão intangível, que é a capacidade coletiva de realizar ações de interesse social, com uma visão prospectiva de futuro, buscando maior qualidade de vida da população. A abordagem territorial (em processo de implementação no país, como ponto de partida do planejamento de algumas políticas públicas) e a estratégia de Desenvolvimento Econômico Local (1) trazem uma esperança de que, a partir dos espaços públicos de representação, negociação e concertação dos atores (governança territorial), tenhamos um ponto de inflexão nos avanços do campo democrático.

Para clarificar melhor a diferença entre a abordagem territorial das políticas públicas e a estratégia Desenvolvimento Econômico Local (DEL), Centelles, do Instituto Internacional de governabilidade da Catalunya, resume algumas das suas principais características:

Uma estratégia DEL tem seus pilares em um território e adota um enfoque holístico e não setorial.

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Uma estratégia DEL requer a particpação dos atores e o diálogo social: concertação, visão compartilhada.

Uma estratégia DEL prioriza a mobilização dos recursos endógenos e suas vantagens competitivas, sem renunciar aos aportes externos.

Uma estratégia DEL está majoritariamente sob a liderança dos atores locais, tanto na concepção de sua estratégia e em seu impulsionar, como em sua gestão.

Uma estratégia DEL nunca pode faltar um tratamento transversal do conhecimento, entendido como a principal fonte de valor agregado e das TICs para reprodução, transmissão e difusão.

A confiança mútua entre os atores é o elemento-chave para obter uma colaboração construtiva entre eles. As instituições formais e informais, as regras que regem as relações entre os atores, são a base da confiança.

Outro conhecido autor que trabalha com essa temática há bastante tempo, Vazquez Barquero, da Universidade de Madrid, aponta que uma estratégia sólida de Desenvolvimento Econômico Local contempla três vertentes simultâneas: hardware, software e orgware. Hardware tem a ver com com as políticas tradicionais de desenvolvimento, como a infraestrutura básica de comunicação e transportes, serviços adequados de educação e saúde, entre outros. Já o software, é o componente de conhecimento e inteligência coletiva, utilizada para a formulação das estratégias DEL, baseadas no diagnóstico e características do território e que buscam melhorar a competitividade das empresas, a qualidade dos recursos humanos, a disponibilidade de fomento produtivo, entre outros. Finalmente, a vertente orgware, que significa a melhoria da capacidade organizativa que adquirem os atores locais, para desenhar, implementar e acompanhar a estratégia DEL.

Destaca-se, assim, a necessidade de que a condução dos processos de desenvolvimento seja protagonizada pelos vários atores que constroem as relações locais – e não apenas ou centralmente pelos atores institucionais. Mais do que um distanciamento em relação ao padrão vertical de construção e implementação de políticas públicas, isso significa a afirmação de novos modos de relacionamento, que tornam possível a articulação entre agentes autônomos, a partir da base da sociedade, como sujeitos históricos de seu próprio projeto de desenvolvimento sustentável.

A construção social do território, associada a modelos democráticos de mediação de conflitos e construção de consensos, parece ser uma força mais decisiva que a obtenção das clássicas vantagens competitivas. Nessas novas interações socioinstitucionais e econômicas, acontece a aprendizagem social para a gestão compartilhada e participativa. Isso requer uma capacitação envolvendo

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valores, atitudes, capacidade dialógica e o exercício da cooperação e da solidariedade.

Nas sociedades atuais, a formulação de políticas e a tomada de decisões sobre a esfera pública, quando tem caráter estratégico, não podem mais acontecer sob modelos antigos hierárquicos e fechados. Mesmo o governo mais poderoso do mundo, se agir assim será ineficaz, pois a complexidade do mundo de hoje, em rede, exige a formulação de pactos e de consensos de longo prazo, que busquem a sustentabilidade.

Na estrutura de governança, é importante a participação de atores estratégicos capazes de afetar a tomada de decisões sobre o interesse coletivo, como pessoas, organizações ou representantes de grupos sociais que dispõem de recursos, de poder econômico, de prestígio, de capacidade de mobilização social.

5. A experiência da abordagem territorial como política pública e os desafios para construir a nova governança

O Brasil tem adotado a abordagem territorial ou a regionalização como forma de avançar no planejamento e gestão das políticas públicas. Exemplos disso são programas do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA), Ministério do Turismo (MTUR), Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Na prática, no entanto, os avanços, apesar de interessantes, são insuficientes, porque a descentralização de recursos e de poder decisório é também muito incipiente. Por outro lado, existe uma cultura arraigada nos territórios, fundada nos velhos modelos mentais do não exercício do protagonismo e atitudes pouco propositivas que impedem maiores avanços. Tanto por parte dos empresários como da sociedade, a expectativa é a de que os governos, nos seus diversos níveis, tragam as soluções para os desafios encontrados. Há uma desconfiança entre os atores, com raízes na política clientelista e de troca de favores.

Além disso, o Estado, por meio de suas políticas muitas vezes replicadas nas esferas federal, estadual e municipal, ainda se considera um ator preponderante nos processos decisórios, mesmo quando se adota a abordagem territorial. Os recursos sobre os quais o território tem uma competência decisória são pequenos, em relação ao orçamento como um todo.

Há uma diversidade de recortes de territórios, realizados pelos diversos programas governamentais, que, por um lado, fragmentam e setorializam as ações; e, por outro, recortam também a cidadania, levando os atores a tomar uma atitude utilitarista no processo de participação, ou seja, participar onde tiver mais

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vantagem no curto prazo.

Não obstante, constatamos que há uma série de desafios em curso no âmbito da abordagem territorial no país, dentre os quais destacamos alguns que colhemos ao longo dos diversos processos de experimentação que participamos. Entendemos que funcionam como aprendizagem social, pois a estratégia territorial é ainda um campo em construção. São exemplos importantes desses desafios:

elevado grau de centralização política e de recursos;

modelos mentais que não avançaram ainda para a sociedade do conhecimento e da inovação;

falta de compreensão de que a competitividade e a coesão social caminham juntas;

falta de articulação e de territorialidade das políticas públicas;

capital social incipiente;

cultura política antiga: clientelismo e paternalismo;

baixo fomento produtivo territorializado;

cultura imediatista de que o dinheiro resolve os problemas;

a reduzida prática de monitoramento e avaliação de programas/projetos;

mudanças político-administrativas que não levam em conta projetos de longo prazo;

pensar o Desenvolvimento Econômico Local como um modismo ou uma ideologia;

uso político dos espaços de concertação e a multiplicidade de instâncias de gestão existentes;

risco de deslegitimação: muitas questões discutidas nos colegiados têm pouca importância estratégica e em geral contemplam poucos recursos;

existência de atores no território que têm canais privilegiados junto aos governos para apresentarem suas reivindicações;

leque de conceitos difusos sobre território: diversidade de abordagens e metodologias;

tipologias diferentes de instâncias de governança: sua maior institucionalização não tem lugar definido na estrutura da gestão do

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Estado;

falta de legitimidade das instâncias, que ainda são pouco representativas da diversidade de interesses dos atores dos territórios;

Mesmo com todos esses desafios elencados, podemos afirmar que seja qual for a visão axiológica de desenvolvimento no mundo de hoje podemos afirmar que é sempre fruto de uma ação coletiva, portanto, do exercício da nova governança - fator de coesão social e competitividade!

Por isso, pergunto-me algumas vezes, em momentos de introspecção, e também a alguns amigos da rede dos “teimosos”: “O que nos impulsiona a continuar nesta militância da cidadania, apesar de tantos desafios?” É a certeza de que essa agenda de construção do desenvolvimento mais humano e mais sustentável está posta na sociedade e é irreversível!

Teleologicamente, navegar nesta certeza é contribuir para uma história mais humana, com mais equidade social, com possibilidades de realização e de protagonismo civilizatório.

Estamos convencidos de que “estar vivo” é uma transcendência e que este ato da vida, a nossa presença no mundo, contempla a expansão das consciências para abrir os espaços ao universo infinito, na unidade do todo. O conhecimento interior coletivo permite que o futuro fale ao presente.

Precisamos pôr em contato todas as interioridades, as inteligências, os sentimentos, as emoções e a sabedoria acumulada, para produzir novas “sinapsis neuronais”, que nos levem a um novo encantamento com o mundo.

Todos nascemos com uma missão. A jornada desafiadora é encontrar em nós os recursos e a sabedoria para servir à vida. Sabemos que o compromisso e o propósito claro mudam a nossa existência!

O diálogo profundo de aprendizagem existencial entre os acúmulos das civilizações ocidental e oriental abre perspectivas de compreensão de que há somente um mundo e um destino comum. E que precisamos da esperança e da energia da coragem, que instigam nosso território noolítico a tornar a vida no planeta simplesmente mais bonita e mais feliz!

Como diz Pierre Lévy, somos de um período histórico do espírito humano e a história é a aventura da consciência. O ciberespaço representa a primeira emergência de uma noosfera: espaço de reflexão e ação coletiva do espírito humano.

Tenho a convicção de que existe um futuro que deseja emergir e que depende de nós! Porque, afinal, nosso propósito de existir e nosso compromisso com a vida nos enchem de esperança e nos energiza, a partir de uma percepção do futuro que inventamos e que nos faz sentir, com humildade, que somos uma consciência

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iluminando o mundo!

Com muitas indagações e poucas certezas!

Bibliografia

Alburquerque, Francisco. Desenvolvimento Econômico Local: caminhos para uma nova agenda política. Rio de janeiro. BNDES. 2001.

Bauman, Zygmunt. A modernidade líquida. Rio de Janeiro. Zahar. 2000

Centelles, Josep. El buen gobierno de la cuidad. Barcelona. IIGC. 2006

Lévy, Pierre. A conexão planetária. S.Paulo. Editora 34.2001

Vazquez Barquero, Antonio. Desenvolvimento endógeno em tempos de globalização. Porto Alegre. UFRGS. 2002

Zapata, Tania et alii. Desenvolvimento Local e participação social. Recife. IADH.2007

Nota de rodapé: DEL : esta é a denominação dada na Espanha e outros paises europeus às estratégias de desenvolvimento territorial. Bjs...