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Texto integrante dos Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom. A IMPRENSA E A ABDICAÇÃO DE D. PEDRO I EM 1831: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA Fernanda C. Pandolfi (doutoranda /UNESP-Assis) Analisar como a imprensa influenciou a Abdicação ou mesmo se foi determinante na eclosão dos distúrbios que a precederam é tarefa difícil, mas possível de ser abordada. Para isso não consideramos frutífero traçar uma relação de causa e efeito entre imprensa e Abdicação, mas entender que os meios de comunicação interagem – oral, visual, escrito e impresso. Nesse sentido, consideramos que a imprensa tanto reflete como influencia a “opinião pública”. Escrita pelas e para elites e classes médias, a imprensa interagiu com as camadas populares da sociedade. A partir da análise do jornal Aurora Fluminense, observamos que os “motes” que estavam na imprensa também se corporificaram nas ruas e ganharam a adesão das camadas mais desfavorecidas da sociedade, dos pardos e dos negros que participaram da Noite das Garrafadas. Principal representante do ideário liberal moderado, o jornal Aurora Fluminense do redator Evaristo da Veiga foi fonte principal utilizada pelos estudiosos na reconstituição dos conflitos de 1831 e da Abdicação de D. Pedro I. Em geral, a historiografia clássica sobre a Abdicação internalizou as análises que os liberais moderados erigiram da Abdicação. O próprio entendimento do 7 de abril como uma “revolução” foi cunhado pelos liberais moderados logo após a Abdicação. Tal interpretação é baseada na exaltação de uma “revolução” pacífica, sem derramamento de sangue e sem alteração da ordem pública e, por isso, uma revolução positiva. O jornal Aurora Fluminense, fonte muito utilizada pela historiografia clássica, já no dia 11 de abril de 1831 refere-se ao 7 de Abril como um marco, considerando que a partir desta data começa nossa existência nacional 1 . Não se trata de negar as transformações significativas na organização do poder político a partir do 7 de abril, no entanto, isto pouco nos diz sobre este momento. Por estabelecer o fim do Primeiro 1 Aurora Fluminense, 11 de abril de 1831.

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Texto integrante dos Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom.

A IMPRENSA E A ABDICAÇÃO DE D. PEDRO I EM 1831:

HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA

Fernanda C. Pandolfi

(doutoranda /UNESP-Assis)

Analisar como a imprensa influenciou a Abdicação ou mesmo se foi

determinante na eclosão dos distúrbios que a precederam é tarefa difícil, mas

possível de ser abordada. Para isso não consideramos frutífero traçar uma relação

de causa e efeito entre imprensa e Abdicação, mas entender que os meios de

comunicação interagem – oral, visual, escrito e impresso. Nesse sentido,

consideramos que a imprensa tanto reflete como influencia a “opinião pública”.

Escrita pelas e para elites e classes médias, a imprensa interagiu com as camadas

populares da sociedade. A partir da análise do jornal Aurora Fluminense,

observamos que os “motes” que estavam na imprensa também se corporificaram

nas ruas e ganharam a adesão das camadas mais desfavorecidas da sociedade, dos

pardos e dos negros que participaram da Noite das Garrafadas.

Principal representante do ideário liberal moderado, o jornal Aurora

Fluminense do redator Evaristo da Veiga foi fonte principal utilizada pelos

estudiosos na reconstituição dos conflitos de 1831 e da Abdicação de D. Pedro I.

Em geral, a historiografia clássica sobre a Abdicação internalizou as

análises que os liberais moderados erigiram da Abdicação. O próprio

entendimento do 7 de abril como uma “revolução” foi cunhado pelos liberais

moderados logo após a Abdicação. Tal interpretação é baseada na exaltação de

uma “revolução” pacífica, sem derramamento de sangue e sem alteração da

ordem pública e, por isso, uma revolução positiva. O jornal Aurora Fluminense,

fonte muito utilizada pela historiografia clássica, já no dia 11 de abril de 1831

refere-se ao 7 de Abril como um marco, considerando que a partir desta data

começa nossa existência nacional1. Não se trata de negar as transformações

significativas na organização do poder político a partir do 7 de abril, no entanto,

isto pouco nos diz sobre este momento. Por estabelecer o fim do Primeiro

1 Aurora Fluminense, 11 de abril de 1831.

Texto integrante dos Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom.

Reinado e o começo de uma nova experiência na história política brasileira – o

período regencial, a Abdicação consolidou-se como um marco divisor, no

entanto, é um tema pouco estudado pela historiografia recente. Geralmente, a

Abdicação aparece como problemática secundária, discutida em estudos

biográficos sobre D. Pedro I ou nos estudos que abordam outros temas da história

do Primeiro Reinado.

A crescente importância da imprensa desde os anos de 1820 contribuiu

para formar um movimento de “opinião pública” na cidade do Rio de Janeiro.

Nos anos de 1821-1822 há um aumento considerável do número de periódicos

que passam a circular na cidade do Rio de Janeiro. Nesses anos foram lançados

cerca de 20 periódicos no Rio de Janeiro numa imprensa que se tornava

relativamente livre. A atitude de hostilidade da imprensa às Corte portuguesas

não afetou a imagem de D. Pedro, mesmo os periódicos mais radicais o

consideravam indispensável para a unidade e integridade do país (LUSTOSA,

2000). No entanto, entre 1828 e 1831 a persona de Pedro I passa a ser cada vez

mais depreciada na imprensa pela corrente reconhecida como liberal, que o

definia como tirano e absolutista. Esta corrente defendia o aumento do poder da

Assembléia diante da atuação de um poder monárquico que distribuía privilégios

e sancionava leis arbitrariamente. Jornais como O Repúblico, Aurora Fluminense

e Ástrea criticavam em 1831 a atitude despótica de D. Pedro I quando fechou a

Assembléia em 1823.

Mas, qual a verdadeira influencia da imprensa nesse momento.

Primeiramente cabe discorrer algumas observações quanto ao número de leitores

e ao acesso aos jornais. A imprensa foi, a partir de 1820 e durante todo o

Primeiro Reinado, um veículo importante na divulgação de idéias na cidade do

Rio de Janeiro. Alguns historiadores constataram que número de leitores da

Corte é maior do que inicialmente considerava-se. Apesar da não existência de

dados oficiais sobre o número de pessoas alfabetizadas no Brasil no início do

século XIX, Barman (1988) menciona estimativas interessantes sobre o número

de leitores na cidade do Rio de Janeiro. Dos aproximadamente 43 mil homens

livres que em 1821 residiam na cidade do Rio de Janeiro, deduziu cerca de um

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terço de menores de idade, o restante dividiu pela metade para distinguir homens

e mulheres e chegou a 14.380 homens adultos e livres, e desses chegou-se aos 8

mil assinantes do Manifesto do Fico. Através dos anúncios na Gazeta e no Diário

do Rio de Janeiro, Lucia Maria Bastos P. Neves (2002) identificou 9 livreiros

especializados, 3 lojas ligadas às tipografia e 11 negociantes de artigos variados

que vendiam “publicações do dia”. A autora constatou também que os preços dos

periódicos não eram inacessíveis a um público mais amplo, pois em 1821 os

periódicos custavam por número entre 80 e 120 réis, enquanto a aguardente de

cana custava 80 réis a garrafa e um sabão inglês 120 réis a libra. Portanto, a partir

de 1820 com o crescimento do número de periódicos tem-se a formação de uma

nova “cultura política”, de uma nova base ideológica, em que os assuntos

relacionados à política começam a alcançar um público mais amplo na Corte.

Apesar da dificuldade em se traçar a real influencia da imprensa nos

movimentos sociais, o que se pode afirmar é que as autoridades temiam o poder

da liberdade de imprensa, mesmo em uma sociedade com alto índice de

analfabetismo como a sociedade brasileira do século XIX. Tal afirmação nos leva

a considerar a relevância da comunicação oral nesta sociedade. Um liberalismo

mais revolucionário poderia chegar ao Rio de Janeiro através de escravos vindos

de províncias aonde já haviam ocorrido levantes, como os de Pernambuco ou

mesmo através dos marinheiros na divulgação das notícias intercontinentais. As

vendas de beira de estrada também se constituem em espaços de discussão

política institucional da época freqüentados pelas “classes subalternas”

(BARREIRO, 2002). Portanto, a política institucional e as idéias políticas mais

elaboradas não ficaram restritas às elites na sociedade brasileira do século XIX.

Em relatório de 1831, o Ministro da Justiça Diogo Antonio Feijó refere-se

à licença de escrever como imoralidade concedida a povos ainda ignorantes que

espalham princípios falsos, sendo insuficientes as leis que castigam os abusos de

imprensa, pois considera muito grave as conseqüências do abuso de escrever2.

A literatura tem nos mostrado que as “idéias liberais” européias, ao serem

apropriadas no Brasil no século XIX, adquiriram características singulares O

2 Relatório do Ministro da Justiça Diogo Antonio Feijó do ano de 1831, p. 9-10.

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ideário liberal, portador de lemas como Liberdade, Igualdade e Soberania do

Povo, alcançou as camadas populares e assumiu um caráter mais relacionado às

suas necessidades imediatas e de sobrevivência.

O liberalismo é um referencial de proposta política em voga em 1831, e o

jornal Aurora Fluminense foi o principal divulgador de um liberalismo

moderado. Sobre os significados que o liberalismo adquiriu no Brasil no século

XIX, a historiografia encontra-se repleta de acirrados debates. Mas, o que aqui

nos interesse é conhecer como o liberalismo se manifesta em um momento

específico e rico de contradições e lutas político-sociais no Brasil – o momento

em que se dá a Abdicação de D. Pedro I.

O liberalismo, ideologia articulada ao desenvolvimento do capitalismo,

cujos postulados políticos foram firmados na Declaração dos Direitos do homem

e do Cidadão de 1789, consagrou o princípio do governo representativo, das leis

e da soberania da nação. Esse princípio pressupõe a incorporação dos interesses

coletivos e a abolição de privilégios, distinções ou hierarquias não resultantes de

mérito individual. Esse princípio assegurava as liberdades individuais e o direito

de propriedade. No entanto, essa linguagem liberal abstrata não definia “quem é

a nação, ou quem são os cidadãos”, ou mesmo “a quem compete elaborar as leis”

(GUIMARÃES, 2001). Dessa forma, é na prática política que o liberalismo é

apropriado tanto pelos grupos das elites políticas quanto pelo homem comum.

A questão que deve ser colocada é pensar de que maneira o liberalismo

ameaçou a estabilidade do poder no momento que antecede a Abdicação. Esta

indagação remete ao estudo da relação entre ideologias e formação da “opinião

pública”, entendendo esta como um componente da política no Primeiro Reinado

e com poder de configurar acontecimentos (DARNTON, 1998, p.254-255).

A historiografia clássica sobre a Abdicação

Em geral, a historiografia clássica sobre a Abdicação internalizou as

análises que os “liberais moderados” erigiram da Abdicação. O próprio

Texto integrante dos Anais do XVIII Encontro Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-rom.

entendimento do 7 de abril como uma “revolução” foi cunhado pelos liberais

moderados logo após a Abdicação. Tal interpretação é baseada na exaltação de

uma “revolução” pacífica, sem derramamento de sangue e sem alteração da

ordem pública e, por isso, uma revolução positiva. O jornal Aurora Fluminense,

fonte muito utilizada pela historiografia clássica, já no dia 11 de abril de 1831

refere-se ao 7 de Abril como um marco, considerando que a partir desta data

começa nossa existência nacional3. Não se trata de negar as transformações

significativas na organização do poder político a partir do 7 de abril, no entanto,

isto pouco nos diz sobre este momento. Por estabelecer o fim do Primeiro

Reinado e o começo de uma nova experiência na história política brasileira – o

período regencial, a Abdicação consolidou-se como um marco divisor, no

entanto, é um tema pouco estudado pela historiografia recente. Geralmente, a

Abdicação aparece como problemática secundária, discutida em estudos

biográficos sobre D. Pedro I ou nos estudos que abordam outros temas da história

do Primeiro Reinado.

No que se refere às abordagens clássicas sobre a Abdicação, John

Armitage (1942) estabeleceu uma interpretação constantemente retomada pelos

historiadores. O inglês John Armitage veio para o Brasil como empregado da

filial no Rio de Janeiro da casa inglesa Philips, Wood & Cia. O livro de John

Armitage História do Brasil; desde o período da chegada da família de

Bragança em 1808 até a abdicação de D. Pedro I em 1831 é editado em Londres

em 1836 e no Brasil em 1837. Armitage dispunha de informações como morador

da cidade do Rio de Janeiro e como amigo de influentes jornalistas liberais como

Evaristo da Veiga e, por isso, teve acesso a documentos oficiais inéditos quando

escreveu seu livro. Armitage erigiu uma interpretação que, com algumas

diferenças, foi retomada e reiterada por Octávio Tarquínio de Souza (1957) e

Tobias Monteiro (1982), historiadores que são referências clássicas nos estudos

sobre o Primeiro Reinado. Para esses dois historiadores o “nativismo” é um

elemento fundamental para explicar a Abdicação, tendo em 1831, a antiga

3 Aurora Fluminense, 11 de abril de 1831.

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rivalidade entre brasileiros e portugueses congregado indivíduos de diversas

crenças.

Quanto ao caráter operacional do movimento que levou a Abdicação há

diferenças entre esses autores. Armitage considera o 7 de abril uma sedição

militar, quase exclusivamente operada pelos militares, pois não havia plano fixo

de uma insurreição popular e o partido exaltado, com suas centúrias, encontrava-

se mal organizado. Octávio Tarquínio de Sousa interpreta o 7 de abril como uma

“revolução liberal” e não apenas uma “sedição” ou “quartelada”. A definição de

Souza sobre a Abdicação é que o 7 de Abril foi um movimento liberal de

ressentimento nativista.

Nas análises de Tobias Monteiro e Octávio T. de Souza há um esforço no

sentido de identificar os setores populares envolvidos nos conflitos de 1831.

Monteiro identifica como grupos opostos – os “brasileiros” e os “portugueses”,

sendo os “bandos brasileiros” compostos de “gente moça”, estudantes, cadetes e

“homens de cor”. A explicação do nativismo para Monteiro resulta de uma

situação nas quais os portugueses, em grande parte, eram preteridos em altas

posições do Estado e da Corte e predominavam no comércio e nas finanças

(MONTEIRO, 1982, p.208). Apesar das referências ao grupo dos “exaltados”,

considerado como o mais próximo das camadas mais baixas da população, os

autores pouco mencionam sobre a especificidade de suas idéias e formas de

atuação.

Nos autores aqui analisados, as interpretações sobre o tema da Abdicação

encontram-se inseridas em capítulos de suas respectivas obras, pois elas não se

constituem em estudos específicos deste tema. Daí decorre o caráter

generalizante da interpretação desses autores, onde as ações do “homem comum”

diluem-se num nativismo que aglutina todos pelos supostos mesmos interesses.

Tais autores também recorreram ao jornal Aurora Fluminense para

reconstituição dos eventos relacionados à Abdicação e, por isso, apresentaram a

mesma perplexidade e dificuldade da Aurora Fluminense em explicar porque em

1831 o nativismo conseguiu aglutinar setores heterogêneos em termos sociais e

ideológicos. É no próprio jornal Aurora Fluminense e em outras fontes que

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iremos investigar a relação entre imprensa e Abdicação. O esforço objetivo é

analisar como a Imprensa tanto reflete como influencia a opinião pública. No

processo de formação de uma “opinião pública”, diversos meios de comunicação

se relacionam, palavra impressa e linguagem oral se interagem, moldam e

expressam uma “opinião pública” (DARNTON, 1998). Assim, é possível

compreender as mediações entre a “alta política” e o “povo” em 1831 na cidade

do Rio de Janeiro.

A Abdicação de D. Pedro I em 1831: a multidão nas ruas

O principal conflito que precede a Abdicação, conhecido como Noite das

Garrafadas, estendeu-se do dia 11 ao dia 15 de março de 1831 pelas ruas do Rio

de Janeiro. O levante das Garrafadas é iniciado na noite do dia 11 em uma

comemoração organizada pelos comerciantes do Rio de Janeiro para saudar o

Imperador do retorno de sua viagem à província de Minas Gerais. No dia 11 de

março foram organizados festejos com fogueiras e fogos de artifício nos

quadriláteros delimitados pelas ruas da Quitanda, dos Ourives, da Direita e das

Violas pelos que apoiavam o governo de D. Pedro I. Acender fogueiras nas

comemorações públicas ou nos dias santos e beber, cantar e dançar era um

costume antigo dos portugueses. O que se falava era que os portugueses estavam

organizando a algazarra e na noite do dia 11 começaram as agressões.

As Garrafadas marcaram profundamente a memória dos contemporâneos

que produziram uma série de relatos e interpretações. Entre outras fontes, as

principais para a elaboração deste texto foram: o jornal Aurora Fluminense do

período de março e abril de 1831, as memórias de Eduardo Theodoro Bösche em

“Acontecimentos Políticos: Abdicação de D. Pedro I. Imperador do Brasil” e de

Carl Seidler em Dez Anos no Brasil, e o Relatório do Ministro da Justiça Manoel

José de Souza França do ano de 1830 apresentando a Assembléia Geral

Legislativa na Sessão Ordinária de 1831. A escolha dessas fontes deveu-se a sua

riqueza de detalhes na narração dos acontecimentos e a sua natureza diversa –

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imprensa e relatório, memória e relatório judicial. Embora tais fontes possuam

diferenças na reconstituição da Noite das Garrafadas e da Abdicação de D. Pedro

I, posicionaram-se favoráveis aos grupos chamados na época de “brasileiros”. É

possível identificarmos nestas fontes os diversos interesses dos grupos

envolvidos e o sentido da violência popular, pois esta marcou a memória coletiva

da Noite das Garrafadas.

Os conflitos de 1831 no Rio de Janeiro foram reconstituídos pela

historiografia, principalmente, a partir do jornal Aurora Fluminense.

Retomaremos os relatos deste jornal e analisaremos o que ele nos indica sobre os

grupos participantes4.

Em 7 de abril de 1831 D. Pedro I abdica do trono em favor de seu filho de

cinco anos de idade Pedro de Alcântara. A Abdicação de D. Pedro I pode ser

entendida como decorrente de um longo processo de conflitos durante o Primeiro

Reinado entre, por um lado, grupos ligados a D. Pedro I chamados de

“portugueses” tidos por absolutistas e defensores dos interesses de Portugal e, do

outro lado, os liberais, subdivididos em “moderados” e “exaltados”. No entanto,

esta interpretação, ainda que não seja inválida, não explica o surgimento de um

notável “espaço público” no período que antecede a Abdicação. Além disso, não

analisa porque o conflito se acirrou naquele momento, principalmente na “Noite

das Garrafadas”, ápice da violência popular entre os chamados grupos

“brasileiros” e “portugueses”. A Noite das Garrafadas estendeu-se de 11 a 15 de

março de 1831 pelas ruas do Rio de Janeiro. No dia 11 de março foram

organizados, pelos “portugueses” favoráveis a D. Pedro I e a Monarquia

Constitucional, festejos com fogueiras e fogos de artifício nos quadriláteros

delimitados pelas ruas da Quitanda, dos Ourives, Direita e das Violas, para

comemorar a volta do Imperador de sua viagem a Minas Gerais. Nessas ruas os

conflitos se dão entre “portugueses” e “brasileiros” que se insultavam

mutuamente. Os portugueses davam vivas ao “Imperador”, aos “bons

portugueses” e morras aos “republicanos”; e os brasileiros davam vivas a

4 O relato abaixo sobre a “Noite das Garrafadas” é baseado no jornal Aurora Fluminense de 16 de março de 1831.

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“federação”, somente para citar alguns exemplos. Das janelas das casas caíam,

entre outras coisas, cacos de vidros de garrafas.

Na noite do dia 13 (domingo), prevista como a última dos festejos, os

portugueses secretamente se prepararam para repelir com violência os

“patriotas”. Muniram casas com fundos de garrafas e armas de fogo e chamaram

os “adotivos” e portugueses que residiam no interior da cidade. Os vivas dos

“brasileiros” eram respondidos com os vivas dos “portugueses” – Viva o

Imperador, Vivão os bons Portugueses. Na esquina das ruas São Pedro e Violas

os “brasileiros” foram agredidos com fundos de garrafa, cacetes e até tiros de

pistola. Estas mesmas cenas ocorreram na Rua Direita. A justificativa mais

comumente alegada pelos agressores é de que agiam em resposta aos vivas a

federação. O lema da Federação é considerado pela Aurora Fluminense,

principal periódico dos grupos “liberais moderados” como imprudente e perigoso

porque causava divisões entre os “constitucionais”. Um grupo com mais de 300

“festeiros” atravessavam as ruas e gritavam morra o Republico, morrão os

republicanos, viva a heróica Nação Portuguesa, vivão os bons portugueses ou

Portugueses Brasileiros. As tropas que ali se encontravam tiravam armas ou paus

dos indivíduos que “pareciam brasileiros”, deixando que os outros praticassem

impunemente todo tipo de violência.

A Aurora Fluminense considerou tais festejos uma traição ao Imperador

por parte de seus “aduladores” e dos “parasitas do palácio”. A Aurora

Fluminense critica a não observância da Constituição e o governo que apóia o

absolutismo. No entanto, acredita que D. Pedro ainda poderia se colocar como

seguidor da Constituição para evitar o perigo e as cenas de horror que trariam a

proclamação da federação.

A Aurora Fluminense aparece como um jornal bastante comedido na

critica a D. Pedro, e no dia 18 de março de 1831 publica um requerimento

assinado por influentes parlamentares. O requerimento criticava os festejos, uma

vez que a função deles não era somente solenizar o Imperador, mas agredir os

brasileiros partidários da liberdade5. A “Noite das Garrafadas” deixou um

5 Aurora Fluminense de 16 de março de 1831.

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profundo impacto na memória dos contemporâneos, daí o aspecto mais moderado

da Aurora Fluminense depois dos conflitos de março.

Compreendendo a gravidade da situação após as Garrafadas, o senador

Vergueiro e 15 deputados dirigiram uma “Representação” ao Imperador pedindo

providências urgentes. Esta representação foi entregue ao Ministro da Justiça

visconde de Alcântara que respondeu haver tomado as providências para garantir

a ordem. No dia 19 de março de 1831 o Imperador nomeou um novo Ministério.

Alguns participantes da Noite das Garrafadas foram punidos. Os comandantes

das Armas e do Corpo de Polícia foram demitidos6. Consta que vários brasileiros

foram presos por se defenderem dos portugueses, e que esses últimos gozaram de

privilégios das autoridades. Do lado dos brasileiros foram presos o Capitão

Mariano Joaquim de Siqueira e o Alfares Faustino dos Reis, enviados para a

Fortaleza de Santa Cruz, e o Alferes Francisco Joaquim Bacellar, enviado para a

fortaleza da Lage (CARVALHO, 1945, p.600-601).

Quanto ao conteúdo político da Aurora Fluminense, embora expresse o

nativismo e incite as desavenças entre “brasileiros” e “portugueses”, este jornal é

a favor da “moderação”, ou seja, defende que as mudanças institucionais na

organização política sejam feitas sem alterações da ordem social. Pode-se dizer

que este jornal segue uma tendência de um liberalismo mais conservador. A elite

liberal moderada era favorável à monarquia constitucional, temia a fragmentação

do país, tinha medo da desordem social e do haitianismo.

Pela leitura do jornal Aurora Fluminense, identifica-se que as afrontas

pessoais eram constantes nas ruas durante os conflitos. Os “portugueses”

dirigiam gracejos aos “brasileiros” referindo-se ao laço da nação que estes

últimos usavam – larga o tope que já estas forro7. Um estudante foi atacado

quando andava tranqüilamente pela Rua da Alfandega por um “Fulano Soares”,

que foi guarda da Alfândega, e por “Mello”, encarregado da direção de obras da

polícia. Consta que Mello e Soares eram encarregados da “honrosa” tarefa de

6 CARVALHO, Miguel J. R. de. O Sete de Abril – O feito. Anais do 2º Congresso de História Nacional. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional: 1945; p.593-611. Sobre os integrantes do novo Ministério ver p.600-601. 7 Aurora Fluminense, 21 de março de 1831.

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darem vivas a “S. Magestade no Teatro”. Um deles arrancou o chapéu do

estudante e lhe dirigia injúrias mostrando o tope “verde e amarelo” que

chamavam de “federação”. O jovem tentou resistir, mas foi atacado com uma

pancada sobre o peito e, ao perguntarem ao ferido sobre os agressores, este teria

dito “que seria inútil dizê-lo; que ele era Brasileiro, e isso bastava para que o

assassino não houvesse de ser punido; que o seu sangue ou tarde ou cedo seria

vingado por seus patrícios”8. No dia 15, em cerimônia solene da entrada do

Imperador, atos audaciosos foram praticados por integrantes da comitiva a

cavalo. Eles ameaçavam os cidadãos com chicote se não gritassem viva o

Imperador, morra o Repúblico9. Ouve-se constantemente pelas lojas em matar

cabras, ensinar bodes e outras expressões quando passa um “brasileiro”. Os

habitantes da Rua do Commercio estão armados com pistolas, espingardas e

espadas para repelir os “filhos da pátria”. Ainda no dia 15 de março, ouviam-se

os vivas e morras; continuavam as luminárias, organizados por gente que,

segundo a Aurora Fluminense, era iludida por agentes secretos que o faziam

acreditar que os brasileiros podiam fazer-lhes algum mal. Quanto aos agressores

dos “brasileiros”, a Aurora informa que não são todos os estrangeiros que

participam dessas desordens e muitos lastimam tais acontecimentos. Consta que

maioria dos agressores era composta por estrangeiros que vieram para o Brasil

depois da proclamação da Independência e, portanto, não pertencem a nossa

associação política. Por isso, muitas vezes gritavam viva D. Pedro 4°, viva D.

Maria 2º, vivão os Portugueses.

Na noite do dia 13, por volta das oito horas, testemunhas informam que

caixeiros, armados de varapaus, corriam atrás de brasileiros pela Rua da

Quitanda, espancando quem achasse em seu espaço. Consta que houve certa

conivência da polícia para com os “portugueses”. As patrulhas de polícia

acompanhavam os magotes de gente que soltavam os gritos “anti-brasilicos”, e a

convicção geral dos brasileiros era de que os agentes do poder os protegiam10.

8 Aurora Fluminense, 18 de março de 1831. 9 IDEM 10 Aurora Fluminense, 8 de março de 1831.

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As agressões dos “brasileiros” aos “portugueses” não foram recebidas

passivamente, o jornal Novo Censor, acusa os estudantes do Seminário S.

Joaquim de na noite do dia 15 terem atirado pedras sobre as casas em que havia

luminárias. O jornal Aurora Fluminense defende-se, argumentando que é contra

os excessos, mas que este ocorreu depois que a facção européia apedrejou várias

casas que não estavam iluminadas.

O que as informações acima indicam é a existência de uma espécie de

“Grande Medo”. Uma espécie conspiração corria pelas ruas do Rio de Janeiro e

apavorava o “homem comum”. Os comerciantes portugueses temiam os

brasileiros, pois “agentes secretos” os “iludiam” ou eram boatos! Verdade ou

mentira, o fato é que eles não só temiam os brasileiros como acreditavam que os

“brasileiros” pudessem lhes “fazer mal”, por isso muitos já se armavam com

pistolas, espingardas e espadas. Do lado oposto, os brasileiros achavam que os

portugueses eram protegidos pelos “agentes secretos” do poder e, nesse sentido,

isto atingia a hegemonia do Estado e o poder de D. Pedro I.

Aproximando-se do dia 25 de março, data do Aniversário do Juramento da

Constituição, temia-se o ajuntamento do povo e desordens numa comemoração

no Campo de Aclamação (já com o nome de Campo de Honra). Nesse momento,

o Ministro da Justiça Manoel de Souza França11 considera que os “naturais”

estavam tomados por um sentimento de vingança por serem ultrajados por

“hospedes” que intentavam acabar com as “Liberdades do Brasil” e, por isso, se

preparavam para agir contra as agressões que temiam. Com medo de tais

desordens, este ministro incumbiu os Juizes de Paz das freguesias com a tarefa de

nessa noite realizar rondas em seus respectivos bairros com a ajuda da Cavalaria

e Infantaria nos pontos que convergiam para o Campo onde o povo poderia se

reunir. Proibiu todos os indivíduos de portarem armas e fogos festivos dentro das

ruas e praças da cidade (com exceção do Campo); vetou a perambulação de

marinheiros em terra depois do por do sol e colocou patrulhas vigilantes no

litoral. Com tais medidas tudo correu em paz e nessa noite até o Imperador

11 Relatório do Ministro da Justiça Manoel de Souza França do ano de 1830. Apresentado à Assembléia Nacional Legislativa em 1831.

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recebeu demonstrações de respeito no templo de S. Francisco de Paula na Ação

de Graças. No entanto, prossegue o ministro da justiça, o Imperador continuava

em seus caprichos anti-nacionais e o Ministério algumas vezes perdia sua

confiança, o povo já não depositava nenhuma no Governo e por noites sucessivas

tumultuava a Praça conhecida como Largo do Moura, na qual populares e

militares faziam discursos. Consta que no dia 31 de março mais de seiscentos

cidadãos armados foram para o Largo do Moura em defesa de um suposto ataque

do batalhão 1º caçadores e dos marujos portugueses. No mesmo local, os mais

exaltados incitavam as tropas contra o governo, e outros eram aplaudidos por

seus discursos incendiários.

Além do jornal Aurora Fluminense e das memórias de Carl Seidler,

também no relatório do Ministro Manoel de Souza França aparecem os “boatos”,

as supostas “conspirações” que já haviam se tornado uma crença, pois cidadãos

se armaram para a defesa de um suposto ataque. Conflitos envolvendo

ajuntamentos ameaçavam explodir a toda hora.

Passamos agora a reconstituição ao dia 5 de abril de 1831, cujos

acontecimentos a partir daí culminaram na Abdicação de D. Pedro I no dia 7 de

abril.

Temia-se que um imprudente rompimento pudesse acarretar uma “guerra

civil” cujo desfecho seria a anarquia. Devido a tais temores, as “assembléias

noturnas” eram presididas pelos zelosos juízes de paz e pelas autoridades

militares que gozavam da “opinião pública”. Nesse contexto caótico, o Ex-

Imperador com o intuito de retomar sua confiança optou pela demissão do

Ministério no dia 6 de abril, após uma breve reunião na noite anterior com

algumas pessoas no Paço de S. Christovão12.

Durante à tarde do dia 6 o Povo começou a reunir-se no Campo da Honra

e a noite o ajuntamento aumentou extraordinariamente. Compareceram os Juizes

de Paz que foram enviados ao Imperador para suplicar a reintegração do

Ministério demitido. No Campo, os Corpos Militares que ali estavam

12 Relatório do Ministro da Justiça Manoel de Souza França do ano de 1830. Apresentado à Assembléia geral legislativa em 1831.

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aquartelados e que era a maior confiança do Imperador, reuniram-se aos

concidadãos ameaçados e se juntaram com outros Corpos e, em poucos

momentos, toda a Tropa estava a favor da causa da “liberdade”. Com exceção de

pequenas desordens que o Governo por mais ativo e vigilante não pode evitar, o

Povo e a Tropa conservaram a disciplina com a vitória, ou seja, com a Abdicação

de D. Pedro I. Segundo o Ministro da Justiça13, este é o quadro de nossa

Revolução, dirigida para a justiça e que evitou os “escândalos”, as

“horribilidades” e os “crimes” que tem manchado a história das nações do velho

e do novo mundo.

A respeito de como se iniciou o ajuntamento no Campo de Santana,

Octávio Tarquínio de Souza atribuiu a disseminação da notícia da demissão do

Ministério e do “boato” da decretação de ordem de prisão a alguns liberais na

manhã de 6 de abril. Segundo este autor, grupos de populares dirigiram-se para o

Campo de Santana e estima-se que até 4.000 pessoas foram mobilizadas por

guias e organizadores. A reunião no Campo de Santana era dirigida por líderes

como Odorico Mendes, Borges da Fonseca, padre José Custódio Dias, Vieira

Souto e alguns chefes militares. Esses chefes esforçavam-se para manter a ordem

e para que este impressionante comício não se tornasse uma aquartelada ou uma

manifestação anárquica; contrariando os mais exaltados que lembraram da

marcha sobre São Cristóvão14 (SOUSA, 1960, p.919). Consta que a exigência

irredutível dos manifestantes residia na volta do Ministério demitido a 5 de abril.

Esta exigência foi imediatamente encaminhada ao Imperador e este, por sua vez,

encarregou o major Frias de levar uma proclamação aos manifestantes na qual

alegava, entre outras coisas, que era “constitucional de coração” e pedia aos

brasileiros que tivessem confiança no Ministério. Depois de várias tentativas de

recondução do Ministério e enquanto o Imperador se mantinha irredutível, vários

corpos da guarnição da cidade juntaram-se ao povo no Campo de Santana. O

povo mantinha-se no Campo e cogitava-se na formação de um governo pelo

povo e tropa, caso o Imperador não consentisse. Passara das 3 horas da

13 Idem. 14 SOUSA, Octavio Tarquínio de. História dos Fundadores do Império do Brasil. A vida de D. Pedro I. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960, v. IV, Tomo III, p.919.

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madrugada e diante da resistência do povo e da tropa o Imperador encaminhou a

sua Abdicação ao major Frias15.

Feita a Abdicação, operou-se a “desradicalização do 7 de abril” com a

formação de um Gabinete que reuniu facções rivais das elites. Esse gabinete foi

formado por Vergueiro que representava a revolução; pelo Marquês de

Caravelas, representante da tradição e por Lima e Silva cuja espada servia como

fiel da balança (CASTRO, Paulo, 1978).

Evaristo da Veiga é o exemplo do revolucionário moderado, o que buscou

acalmar as paixões exaltadas. E a “revolução” do 7 de abril, enquanto conduzida

pelos moderados, é entendida por alguns contemporâneos aos acontecimentos

como legítima, necessária e inevitável. Com o 7 de abril chegam ao poder

homens que não vieram de linhagem ilustre como Evaristo da Veiga e o padre

Diogo Antônio Feijó, o que indica uma alteração considerável no quadro das

elites dirigentes.

Logo após a Abdicação o cenário é de sedições na cidade do Rio de

Janeiro levadas a diante pelos “exaltados” e por setores do exército descontentes

com os rumos da abdicação. É nesse momento que foi criada a Guarda Nacional

para a pacificação interna e para a manutenção da unidade nacional. A Guarda

Nacional foi criado como corporação paramilitar e atuou no reforço do poder

civil, uma espécie de “sustentáculo” do governo instaurado com o 7 de abril

(CASTRO, Jeanne, 1979).

Ao contrário da “Noite das Garrafadas”, não há referências de atos de

violência e confrontos físicos no ajuntamento de pessoas que se reuniram no dia

6 de abril de 1831 no Campo de Santana. Por isso, numa Proclamação lançada

em nome da Regência Provisória logo após a Abdicação, o novo governo elogia

a “revolução” sem sangue, a luta sem “tingir as armas no sangue dos homens”16.

Elogia a atitude dos brasileiros como homens corajosos em repelir a tirania, e

aconselha que os cidadãos mantenham a moderação, assegurando que o

15 Para a leitura da reconstituição dos conflitos de abril de 1831 ver SOUSA, 1960 e MONTEIRO, 1946. 16 PROCLAMAÇÃO em nome da Assembléia Geral aos povos do Brasil, dando conta dos acontecimentos do dia 7 de Abril de 1831, e da nomeação da Regência Provisória, e recomendando o sossego e tranqüilidade pública.

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“repouso, pessoas, propriedades, tudo será respeitado, uma vez que obedeçam às

leis da Nação Magnânima da qual pertencem17. E a mesma Proclamação funda o

7 de abril como um marco da existência nacional, assim coloca: “Do dia 7 de

Abril de 1831 começou a nossa existência nacional; o Brasil será dos Brasileiros,

e livre”18. Esta interpretação foi incorporada e aceita pela historiografia sem

maiores análises.

A participação dos negros e pardos nos conflitos que levaram a Abdicação

Em fins do século XVIII há na composição da população da cidade do Rio

de Janeiro um conjunto considerável de “pardos e pretos libertos” no qual

estavam incluídos tanto os manumissos quanto os nascidos fora do cativeiro.

Nesse momento alforriava-se muito, pois os dados mostram que os alforriados

representavam 20% dos habitantes das freguesias urbanas dessa cidade em 1799,

o que equivale a nove mil alforriados. Os libertos equivaliam a 60% da

população escrava e quando somados aos cativos representavam maioria da

população urbana. No século XIX o quadro é diferente, há um aumento no

número de escravos, sobretudo de africanos, uma quantidade nunca observada de

imigrantes portugueses e um pequeno número de libertos. Em meados do século

XIX apenas uma entre cada dez pessoas livres havia passado pelo cativeiro

enquanto que em 1799, uma em cada três pessoas havia estado no cativeiro. A

alta dos preços dos escravos foi o elemento fundamental para a diminuição do

número de alforrias, o valor do escravo típico (homem, entre 15 e 40 anos de

idade) teve seu preço dobrado entre o final do século XVII e a década de 1820,

repetindo-se nos anos 30. Considerando o exíguo número de cartas de alforria no

século XIX, Manolo Florentino (2002) concluiu que a condição dos escravos foi

severa no século XIX. No contexto das transformações da sociedade no século

XIX, decorrente do crescente aumento no número de migrantes europeus e na

17 Idem, p. 383. 18 Idem, p. 383.

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estruturação do Estado Nacional, a norma que justificava o cativeiro a partir de

enraizadas regras morais é substituída por outra alicerçada no primado da

propriedade e do mercado. Tais mudanças relacionadas ao estatuto do escravo e a

valorização do preço da alforria desde 1820 em diante, redefinem as opções,

expectativas e estratégias dos escravos no que se refere à liberdade. A crescente

entrada de imigrantes portugueses indica que estes concorriam no mercado de

trabalho com os negros, o que explica o número considerável de “pretos, pardos e

mulatos” nos conflitos de 1831 contra os portugueses e defendendo lemas

“nacionalistas”. Mary Karasch (2000) mostra-nos a variedade de funções dos

escravos da cidade do Rio de Janeiro. Eles desenvolviam atividades como a de

carregadores, almocreves, barqueiros, marinheiros, operários fabris. Além dessas

atividades exerceram profissões mais especializadas como na ourivesaria e

sapataria ou trabalhavam para seus donos ou como escravos de ganho, o que

gerava protestos dos brancos.

Nas Garrafadas são inúmeros os exemplos de negros e pardos que

participaram do conflito. Agrupamentos compostos de homens de pés no chão,

negros, pardos vestidos de jaqueta e armados de paus e alguns brancos com

chapéu ornado com o laço nacional, formavam-se em várias ruas da cidade na

“Noite das Garrafadas”.

No dia 5 de abril, nas esquinas das ruas do Rio de Janeiro, discutia-se e

gritava-se “Fora estes filhos do reino! Fora a cachorrada! Os amotinadas

portavam armas como cacetes, facas, pistolas. Quando chega a noite diminui os

ajuntamentos para recomeçar novamente na manhã seguinte com novos grupos

que gritavam em voz alta “Abaixo o Ministério!” e vozes abafadas “Abaixo o

Imperador!” (SEIDLER, 1835, p.293). Mais gritarias no decorrer do dia, alguns

gritavam “pro inferno estes diabos!”; um corpulento mulato falou “que prazer

seria dar uma facada nesta canalha portuguesa”, também avistava-se nos

descontentes bengalas erguidas e facas debaixo das mangas dos casacos de chita.

(SEIDLER, 1835, p.299). Após a Abdicação, segundo Seidler, o clima era de

felicidade, os brasileiros sonhavam com um futuro feliz, ao mulato esfarrapado

nobilitava dizer “eu sou brasileiro verdadeiro”.

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Para Bösche (1918) os portugueses tornaram-se mais arrogantes por terem

a proteção imperial, tendo também o “orgulho do dinheiro” e o “egoísmo

europeu” excedido os limites. Esta era a situação quando o Imperador regressou

de sua viagem a Minas Gerais e quando ocorreu a Noite das Garrafadas. Como

nas outras fontes Bösche relata que os portugueses, com o objetivo de festejar a

chegada do Imperador, iluminaram as ruas da Quitanda, Direita e das Violas nas

quais residiam portugueses e a grande maioria era comerciantes. Nessas ruas

havia fogueiras de barricas de alcatrão, armaram-se coretos e soltavam-se fogos

de artifício. É nesse cenário em que ocorreram os conflitos entre brasileiros e

portugueses e para mais detalhes sobre as agressões entre brasileiros e

portugueses o autor cita um longo trecho do jornal Aurora Fluminense. Para o

autor, a razão da queda de D. Pedro é devido ao ódio dos brasileiros contra os

portugueses. Este ódio é explicado porque os portugueses, sendo “mais ricos”,

desprezavam os brasileiros. Segundo Bösche, após as Garrafadas, aonde os

brasileiros foram indignamente tratados, a linguagem dos jornais de oposição

tornaram-se mais violenta e os portugueses estavam expostos a mais perigos,

pois “não se passava uma noite, em que não fossem assassinados alguns deles”

(BÖSCHE, 1918, p.214). Sobre o 7 de Abril, Bösche menciona que com a notícia

da nomeação do novo Ministério no dia 6, muitos cidadãos armados foram para o

Campo de Aclamação, e a tropa uniu-se ao povo que ia aumentando com o passar

das horas. Bösche conclui com a atuação dos juízes de paz na negociação da

destituição do Ministério impopular nomeado. Diante da irredutibilidade de D.

Pedro, os juízes mostraram a ele que a tropa e o povo estavam unidos. D. Pedro

reconheceu a situação perigosa em que estava e abdica em 7 de abril. Segundo

Bösche, no mesmo dia em que ocorreu a Abdicação, bandos armados de

indivíduos das “classes baixas” percorriam as ruas da cidade e davam vivas e si

mesmos: “Vivam os valentes e heróicos Brasileiros, vivam os habitantes desta

leal e heróica cidade do Rio de Janeiro!” Eles também arrombaram e saquearam

lojas e vendas dos portugueses (BÖSCHE, 1918, p.214).

O antiportuguesismo dos setores populares pode ser entendido como a

possibilidade de uma maior integração a sociedade. Os portugueses ocupavam

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posições de influência nas funções públicas, sobretudo nos setores judiciários e

das milícias e possuíam riqueza comercial, além de quase todos os ministros

serem portugueses. E, nesse sentido, Justiniano José da Rocha, jornalista oficial

do partido conservador, considera que o caráter das primeiras lutas no Brasil é

principalmente social do que político e, é a partir daí que se pode compreender o

desenvolvimento democrático que foi se desenvolvendo em toda a população, e

que poderia ser fatal se a Providência não tivesse salvado19.

Um desenvolvimento democrático salvo pela Previdência certamente

ameaçava os que defendiam reformas a partir da moderação e se assustavam com

a notável participação popular nos conflitos de 1831. Falta ainda conhecer

melhor como as notícias se espalhavam e como formavam os ajuntamentos.

O jornal Aurora Fluminense também demonstra perplexidade referindo-se

a união de brasileiros com opiniões opostas como, os federalistas, unitários,

reformador ou conservador, se juntarem “como por milagre” em defesa a

“offensa feita à nacionalidade” no 7 de abril20. Considerando que o ódio ao

português tenha contribuído para unir grupos e interesses opostos, ainda assim

não explica porque tais grupos, além de se unirem, saem às ruas para protestar a

despeito da repressão que o Estado constantemente emprega para castigar os

desordeiros. Agiam pela percepção do enfraquecimento do Estado como já

mencionamos acima, como também porque possuíam apoio de parcela

considerável da sociedade. Este era o momento de protestar ou mesmo se vingar

da “tirania” de um Estado que se corporificava na figura do “português”.

As fontes analisadas mostram que 1831 foi um momento propício para o

acirramento dos conflitos, uma vez que a crescente perda de legitimidade do

Imperador ampliou o “espaço público”. As classes populares protestaram em

1831 ao lado das classes médias e das elites, o que conferiam mais legitimidade a

seus protestos.

19 ROCHA, Justiniano José. Ação, Reação, Transação, págs. 10-11. Apud: VEIGA, 1877. 20 Aurora Fluminense, 15 de abril de 1831.

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