A Inconstitucionalidade da Culpa na Separação JudicialData do Julgamento: 05/12/2002 Ementa:...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO PRIVADO
A Inconstitucionalidade
da Culpa na Separação Judicial
João Maurício Penna Lamounier
Belo Horizonte
2008
2
João Maurício Penna Lamounier
A Inconstitucionalidade
da Culpa na Separação Judicial
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Adriano Stanley Rocha Souza
Belo Horizonte
2008
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João Maurício Penna Lamounier
A Inconstitucionalidade da Culpa na Separação Judicial
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.
Belo Horizonte, 2008.
Prof. Dr. Adriano Stanley Rocha Souza (Orientador) – PUC Minas
Prof. Dr. César Augusto de Castro Fiúza – PUC Minas
Prof. Dr. Nelson Rosenwald – Praetorium - Instituto de Pesquisa e
Extensão em Direito
4
A meu querido avô in memoriam E a minha amada mãe,
Pelo exemplo que ambos são para mim.
5
AGRADECIMENTOS
Aos meus caros Professores Adriano Stanley, César Fiúza e Nelson
Rosenwald, pelos ensinamentos, incentivo e apoio acadêmicos.
À minha família, pelo amor, estímulo e apoio incondicionais.
Em especial, à Ana Paula, pelo auxílio com as pesquisas legislativas e
jurisprudenciais, pelo apoio no trabalho e, principalmente, pelo carinho.
6
"O merecimento de tutela da família não diz respeito exclusivamente às relações de
sangue, mas, sobretudo, àquelas afetivas
que se traduzem em uma comunhão
espiritual e de vida".
Pietro Perlingieri
7
RESUMO
O trabalho visa demonstrar a inconstitucionalidade da discussão da culpa na
separação judicial, fazer um estudo a respeito do instituto da culpa na separação
judicial e verificar a possibilidade de sua adequação aos paradigmas do Estado
Democrático de Direito.
1. Demonstrar a inconstitucionalidade do instituto da culpa na separação judicial;
2. Analisar a possibilidade de pleitear-se indenização por danos morais;
3. Demonstrar que a objetivação da separação judicial é a forma condizente com o
Estado Democrático de Direito.
A questão dos paradigmas em que se forjou o instituto da culpa no âmbito da
separação judicial, e particularmente no Código Civil de 2002. Verifica-se a forte
influência do Direito Canônico. A questão é identificar esses traços no diploma e
adaptá-los aos tempos modernos.
8
RESUMEN
El presente texto pretende demostrar la inconstitucionalidad de la discusión
de la culpa em la separación judicial, hacer un estudio com respecto al instituto de la
culpa em la separación judicial y verificar la posibilidad de su adecuación a los
paradigmas del Estado Democrático de Derecho.
1. Demostrar la inconstitucionalidad del instituto de la culpa em la separación
judicial;
2. Analizar la possibilidad de pleitear indenización por daños morales;
3. Demostrar que la objetivación de la separación judicial es la forma
condecente com el Estado Democrático de Derecho.
La cuestión de los paradigmas en que se he forjado el instituto de la culpa en el
ámbito de la separación judicial, y em particular em el Código Civil de 2002. Verifica-
se la fuerte influencia del Derecho Canónico. La cuestión es identificar eses trazos
en el diploma e adaptarlos a los tiempos modernos.
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
CC - Código Civil
CPC - Código de Processo Penal
CP - Código Penal
CPP - Código de Processo Penal
CF - Constituição da República Federativa do Brasil
CPC - Código de Processo Civil
STF - Supremo Tribunal Federal
STJ - Superior Tribunal de Justiça
IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família
PEC - Proposta de Emenda Constitucional
PL - Projeto de Lei
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................. 12
CAPÍTULO I - A SEPARAÇÃO ....................................................................... 14
1.1 Espécies de separação no Código Civil de 2002 .................................. 14
1.2 A separação pelo desamor ..................................................................... 15
CAPÍTULO II - A CULPA NA SEPARAÇÃO JUDICIAL ................................ 19
2.1. O contexto da culpa na cultura judaico-cristã........................................19
2.2. A culpa no Direito comparado: o Direito Francês e o Direito Italiano..21
2.3. A culpa inserida nos paradigmas de família antes e pós Constituição de
1988....................................................................................................................25
CAPÍTULO III - A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRINCÍPIO
FUNDAMENTAL DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA..................................30
CAPÍTULO IV - A INCONSTITUCIONALIDADE DA CULPA NA SEPARAÇÃO
JUDICIAL......................................................................................................... 46
4.1. O descabimento da perquirição da culpa...............................................46 4.2. As conseqüências jurídicas advindas da comprovação da culpa.......47
4.3. A culpa em contrariedade ao princípio da secularização. ....................54
4.4. A culpa em contrariedade ao princípio da dignidade da pessoa humana e
seus consectários, princípio da liberdade e da proteção à intimidade e à vida
privada...............................................................................................................59
11
CAPÍTULO V - PROPOSTAS DE ALTERAÇÃO DA LEGISLAÇÃO EM VIGOR..71
5.1 O Projeto de Lei nº 504/07...............................................................................73
5.2. O Projeto de Lei nº 505/07..............................................................................76
5.3. O Projeto de Lei nº 507/07..............................................................................78
5.4 A Proposta de Emenda à Constituição nº 33/07...........................................82
5.5 O Estatuto da Família e das Sucessões........................................................84
5.6. Considerações Finais....................................................................................86
CONCLUSÃO ............................................................................... ...... ............87
REFERÊNCIAS......................................................................................................89
12
INTRODUÇÃO
No presente trabalho analisa-se a questão dos paradigmas em que se forjou o
instituto da culpa no âmbito da separação judicial, e particularmente no Código Civil
de 2002. Verifica-se claramente a forte influência do Direito Canônico. A questão é
identificar esses traços no diploma e adaptá-los aos tempos modernos.
A verdade é que a perquirição da culpa na esfera das relações afetivas e suas
conseqüências no desenlace do matrimônio é descabida e mesmo inconstitucional.
De fato, a Constituição da República, ao erigir a dignidade da pessoa humana
fundamento do Estado Brasileiro (art. 1°, III) e ao consagrar como fundamentais os
direitos à liberdade (art. 5°, caput), à intimidade e à vida privada (art. 5°, X), não
permite que se invada a intimidade do cônjuge, pelo simples fato de buscar um
pretexto para pedir a separação, como exige o art. 1.572 do Código Civil, “sem que
se possa atinar a razão de o Estado se imiscuir na vida privada de um casal e
condicionar a desconstituição do casamento à identificação de um culpado”.1
Essa atribuição da culpa pelo fim do casamento remonta ao Direito Canônico,
para o qual, o casamento é um sacramento, e só poderia ser dissolvido em caso de
adultério, abandono ou sevícias; ou seja, mediante a comprovação de um culpado.2
Afrontando também, assim, o princípio constitucional da secularização, isto é, do
Estado laico (CF, art. 19, I).
1 DIAS, Maria Berenice. Culpado ou inocente? In: Boletim do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, n° 22, set./out. de 2003.
13
De fato, exigir-se a culpa para obter a dissolução da sociedade conjugal não
revela qualquer justificativa. Configura-se, outrossim, “nítido caráter punitivo vedar
ao ‘culpado’ a iniciativa do processo de separação, assegurando legitimidade
somente ao ‘inocente’ para buscar a desconstituição do casamento (CC, art.
1.572)”.3
Realmente, não faz sentido manter a culpa como fundamento da separação
judicial, dever-se-ia limitar o pleito na ruptura da convivência afetiva, ou seja, no
simples “desamor”.
Na verdade, a doutrina moderna majoritária defende a abstração da culpa na
dissolução do matrimônio, mas o fato é que, para o Direito Positivo pátrio, ainda se
exige a perquirição da culpa no fim das relações conjugais, a despeito de ser
impertinente e trazer inúmeras conseqüências, de ordem patrimonial e pessoal.
2 KLEIN, Fabiane. A polêmica sobre a abstração da culpa na separação judicial litigiosa. In: BRAUNER, Maria Cláudia Crespo (org.). O Direito de Família descobrindo novos caminhos. Canoas: La Sale, 2001. p.47-8. 3 DIAS, Maria Berenice. Culpado ou inocente?, cit.
14
CAPÍTULO I - A SEPARAÇÃO
1.1. Espécies de separação no Código Civil de 2002
Segundo a doutrina, a separação judicial pode ser classificada da seguinte
maneira:
a) Separação judicial consensual:
Também chamada separação amigável, realizada mediante acordo de
vontade dos cônjuges, desde que casados há mais de um ano (CC, art.
1.574; CPC, art. 1.120 e ss.).
b) Separação litigiosa: (CC, art. 1.572)
• Por causa subjetiva - culpa – “separação sanção” - caso em que um
cônjuge imputa ao outro ato que importa grave violação de qualquer dos
deveres do casamento, tornando insuportável à vida em comum (caput).
• Por causa objetiva: ruptura da vida em comum – “separação falência”
(§ 1°); ou acometimento de doença mental grave - “separação remédio”
(§ 2°).
15
1.2. A separação pelo desamor
Além das espécies de separação previstas no Código Civil de 2002, infere-se,
à luz dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da liberdade,
da proteção à intimidade e à vida privada e do princípio da secularização, ser
possível também, a separação judicial, sem causa específica, ou seja, pelo simples
desamor.
Aliás, assim já entendeu o Superior Tribunal de Justiça:
RESP 467184 / SP; RECURSO ESPECIAL 2002/ 0106811-7
Relator: Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR (1102)
Órgão Julgador: T4 – QUARTA TURMA
Data do Julgamento: 05/12/2002
Ementa:
SEPARAÇÃO. Ação e reconvenção. Improcedência de ambos os pedidos.
Possibilidade da decretação da separação.
Evidenciada a insuportabilidade da vida em comum, e manifestado por
ambos os cônjuges pela ação e reconvenção, o propósito de se separarem,
o mais conveniente é reconhecer esse fato e decretar a separação, sem
imputação da causa a qualquer das partes.
Recurso conhecido e provido em parte.
16
Bem como o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
“SEPARAÇÃO JUDICIAL LITIGIOSA. VIOLAÇÃO DOS DEVERES
CONJUGAIS. CULPA. PROVA. DESCABIMENTO. DANO MORAL.
IMPOSSIBILIDADE, EMBORA ADMITIDO PELO SISTEMA
JURÍDICO.
-É remansoso o entendimento de que descabe a discussão da culpa
para a investigação do responsável pela erosão da sociedade
conjugal.
-A vitimização de um dos cônjuges não produz qualquer seqüela
prática, seja quanto à guarda dos filhos, partilha de bens ou alimentos,
apenas objetivando a satisfação pessoal, mesmo porque impossível
definir o verdadeiro responsável pela deterioração da arquitetura
matrimonial, não sendo razoável que o Estado invada a privacidade do
casal para apontar aquele que, muitas vezes, nem é o autor da
fragilização do afeto.
-A análise dos restos de um consórcio amoroso, pelo Judiciário, não
deve levar à degradação pública de um dos parceiros, pois os fatos
íntimos que caracterizam o casamento se abrigam na preservação da
dignidade humana, princípio solar que sustenta o ordenamento
nacional.
-Embora o sistema jurídico não seja avesso à possibilidade de
reparação por danos morais na separação ou no divórcio, a pretensão
encontra óbice quando se expurga a discussão da culpa pelo dissídio,
e quando os acontecimentos apontados como desabonatórios
aconteceram depois da separação fática, requisito que dissolve os
deveres do casamento, entre os quais o de fidelidade.
-Não há dor, aflição ou angústia para indenizar quando não se
perquire a culpa ou se define o responsável pelo abalo do edifício
17
conjugal” (Ap. 70005834916, rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis,
02.04.2003)
Essa a incongruência do sistema normativo brasileiro, “quem não tem motivo,
quem nada tem a imputar contra o par simplesmente precisa aguardar o prazo de
um ano para buscar a separação (art. 1.572, § 1º) ou o decurso de dois anos para
obter o divórcio (art. 1.580, § 2º)”.4 Nessa mesma linha, “se o autor não logra provar
a responsabilidade do réu pelo fim do casamento, o pedido de separação é
desacolhido. O autor perde a ação e arca com os encargos sucumbenciais”.5 E, o
que causa ainda mais perplexidade, as pessoas continuam casadas, mesmo depois
de todo o desgaste do processo judicial.
A tendência da doutrina moderna, condizente com a nova realidade, e com os
ditames constitucionais, é a de subtrair a necessidade de identificação da culpa pelo
fim do casamento, dentro de uma ótica mais liberalizante. “Mister que não se
perquira os elementos subjetivos que levaram à cessação da união, quer decorrente
de casamento, quer da mera convivência, bastando o exaurimento do elo amoroso”,
6 assim já lecionava Maria Berenice Dias, antes da entrada em vigor do Código Civil
de 2002. De fato, trata-se de uma decisão de ordem pessoal, na qual é descabida a
intervenção do Estado, exigindo a identificação de um responsável, para puni-lo de
forma exemplar.
4 DIAS, Maria Berenice. Culpado ou inocente?, cit. 5 DIAS, Maria Berenice. Culpado ou inocente?, cit. 6 DIAS, Maria Berenice. Separação: culpa ou só desamor? Palestra proferida no II Congresso Brasileiro de Direito de Família, promovido pelo IBDFAM e pela Ordem dos Advogados do Brasil, em 23.10.1997, em Belo Horizonte – MG.
18
No entanto, a lei não contempla a principal causa que pode tornar
insuportável a vida em comum, que é justamente o exaurimento do vínculo de
afetividade, que leva alguém a agredir, a abandonar, a manter uma conduta
desonrosa. O que elenca a lei são meras conseqüências de uma única causa.
Somente comete adultério, tenta matar, ou age da forma preconizada no art. 1.573,
quem não ama mais. Tais atitudes são meros reflexos do fim do amor.
Mas os absurdos não param por aí, estranhamente, tal exigência se faz
presente apenas pelo período de um ano. Decorrido esse prazo, não há falar em
culpa. Por que fazer essa distinção, fundada apenas em um lapso temporal? E mais,
se o casal esperar mais um ano, é possível a qualquer um pedir o divórcio
diretamente, sem que se questione a causa do desenlace do matrimônio.
Essa perquirição de culpa impõe conseqüências de várias ordens: restrição
ao uso do nome (art. 1.578), fixação de alimentos tão-só para assegurar a
sobrevivência (art. 1.704, parágrafo único), e ainda, a inocência do cônjuge
sobrevivente lhe garante direitos sucessórios ainda que separado de fato há dois
anos (art. 1.830). Tudo isso demonstra o aspecto punitivo que dispensa o Código
para aquele que simplesmente quer se afastar da vida em comum, mantendo
sacralizado o matrimônio, tal como é concebido no Direito Eclesiástico, eterno e
indissolúvel.7
7 WELTER, Belmiro Pedro. A secularização da culpa no Direito de Família. Disponível em: www.mundojuridico.adv.br. Acesso em 30 de maio de 2006.
19
CAPÍTULO II - A CULPA NA SEPARAÇÃO JUDICIAL
2.1. O contexto da culpa na cultura judaico-cristã
Deriva do pecado original, metaforicamente representado pela maçã mordida
no paraíso, a expressão da tentação humana dirigida a tomar o lugar de Deus, com
a cumplicidade da serpente, a suscitar a pronta e enérgica ira divina:
Então o Senhor Deus disse à serpente: Porque fizeste isso, serás
maldita entre todos os animais e feras dos campos, andarás de rastos sobre
o teu ventre e comerás o pó todos os dias de tua vida. Porei ódio entre ti e a
mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu
ferireis o calcanhar. Disse também à mulher: Multiplicarei os sofrimentos de
teu parto, darás à luz com dores, teus desejos te impelirão para o teu
marido e tu estarás sob o seu domínio. E disse em seguida ao homem:
Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te
havia proibido comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com
trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida.
O impressionante relato bíblico revela, assim, a idéia, incrustada na formação
cultural judaico-cristã, de que a reprodução humana, o relacionamento conjugal e as
relações de trabalho, atividades que, de um certo modo, resumem a vida do homem
20
em sociedade, estão associadas irremediavelmente à idéia de expiação de
pecados.8
Não pareceria demasiado, portanto, formular a hipótese de que, à luz da
nossa mais profunda tradição ética, o prazer não é facilmente absorvido
desvinculado do elemento culpa.
No Direito de Família, a culpa se expressa na tradição ocidental tanto no
momento patológico do casamento, quando alguém é responsabilizado por não mais
querer viver com o seu cônjuge - na perspectiva da ruptura da sociedade conjugal -,
quanto no quadro - por assim dizer - de estabilidade da vida a dois, culpando-se os
cônjuges freqüentemente pelo papel que desempenham no cenário da família,
associando-se o esforço individual por objetivos comuns à idéia de sofrimento: o
sacrifício que alguém faz pela família é a medida, assim, do amor conjugal.
Nesta perspectiva, não surpreende que o estigma do egoísmo venha a ser
contraposto à atitude de permanente sofrimento que se espera do cônjuge -
especialmente do cônjuge-mulher e mãe (na voz popular, ser mãe é sofrer no
paraíso) -, como se inexistisse o ponto de equilíbrio consistente na relação de
mútuas concessões, postas - não já impostas - pelo amor de um cônjuge ao outro -
derivado do seu próprio sentimento e não de um mero dever institucional.
8 TEPEDINO, Gustavo. Repensando o Direito de Família. Anais do I Congresso Brasileiro de Direito
21
2.2. A culpa no Direito comparado: o Direito Francês e o Direito Italiano
A trajetória do legislador brasileiro não se diferencia, substancialmente, do
percurso histórico verificado em outros ordenamentos da família romano-germânica,
nos quais, em geral, se tem atenuado os efeitos da culpa na separação conjugal,
malgrado a sua renitente presença. Vale, ao propósito, passar em revista, ainda que
superficialmente, a disciplina legal da França e da Itália, de modo a que se possa
compreender a não-linear tendência legislativa.
Inspiradora da Lei do Divórcio brasileira, a reforma de 1975 francesa prevê,
como causa para o divórcio, o descumprimento dos deveres conjugais
genericamente considerados (art. 242, Código Civil francês).
No regime atual, a regra na França é a ausência de pensão alimentícia
(devoir de secours), substituída pela prestation compensatoire, de característica
forfaitaire e, portanto, não variável, imutável, com outra natureza em relação à
pensão já que, nos termos do art. 270 do Code, visa compensar a disparidade que a
ruptura do casamento cria nas respectivas condições de vida.
Já na separação de corpos, estágio anterior ao divórcio, correspondente ao
que seria a nossa separação judicial, embora restrita a pôr fim ao dever de
coabitação, que se transformará em divórcio, mediante simples procedimento não
contencioso, é devida a prestação de alimentos (justamente porque o devoir de
secours é inerente ao casamento - art. 303, Código Civil francês).
de Família, IBDFAM, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1999, pág. 191.
22
Excepcionalmente, na hipótese de divórcio direto, motivado pela ruptura da
vida em comum, seja por uma separação de fato superior a seis anos (art. 237 -
divorce pour rupture de la vie commune), seja no caso de doença grave de um dos
cônjuges, que se prolongue por mais de seis anos, afetando suas faculdades
mentais e comprometendo irremediavelmente a vida conjugal (art. 238, CC francês),
aquele que toma a iniciativa da separação terá que arcar com todas as
responsabilidades, como uma espécie de sanção.
Com efeito, nos termos do art. 281, do Código Civil francês, ao cônjuge que
tomou a iniciativa do divórcio-remédio incumbirá a pensão alimentícia em favor do
outro cônjuge, constituindo-se em dever transmissível hereditariamente (art. 282),
incluindo aí, na hipótese de doença, as despesas com o tratamento médico.
Há, ainda, no Direito francês, um dispositivo não importado pelo legislador
pátrio, que prevê expressamente a possibilidade de condenação ao dever de reparar
os danos morais e materiais decorrentes do divórcio culposo.
"Art. 266. Quand le divorce est prononcé aux torts exdusifs de l'un des
époux, celui-ci peut ëtre condamné à des dammages-intérëts en réparation
du préjudice matériel ou moral que la dissolution du marriagefait subir à son
conjoint.
Ce dernier ne peut demander des dommages-intérëts qu’a l’occasion de
l'action en divorce."
O preceito suscita intensa objeção, já que transforma em regra geral a
reparação por perdas e danos que, submetida à disciplina da responsabilidade
aquiliana, já seria aplicável, como exceção, ao divórcio, desde que se demonstrem
os pressupostos do ato ilícito (art. 186, Código Civil Brasileiro). Ademais, os deveres
23
conjugais não parecem suscetíveis de recondução ao regime da responsabilidade
contratual, disciplinadora dos negócios jurídicos patrimoniais, em que o
inadimplemento culposo pode ser facilmente presumido.
A natureza jurídica específica do casamento, ao reverso, presidido por
deveres não-patrimoniais, dificilmente se coaduna com a presunção de
inadimplemento e a aplicação automática de perdas e danos, sem que
especificamente se demonstre a presença do ilícito. Basta pensar nos deveres do
art. 1.566 do Código Civil Brasileiro, notadamente os deveres de fidelidade recíproca
e de coabitação, para se ter em conta que o comportamento contrário à vida
conjugal, capaz de levar ao desenlace, não é suscetível de identificação objetiva
com o ato ilícito - a menos que se pretendesse, por absurdo, fixar um standard
médio de performance sexual, ou um padrão ideal de fidelidade, cujo não-
atendimento pudesse ser considerado como ilícito.
Do exame da legislação francesa, pode-se concluir que, no tocante aos
efeitos do divórcio, independem de culpa; a) a já mencionada prestação a ser paga
por um cônjuge ao outro para evitar disparidades em seus padrões de vida
(prestation compensatoire); b) a determinação da guarda dos filhos, a qual, nos
termos dos arts. 286 e 287, atenderá exclusivamente ao melhor interesse da criança.
Na experiência italiana, a culpa perdeu terreno com a reforma de 19 de maio
de 1975 (Lei n. 898, modificada pela Lei n. 74, de 1987), que introduziu o divórcio.
O art. 151 do Código Civil italiano, com a redação que lhe deu a lei especial,
desloca a pedra angular sobre a qual assenta o sistema da separação judicial para
circunstâncias puramente objetivas; verificação de fatos que tornem intolerável a
prossecução da vida em comum ou que causem grave prejuízo à educação da prole.
24
Vale examinar o preceito, destacando-se a preocupação do legislador italiano no
sentido de incluir, dentre as causas objetivas, ao lado da falência da vida em
comum, a possibilidade de prejuízo para os filhos:
Art. 151. Separazione giudiziale - La separaúone può essere chiesta quando
si verificano, anche indipendentemente dalla volontà di uno o di entrambi i
coniugi, fatti tali da rendere intollerabile la prosecuzione della convivenza o
da recare grave pregiudizio alla educazione della prole.
Il giudicé, pronunciano Ia separazione, dichiara, ove ne ricorrano le
circostanze, e ne sia richiesta, a guale dei coniugi sia addebitabile la
separazione, in considerazione del suo cornportamento contrario ai doveri
che derivano dal matrimonio.
Extrai-se do preceito acima transcrito a permanência da separação culposa,
que será declarada, no entanto, somente na hipótese de requerimento expresso de
um dos cônjuges, com conseqüências danosas para o culpado exclusivamente no
que toca aos alimentos, excluindo-lhe a possibilidade de recebê-los, nos termos do
art. 156.
Art. 156. Effetti della separazione sui rapporti patrimoniali tra i coniugi. - Il
giudice, pronunciando la separazione, stabilisce a vantagio del coniuge cui
non sia addebitabile la separazione il dirztto di ricevere dall'altro coniuge
guanto è necessario al suo mantenimento, gualora egli non abbia adeguati
redditi propri.
No que tange ao nome da mulher, o art. 156 bis, também introduzido pela
reforma legislativa, afasta-se da idéia de culpa, autorizando o juiz a alterar o
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sobrenome sempre que a sua manutenção possa acarretar prejuízos para a ex-
mulher ou para o ex-marido.
Finalmente, no que concerne à guarda dos filhos, o art. 155 determina que a
decisão judicial seja baseada exclusivamente no melhor interesse da prole (con
esclusivo riferimento all'interesse morale e materiale di essa), prevendo que, em
regra, le decisioni di maggiore interesse per i figli sono adottate da entrambi i coniugi,
sendo ao magistrado facultada, inclusive, a determinação da guarda conjunta.
2.3 A culpa inserida nos paradigmas de família antes e pós Constituição de
1988
As experiências legislativas nacional e estrangeira, acima referidas, indicam,
por um lado, a tendência de se atenuar o papel da culpa na separação judicial, por
outro, a permanência de sua presença nos efeitos da ruptura matrimonial, atraindo
sanções de várias espécies, estimuladas, do ponto de vista hermenêutico, por uma
vetusta tradição cultural que ainda se pode considerar dominante no Direito
brasileiro.
Entretanto, parece indispensável que o intérprete consiga distinguir a
justificativa axiológica do Código Civil brasileiro, que atribui à separação culposa
posição predominante daquela emanada pela Constituição da República de 1988,
que alterou o conceito de unidade familiar e determina profunda revisão dos critérios
interpretativos em matéria de Direito de Família.
26
À luz do paradigma de família anterior à Constituição da República de 1988,
inspirado na linha dominante da codificação européia do Século XIX, considerava-se
o casamento indissolúvel e a separação, em regra, culposa, gerando um conjunto de
sanções patrimoniais e não-patrimoniais contra o cônjuge faltoso: a noção de culpa
identificava um comportamento causador de dano (por si só, necessariamente)
injusto, ou seja, a dissolução do vínculo conjugal.
E, com efeito, tal circunstância derivava do fato de que a família representava
uma instituição fundada no casamento, e a este, portanto, inexoravelmente
vinculada. Daí uma certa sublimação do casamento, instituição transpessoal,
intrinsecamente legítima. O casamento era assim valorado como um bem em si
mesmo, necessário à consolidação das relações sociais, independentemente da
realização pessoal de seus membros.
O rompimento da sociedade conjugal, portanto, afigurava-se como o
esfacelamento da própria família, reprovado socialmente, a despeito das causas
subjetivas que o motivaram.
Assim, tudo aquilo que pudesse representar uma ameaça ao casamento
suscitava a hostilidade do legislador, sendo a unidade formal do casamento um valor
superior ao interesse individual da mulher ou do marido que pretendessem se
separar. Disso decorria todo um regime rígido de preservação da estrutura familiar
em torno do casamento, tanto no que concerne ao vínculo matrimonial, como no
tocante à relação entre os cônjuges e à relação entre pais e filhos.
No tocante ao vínculo matrimonial, este deveria ser preservado, na lógica do
paradigma então vigente, mesmo se os cônjuges individualmente já não
mantivessem qualquer vida em comum.
27
No que concerne à relação entre os cônjuges, avultava, no paradigma
anterior, o poder marital e a incapacidade relativa da mulher casada, em franca
agressão à sua dignidade e inteligência, mecanismo perverso que só se poderia
justificar no interesse da manutenção da unidade formal do casamento, favorecida
pela chefia unilateral e despótica do marido.
A Constituição da República de 1988, ao contrário, ao longo do processo
histórico de transformação da estrutura familiar, em seus arts. 226 e 227, altera
radicalmente o quadro normativo. Estabelece a proteção da família como meio para
a realização da personalidade de seus membros, estremando a entidade familiar da
entidade matrimonial, esta apenas uma espécie privilegiada daquela, admitindo-se,
expressamente, a união estável e as famílias monoparentais, formadas por qualquer
um dos pais e seus descendentes.
Dito diversamente, a família é considerada pelo constituinte, no art. 226, base
da sociedade, comunidade intermediária com especial proteção do Estado, à medida
que cumpra o seu papel - a um só tempo dever e justificativa axiológica. E o papel
da família, nitidamente instrumental, exsurge de diversos preceitos constitucionais,
em particular: art. 227, no sentido de promover os direitos inerentes à plena
realização da personalidade dos filhos; art. 226, § 5°, dirigido a garantir a igualdade
entre homem e mulher e, portanto, à real emancipação de ambos; art. 226, § 7°,
voltado ao planejamento familiar fundado nos princípios da dignidade da pessoa
humana e da paternidade responsável. Todos estes preceitos hão de ser
interpretados à luz dos princípios fundamentais enumerados nos arts. 1° a 4° da
Constituição Federal, sendo certo que a República, nos termos dos incisos II e III do
art. 1°, tem como fundamento a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
28
Pois bem: se a unidade da família, à luz da Constituição, não mais se
identifica com a unidade do casamento, não há como associar a aplicação de
sanções atinentes a efeitos jurídicos existenciais - alimentos, sobrenome da mulher -
e mesmo patrimoniais – sucessão dos bens - à culpa pela ruptura do vínculo
matrimonial.
A Constituição da República, como se viu, promove a democratização da
família e a sua funcionalização à realização da personalidade de seus integrantes. O
Estatuto da Criança e do Adolescente constitui-se em referência emblemática desta
nova tábua de valores, ao elevar a criança a protagonista do processo educacional,
facultando-lhe, a todo momento, questionar os métodos pedagógicos empregados
pelos pais e educadores, mesmo que o conflito de interesses venha a abalar a
estrutura formal do vínculo familiar.
A igualdade entre os cônjuges, assegurada constitucionalmente, também
pode gerar atritos, os quais, contudo, jamais deverão ser dirimidos em prejuízo da
isonomia, já que a comunidade familiar, segundo a nova ordem pública
constitucional, não expressa um valor superior às pessoas, sendo tutelada somente
na exata medida em que for capaz de preservar a dignidade da mulher, do homem e
dos filhos.
E é precisamente por tais circunstâncias, por ter o constituinte concebido a
família como comunidade intermediária instrumentalizada à realização da pessoa
humana, que admitiu diversas espécies de entidades familiares: a família fundada no
casamento - merecedora de tutela privilegiada, à medida que a solenidade e a
publicidade do rito matrimonial geram uma segurança jurídica favorável ao
compromisso assumido pelas partes; a união estável, baseada puramente na
29
solidariedade espontânea e duradoura; e ainda a família monoparental, constituída
pela relação de amor entre qualquer um dos genitores com os filhos, rompendo,
assim, com a lógica suprapessoal da instituição matrimonial.
Tal construção, à evidência, aplica-se não somente à disciplina da relação
matrimonial, mas também às normas atinentes à separação, não sendo consentido
imputar sanções pelo simples fato da ruptura do vínculo matrimonial - sem que se
identifique, especificamente, a prática de um ato ilícito; mormente quando estas
sanções deixam de ter relação de causalidade com o dano efetivamente produzido e
afetem outros institutos, como alimentos, o nome de família e o direito à sucessão do
cônjuge.
Pode-se dizer, portanto, que todos as hipóteses que vêm agitando os
tribunais e que dizem respeito ao papel da culpa devem ser analisadas à luz de uma
espécie de carta de alforria constitucional.
30
CAPÍTULO III - A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL FUNDAMENTAL
O princípio da dignidade da pessoa humana está insculpido em nosso Texto
Constitucional logo em seu art. 1°, inciso III, erigido, assim, como fundamento da
República Federativa do Brasil. Vê-se a importância destacada a este princípio,
conferida mesmo pela própria Constituição, lei maior, substrato de validez de todas
as demais normas do nosso ordenamento jurídico. Consistindo norma de aplicação
imediata, por traduzir direito fundamental, não sendo, pois, norma de conteúdo
meramente programático.
A questão que se nos apresenta é desvendar o conteúdo encerrado em tal
preceito constitucional, dizer do seu alcance, da sua função, primordiamente
hermenêutica, do princípio da dignidade da pessoa humana no sistema jurídico.
Para tanto, a título de partida, ressalte-se o conceito de pessoa. Na
antiguidade grega, o conceito de pessoa confundia-se com o conceito de cidadão,
portanto somente àqueles a quem era dado interferir, formular a vontade do Estado,
é que detinham personalidade. Um conceito, portanto, ainda restrito de pessoa, de
personalidade.
A evolução histórica incumbiu-se de agregar a esse incipiente conceito de
pessoa, a concepção espiritual, de pessoa como subjetividade, de ente dotado de
valores e de fins voltados a si próprio. Possuidor, pois, de direitos subjetivos
fundamentais, direitos da personalidade, notadamente, o maior deles, qual seja, o
direito à dignidade, entendida aqui em seu sentido mais amplo, ou seja, à vida digna.
31
Aqui se estabelece o corte epistemológico, o rompimento do paradigma até
então existente, ou seja, o reconhecimento de duas esferas nitidamente separadas,
de um lado o homem, e do outro, o Estado. O homem passa a ter direitos
fundamentais, direitos-garantia, direitos, pois, limitadores do poder estatal.
Afirmando-se assim a sua existência própria, uma existência digna, dotada de
proteção frente aos demais homens, como também, frente ao próprio Estado, em
busca do necessário equilíbrio entre a liberdade e a autoridade.
Assim, o ser humano é dotado de proteção especial justamente pelo fato de
não ser meio para os outros, mas fim em si mesmo, isso o constitui como ser livre,
com dignidade própria, em que tudo o mais tem significação relativa. "Só o homem
não existe em função de outro e por isso pode levantar a pretensão de ser
respeitado como algo que tem sentido em si mesmo".9
Na lição de Reale, verificam-se historicamente três concepções do conceito
de dignidade da pessoa humana: individualismo, transpersonalismo e
personalismo.10
No individualismo, tem-se, como ponto de partida, o indivíduo. Entendendo-
se que cada homem, ao cuidar dos seus próprios interesses, protege e realiza, de
maneira indireta, os interesses coletivos. Uma concepção, portanto, limitada,
característica do liberalismo individualista.
9 OLIVEIRA, Manfredo A. de. A Filosofia na crise da modernidade. São Paulo: Loyola, 1992, p. 23. 10 REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 277. Jorge Miranda, por sua vez, utiliza os termos individualismo, que, para ele, também pode ser chamado personalismo; supra-individualismo e transpersonalismo, que, portanto, são usados em sentidos diferentes daqueles por nós empregados. Apud, MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, IV. 3ª ed. rev. e atual. Coimbra: Coimbra, 1991, p.38.
32
Há aqui a idéia da limitação ao poder estatal, direitos de defesa do indivíduo
frente ao Estado, que deveria, pois, se abster, o quanto possível, de se intrometer na
vida social. Denominam-se, por isso, direitos de autonomia e direitos de defesa.11
Assim, a interpretação do Direito, se daria sempre com o fito de proteger a
autonomia do indivíduo, colocando-o a salvo das ingerências do Poder Público. Por
esta concepção do conceito de dignidade da pessoa humana, num conflito indivíduo
versus Estado, privilegiar-se-ia sempre aquele.
Já no transpersonalismo, a idéia é o oposto do individualismo: a realização
do bem coletivo, do bem do todo, seria a garantia da proteção dos interesses
individuais. E, numa eventual desarmonia entre o bem do indivíduo e o bem do todo,
deveriam preponderar, sempre, os valores coletivos. Negando-se, portanto, à
pessoa humana um valor supremo, absoluto. Destarte, a dignidade da pessoa
humana realizar-se-ia no coletivo.
Corolário desta corrente de pensamento (transpersonalismo) verifica-se o
pensamento de Marx, com sua concepção socialista ou coletivista. Com efeito, para
ele, os direitos do homem, tais como entendidos pelo liberalismo, não ultrapassam “o
egoísmo do homem, do homem como membro da sociedade burguesa, isto é, do
indivíduo voltado para si mesmo, para seu interesse particular, em sua arbitrariedade
privada e dissociado da comunidade.”12 Distinguindo os direitos dos homens dos
direitos do cidadão, aqueles nada mais seriam que os direitos do homem separado
do homem e da comunidade.
11 CANOTILHO, J.J Gomes. Direito Constitucional. 6ª ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 505.
12 MARX, Karl. A questão judaica, 2ª ed. São Paulo: Moraes, 1991, p. 44.
33
Dessa linha de pensamento decorre que o princípio da liberdade será
confrontado pelo princípio da igualdade, em que pese o privilégio deste em
detrimento daquele, identificando-se os interesses individuais com os do corpo
social.
Já para a terceira corrente, o personalismo, o ideal é buscar-se um equilíbrio,
uma ponderação, entre os valores individuais e os coletivos, negando a
preponderância apriorística de uns sobre os outros, ou seja, num predomínio do
indivíduo ou no predomínio do todo. A solução há de ser buscada no caso concreto,
atendendo-se às suas peculiaridades; solução que pode ser a compatibilização entre
os mencionados valores, "fruto de uma ponderação na qual se avaliará o que toca
ao indivíduo e o que cabe ao todo",13 mas que pode, igualmente, ser a preeminência
de um ou de outro valor, sempre no caso concreto.
E assim é, nenhum direito é absoluto, nenhum princípio é absoluto, nem
mesmo o princípio da dignidade humana, pois não se pode aprioristicamente fazer-
se uma hierarquização de princípios, de direitos.
Assim o pensamento de Ronald Dworkin, com a vedação do “all or nothing”,
ou seja, a necessidade de adequação, de harmonização, dos princípios e dos
direitos fundamentais em choque no caso concreto.
Este moderno pensamento, de que nenhum direito é absoluto, é traduzido
como princípio da limitabilidade, da relatividade, dos direitos. Assim é que, mesmo
os direitos fundamentais, entre os quais a dignidade humana, não podem ser usados
13 FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996, p. 48.
34
para fundamentar o ilícito, não podem servir para justificar a irresponsabilidade civil,
como tampouco podem anular outros direitos fundamentais.
O pensamento de Dworkin, sucessor de Herbert Hart na cattedra de
Jurisprudence na Universidade de Oxford, objetiva, fundamentalmente, mostrar as
insuficiências seja do positivismo seja do utilitarismo.14 Para tanto, valer-se-á,
sobretudo, da diferença, de caráter lógico, entre princípio e regra. O direito é, pois,
para ele um sistema de princípios e regras.
Dworkin mostra que nos chamados “hard cases”, quando os juristas debatem
e decidem em termos de direitos e obrigações jurídicas, eles utilizam “standards”
que não funcionam como regras, mas trabalham com princípios, política e outros
gêneros de standards.
Princípios são, segundo Dworkin, exigências de justiça, de eqüidade ou de
qualquer outra dimensão da moral. Afirmar que os juristas empregam princípios, e
não regras, é admitir que são duas as espécies de normas, cuja diferença é de
caráter lógico. Embora orientem para decisões específicas sobre questões de
obrigações jurídicas, diferem pelo cunho da orientação que sugerem. Assim, as
regras, ao contrário dos princípios, indicam conseqüências jurídicas que se seguem
automaticamente quando ocorrem as condições previstas.
Um princípio não determina as condições que tornam sua aplicação
necessária. Ao revés, estabelece uma razão (fundamento) que impele o intérprete
numa direção, mas que não reclama uma decisão específica, única. Daí acontecer
14 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
35
que um princípio, numa determinada situação, e frente a outro princípio, não
prevaleça, o que não significa que ele perca a sua condição de princípio, que deixe
de pertencer ao sistema jurídico.
Por conseguinte, as regras, ao contrário dos princípios, são aplicáveis na
forma do tudo ou nada. Se se dão os fatos por ela estabelecidos, então ou a regra é
válida e, em tal caso, deve-se aceitar a conseqüência que ela fornece; ou a regra é
inválida e, em tal caso, não influi sobre a decisão. Num jogo de basquete, por
exemplo, se um jogador comete três faltas, está fora do jogo.
Desta primeira diferença decorre uma outra: os princípios possuem uma
dimensão de peso ou de importância que as regras não têm. Quando os princípios
conflitam (como a política de proteção aos consumidores de automóveis e os
princípios da liberdade contratual) para resolvê-lo é necessário ter em consideração
o peso relativo de cada um. Quem deve decidir um problema, em que se requer a
valoração de todos os princípios concorrentes e controversos que ele traz consigo,
mais que identificar um princípio válido, impõe-se encontrar uma conciliação entre
eles.
As regras não possuem esta dimensão. Não se pode afirmar que uma regra
é mais importante do que uma outra dentro do sistema jurídico, no sentido de que,
se duas regras colidem, uma prevalece sobre a outra, em virtude de seu maior peso.
Assim, se duas regras colidem, então uma delas não pode ser válida. Em
conseqüência, cada sistema jurídico possuirá meios que possibilitem regular e
decidir tal conflito. A este conflito a doutrina denomina antinomia, que é resolvido
pelos critérios: cronológico, lex posterior derogat priori; hierárquico, lex superior
derogat inferior; e da especialidade, lex specialis derogat generali.
36
O pensamento de Ronald Dworkin é retomado, dentro do sistema da civil
law, pelo constitucionalista alemão Robert Alexy, que, considerando o modelo do
jusfilósofo americano "demasiado simples" busca formular "un modelo más
diferenciado".15
Para Robert Alexy, a teoria dos princípios — e a distinção entre princípios e
regras — constitui o marco de uma teoria normativo-material dos direitos
fundamentais e, com ela, o ponto de partida para responder à pergunta acerca da
possibilidade e dos limites da racionalidade no âmbito desses direitos. E será, por
conseguinte, a base da fundamentação jurídica e a chave para a solução dos
problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais.
Assim, sem uma perfeita compreensão desta distinção, própria da estrutura
das normas de direito fundamental, é impossível formular-se uma teoria adequada
dos limites dos direitos fundamentais, quanto à colisão entre estes e uma teoria
suficiente acerca do papel que eles desempenham no sistema jurídico.
Segundo Robert Alexy, o ponto decisivo para distinção entre regras e
princípios é que estes são mandados de otimização, isto é, são normas que
ordenam algo que deve ser realizado na maior medida possível, dentro das
possibilidades jurídicas e reais existentes. Que podem ser cumpridos em diferentes
graus e que a medida devida de seu cumprimento depende não somente das
possibilidades reais, mas também das jurídicas.
Já as regras são normas que somente podem ser cumpridas ou não. Se uma
regra é válida, então, há de fazer-se exatamente o que ela exige, nem mais, nem
menos. Elas contêm, pois, determinações, no âmbito do fática e juridicamente
15 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
37
possível. Isto significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa, e não
apenas de grau.
Onde, porém, a distinção entre regras e princípios se mostra mais
claramente se dá nas colisões de princípios e nos conflitos de regras. Embora
apresentem um aspecto em comum — o fato de duas normas, aplicadas
independentemente, conduzirem a resultados incompatíveis — diferenciam-se,
fundamentalmente, na forma como se soluciona o conflito.
Assim, os conflitos de regras se resolvem na dimensão de validez. Ou seja,
somente podem ser solucionados introduzindo-se uma regra de exceção, debilitando
o seu caráter definitivo, ou declarando-se inválida, pelo menos, uma das regras.
Com efeito, uma norma vale ou não vale juridicamente. E se ela vale e é aplicável a
um caso, significa que vale também sua conseqüência jurídica.
Daí que o conflito entre duas regras há de ser solucionado por outras regras,
como "lex posterior derogat legi priori" e "lex specialis derogat legi generali". E
conclui Alexy: "lo fundamental es que la decisión es una decisión acerca de la
validez”.16
Por outro lado, a colisão de princípios se resolve na dimensão da
adequação, tal como o expressa Ronald Dworkin. Quando dois princípios entram em
colisão — por exemplo, se um diz que algo é proibido e outro, que é permitido —,
um dos dois tem que ceder frente ao outro, porquanto um limita a possibilidade
jurídica do outro. O que não implica que o princípio desprezado seja inválido, pois a
colisão de princípios se dá apenas entre princípios válidos.
Constitucionales, 1993, p. 99. 16 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, cit., p. 88.
38
Em Kant, o que caracteriza o ser humano, e o faz dotado de dignidade
especial é que ele nunca pode ser meio para os outros, mas fim em si mesmo.
Como diz Kant, "o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como
fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela
vontade".17
Conseqüentemente, cada homem é fim em si mesmo. E se o texto
constitucional diz que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República
Federativa do Brasil, importa concluir que o Estado existe em função de todas as
pessoas e não estas em função do Estado. Aliás, de maneira pioneira, o legislador
constituinte, para reforçar a idéia anterior, colocou, topograficamente, o capítulo dos
direitos fundamentais antes da organização do Estado.
Assim, toda e qualquer ação do ente estatal deve ser avaliada, sob pena de
inconstitucional e de violar a dignidade da pessoa humana, considerando se cada
pessoa é tomada como fim em si mesmo ou como instrumento, como meio para
outros objetivos. Ela é, assim, paradigma avaliativo de cada ação do Poder Público e
"um dos elementos imprescindíveis de atuação do Estado brasileiro".
No entanto, tomar o homem como fim em si mesmo e que o Estado existe
em função dele, não nos conduz a uma concepção individualista da dignidade da
pessoa humana. Ou seja, que num conflito indivíduo versus Estado, privilegie-se
sempre aquele. Com efeito, a concepção que aqui se adota, denominada
personalista, busca a compatibilização, a inter-relação entre os valores individuais e
coletivos; inexiste, portanto, aprioristicamente, um predomínio do indivíduo ou o
predomínio do todo. A solução há de ser buscada em cada caso, de acordo com as
17 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa:
39
circunstâncias, solução que pode ser tanto a compatibilização, como, também, a
preeminência de um ou outro valor.
Com razão Robert Alexy, que, como já explanado, rejeita, radicalmente, a
existência de princípios absolutos, chegando a afirmar que se os há, impõe-se
modificar o conceito de princípio.
Ernst Bloch, citado por Pérez Luño,18 destaca que a dignidade da pessoa
humana possui duas dimensões que lhe são constitutivas: uma negativa e outra
positiva. Aquela significa que a pessoa não venha a ser objeto de ofensas ou
humilhações. Daí o texto constitucional pátrio dispor, coerentemente, que "ninguém
será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" (art. 5º, III,
CF). Com efeito, "a dignidade — ensina Jorge Miranda — pressupõe a autonomia
vital da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais
entidades públicas e às outras pessoas".19
Impõe-se, por conseguinte, a afirmação da integridade física e espiritual do
homem como dimensão irrenunciável da sua individualidade autonomamente
responsável; a garantia da identidade e integridade da pessoa através do livre
desenvolvimento da personalidade; a libertação da "angústia da existência" da
pessoa mediante mecanismos de sociabilidade, entre os quais se incluem a
possibilidade de trabalho e a garantia de condições existenciais mínimas".20
Edições 70, p. 68. 18 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 3ª ed. Madrid: Tecnos, 1990, p. 318. 19 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 3ª ed. Ver.atual. Coimbra: Coimbra, 1991, p. 168/169. 20 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional, cit., p. 363.
40
Por sua vez, a dimensão positiva presume o pleno desenvolvimento de cada
pessoa, que supõe, de um lado, o reconhecimento da total autodisponibilidade, sem
interferências ou impedimentos externos, das possibilidades de atuação próprias de
cada homem; de outro, a autodeterminação que surge da livre projeção histórica da
razão humana, antes que uma predeterminação dada pela natureza.21
A proclamação do valor distinto da pessoa humana teve como conseqüência
lógica a afirmação de direitos específicos de cada homem. A dignidade da pessoa
humana é, por conseguinte, o núcleo essencial dos direitos fundamentais, a "fonte
jurídico-positiva dos direitos fundamentais",22 a fonte ética, que confere unidade de
sentido, de valor e de concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais,23 o
valor que atrai a realização dos direitos fundamentais.
Destarte, constata-se a centralidade dos direitos fundamentais dentro do
sistema constitucional, que eles apresentam não apenas um caráter subjetivo, mas
também cumprem funções estruturais, são conditio sine qua non do Estado
constitucional democrático.
Outrossim, a fundamentabilidade desses direitos,24 tanto formal como
material, ou seja, as normas de direito fundamental ocupam o grau superior da
ordem jurídica; estão submetidas a processos dificultosos de revisão; constituem
21 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitucion, cit. p. 318. 22FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação, cit., p. 54. 23 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional, cit. p. 166/167. 24 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, cit., p. 503 e segs.; CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional, cit., p. 498 e segs., que aliás, diz ser a dignidade da pessoa humana “a raiz fundante dos direitos fundamentais”.
41
limites materiais da própria revisão; vinculam imediatamente os poderes públicos;
significam a abertura a outros direitos fundamentais.
Dessa maneira, a interpretação dos demais preceitos constitucionais e legais
há de fazer-se à luz daquelas normas constitucionais que proclamam e consagram
direitos fundamentais, as normas de direito fundamental. Com razão, Canotilho fala
"que a interpretação da Constituição pré-compreende uma teoria dos direitos
fundamentais".25 E, nas palavras de Pérez Luño:
Para cumplir sus funciones los derechos fundamentales están dotados de
una especial fuerza expansiva, o sea, de una capacidad de proyectar-se, a
través de los conseguientes métodos o técnicas, a la interpretación de todas
las normas del ordenamiento jurídico. Así, nuestro Tribunal Constitucional
há reconocido, de forma expressiva, que los derechos fundamentales son el
“parámetro de conformidad con el cual deben ser interpretadas todas las
normas que componen nuestro ordenamiento”.26
Conclui-se, pois, que o princípio da dignidade da pessoa humana, como
fundamento da República Federativa do Brasil, como raiz fundante dos demais
direitos fundamentais, possui essa precípua função hermenêutica no sistema
jurídico, ou seja, confere as balizas norteadoras tanto da atividade interpretativa das
normas jurídicas, quanto da própria atividade legiferante infraconstitucional e mesmo
do poder constituinte reformador.
25 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional, cit., p. 505. 26 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos, Estado de Derecho y Constitucion, cit. p. 310.
42
Nessa linha de idéias, o Direito Civil não pode quedar-se, de forma alguma, à
margem da legalidade constitucional, devendo-se observar as balizas fundamentais
estampadas na Lei Maior, norte do ordenamento jurídico.
Como leciona César Fiúza:
No Brasil, a sede principal dos direitos da personalidade é a própria
Constituição. É ela que prevê de forma, pode-se dizer, implícita a cláusula
geral de tutela da personalidade, ao eleger como valor fundamental da
República a dignidade da pessoa humana, que deverá ser protegida e
promovida individual e socialmente.27
Assim, nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
[...] destaque-se que o mais precioso valor da ordem jurídica brasileira,
erigido como fundamental pela Constituição de 1988, é a dignidade
humana. Assim, como consectário, impõe reconhecer a elevação do ser
humano ao centro de todo o sistema jurídico, no sentido de que as normas
são feitas para a pessoa e para a sua realização existencial, devendo
garantir um mínimo de direitos fundamentais que sejam vocacionados para
lhe proporcionar uma vida com dignidade.
Enfim, o postulado fundamental da ordem jurídica brasileira é a
dignidade humana, enfeixando todos os valores e direitos que podem ser
reconhecidos à pessoa humana, englobando a afirmação de sua integridade
física, psíquica e intelectual, além de garantir a sua autonomia e livre
desenvolvimento da personalidade. [...]
Assim, o reconhecimento da fundamentalidade do princípio da
dignidade da pessoa humana impõe uma nova postura aos civilistas
modernos, que devem, na interpretação e aplicação de normas e conceitos
jurídicos, assegurar a vida humana de forma integral e prioritária.28
27 FIUZA, César. Direito Civil. Curso completo. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p.172. 28 FARIAS, Cristiano Chaves de & ROSENVALD, Nelson. Direito Civil Teoria Geral. 6. ed. Lumenjuris. Rio de Janeiro, 2007, pp 98-99.
43
E continuam os mesmos autores:
Assim sendo, é possível vislumbrar o direito à vida digna (dignidade
da pessoa humana) a partir da intelecção do art. 1º, III, da Constituição da
República, como o pressuposto lógico da personalidade humana e,
conseqüentemente, dos próprios direitos da personalidade. Enfim, é
verdadeira cláusula geral de proteção da personalidade [...]29
Assente é, na moderna doutrina constitucional, que a Constituição é uma
norma jurídica e não uma norma qualquer, mas a primeira entre todas, lex superior,
que, em virtude de sua supremacia, erige-se como parâmetro de validez das demais
normas jurídicas do sistema, inexistindo, portanto, como já asseverava Rui Barbosa,
cláusulas ociosas, com mero valor de conselhos, avisos ou lições.
Karl Larenz30, instado a pronunciar-se sobre o personalismo ético da pessoa
no Direito Privado, reconhece na dignidade pessoal a prerrogativa de todo ser
humano de ser respeitado como pessoa, de não ser prejudicado em sua existência e
de fruir de um âmbito existencial próprio.
A dignidade da pessoa humana garante a independência e autonomia do ser
humano, de forma a obstar toda coação externa ao desenvolvimento de sua
personalidade, bem como toda atuação que implique a sua degradação, bem como
a observância e proteção dos direitos inalienáveis do homem. A tutela constitucional
se volta em detrimento de violações não somente levadas a cabo pelo Estado, mas
também pelos particulares.
29 FARIAS, Cristiano Chaves de & ROSENVALD, Nelson. Direito Civil Teoria Geral, cit., p. 116. 30 LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Madri: Editoriales de Derecho Reunidas, 1978, p. 46.
44
A consagração da dignidade da pessoa humana, como visto, implica
considerar-se o homem, com exclusão dos demais seres, como o centro do universo
jurídico. Esse reconhecimento, que não se dirige a determinados indivíduos,
abrange todos os seres humanos e cada um destes individualmente considerados,
de sorte que a projeção dos efeitos irradiados pela ordem jurídica não há de se
manifestar, a princípio, de modo diverso frente a duas pessoas.
Outra vertente de relevo pela qual se espraia a dignidade da pessoa humana
está na premissa de não ser possível a redução do homem à condição de mero
objeto do Estado e de terceiros. Veda-se a coisificação da pessoa.
O princípio da dignidade da pessoa humana é, pois, cláusula geral de tutela e
promoção da pessoa humana, dele derivando-se direitos e (sub)princípios outros,
tais como, em particular, o direito à liberdade e à proteção à intimidade e à vida
privada.
Como lecionam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
A vida privada é o refúgio impenetrável pela coletividade, merecendo
proteção. Ou seja, é o direito de viver a sua própria vida em isolamento, não
sendo submetido à publicidade que não provocou, nem desejou. Consiste
no direito de obstar que a atividade de terceiro venha a conhecer, descobrir
ou divulgar as particularidades de uma pessoa.[...]
Estão contidos no direito à vida privada, o direito à intimidade e ao
segredo (sigilo), compondo diferentes aspectos de um mesmo bem jurídico
personalíssimo. É dizer: o direito à intimidade consiste um resguardar dos
sentidos alheios as informações que dizem respeito, apenas, ao titular, ao
passo que o direito ao segredo é fundado na não-divulgação de fatos da
vida de alguém.31
Na mesma linha, Adriano Stanley:
45
Cada um de nós tem necessidade de desfrutar seus momentos
íntimos. São os momentos necessários para recompor as forças,
desligando-nos das relações que nos envolvem no dia-a-dia. Para isso,
precisamos de privacidade. Uma conversa telefônica, uma carta, algum ato
que não gostaríamos que se tornasse público, também é privacidade.
Uma vez desrespeitados em nossa vontade, tornando-se públicos
fatos que só a nós dizem respeito, a tristeza, o dissabor que havemos de
experimentar, são, por si sós, passíveis de indenização.
A própria Constituição da República, em seu artigo 5º, incisos X e XII
garante tais direitos, sendo que, no inciso X, obriga expressamente a
reparação do dano nas modalidades material e moral.32
31 FARIAS, Cristiano Chaves de & ROSENVALD, Nelson. Direito Civil Teoria Geral, cit., p. 147. 32 STANLEY, Adriano. Tutelas de urgência na reparação do dano moral. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 74.
46
CAPÍTULO IV - A INCONSTITUCIONALIDADE DA CULPA NA
SEPARAÇÃO JUDICIAL
4.1. O descabimento da perquirição da culpa
A comprovação da culpa na separação é de difícil aferição, mesmo porque,
quase sempre, não é de um só dos cônjuges. O fato é que a culpa, na verdade, é
sintoma de uma relação já falida e não propriamente causa desse desenlace.
Segundo Rodrigo da Cunha Pereira, a investigação da culpa é penetrar numa
das questões mais difíceis do ser humano, é adentrar na permanente angústia
existencial e no sempre presente dilema entre o bem e o mal, desde o início dos
tempos. Em suas palavras:
Deus criou o mundo e logo colocou o dilema do bem e do mal, se se
pode ou não morder o fruto proibido e ao mesmo tempo desejado. Sendo o
desejo mais forte que a proibição, instalou-se o pecado original. A queda de
Adão tornou-o culpado por um crime, juntamente com Eva, fazendo todos
homens nascerem com a marca da culpa pelo seu delito, transformado em
pecado original.33
33 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A culpa no desenlace conjugal. Apud PETRY JR., Henry. A separação com causa culposa: uma leitura à luz da hermenêutica constitucional. Florianópolis: Conceito Editora, 2007, p. 116.
47
Assim, a busca de um culpado para o término do consórcio afetivo não pode
transformar-se numa vingança, numa crueldade, decorrente dos meios probatórios
existentes à disposição do cônjuge “inocente”, invadindo-se a intimidade do cônjuge
“culpado”, tais como: a) depoimento de parentes; b) esclarecimentos dos filhos do
casal; c) do depoimento do “cúmplice do cônjuge infrator”; d) dos testemunhos dos
empregados domésticos; e) de gravações diversas; f) da apresentação de cartas; g)
de fotografias; h) emails etc.
Todos esses meios de prova, bem como o fim a que se prestam, são
impertinentes, pois inconstitucional tal perquirição.
Inadmissível, pois, invadir-se a intimidade do outro, seja do cônjuge culpado,
seja de terceiro, seja dos próprios filhos do casal, com o escopo de reconstruir um
cenário violador para o fim de uma relação que iniciou e, enquanto perdurou, tinha
como fator preponderante o afeto.34
4.2. As conseqüências jurídicas advindas da comprovação da culpa
As possíveis conseqüências da comprovação da culpa, segundo o Código
Civil de 2002, são de três ordens, a saber: a) quanto aos alimentos (entre os
cônjuges ou ex-cônjuges), por força do art. 1.704, caput e parágrafo único, do
34 ZANELLATO, Ezequiel Paulo. O Afeto como fator preponderante para a manutenção da sociedade conjugal. In: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, n. 28, Ano VI, fev-mar/ 2005.
48
CCB/0235; b) quanto ao nome, em razão do art. 1.578, do mesmo diploma36; e c)
quando a eventual indenização por grave descumprimento do dever conjugal37.
Tem-se ainda, como conseqüência da culpa, o disposto no art.1.830 do
CCB/0238, entretanto, não se tem por escopo no presente trabalho analisar efeito
sucessório da culpa, porque, uma vez superada no direito de família, a culpa não
poderá ser invocada por ocasião da abertura da sucessão de qualquer dos
cônjuges.
Assim, a culpa atualmente não exerce qualquer influência em relação à
guarda dos filhos e visitas nem mesmo na questão patrimonial. A guarda e as visitas,
se for o caso, serão determinadas de acordo com o melhor interesse do menor, daí
decorrendo que, pela independência entre a culpa e as deliberações acerca dos
filhos, mesmo o cônjuge culpado poderá vir a ser o guardião. Já com relação ao
35 Art. 1.704. Se um dos cônjuges separados judicialmente vier a necessitar de alimentos, será o
outro obrigado a prestá-los mediante pensão a ser fixada pelo juiz, caso não tenha sido declarado culpado na ação de separação judicial.
Parágrafo único. Se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-los, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência.
36 Art. 1.578. O cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o direito de usar
o sobrenome do outro, desde que expressamente requerido pelo cônjuge inocente e se a alteração não acarretar:
I - evidente prejuízo para a sua identificação;
II - manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida;
III - dano grave reconhecido na decisão judicial.
37 SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Débito conjugal. Anais do IV congresso brasileiro de direito de família. P. 536-537.
38 Art. 1.830. Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente.
49
patrimônio, aplicam-se as regras pertinentes ao regime matrimonial de bens adotado
pelo casal.
Em relação aos alimentos, o cônjuge inocente poderá pleitear os chamados
alimentos civis (ou côngruos), que são aqueles que compreendem todas as
necessidades do alimentando.
Já o cônjuge culpado poderá vir a receber do cônjuge inocente tão somente
os alimentos naturais (ou necessários), e, mesmo assim, caso não tenha parentes
em condições de prestar a verba ou não tenha aptidão para o trabalho.
Entretanto, a discussão da culpa para fins de alimentos não se justifica, haja
vista que tal verba deve ser postulada com base no binômio necessidades (do
alimentando) / possibilidades (do alimentante).
Em relação ao nome, dispõe o art. 1.578, caput, dispõe que o cônjuge
culpado perderá o direito de usar o sobrenome adotado se o outro expressamente o
requerer, salvo na ocorrência das exceções previstas em seus incisos.
Porém, por integrar direito da personalidade, patrimônio pessoal do cônjuge
que o adotou, deve ser sua escolha a manutenção ou não do nome de família do
outro cônjuge, pois por ocasião do matrimônio, tal sobrenome integrou-se à sua
personalidade. Nas palavras de Henry Petry Júnior:
[...] eliminá-lo na separação ou no divórcio significaria dizer que o
nome não passou a ser do adotante propriamente, mas sim que apenas o
havia tomado emprestado pelo período do enlace.39
39 PETRY JR., Henry. A separação com causa culposa: uma leitura à luz da hermenêutica constitucional. Florianópolis: Conceito Editora, 2007, p. 126.
50
No tocante à eventual indenização por grave descumprimento do dever
conjugal, hoje se está abrindo um espaço para discutir a culpa não mais só em
função da separação em si, mas também para viabilizar uma indenização por dano
moral.
No Direito de Família, em vista dos princípios da secularização, da
dessacralização do casamento, da liberdade, da igualdade, da prevalência dos
interesses dos cônjuges e dos companheiros, da felicidade, da solidariedade, do
afeto, da cidadania e da dignidade da pessoa humana, não se pode falar em culpa
ou em responsabilidade civil40. A responsabilidade imposta no Direito de Família é
apenas o “direito de ser feliz e o dever de fazer o outro feliz”41. O amor é uma
estrada de mão dupla, na qual os cônjuges ou companheiros são responsáveis
pelos seus atos e suas escolhas42, pelo que não se pode discutir a culpa43. No
Direito de Família, não há responsabilidade civil44, e sim a responsabilidade pessoal,
40 FARIAS, Cristiano Chaves de. A proclamação da liberdade de permanecer casado. Porto Alegre: Ed. Síntese. In: Revista brasileira do Direito de Família nº 18, de junho e julho de 2003. p. 50, citando a ap. cível nº 70005834916, da 7ª CCv. do TJRS, 02.04.2003, relator: Des. José Carlos Teixeira Giorgis, nos termos: É remansoso o entendimento de que descabe a discussão da culpa para investigação do responsável pela erosão da sociedade conjugal. A vitimização de um dos cônjuges não produz qualquer seqüela prática, seja quanto à guarda dos filhos, partilha dos bens ou alimentos, apenas objetivando a satisfação pessoal, mesmo porque difícil definir o verdadeiro responsável pela deterioração da arquitetura matrimonial, não sendo razoável que o Estado invada a privacidade do casal para apontar aquele que, muitas vezes, nem é o autor da fragilização do afeto. A análise dos restos de um consórcio amoroso, pelo Judiciário, não deve levar à degradação pública de um dos parceiros, pois os fatos íntimos que caracterizam o casamento se abrigam na preservação da dignidade humana, princípio solar que sustenta o ordenamento nacional. 41 DIAS, Maria Berenice Dias. Amor proibido. Disponível em: www.mariaberenice.com.br, citando Saint Exupéry. 42 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Da União Estável. In: Direito de Família e o novo Código Civil. (coord.) Maria Berenice Dias e Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 223. 43 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ap. 70000922427, da 7ª CCv. Relatora: Desembargadora Maria Berenice Dias. 09.08.00. 44 “A responsabilidade civil traduz-se na Obrigação do agente do dano de repará-lo ou de indenizar os prejuízos causados à vítima”, conforme STANLEY, Adriano. Tutelas de urgência na reparação do dano moral, cit, p. 20.
51
em vista da liberdade de escolha do consorte, da situação em que o cônjuge ou
companheiro se encontra, ao optar pela dissolução da entidade familiar, e pela saída
desse conflito45, enfim, se é direito da pessoa humana constituir núcleo familiar,
também é direito seu não manter a entidade formada, sob pena de comprometer-lhe
a existência digna46.
Eventual lei de imposição de dano moral47 na dissolução da sociedade
conjugal ou união estável seria inconstitucional, por duas razões: a primeira, as leis
não têm o objetivo de abolir, e sim de preservar e ampliar a liberdade48, sob pena de
incidir em retrocesso social, o que é inadmissível, segundo a doutrina49 e a
45 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. “A Vitória da Ética Sobre a Moral”. In: Revista Jurídica. Afeto, a ética no Direito de Família, Belo Horizonte, nº 8, Ano IV, p. 8, mai./2002. 46 FARIAS, Cristiano Chaves de. A proclamação da liberdade de permanecer casado. Porto Alegre: Ed. Síntese. In: Revista brasileira do Direito de Família nº 18, de junho e julho de 2003. p. 69, em notável ensaio científico. 47 “Como se sabe, dano é prejuízo. Dano moral é pré-juízo. Sofre dano moral aquele que experimentou em sua pessoa, uma perda derivada de conduta praticada por outrem, formativa de um juízo afeito ao controle social, por despertar pré-conceitos acerca da vítima” segundo STANLEY, Adriano. Tutelas de urgência na reparação do dano moral, cit., p. 24. 48 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Traduzido por Jacy Monteiro. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p.122, apud PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei, uma abordagem a partir da leitura cruzada entre Direito e Psicanálise. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 268. 49 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. pp. 503-4, “a garantia constitucional de primeiro grau, dentro ou fora do art. 60, § 4º, “d”, protege o espírito da Constituição. Está fora do poder de emenda. Sobre ela não tem jurisdição o titular do poder constituinte constituído. Esse poder se insere unicamente na esfera jurídica de permissibilidade de emenda, estabelecida pela Constituição (...) As garantias constitucionais de segundo grau são, de conseguinte, aquelas que não conferem aos preceitos constitucionais uma proteção de eficácia idêntica àquelas de primeiro grau, porquanto os resguardam apenas contra o legislador ordinário, mas não prevalecem contra o legislador constituinte que exerce, nos limites da Constituição, o poder de emenda constitucional”. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. 2. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2000. p. 97, o Estado Social está assegurado pelo caráter intervencionista/regulador da Constituição, sendo “evidente que qualquer texto proveniente do constituinte originário não pode sofrer um retrocesso que lhe dê um alcance jurídico/social inferior ao que tinha originariamente, proporcionando um retorno ao estado pré-constituinte”. Nesse sentido: 01) MARTINS, Ives Gandra da Silva. O exame do DNA como meio de prova – aspectos constitucionais. In: Grandes Temas da atualidade: DNA como meio de prova da filiação. (coord.) Eduardo de Oliveira Leite. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2000. p. 128; 02) SILVEIRA, José Néri da. A reforma constitucional e o controle de sua constitucionalidade. Revista do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, nº 35, p. 15, 1995; 03) CARVALHO, Amilton Bueno; CARVALHO, Salo
52
jurisprudência50, e renunciar à liberdade é o mesmo que abdicar de um direito
próprio da humanidade51; a segunda, essa lei ofenderia os princípios constitucionais
da secularização, da prevalência dos interesses dos cônjuges e companheiros, da
cidadania, do afeto, da solidariedade, da liberdade e da dignidade da pessoa
humana, isso porque não se admite que uma regra, mesmo que em nível
constitucional, possa contrariar princípios constitucionais.
Destarte, o Estado de Direito laicizou, secularizou, enfim, extinguiu o instituto
da culpa, pelo que, em um Estado Constitucional, deve-se compreender que a
Constituição (ainda) constitui52, não se podendo admitir a discussão da culpa do
Direito Canônico no âmbito do Direito de Família.
Porém, isso não significa que o dano moral em hipótese alguma possa ser
aplicado no âmbito das relações matrimoniais, porquanto, se os consortes, na
constância do casamento ou da união estável, praticarem, entre si, ato ilícito, seja
civil, seja mesmo penal, esse dano deve ser indenizado, não porque o fato ocorreu
durante a entidade familiar, e sim devido ao ilícito perpetrado, o qual fará jus à
de. Aplicação da Pena e Garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 06; 04) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed. Coimbra – Portugal: Livraria Almedina, 1999. p. 326-7; 05) RUBIN, Daniel Sperb. “Direito privado e Constituição – contratos e direitos fundamentais. Revista do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, nº 40, p. 107, mai./2001; 06) PEIXOTO, Cid. Princípios elementares de Direito Público Constitucional. 2. ed. São Paulo: Companhia editora nacional, Biblioteca de estudos comerciais e econômicos, 1942. p. 09. Volume 22. 50 PORTUGAL. Tribunal Constitucional. Acórdão 39/84, 3º volume, de 11.04.84, processo nº 6/83. In: Diário da República, 1ª série, de 5 de Maio de 1984. 51 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Traduzido por Rolando Roque da Silva. São Paulo: Cultrux, 1936. p. 22, apud PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. A Lei, uma abordagem a partir da leitura cruzada entre Direito e Psicanálise. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p.277. 52 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica – uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2002.
53
respectiva reparação.53 Atente-se ao fato de que esta reparação será buscada não
na esfera do direito de família, mas sim no direito comum, na responsabilidade civil
aquiliana.
Assim, nas palavras de Adriano Stanley:
Os atos ilícitos têm dois elementos constitutivos:
1- uma ação ou omissão;
2- violação de direito ou ocorrência de prejuízo (dano).
O ato ilícito, seja por ação, seja por omissão, é de sua etiologia a
ocorrência de um prejuízo; de um dano. Não configura ilícito, se de uma
prática não resultar qualquer dano, material ou moral.54
E continua o autor:
Pode-se dizer que as obrigações têm, como fonte, a lei, e esta, em
alguns casos, poderá surgir apenas como fonte mediata, despontando como
causadores imediatos do vínculo a vontade humana ou o ato ilícito.
O ato danoso cria, para quem o sofreu, um crédito; e uma obrigação
(rectius, um débito) para aquele que o praticou. O fundamento de tal
situação não é outro senão a responsabilidade.55
[...] Aquele (seja pessoa física ou jurídica) que tem a sua honra
maculada por atitude de terceiro tem, indubitavelmente, direito de exigir
53 Art. 91, I, do Código Penal: São efeitos da condenação: I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime. Artigo 949 do CC de 2002: No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido. Art. 950: Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu. Art. 953: A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido. Art. 954: A indenização por ofensa à liberdade pessoal consistirá no pagamento das perdas e danos que sobrevierem ao ofendido, e se este não puder provar prejuízo, tem aplicação o disposto no parágrafo único do artigo antecedente. Parágrafo único. Consideram-se ofensivos da liberdade pessoal: I - o cárcere privado; II - a prisão por queixa ou denúncia falsa e de má-fé; III - a prisão ilegal. Renovar, 1999. 54 STANLEY, Adriano. Tutelas de urgência na reparação do dano moral, cit, p. 23. 55 STANLEY, Adriano. Tutelas de urgência na reparação do dano moral, cit, p. 53.
54
desse terceiro a reparação dos danos que sofrer, a começar dos
decorrentes da má fama.56
Outro ponto que causa perplexidade é que a averiguação de culpa, segundo o
Código Civil, só cabe no processo de separação, “sendo absolutamente despicienda
quando se trata de união estável. Nada mais é preciso além da identificação do
termo inicial e final do período de convívio para a declaração do desfazimento da
entidade familiar extramatrimonial”.57
Por mais dolorido que seja o desfazimento do amor, que se sonhava eterno, o
fato é que ninguém pode ser condenado por deixar de amar. Descabida a mantença
do “instituto da culpa para se chancelar a desconstituição do casamento, devendo
ser respeitada a vontade de cada um dos cônjuges. Injustificável causar prejuízos,
impor perdas ou proclamar culpados, pelo simples fato do fim do amor”.58
4.3. A culpa em contrariedade ao princípio da secularização.
A investigação da culpa na separação judicial é inconstitucional, por afrontar,
entre outros princípios constitucionais, o princípio da secularização, que se
manifesta no texto constitucional em inúmeros (sub)princípios: da inviolabilidade da
56 STANLEY, Adriano. Tutelas de urgência na reparação do dano moral, cit, p. 67. 57 DIAS, Maria Berenice. Culpado ou inocente?, cit. 58 DIAS, Maria Berenice. Culpado ou inocente?, cit.
55
intimidade e do respeito à vida privada (art. 5º, X), do resguardo da liberdade de
manifestação de pensamento (art. 5º, IV), da liberdade de consciência e crença
religiosa (art. 5º, VI), da liberdade de convicção filosófica ou política (art. 5º, VIII) e
da garantia da livre manifestação do pensar (art. 5º, IX).59 Ressaltam, Amilton Bueno
de Carvalho e Salo de Carvalho60, que a secularização (laicização) é a ruptura entre
a cultura eclesiástica e as doutrinas filosóficas, especialmente entre a moral do clero
e a forma de produção da ciência. “Por isso, o Estado não deve se imiscuir
coercitivamente na vida moral dos cidadãos e nem tampouco promover
coativamente sua moralidade, mas apenas tutelar sua segurança, impedindo que se
lesem uns aos outros”.61
O princípio da secularização, de acordo com Luigi Ferrajoli62, é a idéia de que
inexiste uma conexão entre o direito e a moral. O direito não tem a missão de
(re)produzir os elementos da moral ou de outro sistema metajurídico de valores
ético-políticos, mas, tão-somente, o de informar o seu produto de convenções legais
não predeterminado ontológico nem tampouco axiologicamente. Mas, por outro lado,
salienta o constitucionalista, se edificada a mesma idéia de forma contrária, denota a
autonomia da moral com relação ao direito positivo, isto é, “os preceitos e os juízos
morais, com base nesta concepção, não se fundamentam no direito nem em outros
sistemas de normas positivas – religiosas, sociais ou de qualquer outro modo
59 CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. pp. 01 e 09. 60 CARVALHO, Amilton Bueno de; CARVALHO, Salo de. Aplicação da Pena e Garantismo, cit. 61 WELTER, Belmiro Pedro. A secularização da culpa no Direito de Família, cit. 62 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. Traduzido por Perfecto Andrés Ibánez et al. 4.ed. Madrid: Editorial Trotta, 2000. p. 218. Tradução de Diritto e ragione - Teoria del garantismo penale.
56
objetivas -, senão somente na autonomia da consciência individual”. Essas são,
segundo o jurista, as duas teses que constituem uma aquisição básica da cultura
liberal. E refletem o processo de secularização, culminando no início da Idade
Moderna, tanto do direito como da moral, desvinculando-se ambos de tantas esferas
distintas e separadas de qualquer nexo com supostas ontologias dos valores.63
Com efeito, o princípio da secularização fez corte vertical entre a moral
eclesiástica e o Direito, pelo que, parafraseando o jurista italiano Luigi Ferrajoli, os
preceitos e os juízos morais não têm lastro no Direito, mas, tão-só, na liberdade da
consciência individual64. A moral, a contar da separação entre a Igreja e o Estado,
não é mais um mandato das alturas, não é mais sacra, e sim profana. Esse princípio
da liberdade da consciência individual traduz-se no princípio da liberdade de entrar e
sair do casamento e da união estável, representando o esteio, o pilar, a âncora da
democracia65, que não existe sem dignidade66. É dizer, o cônjuge e o convivente têm
a liberdade de entrar e de sair do casamento e da união estável quando melhor lhe
aprouver, sem que a sua conduta importe violação à moral do consorte. Perante as
leis da Igreja pode ser até imoral alguém sair, de uma hora para outra, do recanto
familiar. No entanto, se não abandonar a família material, intelectual e moralmente,
não estará cometendo qualquer conduta delituosa, pelo que descabe qualquer
63 Constituyem una adquisición básica de la cultura liberal. Y reflejan el proceso de secularización, culminado al inicio de la Edad Moderna, tanto del derecho como de la moral, desvinculándose ambos en tanto que esferas distintas y separadas de cualquer nexo com supuestas ontologías de los valores. 64 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal, cit. p. 218. 65 CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias: uma leitura do garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2001. p.174. 66 WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito: o Direito não estudado pela teoria jurídica moderna. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. p. 61. Volume III.
57
indenização ante a sua opção de separar-se, de libertar-se do jugo, ante a falência
do amor, da felicidade e do afeto, principais elementos da unidade familiar.
Com a laicização dos Estados e do Direito Estatal, o Direito Canônico tornou-
se laico (leigo), afastado do Direito Estatal, não podendo ser juridicizado, porque,
desde aquela época, compete ao Estado dizer o Direito, e não mais à Igreja. Dessa
forma, a culpa, por ser parte do Direito Canônico, Divino, deve ser secularizada,
laicizada, excluída do Direito Estatal.
É devido à longa, mas recente laicização do Direito e dos Estados (séculos
XIV a XX) que o jurista tem dificuldade em seccionar o Direito Canônico do Direito
Estatal. Ainda hoje o Direito Estatal sofre influência de ordem secular, canônica,
divina, como a inserção da culpa na separação judicial. E a indissolubilidade do
casamento faz com que o jurista defenda a discussão da culpa no Direito de Família,
como se o Direito eclesiástico, que prega a culpa no âmbito familiar, ainda tivesse
influência no Direito Positivo.
Nesse sentido, há um paradoxo, porque, de um lado, o legislador brasileiro
aceitou a laicização do Direito Estatal, ao introduzir o divórcio no País, em 1977,
após longos anos de discussão e resistência da Igreja, afastando o princípio da
indissolubilidade do casamento. Além disso, a culpa foi secularizada, laicizada, pelo
Direito do Estado, ao permitir, por exemplo, a guarda de filho pelo cônjuge
responsável pela dissolução da entidade familiar (artigo 1.584 do Código Civil).
Contudo, por outro lado, não é aceita a laicização, a abolição, a extinção da culpa na
dissolução das entidades familiares na fixação dos alimentos, na adoção do nome
de casado(a), na dissolução da sociedade conjugal e na perda dos bens e da
meação ao cônjuge enfermo, que não houver pedido a separação judicial.
58
Há mais: a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002 extinguiram
o princípio da sacralização do casamento, com a possibilidade de divórcio (artigo
226, parágrafo 6º, da Constituição Federal, e artigo 1.580, e parágrafo 2º, do Código
Civil), com o reconhecimento de outras formas de constituição de família, como a
união estável e a monoparentalidade (artigo 226, parágrafos 3º e 4º, da Constituição
Federal, e artigo 1.723 e 1.597, IV, do Código Civil), a igualdade entre os cônjuges
(artigo 226, parágrafo 5º, da Constituição Federal, e artigo 1.511 do Código Civil) e a
igualdade entre os filhos havidos ou não do casamento e da união estável (artigo
227, parágrafo 6º, da Constituição Federal, e artigo 1.596 do Código Civil). É dizer,
esse mesmo Estado, que é Democrático e de Direito, dessacralizou o casamento,
mas contraditoriamente não aceita a secularização da culpa em todas as áreas do
Direito de Família. O legislador não se dá conta de que, ao manter a culpa no âmbito
do Direito de Família, está, na verdade, aceitando, indevidamente, a imposição da
doutrina do Direito Eclesiástico.
E o jurista, por sua vez, não deve incidir no mesmo equívoco - interpretar o
Direito de Família com base no Direito da Igreja -, para que seja possível afastar a
culpa. Em decorrência, a pretensa indenização por dano moral, pela simples “culpa”
na separação, perderá o objeto, visto que pressupõe um culpado e um inocente na
dissolução das entidades familiares67.
67 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Ap. 14.156/98, da 14ª CCv., unânime. Relator: Des. Marlan de Moraes Marinho, em 13.05.99. In: Revista do Direito de Família nº02, jul./set./99, Porto Alegre: Editora Síntese, p.59.
59
4.4. A culpa em contrariedade ao princípio da dignidade da pessoa humana
e seus consectários, princípio da liberdade e da proteção à intimidade e à vida
privada
Na “separação-sanção”, o reconhecimento da culpa, entendida como a
ruptura intencional dos deveres do matrimônio (CCB, art. 1.566), foi residualmente
mantido na nova ordem jurídica civil, consoante a regra estatuída nos arts. 1.572,
1.573, 1.578 e 1.704, parágrafo único do CCB, e historicamente oscilou em
imposição de sanções de índole civil e penal ao cônjuge considerado culpado.
O ordenamento jurídico pátrio, embora tenha instituído a dissolução não
causal do casamento pela via do divórcio, condiciona a separação judicial à
demonstração, no processo, da culpa conjugal, especificando os motivos que
ensejam o pedido de separação judicial (CCB, art. 1.573).
Todavia, a opção do legislador brasileiro de impor aos cônjuges restrições à
vontade de romper o casamento, ao discutir na separação judicial a culpa, a saúde
mental e a falência da união esbarra na avançada rede de proteção da pessoa
humana albergada pela Constituição da República, e a um só passo subverte o
princípio de que “quem pode o mais, pode o menos”, na medida em que para
divórcio, que ao contrário da separação dissolve o próprio vínculo matrimonial, o
ordenamento exige um só requisito objetivo: o lapso temporal de 2 (dois) anos de
separação de fato, no divórcio direto, ou o lapso de 1 (um) ano do trânsito em
julgado da sentença de separação ou da medida cautelar de separação de corpos,
no divórcio conversão ou indireto.
60
Na contramão da contemporânea cultura da conjugalidade, que diz da
possibilidade de dissoluções unilaterais por incompatibilidade, fracasso no diálogo
ou quebra da afetividade, a insistência do legislador na análise na culpa mantém
viva a idéia de débito e crédito entre os cônjuges, que acompanha a evolução
histórica do casamento, com o agravante de que o débito transcende de uma
consciência moral para uma imposição da Justiça, a quem cabe aplicar o castigo
pela quebra do casamento, como leciona Carlos Pinto Corrêa.68
Assim, diante da afirmação de um elenco de valores humanitários de feição
constitucional com a elevação do ser humano ao ápice de todo o sistema jurídico,
entendida a família como o habitat natural ao desenvolvimento da personalidade e
afirmação da dignidade de seus componentes, não se afigura razoável a
permanência de uma providência judicial que mantém vinculados os cônjuges
quando não há mais afetividade, na mesma linha do enunciado n. 254 da III Jornada
de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da
Justiça Federal, sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado, do STJ.69
Calcada na dignidade da pessoa humana, cláusula geral de proteção dos
direitos da personalidade, a família passa a servir a uma só finalidade: a felicidade
de seus membros. A manifestação do desinteresse na continuidade
matrimonial expressa, assim, o direito constitucional de ser feliz. A proteção do
Estado à família de modelo constitucionalizado substitui a prevalência de interesses
patrimoniais pelos interesses comuns do grupo familiar em garantia da realização
68 CORRÊA, Carlos Pinto. Culpa, aspectos psicanalíticos, culturais & religiosos. São Paulo: Iluminuras, 1998. 69 254 – Formulado o pedido de separação judicial com fundamento na culpa (art. 1.572 e/ ou art. 1.573 e incisos), o juiz poderá decretar a separação do casal diante da constatação da insubsistência
61
íntima da pessoa humana. No modelo de família contemporâneo, o compromisso
com os vínculos afetivos surge como elemento essencial.
Ao lado da nova concepção de família, informada pelo afeto, constrói-se,
segundo Alexandre Rosa, sob a premissa de que ninguém é obrigado a viver com
quem não esteja feliz, o “paradigma do desamor.”70
O desamor representa uma quebra do dever de assistência imaterial ou
espiritual, implícito na regra do art. 1.566 do CCB, que abrange a prestação de
apoio, atenção, carinho e amor entre os consortes. Para Warat, “o desamor é uma
despedida de um vínculo ou de um modo de nos relacionarmos.”71 No mesmo
sentido, Rolf Madaleno, para quem a separação judicial “livra os cônjuges da
degradação de continuarem sendo infelizes”.72
Mesmo para aqueles que como Antônio César Peluso entendem que sob o
rótulo do desamor encontra-se inserida a idéia do repúdio73, argumentando com
Carbonnier que o casamento não é mera experiência, mas compromisso que serve
para estabelecer e reforçar relações intersubjetivas, e que, por isso, o Direito não
da comunhão plena de vida (art. 1.511) – que caracteriza hipótese de “outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum” – sem atribuir culpa a nenhum dos cônjuges. 70 ROSA, Alexandre. Amante virtual – (In) Conseqüências no Direito de Família e Penal, Florianópolis: Habitus, 2001, p.129. 71 WARAT, Luis Alberto. O Ofício do Mediador. Florianópolis: Habitus, 2001, p. 24. 72 MADALENO, Rolf. A infidelidade e o mito causal da separação. In Revista Brasileira de Direito de Família –RBDFAN, n°11, out/dez 2001. 73 Peluso rejeita a idéia de que o desamor deva constituir, de lege ferenda, causa de separação, ou de divórcio. Entende o desamor como o equivalente moderno do repudium do direito romano, ao reduzir o outro a objeto de ato de disposição jurídica, de uma “deliberação arbitrária”, envolta em uma “impermeabilidade ética”, expressa na circunstância de não ter razões compreensíveis ao outro. Afirma que “a situação típica deve reduzir-se, pois, (...) à situação de quem, não tendo razões legais, que são causas objetivas, no sentido de passíveis dalgum controle objetivo-normativo, diria ao juiz: "eu já não amo, ou não tolero o parceiro". Diz, curiosamente, que a demora na tramitação dos processos de separação e de divórcio serve à “reordenação psicológica dos conflitantes”, completando, “no diálogo formal do contraditório e com a voz alheia, o processo de transição,” alheio ao cenário da crise. O repúdio, segundo ele, ao negar ao parceiro oportunidade para o processo de transição, negaria, assim, a possibilidade de redefinir sua própria identidade. (PELUSO, Antônio César. O desamor como causa de separação e divórcio. In Seleções Jurídicas, ADV-COAD Março 1998, págs. 36/40).
62
pode condescender com o rompimento da relação amorosa, subjacente ao
casamento, sem razões objetivas, vez que a questão transcende a liberdade
individual, para alcançar valores como solidariedade e ética.
Quando a família falha na promoção da dignidade de seus componentes e no
desenvolvimento de suas potencialidades, desvanece o interesse normativo na
coesão dos parceiros, devendo as causas e os efeitos da dissolução abstrair a
indagação de culpa, só admissível dentro de uma concepção contratualista do
casamento.
Motivo intrínseco do descumprimento do dever de assistência imaterial, o
desamor está presente em todas as situações de abandono espiritual: descuido do
lar, falta de diálogo, atribuição contínua de defeitos ao outro cônjuge, intolerância de
pensamentos e idéias, desinteresse sexual, insuportabilidade da presença mútua.
Dele já cuidava Caio Mário da Silva Pereira:
O abandono ofensivo do dever matrimonial não é apenas o que se
caracteriza pelo afastamento material. Convivendo embora no mesmo
domicílio, constitui abandono sujeito à sanção legal o fato de um cônjuge ou
os filhos, deixando de ministrar o necessário ao sustento, como ainda
faltando ao dever de assistência moral à família. 74
É preciso, assim, reconhecer que a ausência de amor no casamento acarreta
sua dissolução. Daí o acerto da lição de Saulo Ramos, para quem “nos conflitos
psicológicos, nos desajustes, nos desníveis culturais, na incompatibilidade
sentimental ou matrimonial, ou sexual, ou em muitos casos, no simples desamor,
74 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. V. 12ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 162.
63
que nada tem de desonroso para nenhum dos cônjuges" se encontram os motivos
mais comuns de rompimento do casamento.75
A valorização do afeto nas relações familiares não pode cingir-se apenas ao
momento da formação da entidade familiar pelo matrimônio. Cessada a afetividade,
o direito de não permanecer casado exsurge como materialização da dignidade da
pessoa humana, e a dissolução do casamento consubstancia um direito exercitável
pela simples vontade do indivíduo. A propósito, a lição de Luís Edson Fachim, para
quem “a liberdade de casar convive com o espelho invertido da mesma liberdade, a
de não permanecer casado”.76
Diz-se, então, do direito de não manter o vínculo matrimonial constituído
como conseqüência natural da proteção da dignidade da pessoa humana. A
dissolução do consórcio conjugal possui natureza de direito potestativo extintivo,
indisponível e exclusivo do cônjuge, corolário da afirmação de sua dignidade, daí
descabida a análise da culpa,77 vez que a ruptura conjugal deriva tão somente da
vontade de exercitar o direito à dissolução.
Se a ausência de vontade de continuar compartilhando a vida em comum
(voluntas divortiandi) é a causa deflagradora da extinção do casamento, não há
como proceder à identificação objetiva do culpado pelo insucesso do casamento.
Nesse caminho, para Luís Edson Fachim “não tem sentido averiguar a culpa
com motivação de ordem íntima, psíquica, uma vez que a conduta de um dos
75 RAMOS, J. Saulo. Divórcio à brasileira, apud RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família Contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 301. 76 FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do Direito de Família, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.169. 77 A propósito, o direito alemão em substituição ao princípio da culpa acolhe o princípio da ruptura, e reconhece um direito material ao divórcio, tendo como única causa o fracasso da união conjugal. O princípio da ruptura é entendido com uma contraposição à culpa no processo de separação.
64
consortes, violando deveres conjugais é apenas um sintoma do fim”.78 Isso porque o
fracasso matrimonial não se dá de uma hora para outra, daí a afirmação, numa
abordagem psicológica, de que a culpa aparente de um dos cônjuges pode ser o
reflexo do comportamento do outro, resultado de um longo processo para o qual
ambos contribuíram.
Com efeito, o malogro do relacionamento resulta da soma de fatores que,
com o tempo, vão se sedimentando. Impõe-se, por conseguinte, perceber que não
há, seguramente, um único responsável pelo fracasso do amor. A ninguém pode ser
imputada a culpa por não mais gostar. Com a democratização da estrutura familiar e
a estatização do afeto, o Estado, por ocasião da dissolução de um matrimônio, só
deveria se ocupar com a proteção dos filhos menores e com a liquidação justa de
eventual patrimônio comum, de maneira a garantir a menor ingerência possível na
vida do casal. Nesse particular, Maria Berenice Dias sustenta ser descabida a
discussão da culpa “seja porque é difícil atribuir a um só cônjuge a responsabilidade
pelo fim do vínculo afetivo, seja porque é absolutamente indevida a intromissão na
intimidade da vida das pessoas.”79
Ademais, ainda que infringidos quaisquer dos deveres matrimoniais por um
dos cônjuges, a perquirição da culpa, após a promulgação da CF/88, atenta, a um
só tempo, contra a dignidade da pessoa humana, o direito à vida privada e à
intimidade, o direito à solidariedade social e à igualdade substancial. A sustentar a
inconstitucionalidade de normas infraconstitucionais em face da força normativa dos
princípios constitucionais, o ensinamento de Mônia Clarissa Henning Leal, verbis:
78 FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do Direito de Família, op.cit, p.179. 79 DIAS, Maria Berenice. Da separação e do divórcio, In DIAS, Maria Berenice & PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.), Direito de Família e o novo Código Civil, Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p.71.
65
(...) no contexto de um Estado Democrático de Direito (...), em que impera uma legalidade material, os princípios não servem como parâmetro normativo apenas por ocasião da ocorrência de lacunas, devendo servir para aferição da validade de toda e qualquer norma jurídica sempre e indistintamente, ocasionando a inconstitucionalidade de todos os dispositivos legais que lhes são contrários80.
Na medida em que o casamento representa o reconhecimento público da
condição recíproca de ser escolhido como companheiro e a satisfação íntima desse
reconhecimento, e a família, o espaço de realização pessoal e afetiva de seus
membros, com o refinamento da consciência normativa sobre a dignidade da pessoa
humana, resulta o entendimento de que os efeitos da separação independem de
juízo ético-jurídico de culpa. Daí a conclusão de Cristiano Chaves de Farias, para
quem:
Os atores processuais (juiz, promotor, defensores públicos e
advogados) não podem ser transformados em verdadeiros “investigadores
do desamor”, como se estivessem na frenética procura de um perigoso
criminoso que coloca em risco a incolumidade de toda a sociedade. Aliás,
vale lembrar uma passagem bíblica, para afastar a averiguação da culpa:
atire a primeira pedra quem não tiver pecado.81
O rompimento do vínculo, estabelecido para ser eterno, causa nítidas
dificuldades, pois abala a própria identidade da pessoa. A separação é de dolorosa
iniciativa, ainda que seja para pôr fim à infelicidade.
80 LEAL, Mônia Clarissa Henning Leal. A Constituição como princípio: os limites da jurisdição constitucional brasileira. Barueri, SP: Manole, 1a ed, 2003, p.92. 81 FARIAS, Cristiano Chaves de. Redesenhando os contornos da dissolução do casamento : casar e permanecer casado: eis a questão. In Revista jurídica, São Paulo, v.52, nº 318, p. 45-59, abr. de 2004.
66
A família do século XXI sofreu um processo de mudança, de redefinição, com
a quebra do tabu da virgindade, da restrição ao exercício da sexualidade e da
sacralização da maternidade. Com a evolução dos métodos contraceptivos, e das
lutas emancipatórias, a mulher se integrou ao mercado de trabalho, e passou a
cobrar do homem a necessidade de assumir responsabilidades dentro do lar. “Essa
mudança acabou por provocar o afastamento do parâmetro idealizado, ensejando
um desequilíbrio, terreno fértil ao surgimento de conflitos”.82
Necessidade econômica, culpa, compaixão, ódio ou preocupação com a prole
fazem, no entanto, com que permaneçam as pessoas muito tempo ainda enredadas
em um relacionamento já falido. Apesar das sensações de perda, tristeza e culpa,
que geram conflitos internos e conduzem a carências afetivas, o sentimento de
abandono é mais forte, levando à raiva e à depressão.
Um sempre culpa o outro e, muito raramente, culpa a si mesmo pelo
insucesso em preservar a integridade do casamento que um dia os dois juraram
manter na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença, amando e respeitando um
ao outro por todos os dias de suas vidas.
Ninguém quer assumir a responsabilidade pelo fracasso, pois o "bandido" da
história é quem pediu o divórcio; o "mocinho" é quem deseja continuar com a família.
Inquestionável que mudou o conceito de família e ilusória a idéia de
permanecer eterno o casamento e intacto o compromisso assumido. O divórcio é
causa e efeito dessas mudanças. Não há mais a crença na segurança dos
relacionamentos, pois se modificaram as relações entre homens e mulheres e entre
82 DIAS, Maria Berenice. Separação: culpa ou só desamor?, cit.
67
pais e filhos. A separação, apesar de ser um trauma familiar doloroso, tornou-se o
único remédio útil e necessário.
Fatores socioculturais e de ordem religiosa levam à necessidade de buscar a
identificação de um culpado para o fim de uma relação, o que evidencia, de forma
nítida, a tentativa de se manter a função institucional do casamento como meio de
preservar a família, tida como a célula mater da sociedade. Por tal, adotou a
legislação pátria o princípio da culpa como único fundamento para a dissolução
coacta do casamento, sendo que, em não havendo consenso, o cônjuge culpado
não pode pedir a separação. Na valoração da culpa se visualiza uma concepção
contratualista do casamento, em que o descumprimento das obrigações acarreta
imposição de sanções. Inflige-se uma punição, um castigo, enfim, a aplicação de
uma penalidade a quem deu causa à dissolução da sociedade conjugal.
A necessidade da identificação da culpa de um dos pais, por meio de um
processo que desnuda a intimidade da vida em comum, por certo produz traumas às
vezes irreversíveis. Assim, a tentativa legal de mantença do casamento acaba se
revelando contrária às próprias pessoas nele envolvidas, a quem se pretende
proteger.
Certo é que hoje vive-se em um novo mundo, que não mais comporta uma
visão idealizada da família, concedendo, a sociedade, abertamente, o direito de
homens e mulheres serem felizes, independente dos vínculos afetivos que venham a
estabelecer.
Na realidade esse é um assunto que vem atormentando há bastante tempo
não só os juristas, não só as pessoas que se envolvem com Direito de Família, mas,
sobretudo, àqueles casais que buscam a Justiça para dissolver suas relações
68
afetivas. A grande verdade é que essas pessoas, ainda hoje, são constrangidas a
exporem suas vidas perante um processo, um tribunal, quando isso tudo não
contribui em nada para o desenrolar do casamento. Na verdade, se o ordenamento
pátrio, como a exemplo de outros países, adotasse a possibilidade de estabelecer
uma separação objetiva, sem discussão de causa, sem abertura de feridas,
realmente, ter-se-ia as relações mais conservadas, mais preservadas.
Inadequadamente, o Código Civil ainda discute a culpa na separação. Esse é um
verdadeiro retrocesso. Na Alemanha, desde 1950 que não se discute a culpa.
A imputação de culpa ao cônjuge que deu ensejo à separação para privá-lo
de direitos como receber alimentos ou obrigar a pagá-los e quanto ao uso do nome,
merece ser interpretada constitucionalmente a fim de resguardar o interesse dos
próprios cônjuges retirando a falta de critérios da Lei, para a melhor apreciação do
caso concreto pelo aplicador do Direito, como vêm fazendo os Tribunais:
Previdenciário. Pensão por morte. Cônjuge separado judicialmente sem
alimentos. Prova da necessidade. Súmulas 64 - TFR e 379 - STF. O
cônjuge separado judicialmente sem alimentos, uma vez comprovada a
necessidade, faz jus à pensão por morte do ex-marido. Recurso não
conhecido (STJ, REsp. 195919/SP, 5ª Turma, Ministro Gilson Dipp).
Separação judicial. O exame da culpa deve ser evitado sempre que
possível. Quando termina o amor, é dramático o exame da relação havida,
pois, em regra, cuida-se apenas da causa imediata da ruptura,
desconsiderando-se que o rompimento é resultado de uma sucessão de
acontecimentos e desencontros próprios do convívio diuturno, em meio
também às próprias dificuldades pessoais de cada um. Se o varão alega
abandono do lar pela mulher e esta disse que foi expulsa do lar, além de ser
ofendida pelo marido, descabe questionar a culpa, mormente porque
existem indícios de adultério pela mulher e também de que ela foi forçada a
69
sair do lar (TJ-RS, 7ª Câmara Cível, Relator Des. Sérgio Chaves, julgado
em 6/03/2002).
A dignidade é o princípio norte dos direitos fundamentais, devendo informar
todas as relações jurídicas, estando sob seu comando a legislação
infraconstitucional.
Na família, a tutela da dignidade da pessoa humana, em todo o alcance
dessa expressão, deve ser assegurada tanto no curso das relações familiares como
diante de seu rompimento, cabendo ao Direito oferecer instrumentos para impedir a
sua violação.
A consagração da igualdade entre os cônjuges é indispensável para que se
garanta o cumprimento do princípio fundamental da preservação da dignidade
humana. Embora as Constituições brasileiras sempre tenham reconhecido o
princípio de que a lei deve ser igual para todos,83 a legislação ordinária, por longos
anos, estabeleceu e manteve regras marcadas pela desigualdade entre os cônjuges.
Como acentua Luiz Edson Fachin, "O traço de exclusão da condição feminina
marcou o patriarcado e fundou um padrão familiar sob a lei da desigualdade".84
A Lei 4.121, de 27.08.1962, chamada "Estatuto da Mulher Casada", iniciou o
movimento legislativo de equiparação entre o homem e a mulher no casamento,
aliviando as desigualdades, sem, no entanto, tê-las suprimido completamente.
83 A Constituição de 1824, art. 179, XIII, estabelecia que "a lei será igual para todos, quer proteja e quer castigue..."; a Constituição de 1891, art. 72, § 2º, também dispôs que "Todos são iguais perante a lei ..."; a Constituição de 1934, art. 113, § 1º, estatuiu que "Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de sexo ..."; as Constituições de 1937 e 1946, arts. 122, § 1º e 141, § 1º, respectivamente, dispuseram que "Todos são iguais perante a lei ..."; a Constituição de 1967, art. 150, § 1º, ditou que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo...", princípio que foi confirmado pela Emenda nº 01, de 1969, art. 153, § 1º.
70
Ao marido continuou a caber a chefia da sociedade conjugal, embora
devesse exercê-la com a colaboração da mulher (Código Civil de 1916, art. 233,
caput), e, conseqüentemente, permaneceram na legislação ordinária os poderes do
marido na representação da família, na administração de bens, na fixação do
domicílio conjugal e seu dever de manter a família (Código Civil de 1916, art. 233, I a
IV).
Verifica-se, assim, a relevância da Constituição da República de 1988, a qual,
além dos princípios gerais de que "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza..." e que "homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações...", estatuídos no art. 5º, caput e inciso I, estabeleceu, expressamente, no
art. 226, § 5º que "Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são
exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. .
Nessa linha, da necessidade de igualdade entre os cônjuges, seja na
constituição, seja na constância, seja na desconstituição do vínculo conjugal, é de
induvidosa inconstitucionalidade autorizar a lei apenas ao cônjuge considerado não
“culpado” a possibilidade de pleitear a separação judicial com espeque na respectiva
“culpa” do seu consorte.
Assim, a igualdade que ambos têm no momento da constituição do vínculo
matrimonial, e mesmo a igualdade assegurada a ambos na constância da relação
conjugal, é desrespeitada pelo Código Civil no momento da desconstituição da
sociedade conjugal.
84 FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do Direito de Família: Curso de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 15.
71
CAPÍTULO V – PROPOSTAS DE ALTERAÇÃO DA LEGISLAÇÃO EM
VIGOR
Com o advento da Carta Magna Federal de 1988, sobretudo com fulcro no
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), desencadeador
do processo de despatrimonialização ou repersonalização do Direito Civil, e na
consagração da pluralidade de formas de família, verificável a partir do
reconhecimento da união estável (art. 226, § 3º) e da família monoparental (art. 226,
§ 4º), a entidade familiar passa a ser entendida como um meio de promoção da
felicidade de cada um dos seus membros, centro irradiador do afeto (affectio
familiae) - enfim, nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias,85
um verdadeiro LAR, Lugar de Afeto e Respeito. Foi sepultado, por consequência, o
modelo fechado, limitado e taxativo de família que permeava a legislação então
vigente, alicerçado na força do vínculo jurídico, já que apenas por meio do
casamento seria possível constituir tal ente.
Não obstante o assentamento deste conceito eudemonista de família, o
Código Civil de 2002, em diversos dispositivos, na contramão da história, insistiu em
disciplinar alguns institutos jurídicos de Direito de Família (e, por extensão, de Direito
das Sucessões) com regras que mais se coadunam com o modelo de família
anterior, o que provocou sérias críticas da doutrina, criando-se um clima de pressão
para que o legislador nacional procedesse à alteração de tais regras.
85 DIAS, Maria Berenice; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Direito de família e o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 21.
72
Nesse contexto, noticia-se no presente capítulo que recentemente foram
lançadas as primeiras sementes com o escopo de que brotem as tão esperadas
alterações legislativas.
Assim é que, em 20 de março de 2007, o Deputado baiano Sérgio Barradas
Carneiro (PT/BA), acatando as sugestões do Instituto Brasileiro de Direito de Família
(IBDFAM), aprovadas em assembléia em 2003, no IV Congresso Brasileiro de
Direito de Família, apresentou ao Congresso Nacional cinco relevantes Projetos de
Lei, de números 504/07, 505/07, 506/07, 507/07 e 508/07, que modificam diversos
dispositivos do Código Civil referentes a institutos do Direito de Família e também,
por extensão, do Direito das Sucessões, colocando fim à situação de beligerância
existente entre o conteúdo retrógrado da lei e o posicionamento de vanguarda da
doutrina e da jurisprudência.
Em complemento a este conjunto de Projetos de Lei, o próprio Deputado
Sérgio Carneiro, em 10 de abril de 2007, apresentou ao Congresso Nacional a
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de nº 33/07, que visa alterar o art. 226,
parágrafo 6º, do Texto Maior, para eliminar do ordenamento jurídico pátrio o instituto
da separação judicial.
Deve-se ressaltar que todas essas propostas são reprises de antigos Projetos
de Lei e de Proposta de Emenda à Constituição de autoria do Deputado carioca
Antônio Carlos Biscaia, que foram arquivados em 31 de janeiro de 2007, nos termos
do art. 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, tendo em vista que
houve o fim da legislatura para a qual ele foi eleito sem que tais propostas fossem
73
aprovadas e considerando-se ainda que o mesmo não foi reeleito para a legislatura
iniciada em 2007.
Por fim, noticie-se que o Deputado Sérgio Carneiro vem atualmente
discutindo com membros do IBDFAM a elaboração de Projeto de Lei cujo objetivo é
a criação de um Estatuto da Família e Sucessões.
Em face da incomensurável importância de todas essas propostas de reforma
dos Direitos de Família e das Sucessões, passa-se a analisar, de modo muito breve,
as que comportam temas discutidos na presente dissertação.
5.1. O Projeto de Lei nº 504/07
O Projeto de Lei nº 504/07 tem como maior mérito o fato de encerrar a
discussão de duas questões extremamente polêmicas.
A primeira dessas questões diz respeito aos alimentos atribuídos ao cônjuge
tido como culpado na separação judicial litigiosa. Pelo sistema atual estabelecido
pelos artigos 1.694, §2º, 1.702 e 1.704 do Código Civil, o cônjuge culpado somente
faz jus aos alimentos necessários (aqueles indispensáveis à subsistência), ficando
afastada a possibilidade de obter os chamados alimentos civis, os quais garantem a
manutenção do padrão de vida a que o separando/alimentando está habituado. É
bem verdade que este sistema é menos severo do que aquele previsto no art. 320
do Código Civil de 1916 e, posteriormente, no art. 19 da Lei do Divórcio, em que o
culpado pela separação perdia integralmente o direito aos alimentos (em qualquer
74
modalidade). Não obstante, certo é que, embora mitigada, a sanção de perda do
direito aos alimentos persiste no ordenamento jurídico brasileiro, sendo, por isso,
alvo de fortes críticas da doutrina civilista.
Em uma perspectiva histórico-jurídica, verifica-se que todas as sanções
decorrentes da culpa na separação judicial (perda do direito a alimentos, ao lado da
perda do nome de casado e da guarda judicial dos filhos menores) foram criadas
pelo Código Civil de 1916 como desestímulo à intenção dos cônjuges de extinguirem
a única forma de constituição da família, o casamento (justas nupcias). Destarte, em
face do moderno conceito de família, o qual engloba a pluralidade de formas de sua
constituição, não há mais motivo para manutenção destas sanções.
Nesse contexto, em muito boa hora o Projeto de Lei em comento propõe o
absoluto término da punição de perda dos alimentos civis, estabelecendo a regra
geral de que o separando fará jus à integralidade dos alimentos, sem limitações,
desde que demonstre o preenchimento do único e verdadeiro requisito próprio da
obrigação alimentar, o famigerado binômio necessidade de quem pede –
possibilidade de quem ganha.
A segunda questão polêmica encerrada pelo Projeto de Lei nº 504/07
relaciona-se à renúncia dos alimentos provenientes do casamento. O Código Civil de
2002, no seu artigo 1.707, estranhamente retomou o entendimento consagrado no
Código Civil de 1916 (art. 404: "Pode-se deixar de exercer, mas não se pode
renunciar o direito a alimentos) e confirmado pela Súmula nº 379 do STF ("No
acordo de desquite não se admite renúncia aos alimentos, que poderão ser
pleiteados ulteriormente, verificados os pressupostos legais"), já há muito tempo
superado pela jurisprudência, de que não é possível a renúncia aos alimentos,
75
independentemente da sua modalidade. Ora, segundo o correto posicionamento dos
Tribunais pátrios, em especial do STJ, os alimentos apenas são irrenunciáveis
quando decorrentes de relação de parentesco, visto que tal relação não pode ser
desconstituída, mas, quando decorrentes do casamento ou da união estável, que
não geram parentesco e, por isso mesmo, podem ser desconstituídos, permitem a
renúncia. Por conta disso, sempre foi intenso o clamor da comunidade jurídica por
uma alteração do aludido dispositivo legal.
De forma muito oportuna, o Projeto de Lei sugere a alteração do art. 1.707
para que nele conste a regra geral de que o credor pode renunciar ao direito a
alimentos, salvo quando justamente "a obrigação decorrer de relação de
parentesco".
Ainda a respeito deste Projeto, registre-se sua propriedade, ao sugerir o
aprimoraramento técnico da redação de alguns dispositivos do Código Civil. Assim,
reforçando o fim da dicotomia entre alimentos necessários (atribuídos ao cônjuge
culpado pela separação judicial) e civis, em face da revogação da norma que trata
dos alimentos necessários (§ 2º do art. 1.694), altera-se o caput do art. 1.694,
substituindo a expressão "alimentos de que necessitem para viver de modo
compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de
sua educação", caracterizadora dos alimentos civis, pela expressão genérica e
flexível "alimentos de que necessitem para viver com dignidade", a qual deixa ainda
mais clara a idéia de que o instituto dos alimentos deve sempre ser meio de
promoção da dignidade do seu titular (ou seja, sempre civis).
Além disso, revoga-se o desnecessário, discriminatório e descontextualizado
art. 1.705, que trata do direito a alimentos do filho havido fora do casamento, por
76
força da aplicação do princípio constitucional de tratamento igualitário de todas as
formas de filiação previsto no art. 227, § 6º, do Texto Maior. Trata-se de norma
proveniente da época do Código Civil de 1916, na qual apenas eram reconhecidos
direitos aos filhos havidos (ou legitimados) no casamento (afinal de contas a única
forma de constituição da família era através do matrimônio), norma esta que não faz
mais qualquer sentido nos dias de hoje, devendo ser portanto extirpada do Código
de 2002.
Por fim, há ainda de se mencionar a alteração sugerida no art. 1.709 do
Código, segundo o qual "O novo casamento do cônjuge devedor não extingue a
obrigação constante da sentença de divórcio", para que, ao invés do termo "novo
casamento do cônjuge devedor", nele passe a constar a expressão "nova união do
devedor", o que efetivará os princípios constitucionais do reconhecimento da união
estável como entidade familiar e da igualdade de todas as formas de família.
5.2. O Projeto de Lei nº 505/07
Na esteira da tendência mundial de pacificação de conflitos a partir de
equivalentes jurisdicionais, o Projeto de Lei nº 505/07 visa implementar a mediação
no âmbito do Direito de Família, acrescentando um parágrafo 3º ao art. 1.571 do
Código Civil, o qual determinará que "na separação e no divórcio deverá o juiz
incentivar a prática de mediação familiar".
77
O instituto da mediação funda-se em uma linguagem ternária, na qual
prevalece a conjunção aditiva e ao revés da conjunção alternativa ou (linguagem
binária). Em outras palavras, em contraposição ao clássico sistema de relação
jurídica processual, entendido como uma relação triangular hierárquica em que cada
uma das partes tem atuação estanque, reservando-se ao autor o papel de
encaminhar ao Poder Judiciário a sua pretensão, ao réu a função de resistir a esta
pretensão e ao magistrado a missão de apenas optar por uma dessas posições e
impor a ambos uma resposta jurisdicional que muitas vezes é provisória e
incompleta, pois, não sendo formulada a partir de um debate entre todos, pode até
encerrar a relação processual, mas freqüentemente não põe fim ao conflito material,
a mediação implica a sugestão de uma pluralidade de soluções para resolução do
caso concreto (todas variáveis de acordo com a condição financeira das partes e do
mediador), haja vista a existência de um constante diálogo entre os envolvidos.
De fato, na mediação há a prevalência da participação das partes na
discussão do caso prático, em uma clara aplicação da filosofia da discussão de
Habermas, segundo a qual tudo se constrói pela ética da discussão, pelo diálogo,
pela comunicação, pela humanidade, consagrando-se a dinâmica da
intersubjetividade e ampliando-se a humanização do acesso à justiça.
Em virtude deste método muito mais humanitário proposto pela mediação,
alcança-se uma maior aceitação da solução da lide encontrada pelas partes,
essencial para uma real pacificação do conflito, ainda mais em causas de família, em
que a razão geralmente cede espaço à emoção, ao desejo.86
86 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais Norteadores do Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
78
Ressalte-se, por fim, que a mediação não se confunde com outros
equivalentes jurisdicionais correlatos, quais sejam, a conciliação e a arbitragem, já
que naquela o acordo de resolução da lide é obtido exclusivamente pelas partes,
sem a participação de terceiros, e nesta a solução do conflito é promovida por um
terceiro eleito pelas partes, o árbitro, enquanto que na mediação tem-se a decisão
da causa a partir de um ajuste engendrado pelas partes, mas sob o incentivo, auxílio
e supervisão constantes de um terceiro, in casu o próprio magistrado, que deve,
portanto, ultrapassar os limites da sua cômoda condição de inércia e cumprir com
acurada sensibilidade um dever social da mais alta relevância.
5.3. O Projeto de Lei nº 507/07
Em termos de profundidade de mudanças, talvez o Projeto de Lei nº 507/07
seja o mais revolucionário de todos. Substituindo o princípio da culpa pelo princípio
da ruptura (ou do desamor), partindo da idéia de que ninguém deve ser punido
apenas pelo fim do amor, ainda mais quando se leva em conta que a família da
modernidade, entendida como comunidade de afeto e entreajuda, somente deve
persistir enquanto preencher esta sua missão, e considerando ainda que a busca
por um culpado pela separação judicial, além de violar o sagrado direito de
intimidade do casal, é injusta, pois, na verdade, não há apenas um culpado pelo
término da relação, o Projeto assegura a autonomia privada dos consortes,
estipulando um direito potestativo (extintivo) de separação judicial, o que implica a
79
completa falência da culpa em sede de separação (assim também na anulação de
casamento). Desse modo, a causa de pedir da ação de separação judicial será única
e exclusivamente o término da comunhão de vida.
Assim, o Projeto de Lei nº 507/07 altera e revoga todos os dispositivos do
Código Civil relacionados à culpa e seus efeitos na separação judicial. De início,
verifica-se que tal Projeto altera a redação do atual art. 1.564, que atribui ao cônjuge
tido como culpado pela anulação do casamento a sanção de perda das vantagens
havidas do outro cônjuge (inciso I) e do dever de cumprir as promessas que lhe fez
no pacto antenupcial (inciso II), substituindo a idéia de culpa pela de má fé, ficando o
novel dispositivo com a seguinte redação:
Art. 1.564. Quando o casamento for anulado por má-fé de um dos cônjuges,
este incorrerá:
I – na perda das vantagens havidas do outro cônjuge;
II – na obrigação de cumprir as promessas que lhe fez no pacto antenupcial.
Em seguida, de forma revolucionária, o Projeto determina a inteira eliminação
do ordenamento jurídico pátrio de todas as modalidades de separação judicial
litigiosa, a partir da alteração do caput do art. 1.572 (que trata da separação-sanção,
aquela em que há a discussão da culpa) e da revogação dos parágrafos 1º
(separação-falência), 2º e 3º (separação-remédio) deste mesmo dispositivo.
Por conta disso, o Projeto de Lei pretende implementar no Brasil a idéia de
que a única causa que legitima a separação judicial é o desamor, o término da
comunhão de vida proposta no art. 1.511 do Código Civil, consagrando-se, portanto,
o princípio da ruptura, em substituição ao princípio da culpa. Veja-se como ficará a
redação do art. 1.572, caso o Projeto de Lei seja aprovado:
80
Art. 1.572. Qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação judicial, quando cessar
a comunhão de vida.
Conseqüência natural da revogação da separação-sanção é o
desaparecimento do art. 1.573, que tipifica algumas hipóteses caracterizadoras da
impossibilidade da comunhão de vida, um dos requisitos indispensáveis à
formulação do pedido desta modalidade de separação judicial, nos termos do atual
art. 1.572, caput, do Código Civil, o que é feito pelo art. 3º do Projeto de Lei.
Observa-se que o escopo deste Projeto de Lei é tornar livre e ilimitado o
direito de pleitear o decreto separatório sempre que houver o término do amor, o que
se coaduna perfeitamente com o conceito moderno de família, pois esta entidade
somente deve ser mantida enquanto preencher a sua finalidade constitucional de
promover a dignidade de cada um dos seus membros. Nessa esteira, o art. 2º do
Projeto é corajoso ao excluir do caput do art. 1.574 do Código o lapso temporal de
um ano de casamento para a formulação do pedido de separação consensual.
Nessa linha de intelecção, o Projeto, em complemento ao Projeto de Lei nº
504/07, que afasta a punição de perda do direito a alimentos (civis) ao cônjuge
culpado, é extremamente oportuno ao extinguir a segunda sanção atualmente
atribuída ao tido como responsável pela separação judicial, a perda do direito ao uso
do nome de casado, alterando, no seu art. 2º, todo o teor do art. 1.578, passando a
valer a regra geral de que o cônjuge faz jus ao uso do nome de casado após a
separação judicial, regra esta que não admite qualquer tipo de exceção. Inverte-se,
portanto, a atual regra geral contida neste dispositivo, que impõe ao cônjuge culpado
a perda do sobrenome do outro cônjuge e comporta apenas as exceções altamente
subjetivas previstas nos incisos I a III (se a perda acarretar: I - evidente prejuízo para
81
sua manifestação; II – manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos
havidos da união dissolvida; III – dano grave reconhecido na decisão judicial).
Em outras palavras, passa-se então a valer a regra geral de que o cônjuge
que adotou o sobrenome do outro somente deixará de utilizá-lo se assim optar,
afinal de contas o nome é um dos atributos da personalidade e, como tal, não pode
nem deve ser restringido por qualquer elemento, menos ainda pelo falido elemento
"culpa".
Verifique-se como vigorará o art. 1.578 com sua nova redação:
Art. 1.578. O cônjuge que tiver adotado o sobrenome do outro poderá
mantê-lo, após a separação judicial ou o divórcio.
O Projeto revoga também o teor do art. 1.575, caput e parágrafo único. O
caput deste dispositivo, ao estatuir que "a sentença de separação judicial importa a
separação de corpos e a partilha de bens", dá a entender que a partilha de bens é
obrigatória para a prolação da sentença de separação, o que contraria entendimento
jurisprudencial há muito consolidado, entendimento este que encontra amparo na
legislação vigente, seja no Código de Processo Civil (art. 1.121, parágrafo único: "Se
os cônjuges não acordarem sobre a partilha dos bens, far-se-á esta, depois de
homologada a separação consensual, na forma estabelecida neste Livro, Título I,
Capítulo IX."), seja no próprio Código Civil (art. 1.581: "O divórcio pode ser
concedido sem que haja prévia partilha de bens." – se isso vale para o divórcio, com
maior razão deve valer para a separação judicial, até porque "quem pode o mais,
pode o menos"). O parágrafo único, por sua vez, pela obviedade do seu conteúdo
82
("A partilha de bens poderá ser feita mediante proposta dos cônjuges e homologada
pelo juiz ou por este decidida”.), igualmente merece ser revogado.
Por fim, em respeito à autonomia privada e ao princípio constitucional da
igualdade e atento ao fato que a senilidade, por si só, não é causa de incapacidade,
revoga-se a absurda imposição de regime de separação de bens no casamento de
pessoa maior de 60 anos de idade (art. 1.641, II).87
5.4. A Proposta de Emenda à Constituição nº 33/07
Os Projetos de Lei anteriormente comentados receberam complemento pelo
mesmo Deputado Sérgio Carneiro, em 10 de abril de 2007, quando ele apresentou
ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de nº 33/07,
que visa alterar o art. 226, parágrafo 6º, do Texto Maior, para eliminar do
ordenamento jurídico pátrio o instituto da separação judicial (em qualquer
modalidade).
Atualmente o art. 226, § 6°, da Constituição Federal apregoa que "o
casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por
mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por
mais de dois anos". Caso seja aprovada a PEC, tal dispositivo passará a contar com
87 Noticie-se, entretanto, que, a respeito desta matéria, tramita também no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 108/07, de autoria da Deputada Solange Amaral (PFL/RJ), que pretente aumentar de 60 (sessenta) para 70 (setenta) anos a idade em que passa a ser obrigatória a adoção do regime de separação de bens.
83
a seguinte redação: "Art. 226, § 6°. O casamento civil pode ser dissolvido pelo
divórcio consensual ou litigioso, na forma da lei".
A separação judicial (antigo desquite) está ligada historicamente ao embate
travado no Congresso Nacional entre divorcistas e antidivorcistas à época da
discussão da Lei nº 6.515/77 (Lei do Divórcio): muito embora estes últimos tenham
sido derrotados em tal embate (afinal, o divórcio passou a ser permitido no país),
continuaram exercendo fortes pressões para extirpar do ordenamento jurídico um
instituto considerado (por eles) pernicioso à formação da família (entenda-se: família
matrimonializada), a qual deveria ser sempre e em qualquer hipótese preservada;
para aliviar estas pressões, aqueles (os divorcistas) acabaram aceitando a
manutenção no ordenamento do instituto da separação como meio de frear e
desestimular as partes a procurarem o divórcio.
Passado o calor desta discussão88 e diante do reconhecimento constitucional
de novas entidades familiares, verifica-se que a manutenção da separação judicial,
no ordenamento brasileiro, perdeu completamente sua razão de ser. Clama-se então
por uma imediata reforma legislativa para que este instituto seja definitivamente
extirpado do cenário jurídico nacional.
Nesse contexto, muito oportuna a Proposta, ainda mais quando se leva em
conta que o divórcio vem cada vez mais sendo facilitado (princípio constitucional da
facilitação do divórcio), ex vi da recente Lei n° 11.441/07, a qual autoriza o fim do
vínculo matrimonial até mesmo em cartório.
88 A discussão encontra-se superada no plano jurídico. Contudo, setores conservadores da sociedade mundial, em pleno século XXI, ainda relutam em admitir o instituto do divórcio. Nesse sentido, registre-se que o Papa Bento XVI, em sua Sacramentum Caritatis, divulgada no início do ano 2007, afirmou categoricamente que o divórcio é "a praga do ambiente social contemporâneo".
84
Aliás, impende mencionar que, estatisticamente, os casais acabam optando
pelo uso da via menos traumática do divórcio (direto) pelo fato deste se preocupar
apenas com a causa objetiva da separação de fato do casal, deixando de lado a
apuração do odioso (e completamente subjetivo) elemento culpa pelo término do
relacionamento conjugal.
Acrescente-se ainda que o estabelecimento de dois processos judiciais
(separação judicial e divórcio por conversão) para que se atinja o fim do vínculo
matrimonial provoca no casal ônus financeiro desnecessário, isso sem falar do
aumento do desgaste psíquico peculiar de processos desta natureza.
5.5. O Estatuto da Família e das Sucessões
Como é cediço, o Código Civil de 1916 foi concebido para ser o instrumento
de centralização de todo o Direito Privado, em particular o Direito Civil, daí porque foi
conceituado por Gustavo Tepedino (2001) como a Constituição do Direito Privado.
Destarte, apesar do brilhantismo técnico do Código, as intensas e dinâmicas
relações sociais operadas ao longo do século XX e a constante intervenção do
Estado nas ordens econômica e social (Welfare State) provocaram paulatinamente a
quebra do monopólio pretendido por aquele, promovendo a criação de uma série de
leis, as quais, inicialmente, não contestaram a autoridade do Código, mas que, em
um momento posterior, passaram a conviver lado a lado com ele, caracterizando os
chamados microssistemas jurídicos, estatutos cuja nota marcante é a consagração
85
de regras próprias de determinados ramos jurídicos, tanto de direito material como
de direito processual. Como exemplos mais destacados desses microssistemas,
têm-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Código de Defesa do
Consumidor (CDC) e o Estatuto da Cidade.
Neste cenário, em 05 de outubro de 1988, a Constituição Federal assume o
papel reorganizador do então caótico Direito Civil, passando a ocupar a posição
máxima e centralizadora do sistema, sendo que, em posição hierarquicamente
inferior a ela, se encontram em pé de igualdade o Código Civil e os estatutos
jurídicos. Em clássica metáfora do Professor argentino Ricardo Luís Lorenzetti
(1998), em um sistema solar, a Carta Magna funcionaria como o sol, o Código Civil
como a Terra e os estatutos jurídicos como satélites ao redor desta.
É neste contexto que se insere a proposta de criação de um Estatuto da
Família e Sucessões, tão em voga atualmente na comunidade jurídica brasileira,
haja vista que o Deputado Sérgio Carneiro vem discutindo amplamente com
membros do IBDFAM a elaboração de Projeto de Lei para instituí-lo no país, à
semelhança de avançados Estatutos desta natureza existentes ao redor do mundo,
como os Estatutos da Catalunha, do Panamá e da Bolívia.
O Estatuto, por ser especializado, englobará com muito mais eficácia e
precisão toda a matéria referente aos Direitos da Família e das Sucessões, inclusive
aquela encontrada nos Projetos de Lei e na PEC analisados neste capítulo,
contendo também regras processuais peculiares destas searas jurídicas. O esboço
do Projeto de Lei já foi finalizado, encontrando-se em fase de debate no IBDFAM.
86
5.6. Considerações Finais
Conforme sucintamente visto neste capítulo, tais propostas de reforma
legislativa visam alterar o Código Civil, conferindo aos institutos destas áreas uma
nova roupagem, mais condizente com os princípios insculpidos na Constituição
Federal de 1988, os quais deram novos contornos à família.
Assim, pretende-se eliminar a influência da culpa na separação judicial na
concessão do direito a alimentos e possibilitar a renúncia a este mesmo direito
quando proveniente do casamento ou da união estável (Projeto de Lei nº 504/07);
inserir a mediação familiar como recomendação na regulação dos efeitos da
separação e do divórcio (Projeto de Lei nº 505/07); extirpar definitivamente do
ordenamento jurídico nacional os efeitos da culpa na separação, eliminando a
separação-sanção e, indo além, todas as demais modalidades de separação
litigiosa, a separação-falência e a separação-remédio (Projeto de Lei nº 507/07); e
decretar o fim do instituto da separação judicial (Proposta de Emenda à Constituição
nº 33/07).
87
CONCLUSÃO
Considerando-se o que foi analisado nesta obra, a questão dos paradigmas
em que se forjou o instituto da culpa no âmbito da separação judicial, e
particularmente no Código Civil de 2002, verifica-se a forte influência do Direito
Canônico.
A verdade é que a perquirição da culpa na esfera das relações afetivas e suas
conseqüências no desenlace do matrimônio é descabida e mesmo inconstitucional.
De fato, a Constituição da República, ao erigir a dignidade da pessoa humana
fundamento do Estado Brasileiro (art. 1°, III) e ao consagrar como fundamentais os
direitos à liberdade (art. 5°, caput), à intimidade e à vida privada (art. 5°, X), não
permite que se invada a intimidade do cônjuge, pelo simples fato de buscar um
pretexto para pedir a separação, como exige o art. 1.572 do Código Civil.
Além disso, essa atribuição da culpa pelo fim do casamento remonta ao
Direito Canônico, para o qual, o casamento é um sacramento, e só poderia ser
dissolvido em caso de adultério, abandono ou sevícias; ou seja, mediante a
comprovação de um culpado. Afrontando também, assim, o princípio constitucional
da secularização, isto é, do Estado laico (CF, art. 19, I).
De fato, exigir-se a culpa para obter a dissolução da sociedade conjugal não
revela qualquer justificativa.
Realmente, não faz sentido manter a culpa como fundamento da separação
judicial, dever-se-ia limitar o pleito na ruptura da convivência afetiva, ou seja, no
simples “desamor”.
88
Percebe-se que a doutrina moderna majoritária defende a abstração da culpa
na dissolução do matrimônio, sendo de bom alvitre as propostas de mudanças
legislativas aqui delineadas, para que o Direito Positivo pátrio não mais exija a
perquirição da culpa no fim das relações conjugais, por ser impertinente e mesmo
inconstitucional.
A culpa conjugal não é passível de identificação precisa, ou seja, não é
atingível pelo ser humano mensurá-la ou apontar seus contornos com exatidão. O
ato tido como culposo na verdade é apenas sintoma do fim do afeto, uma maneira
de exteriorizar o ocaso do amor. Impossível avaliar, então, o que é causa e o que é
efeito. Afinal, só os cônjuges conhecem a objetividade da relação, mas não
precisamente o que se passa no âmago de cada um, o que muitas vezes mesmo
seu portador desconhece.
O princípio da dignidade da pessoa humana não coaduna com a perquirição
da culpa no fim das relações conjugais, por afastar toda e qualquer ação que
implique humilhação ou constrangimento a qualquer ser humano, praticada pelo
Estado ou particulares. A investigação da culpa implica violação do direito
fundamental da preservação da intimidade e da vida privada. Ademais a exigência
de se imputar um culpado para o fim da relação conjugal ofende frontalmente o
direito à liberdade do cônjuge que não mais quer dar continuidade à relação falida.
89
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