A INFLUÊNCIA DO URBANO SOBRE O RURAL NO...

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A INFLUÊNCIA DO URBANO SOBRE O RURAL NO COMPORTAMENTO DA DEMANDA ENERGÉTICA EM SISTEMAS FOTOVOLTAICOS Federico Morante e Roberto Zilles Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energia, PIPGE Universidade de São Paulo - Instituto de Eletrotécnica e Energia/IEE Av. Prof. Luciano Gualberto, 1289 - CEP 05508-900 - São Paulo – SP e-mail: [email protected] e [email protected] Palavras chave: Sistemas Fotovoltaicos Domiciliares; Demanda Energética; Contadores de Ampère-hora. RESUMO No trabalho apresentamos algumas reflexões sobre a influência do estilo de vida urbano no consumo energético. A análise tem como base os dados obtidos no monitoramento de algumas instalações fotovoltaicas domiciliares por mais de 3 anos. Discute- se também diversas questões relacionadas com a demanda energética e a problemática de introdução da tecnologia fotovoltaica no meio rural. ABSTRACT This paper introduced some reflections about the urban lifestyle influence in the energy consumption standards. The analysis take into account data obtained from experimental survey carried out for more than 3 years in some Solar Home Systems. The paper include a short discussion related with the energy demand and the photovoltaic solar energy systems adoption problem in the rural world. 1. INTRODUÇÃO A discussão suscitada por definir os termos urbano e rural vêm de há muito tempo e, na atualidade, continua sendo difícil emitir uma definição que possa esclarecer com amplitude esta questão. Se realizarmos um exercício simples de leitura imediata em qualquer dicionário, poderemos observar que o termo rural se refere a algo que pertence ou é relativo ou próprio do campo. Assim fica a idéia de que o rural se relaciona com as atividades agrícolas. Da mesma maneira o termo ruralismo se refere ao predomínio do campo e da agricultura em relação à cidade e a industria. No mesmo sentido a palavra urbano tem a conotação de um adjetivo que se relaciona com todo o pertencente à cidade. De forma figurativa este termo é sinônimo de cortês, afável e civilizado e de maneira implícita - e por contraposição - o termo rural se relacionaria com o bruto, o bárbaro e o incivilizado. A primeira vista pareceria que estaríamos discutindo termos totalmente opostos, mas na verdade eles são complementarios. No entanto, podemos observar que a questão não é tão simples assim, sendo que existem algumas fronteiras que delimitam esta complementaridade. Desde o ponto de vista do fornecimento de energia elétrica, esta discussão também conduz a definir duas formas de distribuição: a eletrificação urbana e a eletrificação rural. No primeiro caso estamos falando do fornecimento de energia a áreas densamente ocupadas onde, num espaço relativamente pequeno, se concentra um número grande de usuários com consumos também relativamente altos. No segundo caso estamos falando de áreas ocupadas de maneira dispersa e com capacidade de consumo muito pequena em relação às áreas urbanas. Desde uma visão empresarial, no caso da eletrificação urbana estaríamos considerando áreas de ocupação humana onde os grandes investimentos são passíveis de serem recuperados com maior facilidade. Já na eletrificação rural isto ficaria muito complicado devido à baixa densidade de carga e do consumo. Tecnicamente, no primeiro caso, o fornecimento de eletricidade se faz utilizando a denominada rede elétrica convencional. No segundo caso a rede é estendida até onde possa ser possível e até onde a relação custo-benefício justifique sua

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  • A INFLUÊNCIA DO URBANO SOBRE O RURAL NOCOMPORTAMENTO DA DEMANDA ENERGÉTICA EM SISTEMAS

    FOTOVOLTAICOS

    Federico Morante e Roberto Zilles

    Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energia, PIPGEUniversidade de São Paulo - Instituto de Eletrotécnica e Energia/IEE

    Av. Prof. Luciano Gualberto, 1289 - CEP 05508-900 - São Paulo – SPe-mail: [email protected] e [email protected]

    Palavras chave: Sistemas Fotovoltaicos Domiciliares; Demanda Energética; Contadores de Ampère-hora.

    RESUMO

    No trabalho apresentamos algumas reflexõessobre a influência do estilo de vida urbano no consumoenergético. A análise tem como base os dados obtidosno monitoramento de algumas instalaçõesfotovoltaicas domiciliares por mais de 3 anos. Discute-se também diversas questões relacionadas com ademanda energética e a problemática de introdução datecnologia fotovoltaica no meio rural.

    ABSTRACT

    This paper introduced some reflections aboutthe urban lifestyle influence in the energy consumptionstandards. The analysis take into account data obtainedfrom experimental survey carried out for more than 3years in some Solar Home Systems. The paper includea short discussion related with the energy demand andthe photovoltaic solar energy systems adoptionproblem in the rural world.

    1. INTRODUÇÃO

    A discussão suscitada por definir os termosurbano e rural vêm de há muito tempo e, na atualidade,continua sendo difícil emitir uma definição que possaesclarecer com amplitude esta questão. Se realizarmosum exercício simples de leitura imediata em qualquerdicionário, poderemos observar que o termo rural serefere a algo que pertence ou é relativo ou próprio docampo. Assim fica a idéia de que o rural se relacionacom as atividades agrícolas. Da mesma maneira otermo ruralismo se refere ao predomínio do campo eda agricultura em relação à cidade e a industria.

    No mesmo sentido a palavra urbano tem aconotação de um adjetivo que se relaciona com todo opertencente à cidade. De forma figurativa este termo ésinônimo de cortês, afável e civilizado e de maneiraimplícita - e por contraposição - o termo rural serelacionaria com o bruto, o bárbaro e o incivilizado. Aprimeira vista pareceria que estaríamos discutindotermos totalmente opostos, mas na verdade eles sãocomplementarios. No entanto, podemos observar que aquestão não é tão simples assim, sendo que existemalgumas fronteiras que delimitam estacomplementaridade.

    Desde o ponto de vista do fornecimento deenergia elétrica, esta discussão também conduz adefinir duas formas de distribuição: a eletrificaçãourbana e a eletrificação rural. No primeiro casoestamos falando do fornecimento de energia a áreasdensamente ocupadas onde, num espaço relativamentepequeno, se concentra um número grande de usuárioscom consumos também relativamente altos. Nosegundo caso estamos falando de áreas ocupadas demaneira dispersa e com capacidade de consumo muitopequena em relação às áreas urbanas.

    Desde uma visão empresarial, no caso daeletrificação urbana estaríamos considerando áreas deocupação humana onde os grandes investimentos sãopassíveis de serem recuperados com maior facilidade.Já na eletrificação rural isto ficaria muito complicadodevido à baixa densidade de carga e do consumo.

    Tecnicamente, no primeiro caso, ofornecimento de eletricidade se faz utilizando adenominada rede elétrica convencional. No segundocaso a rede é estendida até onde possa ser possível eaté onde a relação custo-benefício justifique sua

  • instalação. Geralmente para atender estas áreas setenta reduzir os custos até o mínimo possível dandouma “visão social” à questão.

    De acordo a esta filosofia de distribuição, nasáreas rurais geralmente se vem utilizando odenominado sistema Monofilar com Retorno por Terra(MRT). No entanto, mesmo com esta concepção dedistribuição, as áreas localizadas além das fronteirasdeste sistema não poderão ser atendidas a plenitude.Elas ficarão esperando até que alcancem um nível quejustifique os grandes investimentos. Por outro lado,também devemos levar em conta os limites de carátergeográfico e ambiental que impossibilitam a extensãoda rede elétrica (ilhas, montanhas, áreas deconservação ambiental, etc.). Isto significa que emcurto prazo os cidadãos estabelecidos nessas áreasterão poucas chances de serem atendidos por estesistema.

    Uma outra característica importante quedevemos considerar é que, desde o ponto de vista daoferta e da demanda energética, os usuários da redeelétrica convencional teoricamente não têm nenhumalimitação em quanto a seu consumo, sempre quepossam pagá-lo. Eles poderão alimentar eletricamentequalquer tipo de equipamento doméstico e inclusiveindustrial. A única limitação, aparentemente, guardariarelação com o nível de renda dos usuários, isto é, comsua capacidade para poder adquirir estes equipamentose pagar o respectivo consumo.

    De todo o anterior se desprende que selevarmos em conta os limites inerentes à extensão darede elétrica convencional, fica clara a necessidade deprocurar outras soluções técnicas ao problema dageração de eletricidade para atender às populaçõesrurais. Uma dessas possíveis soluções é a geraçãoutilizando sistemas fotovoltaicos, no entanto, devidoao problema dos custos e ao armazenamento deenergia, os usuários desta tecnologia não podemutilizar esses sistemas de forma ilimitada como nocaso daqueles conectados à rede elétrica. Isto leva aque exista uma “demanda reprimida” cujo grau deintensidade depende de muitos fatores.

    Um dos fatores identificados através de nossotrabalho de campo é a influência do estilo de vidaurbano nos habitantes das áreas rurais. Um usuáriocom essas características exigirá mais de seu sistema,pois tentará ligar todos os tipos de aparelhos usuaisnas áreas urbanas. Este comportamento ficará refletidoem seu consumo energético e, portanto, nodesempenho do sistema. Neste sentido, diante dacomplexidade do tema, no artigo discutimos algunsaspectos da problemática relacionada com a

    eletrificação rural. O objetivo principal do trabalho éanalisar a influência do modo de vida urbano nosusuários da tecnologia fotovoltaica. Para o efeitoutilizaremos o caso de dois tipos de usuários dessatecnologia: um com alto grau de influência e outrocom pouca influência.

    2. AS FRONTEIRAS DO RURAL E DOURBANO

    Como já foi mencionado, existe uma grandedificuldade em definir os termos rural e urbano equalquer discussão a respeito, conduz a argumentaçõesde caráter semântico, sociológico, histórico e atéfilosófico. Assim, uma maneira de nos acercarmos aum maior esclarecimento do assunto é definir algumasfronteiras que visem delimitar ambos termos.

    Para a CEPAL “o rural se refere a formas deorganização e a estilos de vida sustentados eassociados a atividades que - pela natureza dosprocessos biológicos em que se baseiam, pela sualocalização ou pelas condições econômicas, sociais eas técnicas produtivas com que se realizam - impedema complementação espacial ou geram desvantagenspara ela e, por tal motivo, para a concentração numespaço das atividades e da população” (CEPAL,1979). Decerto, essas características estarão presentesnas atividades florestais, na pequena exploraçãomineira, na pesca artesanal, nas atividades agrícolas,na pecuária extensiva e em algumas atividades decaráter turístico, por exemplo.

    Adicionalmente, desde o ponto de vista dessainstituição e de acordo também a nossa visão, paraqualquer sociedade que tenha estas característicasresulta válido considerar alguns supostos que definirãoseu caráter rural:a) A sociedade rural é uma parte da sociedade

    global.b) A sociedade global não poderá ser compreendida

    sem levar em conta sua relação com a sociedaderural a qual é uma parte dela.

    c) A relação entre a sociedade rural e a sociedadeglobal somente pode definir-se no entorno destaúltima, ou seja, a sociedade internacional.

    d) Par explicar as vicissitudes de uma sociedaderural, em determinados casos certas sociedadesnão nacionais poderão ser tanto ou maisimportantes que a sociedade nacionalpropriamente dita (por exemplo, algumas regiõescontíguas às fronteiras nacionais).

    e) O postulado da homogeneidade da sociedade ruraldeve ser rejeitado. Longe de ser homogênea, asociedade rural é sumamente complexa.

  • f) O conceito de rural ultrapassa o puramenteagrícola.

    g) A complexidade tanto da sociedade rural como daurbana não impede a existência, a um nível maisprofundo, de um contínuo urbano-rural.

    h) As sociedades estão estruturadas de maneiradiferente e, por causa disso, tanto a análiseestrutural como histórica é iniludível.

    i) Supostos que levem a considerar a passividade dapopulação rural também devem ser rejeitados.

    j) Também deveremos ter presente que existe umavelha discussão a respeito das relações dedominação entre o urbano e o rural e de quaisseriam, em definitiva, as estruturas de poderdominantes em uma sociedade global. Muitosanalistas coincidem que na América Latina essarelação de dominação favorece à cidade eparticularmente às grandes cidades (CEPAL,1979)

    Como exemplo da grande complexidade eheterogeneidade do mundo rural devemos frisar aexistência, nesse meio, das denominadas populaçõestradicionais convivendo com as sociedadestipicamente agrícolas de pequeno e grande porte taiscomo aquelas dedicadas à agricultura familiar e aoagribussiness e até condomínios fechados, chácaras,clubes de campo, etc.

    Em adição a isso, principalmente nas áreasrurais dos países em desenvolvimento, se tem tambéma presença de populações indígenas, camponesas ouextrativistas articuladas com a sociedade urbano-industrial. Com relação a isso Diegues menciona que“existe um intenso debate quanto ao significado dostermos populações nativas, tribais, indígenas etradicionais. A confusão não é somente de conceitos,mas até de expressões nas varias línguas” (DIEGUES,1998: 80).

    Todas estas considerações nos levam ademarcar uma fronteira do mundo rural. Já o mundourbano guarda relação com o aparecimento dascidades, isto é, os grandes núcleos humanos que deramorigem às metrópoles.

    Historicamente as cidades existem desde osprimórdios da civilização. Inicialmente foram ospequenos agrupamentos rurais constituídos poralgumas famílias dedicadas às atividades simples desobrevivência como a pesca, a caça, a coleta, etc. Àmedida que a humanidade foi evoluindo foramaparecendo as pequenas aldeias com uma organizaçãosocial estruturada tendo como base às economiaslocais. Posteriormente a invenção da agriculturapossibilitou uma maior produção. A existência de

    excedentes liberou certas categorias de pessoas dasatividades de sobrevivência. Uma das conseqüênciasdisso foi o aumento da complexidade de organizaçãodas sociedades o que ocasionou o aparecimento deuma “força diretora centralizada” (CHILDE, 1966:147) propiciada também pela existência dos servos.

    Símbolos desta fase da evolução dahumanidade foram os grandes templos que deramorigem às Cidades-Estado. Os templos construídospelas antigas civilizações localizadas nos diversoscontinentes revelam a existência de comunidadeselevadas à dignidade de cidade. Estas comunidadesdispunham “de um excedente de riqueza real,acumulado nas mãos de um deus e administrado poruma corporação de sacerdotes. Significa uma forçaorganizada de trabalhadores, indústriasespecializadas e um sistema rudimentar de comércio etransporte” (CHILDE, 1966: 147). Tudo issoacontecendo aproximadamente 4000 anos A.C. “Apartir desse ponto, o desenvolvimento de umacivilização urbana pode ser acompanhadocontinuamente até o momento em que a luz plena dahistória escrita o ilumina. É uma narrativa deacumulação de riqueza, de aperfeiçoamento técnico,de crescente especialização e de expansão docomércio” (CHILDE, 1966: 148)

    Séculos depois, e principalmente comoconseqüência do surgimento da Revolução Industrial,a complexidade destas cidades foi aumentando. Adensidade demográfica foi cada vez maior o quepropiciou a criação de uma gigantesca redeadministrativa e o aparecimento de um estilo de vidapróprio das grandes urbes. Observando de maneiraretrospectiva, a Revolução Industrial trouxe profundasmudanças na estrutura da sociedade as quaispermanecem até agora. Com efeito, ao se referir àInglaterra Ashton (1971) menciona as seguintesmudanças:

    - o número de habitantes aumentou,- o desenvolvimento das novas povoações fez

    deslocar a área mais populosa do sul e leste para onorte e para o interior,

    - homens e mulheres nascidos e criados no campopassaram a viver apinhados,

    - a mão-de-obra tornou-se mais móvel,- exploraram-se novas fontes de matérias primas,- abriram-se novos mercados e criaram-se técnicas

    comerciais novas,- o volume e a mobilidade do capital aumentaram,- a circulação monetária organizou-se na base do

    estalão-ouro e nasceu o sistema bancário,- varreram-se velhos privilégios e monopólios,

  • - o Estado passou a desempenhar um papel menosativo na atividade econômica,

    - idéias de inovação e progresso minaram os juízosde valor tradicionais.

    Estas mudanças não aconteceram somente naInglaterra senão também em diversos outros países. Deacordo com Choay (1979) o aparecimento das cidadestrouxe uma ordem nova com certas características taiscomo:a) a racionalização das vias de comunicação com a

    abertura de grandes artérias e a criação deestações,

    b) a especialização bastante ativada dos setoresurbanos como a existência de quarteirões denegócios do novo centro, igrejas, bairrosresidenciais na periferia, etc.

    c) a criação de novos órgãos que por seu gigantismomudam o aspecto da cidade: grandes lojas,grandes hotéis, grandes cafés, prédios para alugar,etc.

    d) a suburbanização assume uma importânciacrescente: a industria implanta-se nos arrabaldes,as classes média e operária deslocam-se para ossubúrbios e a cidade deixa de ser uma entidadeespacial bem delimitada (CHOAY, 1979: 4)

    Em outras palavras, “as alterações não forammeramente industriais, mas também sociais eintelectuais” (ASHTON, 1947: 22). Foi assim quesurgiu um estilo de vida adaptado a esta nova realidadeprimando uma sociedade dita “de consumo” a qual emúltima instancia é uma sociedade tipicamentecapitalista. Este aspecto é fundamental para nossaanálise da influência deste estilo de vida na demandaenergética. Finalizando este parágrafo, caberia aquidelimitar que nosso estudo está sendo realizado emáreas rurais ocupadas por “populações tradicionais”.Isto significa que dentro da amplitude e complexidadedo mundo rural estaremos tratando somente desse tipode população.

    3. O RURAL NO CONTEXTO DOSSISTEMAS FOTOVOLTAICOS

    DOMICILIARES

    Dadas às características de muitas zonasrurais dos países em desenvolvimento nas quais ficadifícil estender a rede elétrica, a geração deeletricidade utilizando a tecnologia fotovoltaica temconstituído uma opção viável. Nessas áreas rurais, agrande maioria dos núcleos humanos onde essatecnologia está sendo inserida pertencem àsdenominadas “populações tradicionais”. No caso doBrasil, com esta denominação são conhecidas diversas

    comunidades de caboclos, indígenas, caiçaras,ribeirinhos, etc.

    Apesar da grande diversidade - tal comomenciona Diegues - todas estas sociedades mostramem vários graus certas características comuns taiscomo:a) ligação intensa com os territórios ancestrais;b) auto-identificação e identificação pelos outros

    como grupos culturais distintos;c) linguagem própria, muitas vezes não a nacional;d) presença de instituições sociais e políticas

    próprias e tradicionais;e) sistemas de produção principalmente voltados

    para a subsistência (DIEGUES, 1998: 81)

    Estas peculiaridades fazem com que aspessoas que integram este tipo de comunidades tenhamcertos comportamentos de caráter sociocultural que osdiferenciam dos habitantes das zonas urbanas einclusive de algumas áreas rurais. Isto porque asobrevivência desde épocas remotas em zonasgeográficas afastadas dos centros urbanos os conduziuà criação de instituições sociais próprias. Geralmenteestas pessoas são depositárias de uma bagagemcultural que os relaciona com o meio ambiente onde sedesenvolvem. Suas relações com a natureza e demodo geral com o universo os conduziram também àcriação de formas próprias de observar e explicar avida.

    No Brasil existe uma grande diversidade depopulações tradicionais adaptadas a seus múltiplospisos ecológicos. Todos estes povos ao longo dotempo desenvolveram técnicas de sobrevivência einstituições sociais que possibilitaram sua permanêncianesses lugares. Assim por exemplo ao se referir aoshabitantes da Amazônia, Ribeiro (1995) menciona oseguinte:

    “a cultura do amazônida, da várzea ou da terrafirme, reflete e espelha a cultura indígena: naarquitetura vegetal da casa-maloca, nos utensíliosde cozinhar e comer, no manejo dos recursosnaturais e nas técnicas agrícolas, no uso eprocessamento da mandioca, base de sua dietaalimentar, na culinária, na medicina preventiva ecurativa, no extrativismo florestal de gomas,resinas, óleos, madeiras, embiras, cipós eessências odoríficas, no manejo da fauna semdepredá-la, ensejando, pelo contrário, suamultiplicação pela interação roça-caça”(RIBEIRO, 1995: 237)

    Neste contexto, a inserção da tecnologiafotovoltaica é sumamente complexa devido a que pode

  • constituir um agente de mudança positiva ou negativa.Assim, todos os aspectos deverão ser considerados,pois se levarmos em conta que toda cultura édinâmica, “a introdução de uma inovação devecompreender que as necessidades estão condicionadaspela cultura e pelo imaginário de aspirações e sonhos,que se situam e se movem no plano da subjetividade-objetividade. Uma população não se define somentepelo que é, mas também pelo que deseja ser” (SERPA,2001).

    Significa que cada povo é depositário de umadeterminada cultura a qual, devido ao seu dinamismo,pode sofrer influências positivas ou negativas. Istotambém resulta válido para os habitantes das zonasurbanas os quais também possuem uma cultura urbanasurgida das suas relações com esse meio. Geralmenteesse modo de vida fica refletido no dia-a-dia daspessoas, em seus hábitos e em sua conduta.

    4. INFLUÊNCIA DO ESTILO DE VIDAURBANO NO CONSUMO DE ENERGIA

    O comportamento da demanda energética nomeio rural, especificamente em domicílioseletrificados utilizando a tecnologia fotovoltaica, éainda desconhecido. Este desconhecimento faz comque a variável consumo seja tratada como se fosse umaconstante o que sem dúvida facilita as etapas dodimensionamento, da aquisição e até a instalação dossistemas fotovoltaicos.

    No entanto, as constatações feitas nasdiversas instalações existentes nas áreas rurais dediferentes lugares do mundo, indicam que estecomportamento não é bem assim. Existem, inclusive,propostas de dimensionamento que de alguma formasugerem levar em conta estas particularidades as quaisse tornam relevantes num sistema de geraçãoautônoma como o caso dos sistemas fotovoltaicosdomiciliares.

    Dentro do espectro de variáveis envolvidas nocomportamento do consumo energético uma das maisimportantes é a influência do estilo de vida urbanosobre algum ou todos os moradores do domicilioeletrificado. O modo de vida urbano transportado aomeio rural através de diversas formas faz com que aspessoas anseiem dispor da maioria dos equipamentoselétricos usuais nas moradias citadinas. A forma deuso desses equipamentos também é influenciada eficará evidente em termos do gasto mensal de energia.Tudo isso ficará refletido no balanço entre a energiagerada e a energia armazenada, isto é, no tamanho dogerador e no tamanho do acumulador.

    No caso em discussão, a influência do estilode vida urbano na demanda energética foi constatadaatravés de uma pesquisa que tenta esclarecer asrelações do consumo com algumas variáveis de carátersociocultural. Esta pesquisa está sendo desenvolvidadesde 1998 com a utilização de contadores de Ampèr-hora (Ah) acoplados a alguns sistemas fotovoltaicosdomiciliares.

    Numa primeira etapa a pesquisa foidesenvolvida em algumas comunidades rurais do Valedo Ribeira no Litoral Sul do Estado de São Paulo.Posteriormente, a partir do ano 2000, a pesquisa foiampliada a outras regiões do Brasil e do Peru. Naatualidade ela está sendo desenvolvida, além do Valedo Ribeira, na comunidade de Pedra Branca localizadano município de Ouricuri (Pernambuco), nacomunidade de Vera Cruz do município de BenjaminConstant (Amazonas) e em quatro comunidadesquíchuas e aimaras localizadas no Lago Titicaca, emPuno, Peru.

    Nestas comunidades foi observado quealgumas famílias que por diversos motivos mantémlaços com as cidades têm maior consumo energético.Estes laços vão desde pessoas que desempenhamatividades laborais nas cidades, até aquelas quemantém contato permanente com pessoas do mundourbano, por exemplo, através do turismo. No outroextremo, nestas comunidades também existem famíliasque mantém pouquíssimo contato com o mundourbano e suas atividades de sobrevivência sãorealizadas no próprio local e de maneira aindatradicional.

    De forma mais aprofundada poderíamos dizerque as primeiras estão mais inseridas no mundocapitalista e as segundas, embora não escapem a estainfluência, conservam uma certa independência destesistema. Obviamente, as primeiras dispõem também deuma maior liquidez monetária ou são sujeitos decredito com o qual podem adquirir mais equipamentos.Além disso, seus gostos e forma de vida estão maisperto de um habitante da cidade. No segundo casoainda levam uma vida mais em contato com seu meioambiente e sua economia local depende mais dascondições internas que das externas. O resultado detudo isso ficará refletido no consumo energético e,portanto, no tamanho do sistema.

    5. ESTUDO DE CASO: duas famílias do Valedo Ribeira

    Para discutir a problemática da influência doestilo de vida urbano sobre o mundo rural tomaremoso caso de duas famílias, uma da comunidade de

  • Marujá e outra de Varadouro, ambas do município deCananéia no Estado de São Paulo. Apesar dessascomunidades compartilharem a mesma realidadegeográfica (o Complexo Estuarino-Lagunar de Iguape,Cananéia e Paranaguá) sua localização é determinanteem seu modo de vida. Tanto Marujá como Varadourotem um sistema de vida que influi até na construçãodas moradias. Adicionalmente, o grau de contato comas zonas urbanas das proximidades também é diferente(MORANTE & ZILLES, 2000).

    5.1. A família da comunidade de Marujá

    Esta família está constituída por um casal de27 anos, sem filhos. A atividade principal do chefe dafamília está diretamente relacionada com o turismoecológico. Além de prestar o serviço de transporte aosturistas e manter um restaurante, trabalha como guiaturístico já que conhece amplamente a região, oscostumes e as tradições locais. Também pratica apesca de subsistência e na temporada da tainha cuida eexplora um cerco para peixes. Por todas estasatividades consegue uma renda média mensal deaproximadamente R$ 500,00 que pode ser superiordependendo da época do ano e das condições sazonais.

    Sua moradia é um exemplo doaproveitamento dos materiais, dos hábitos e doscostumes caiçaras adaptados à realidade local (figura1). As paredes são de madeira, o chão é de cimento e oteto de palha da palmeira guaricana1 mas com forro demadeira. Conta com água potável e dispõe de banheirocom acesso através do dormitório. Os móveis, osutensílios domésticos e em geral a distribuição da casaseguem o modelo das moradias urbanas.

    Figura 1. Aspecto da moradia da família de Marujá.[FOTO: F. Morante]

    1 É uma planta da família das palmáceas (geonoma spixiana)também conhecida como guaricanga. Nas zonas rurais do Vale doRibeira as folhas desta planta são aproveitadas na cobertura depalhoças, ranchos e moradias.

    As relações desta família (e principalmentedo chefe da casa) com o mundo urbano provêm docontato devido ao turismo. Nos finais de semana, nasfestas ou nos feriados chegam à ilha muitos turistasprincipalmente das cidades do Estado de São Paulo.Além disso, também mantém contato com turistas deoutros países, com reportes dos meios de comunicaçãoda área ecológica, com fotógrafos, pesquisadores ediversas pessoas vindas do mundo urbano.

    O turismo também exige que ele realizefreqüentes viagens à cidade de Cananéia para adquirircombustível e mantimentos. Inclusive algumas vezesviaja à cidade de São Paulo para adquirirequipamentos ou peças não achadas na região.Contíguo a sua moradia também funciona umrestaurante de sua propriedade freqüentado pelosturistas. Este lugar constitui um ponto de encontroonde se ouve música ou se conversa.

    Embora o chefe da casa tente manter suascostumes tradicionais mediante a promoção das festas,das reuniões sociais ou das atividades comunitárias,seu estilo de vida está fortemente influenciado pelomodo de vida urbano. Neste caso os turistas são osagentes desta influência, pois eles transportam seumodo de vida a estas áreas, na realidade consideradascomo de lazer e de descanso.

    Com relação à energia, em março de 1999 amoradia foi eletrificada através de um projeto pilotodo Laboratório de Sistemas Fotovoltaicos do Institutode Eletrotécnica e Energia da Universidade de SãoPaulo (LSF-IEE/USP). Naquela data também foraminstalados 3 contadores de Ah. Um deles mede oconsumo em corrente contínua, um outro o consumoem corrente alternada – dispõe de um inversor CC/CAde 150 W - e o terceiro a irradiação por meio de umacélula calibrada. Na figura 2 se pode observar oaspecto destes instrumentos.

    Figura 2. Aspecto dos contadores de Ah instalados na moradia dafamília de Marujá. [FOTO: F. Morante]

  • 5.2. A família da comunidade de Varadouro

    Esta família está constituída por uma mulherde aproximadamente 77 anos a qual mora com duasfilhas de 42 e 37 anos respectivamente e uma neta de 6anos. A moradia segue o padrão de uma típica moradiacaiçara, tanto nos dormitórios construídos sobrepalafitas com teto de telhas de fibrocimento como nacozinha com chão de terra batida e teto de palha(figura 3). Adicionalmente, a família também dispõede um compartimento separado para preparar a farinhade mandioca.

    Figura 3. Aspecto da moradia da comunidade de Varadouro.[FOTO: F. Morante]

    Como a maioria dos moradores destacomunidade a família pratica uma economia de auto-suficiência plantando arroz, milho, mandioca e outrosprodutos. Eventualmente também pescam e caçam eaproveitam amplamente os recursos locais como asplantas medicinais, as frutas, as madeiras, os cipós,etc. Isto também é feito na construção das moradias eem toda a infra-estrutura comunitária (igreja, escola,etc.) onde a madeira é o principal material.

    A renda desta família provém de umaaposentadoria da dona de casa e também recebemmensalmente uma cesta básica. Seus complementosalimentares são adquiridos eventualmente em Ariri ealgumas vezes em Cananéia. Vale ressaltar que a donade casa é o tronco principal desta comunidade - ondede alguma forma todos os habitantes estão aparentadoscom ela, seja por serem filhos, genros, noras ou netos– e a casa com freqüência recebe muitos visitantes.

    Segundo o padrão local, a cozinha ficaseparada do resto da casa e o principal combustível é alenha. A família não utiliza o gás. Elas tambémpossuem uma máquina de costurar mecânica egostariam de ter um ferro de passar roupa a carvão.Ouvem rádio e mencionam que algumas vezesassistem televisão em Ariri e, portanto, gostariamdispor no futuro de sua própria televisão. Na tabela Ipodemos observar as características que diferenciamambas famílias.

    Tabela I. Características das famílias das comunidades de Marujá e Varadouro.

    Dados demográficosRenda(R$)

    Forma deobtençãoda renda

    Meios adi-cionais desubsistên-

    cia

    Idade Sexo Graude alfa-betiza-

    ção

    Graude

    contatourbano1

    Características damoradia

    Energéti-cos por

    ordem deimportân-

    cia 2

    Aspirações

    Família deMarujá

    500a

    600

    Turismoecológico.Pesca.

    Pesca desubsistência.

    2727

    MF

    Alfabet.Alfabet.

    ++++++++

    Paredes de madeira.Chão de cimento.Teto de palha comforro de madeira.Água encanada combanheiro nodormitório e pia nacozinha.

    GásÓleo dieselPilhasVelaslenha

    Liqüidificador,TV colorida,secador decabelo e outroseletrodomésti-cos. Preserva-ção da culturacaiçara.

    Família deVaradouro

    136 Pensão

    Cesta básica,pesca, caça,roça, criaçãode galinhas,extrativismo,preparaçãode farinha demandioca.

    7742376

    FFFF

    Semialf.Alfabet.Alfabet.---------

    ++++++++

    Paredes e chão demadeira em palafitas.Teto de telhas deamianto. Cozinhacom paredes de pau-a-pique e teto depalha. Rancho parapreparação da farinhade mandioca.

    LenhaPilhasQueroseneVelas

    Ferro de passara carvão. Tele-visão.

    (1) GRAU DE CONTATO URBANO +++++ Muitíssimo contato +++ Moderado contato + Quase nada de contato ++++ Muito contato ++ Pouco contato - Nada de contato (2) Combustíveis ou dispositivos energéticos para cocção, refrigeração, aquecimento ou para iluminar as áreas não eletrificadas com o sistema fotovoltaico (ranchos, pátios, trilhas etc.).

  • 6. O CONSUMO DE ENERGIA

    A demanda energética da família pertencenteà comunidade de Varadouro está sendo medida desdenovembro de 1998 e da família de Marujá desde abrilde 1999. Se considerarmos que a obtenção de dadoscontinua até o presente, podemos afirmar quedispomos de dados suficientes para poder comparar ocomportamento dessa demanda. Assim, na figura 4podemos observar esses consumos a partir do mês de

    abril de 1999 até o mês de março do ano 2002 no casoda família de Marujá, e de dezembro do 2001 para afamília de Varadouro. No sistema fotovoltaico dafamília de Marujá foram obtidos dados de consumoem corrente contínua (iluminação principalmente) eem corrente alternada (televisão, aparelho de som,secador de cabelo, ferramentas, etc.). Obviamente, nográfico, o consumo total desta família corresponde àsomatória desses consumos.

    Figura 4. Demanda energética em kWh/mês das famílias de Marujá e Varadouro.

    As características dos sistemas fotovoltaicosde ambas famílias estão na tabela II.

    Tabela II. Características dos sistemas fotovoltaicos das famílias deVaradouro e Marujá.

    Varadouro Marujá*Gerador (Wp) 35 96Bateria (Ah) 135 190

    Lâmpadas Fluorescentes(No × W)

    1 × 202 × 15

    2 × 201 × 151 × 9

    Lâmpadas Incandescentes(No × W)

    1 × 2 W 2 × 2

    Aparelho de som (W) ------------ 15Ventilador (W) ------------ 20

    Televisão colorida (W) 50Rádio-gravador (W) 10 ----------

    * Possui um inversor CC/CA de 150 W e diversos eletrodomésticoscomo aparelho de barbear, secador de cabelo, etc.

    De cara existem algumas diferenças de ordemtécnica que podem determinar o comportamento dademanda energética. Se considerarmos a relação entreo gerador, o acumulador e a irradiação da região emestudo, podemos fixar com uma margem de segurançaadequada – 11% de profundidade de descarga - que afamília de Varadouro poderia dispor de até 15 Ahdiários (5,4 kWh/mês) e a família de Marujá 21 Ah(7,5 kWh/mês). Partindo dai ambas famílias estariamsub-utilizando seu sistema e em maior medida afamília de Varadouro.

    Deixando o lado puramente técnico,observamos que o consumo da família de Marujá édiferente ao da família de Varadouro. Isto pode serobservado no formato das curvas de consumo deambas famílias. A curva de consumo da família deVaradouro segue um determinado padrão que fica emvolta de 1 kWh/mês. Já a família de Marujá mostragrandes variações que atingiram um máximo de 7,5

    MARUJÁ E VARADOURO: Consumos em kWh/mês (abril 1999 até março 2002)

    0,00

    1,00

    2,00

    3,00

    4,00

    5,00

    6,00

    7,00

    8,00

    abr/9

    9ma

    ijun ju

    lag

    o set out

    nov

    dez

    jan/00 fev ma

    rab

    rma

    ijun ju

    lag

    o set out

    nov

    dez

    jan/01 fev ma

    rab

    rma

    ijun ju

    lag

    o set out

    nov

    dez

    jan/02 fev ma

    r

    kWh/

    mês

    Contínua (Marujá)

    Alternada (Marujá)

    Consumo Total (Marujá)

    Varadouro

  • kWh/mês no mês de janeiro de 2000 e um mínimo de2,2 kWh/mês em maio de 2001. Para explicar estecomportamento devemos levar em conta uma série defatores que em diversos graus podem influenciá-lo. Deacordo aos resultados da nossa pesquisa, estes fatorespodem ser agrupados da seguinte maneira:

    a) Fatores de ordem geomorfológico, onde devemosconsiderar o tipo de relevo, a paisagem, o clima,os acidentes geográficos, etc. Tudo isso representao cenário onde se desenvolve o drama dasobrevivência humana. A localização geográficade qualquer núcleo humano, per si, pode ser umindicador do comportamento e anseios de seushabitantes.

    b) Fatores de ordem demográfica, tais como acomposição familiar, a idade e gênero daspessoas, o nível educacional, etc. Desde o pontode vista da demanda energética, este fatorcontribui em grande medida na sua ordem degrandeza.

    c) Fatores de ordem econômico e financeiro, onde sedeve levar em conta o nível de renda, o tipo deeconomia, a organização do fluxo de mercancias,a circulação da moeda, etc. Este fator podeexplicar em grande medida as relações do poderlocal e o funcionamento das instituições queregem o dia-a-dia da comunidade. Na demandaenergética este fator se manifesta principalmenteno poder aquisitivo das pessoas o qual permitiráou não a posse de equipamentos e acessórios.

    d) Fatores de ordem histórica e socioculturais, osquais se originam fundamentalmente a partir dasrelações entre o ser humano e o meio ambienteque o circunda. Estes fatores em ultima instanciarefletem sua adaptação a esse meio. Isto semanifestará, por exemplo, na interação daspessoas com seu meio ambiente, na organizaçãoda comunidade, na forma de construir asmoradias, nas ferramentas e materiais utilizados,no funcionamento das instituições sociais, nastradições, nos hábitos e nos costumes das pessoas,etc.

    e) Fatores de ordem psicológica, onde deveremosolhar a intimidade do ser humano, isto é, a suaespiritualidade. Aqui estamos entrando ao mundodo simbolismo, dos valores, da conduta, doaprendizado, das motivações ou dos anseios. Emnossa análise isto fica claramente manifestado naaceitação ou rejeição das inovações, neste caso, datecnologia fotovoltaica. Submergir-nos nesteaspecto implica também observar as influênciasexternas e o que isto implica na mudança cultural.Desde o ponto de vista da energia tudo isso ficararefletido em alguma medida na demandaenergética.

    f) Fatores de ordem técnica, onde entram as questõesrelacionadas com o tipo de tecnologia utilizada; odimensionamento dos sistemas; a escolha dosmateriais e sua adaptação às peculiaridades domeio ambiente; a qualidade dos equipamentos eacessórios, etc. Este fator em grande medida éexógeno pois depende mormente do emissor e nãodo receptor da tecnologia. Implicitamente, ademanda energética estará condicionada desde oinicio a este fator e, no caso da tecnologiafotovoltaica, se manifestará no sobre-dimensionamento ou sub-dimensionamento dossistemas e na relação entre o gerador e oacumulador.

    Em suma, a análise do comportamento dademanda energética é uma questão muito complexa.No caso específico deste artigo, estamos olhandosomente um desses aspectos. Assim, a influência doestilo de vida urbano nos habitantes rurais pode servisto a partir dos fatores de ordem psicológica queconduzem à mudança cultural. No entanto isto nãosignifica deixar de lado todos os outros aspectos.

    Com efeito, no gráfico de consumo podemosobservar que a curva de demanda da família deVaradouro segue um padrão que varia muito pouco.Este comportamento é coerente com o modo de vidadesta família rural pertencente a uma comunidadetradicional. Embora desejem dispor de televisão, porexemplo, elas não demonstram nenhuma ansiedade porpossuir diversos eletrodomésticos como sim acontececom a família de Marujá. O estilo de vida da famíliade varadouro é quase de auto-suficiência e não criaramgrandes dependências do mundo urbano. É claro queelas, e a comunidade como um todo, guardam certasexpectativas de melhorar suas condições de vida emquanto à saúde, educação, comunicação, etc. Noentanto, seu dia-a-dia se desenvolve em contato diretocom seu meio ambiente e o ritmo de suas atividades éregido por estas condições. Assim, os horários de ligare desligar as lâmpadas ou de ouvir o rádio seguem umpadrão, vamos dizer estável, o qual se manifesta nocomportamento da demanda energética.

    No caso da família de Marujá temos diversosestágios no uso da energia. No início houve certainibição no uso dos equipamentos e o inversor CC/CAquase não era utilizado, o consumo de energiabasicamente foi devido à iluminação. Esta etapacorresponde ao primeiro contato com a tecnologia.Aos poucos foi aumentando o consumo até chegar aseu ápice no mês de janeiro do 2000. Logo houve umaqueda, no entanto o uso da corrente alternada foiaumentado devido ao funcionamento de diversosaparelhos como secador de cabelo, máquina de

  • barbear, aparelho de som, ventilador, furadeira,liqüidificador, etc. A brusca queda no consumo deenergia verificada a partir do mês de março do ano2001 não foi devida à diminuição do uso destesaparelhos. Deveu-se principalmente à aquisição de umgerador Diesel pelo pai do moço e o conseqüenteestabelecimento de uma rede elétrica familiar. Ogerador é ligado a partir das 18 horas e funciona até as22 ou 23 horas, portanto nessas horas diminuiu oconsumo de energia proveniente do sistemafotovoltaico. Apesar disso, a partir do mês de maio doano 2001 vêm aumentando paulatinamente o uso doinversor CC/CA fundamentalmente pelo uso datelevisão e outros aparelhos que funcionam com acorrente alternada. Um fato importante é que oconsumo desta família aumenta nas épocas de grandefluxo de turistas.

    7. COMENTÁRIOS FINAIS

    Como foi mencionado, existem muitos fatoresque influem no comportamento da demandaenergética. No entanto, no caso específico da famíliada comunidade de Marujá, observamos que suaconduta energética se deve em grande medida àinfluência do estilo de vida urbano em seu dia-a-dia.De maneira mais profunda isto está inserido dentro doque os antropólogos denominam “mudança cultural”.

    Tentar avaliar se esta mudança é positiva ounegativa é ingressar no escabroso terreno dassuposições e da subjetividade. Dizer por exemplo queas populações tradicionais não deveriam desfrutar dascomodidades e benefícios que o mundo modernooferece é também negar seu reconhecimento comocidadãos. Seria achar que o mundo rural é um museupara ser visitado aos fins de semana pelos citadinosansiosos da tranqüilidade, do ar puro e das aventurasfantásticas em contato com a natureza.

    Por outro lado, para explicar ocomportamento da demanda energética devemos terem mente que isso implica considerar de maneiraglobal todos os fatores que podem influenciá-lo.Obviamente estes não seguem nenhuma leiproveniente das ciências exatas e seria muito arriscadotentar uma explicação utilizando somente asferramentas que esta área do conhecimento oferece.Podemos observar que o comportamento da demandaenergética é algo aleatório e até passível de serestudado através dos princípios da Teoria do Caos oudos Processos Estocásticos.

    No caso estudado, podemos concluir quebasta que um só dos integrantes de uma família estejainfluenciado por um modo distinto ao habitual para

    que este tente mudar o comportamento de toda afamília. Em outras palavras, estas pessoas atuam comoagentes da mudança cultural. A partir dos resultadospodemos afirmar também que o número de pessoasque integram uma família não é uma determinantefundamental no consumo de energia.

    Finalmente, tratar sobre influências oumudanças culturais nos leva a analisar também o tipode sociedade onde o ser humano se desenvolve. Nestecaso deveremos analisar a influência de uma sociedadecapitalista, dita de consumo, sobre as populaçõestradicionais muitas delas depositárias de uma outracultura, isto é, uma outra alternativa de vida.

    AGRADECIMENTOS

    Este trabalho foi possível graças ao apoio daFundação de Amparo à Pesquisa do Estado de SãoPaulo - FAPESP.

    REFERÊNCIAS

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    CEPAL (1979). Las Transformaciones Rurales enAmérica Latina: ¿Desarrollo social oMarginación?. Santiago de Chile: Cuadernos de laCEPAL, Servicios Gráficos CEPAL/ILPES.

    CHILDE, Gordon V. (1966). A Evolução Cultural doHomem. Rio de Janeiro: Biblioteca de CulturaHistórica, Zahar Editores.

    CHOAY, Françoise (1979). O Urbanismo: Utopias eRealidades - Uma Antologia. São Paulo: ColeçãoEstudos, Editora Perspectiva.

    DIEGUES, Antônio Carlos (1998). O Mito Modernoda Natureza Intocada. São Paulo: Editora Hucitec, 2a

    edição.

    MORANTE, Federico e ZILLES, Roberto (2000).Medidas de Consumo em Sistemas FotovoltaicosDomiciliares. Anais do 3o Encontro de Energia noMeio Rural, AGREENER 2000, Campinas 12 a 15 desetembro de 2000.

    RIBEIRO, Berta C. (1995). Os Índios das ÁguasPretas: Modo de Produção e EquipamentoProdutivo. São Paulo: Edusp – Companhia das Letras.

    SERPA NORONHA, Paulo (2001). EletrificaçãoFotovoltaica em Comunidades Caiçaras e seusImpactos Socioculturais. Tese de Doutorado.Programa Interunidades de Pós-Graduação em Energiada Universidade de São Paulo:http://www.iee.usp.br/biblioteca/producao/2001/teses/2001.htm