A informação na TV: como o Jornalismo Guiado por Dados...

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Curitiba - PR – 04 a 09/09/2017 1 A informação na TV: como o Jornalismo Guiado por Dados autentica o tom da notícia nos telejornais 1 Flávio PORCELLO 2 Fabiana Rossi da Rocha FREITAS 3 Francielly BRITES 4 Douglas Carvalho 5 Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS Resumo O presente artigo tem como objetivo analisar como ocorre o processo de tonalização do discurso a partir das técnicas do Jornalismo Guiado por Dados. Partindo da ideia de que o método de apuração modula os modos de dizer a notícia, propomos observar os textos enunciados pelos apresentadores do SPTV, telejornal local da TV Globo, em relação às reportagens que receberam o selo “Resultado” – uma iniciativa do jornalismo da emissora para a análise e cruzamento de informações públicas. Utilizando a metodologia proposta por Duarte (2004), defendemos que o tom de convicção do âncora ajuda a autenticar o trabalho de verificação. Palavras-chave Telejornalismo; jornalismo; dados; tom; autenticação; Introdução Tal como a música, cujas notas são pautadas em diferentes graus, são diversas as entonações da fala utilizadas pelos jornalistas para modular os sentidos de uma informação. Assim, ao defender a existência de uma combinação tonal autenticante baseada no método de apuração, partiremos do entendimento de Meditsch (2001) sobre 1 Trabalho apresentado no GP Telejornalismo, XVII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Jornalista diplomado, Doutor em Comunicação, Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e-mail: [email protected] 3 Jornalista diplomada, Mestranda em Comunicação no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e-mail: [email protected] 4 Jornalista diplomada, Mestranda em Comunicação no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e-mail: [email protected] 5 Jornalista diplomado, Mestrando em Comunicação no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e-mail: douglasgravataí@yahoo.com.br

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A informação na TV:

como o Jornalismo Guiado por Dados autentica o tom da notícia nos telejornais1

Flávio PORCELLO2

Fabiana Rossi da Rocha FREITAS3

Francielly BRITES4

Douglas Carvalho5

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS

Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar como ocorre o processo de tonalização do

discurso a partir das técnicas do Jornalismo Guiado por Dados. Partindo da ideia de que

o método de apuração modula os modos de dizer a notícia, propomos observar os textos

enunciados pelos apresentadores do SPTV, telejornal local da TV Globo, em relação às

reportagens que receberam o selo “Resultado” – uma iniciativa do jornalismo da emissora

para a análise e cruzamento de informações públicas. Utilizando a metodologia proposta

por Duarte (2004), defendemos que o tom de convicção do âncora ajuda a autenticar o

trabalho de verificação.

Palavras-chave

Telejornalismo; jornalismo; dados; tom; autenticação;

Introdução

Tal como a música, cujas notas são pautadas em diferentes graus, são diversas as

entonações da fala utilizadas pelos jornalistas para modular os sentidos de uma

informação. Assim, ao defender a existência de uma combinação tonal autenticante

baseada no método de apuração, partiremos do entendimento de Meditsch (2001) sobre

1 Trabalho apresentado no GP Telejornalismo, XVII Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento

componente do 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Jornalista diplomado, Doutor em Comunicação, Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e

Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e-mail: [email protected] 3 Jornalista diplomada, Mestranda em Comunicação no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação

da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e-mail: [email protected] 4 Jornalista diplomada, Mestranda em Comunicação no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação

da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e-mail: [email protected] 5 Jornalista diplomado, Mestrando em Comunicação no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação

da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e-mail: douglasgravataí@yahoo.com.br

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oralidade. Na sequência, entraremos no âmbito do telejornalismo através dos

pressupostos que guiam Duarte (2004) na reflexão sobre o processo de tonalização6 do

discurso na TV – cuja metodologia rege este artigo.

A seguir, nos inspiraremos pelo entendimento de Jost (2009) e Fachine (2008)

sobre a autenticação do real na TV aliada à presença cênica da transmissão direta -- bem

como pela visão de Ferraretto (2014) sobre o papel dos comunicadores perante a

realidade. Este referencial será essencial para perceber a entonação da fala dos

apresentadores ao se referirem aos resultados obtidos na apuração das reportagens. A

partir daí, descreveremos os conceitos do Jornalismo Guiado por Dados que nos guiam

neste trabalho.

Utilizaremos como corpus os textos enunciados pelos apresentadores do SPTV 1ª

e 2ª Edição7, telejornais locais da TV Globo, em referência a duas séries de reportagem

que receberam o selo “Resultado”8 – uma iniciativa do jornalismo da emissora na análise

e no cruzamento de informações públicas. As séries foram exibidas em abril de 2016 na

Grande São Paulo.

1. Da oralidade ao tom

Partindo da ideia de Gomis (1991) de que o jornalista age como um operador

linguístico quando fala ao microfone – este trabalho alia-se ao pensamento de Meditsch

(2010), que defende que a intervenção humana modifica o produto final durante o

processo de construção9. De acordo com o autor, os aspectos subjetivos estão presentes

em toda a produção da informação – que é moldada de forma coletiva e com as formas

de expressão específicas de cada meio.

No caso do rádio, segundo o pesquisador, as especificidades da linguagem oral

vão se formando a partir das rotinas, técnicas e aparatos eletrônicos. Logo, o som emitido

pelo aparelho é, na verdade, consequência de uma série de intermediações – sejam elas

6 Duarte (2004, pg. 122) cita Pires Júnior e José Homero S. ao dizer que o termo tonalização inspira-se na utilização

que a música faz do conceito, como “o processo de conferência de um tom novo a uma composição musical, fundado

na mudança de tônica”. Trata-se, portanto, de uma propriedade conferida a uma composição -- que define as alturas e

os acordes em que se movimenta. 7 O telejornal local da TV Globo é exibido de segunda a sábado na Grande São Paulo em duas edições. O SPTV 1ª

Edição vai ao ar ao meio dia e é apresentado por César Tralli e o SPTV 2ª Edição é exibido às 19h10, e é apresentado

por Carlos Tramontina e, eventualmente, por Isabella Camargo. O telejornal traz prestação de serviços e os fatos mais

importantes do dia para os paulistas. 8 A grafia do selo é “R=sultado”. 9 Meditsch (2010) faz essa reflexão ao avançar na definição da especificidade do conhecimento produzido pelo rádio

informativo, isto é, na descrição da maneira como reflete e ao mesmo tempo refrata a realidade social.

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eletromagnéticas ou da própria fala – moldada, produzida e pré-editada através de um

roteiro escrito.

Da mesma forma se dá o processo de construção do discurso verbal na televisão.

Assim como no rádio, o texto da TV geralmente é escrito antes de ser lido ou gravado –

principalmente para possibilitar a contagem de tempo. É justamente esta modulação do

discurso, com suas nuances de entonação, que reside o interesse desta análise: pelo fato

de serem, de alguma forma, planejadas. Um conceito de Meditsch (2010, p.141) que nos

ajuda a refletir sobre essa dimensão sonora é o de Oralidade Virtual, que se refere à

oralidade aparente, que só se realiza num processo de produção estruturado com base na

escrita ou em outras formas de registro. Portanto, com o suporte da escrita para estruturar

o discurso, além de dar forma ao pensamento e ordená-lo, “o jornalista ao microfone

estará participando de um processo de enunciação”.

Esse entendimento nos ajuda também a compreender o papel do âncora10 na

televisão. Duarte (2007, pg. 40) considera que, dentre as funções do apresentador está a

de atestar a veracidade e corroborar com as interpretações apresentadas, considerando que

“a marca temporal do presente em um telejornal só entra em cena no momento de

proferimento, isto é, de materialização de seu processo produtivo em texto, e sua exibição

para o telespectador”.

Considerando, dessa forma, o apresentador do telejornal como peça estratégica,

seguimos nosso percurso a partir do que Duarte entende por tonalização do discurso –

que se refere à conferência de um ponto de vista a partir do qual a narrativa quer ser

reconhecida.

A proposição de um tom orienta-se por um feixe de relações

representado pela tentativa de harmonização entre o tema da emissão,

o gênero / subgênero do programa, o público a que se destina e o tipo

de interação que pretende manter com ele. Sua escolha oscila entre

subjetividade e objetividade, próprias do enunciador, daí suas possíveis

ambiguidades, resultado de um vai-e-vem que implica sua realização.

Não é nunca neutra, procurando sempre fazer jus ao conjunto do real

que quer dar a conhecer a partir de um ponto de vista singular. Implica

movimentos de modulação e gradação: a modulação compreenderia à

passagem do tom principal aos a ele correlacionados; a gradação

corresponderia ao aumento ou diminuição de ênfase em determinado

tom. Os tons podem combinar-se entre si para dar corpo a uma

determinada emissão televisual. (DUARTE, 2007, pg. 45).

10Segundo Porcello e Ramos (2012, p.212), a “função de um âncora em um telejornal carrega consigo o peso da

responsabilidade de expressar a ideologia que a emissora defende. É o rosto, a voz e a fala do telejornal”. De acordo

com os autores, este sempre foi considerado um lugar de fala de quem detém o poder.

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De acordo com a autora (2007, pg. 46), o tom11 principal do telejornal é o de

seriedade por “a ele conferir efeitos de verdade, confiabilidade, credibilidade ao que está

sendo noticiado”. A este tom principal, agregam-se tons complementares12, que compõem

combinações tonais que dão identidade ao produto televisual. Duarte (2004, pg. 123)

defende que o tom deve respeitar às regras de tonalidade13, que se referem aos

encadeamentos possíveis entre o tom principal e os complementares. O conjunto confere

ao discurso, portanto, um modo de dizer “sobre o conhecer para fazer sentir e sobre o

sentir para fazer conhecer”.

A busca por este modo de dizer a notícia a partir de sentimentos autênticos nos

remete imediatamente à figura do comunicador – e sua relação com a autenticação da

realidade.

2. À guisa de uma combinação tonal autentificante

Para apontar os tons complementares que modulam a entonação da fala,

voltaremos a nos inspirar nos estudos sobre o rádio. Ao propor o papel do comunicador

como figura central da programação após o advento da televisão, Ferraretto (2014, p.60)

atribui um “caráter preponderantemente autentificante” ao comunicador – defendendo a

ideia do rádio como companheiro virtual do ouvinte14. Para reforçar seu ponto de vista, o

autor se baseia na ideia defendia por François Jost no que tange à forma como a televisão

atesta que um determinado acontecimento é real, ou seja, quando produtores e

telespectadores concordam que há veracidade no relato. Para o teórico francês, os seres

de carne e osso autenticam a informação, ainda que parcial, e o fazem como um exercício

de prova. Segundo Ferraretto, assim relata o Jost:

Eu chamo isto de modo autentificante, e não apenas informativo. Para

além das transmissões de notícias do mundo, de sua atualidade,

identifica todos os programas que remetem a um discurso de realidade

11 Duarte (2004, pg. 121) diz que o tom pode ser um atributo tanto da voz humana quanto de um de produto televisivo.

Também pode ser referir a sentimentos (amor/ódio). 12 Como exemplo de tons complementares, a autora cita (2007, p.46) o de formalidade, contração e profundidade. 13 Na descrição da metodologia da análise de tonalização, Duarte (2004, pg 124) diz que o tom pode dizer respeito à/o:

disposição, textura, atitude, composição, espessura, posição, intensidade, densidade, matiz, tratamento, volume, ritmo,

rigidez e andamento. Os tons podem ser enquadrados dentre tais categorias. 14 Para Ferraretto (2014), o comunicador de rádio representa uma forma de reação do meio à simulação de proximidade

conferida pela imagem aos conteúdos televisivos.

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e que nós interpretamos sobre o eixo verdadeiro-falso (JOST apud

FERRARETTO, 2014, pg. 64).

Dessa maneira, o papel do comunicador ganha relevância a partir de seu

desempenho ao vivo, atestando, para Ferraretto (2014, pg. 81) que “a simulação de

conversa estabelecida com o ouvinte chega a este último como um dado de realidade”.

Ao aproximar televisão e realidade, Jost15 (2009) defende que o processo

produtivo da TV cria promessas de realidade, que se definem pela construção de um

enunciador e por uma figura que lhe é associada, como, por exemplo, o repórter ou o

cinegrafista, cujo ponto de vista é adotado. Dentre essas promessas, que ajudam a

identificar em que visão de realidade um telejornal é fundado, o autor elenca quatro

abordagens: restituição, testemunho, invenção, reconstituição -- sendo que, para ele,

apenas essa última faz parte do universo das provas jornalísticas.

A primeira promessa, a da restituição, apoia-se no dispositivo técnico e tem a ver

com o que é visível. É uma promessa de autenticidade: um indício eletrônico, que detém

um laço existencial com a realidade. Como exemplo, ele cita as imagens de câmera de

vigilância. Já a segunda promessa é o testemunho – que coloca o jornalista em cena com

o argumento da presença, ou por meio da confiança que se credita àquele que viu.

Diferente da restituição, não se trata de um objeto, mas de um enunciador, um sujeito

humano. Na sequência, aparece a invenção, marcada pela ênfase literária.

Por fim, está a reconstituição. Figura-se como uma forma de mimicar a realidade.

Aqui, não se trata de mostrar – mas, sim, um recurso usado para explicar o encadeamento

dos fatos. É a lógica da montagem de momentos, com o uso de imagens de síntese (que

entendemos como as infografias, por exemplo). Assim, Jost (2009, p. 25) observa que

“esse olhar retrospectivo supõe um saber e mesmo, muitas vezes, uma onisciência. O

jornalista se constrói como um historiador que tem certezas”.

Somado a esses recursos, o pesquisador também confere um sentimento de

autenticidade especial a tudo que se refere às transmissões diretas. Para Fachine (2008),

a promessa de autenticidade da entrada “ao vivo” está atrelada ao fato de ser capaz de

mostrar “a realidade sem filtros” -- seja a transmissão direta feita na rua por um repórter

ou no estúdio, onde os apresentadores recebem convidados. Isso acontece, conforme a

15 Jost (2009), ao refletir sobre os gêneros televisivos, faz uma divisão em três mundos: o mundo real, o mundo fictício

e o mundo lúdico. Nos restriremos, neste trabalho, à relação do primeiro com a prática do telejornalismo – o mundo

real.

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autora, porque “a expectativa que se produz numa entrevista “ao vivo” depende,

sobretudo, da atuação dos apresentadores, repórteres e convidados num lugar de

encenação forjado pela própria transmissão direta dentro de um telejornal” (FACHINE,

2008, pg. 207). É o que a pesquisadora entende por presença cênica, reconhecíveis

quando um sujeito se exibe para outro num espaço e tempo comuns à exibição.

Esse raciocínio nos ajuda a observar de que forma o âncora de TV é capaz de

modular o tom do discurso a partir do conteúdo que apresenta -- e de que forma sua fala,

baseada na convicção da qualidade da verificação da notícia, contribui para sua

performance. Tal como um selo de autenticação. Um carimbo de qualidade do trabalho

jornalístico.

3. Os dados e a tonalização do discurso

A apuração de notícias através de métodos mais precisos foi proposta em 1973,

pelo repórter Philip Meyer (2002) no livro Precision Journalism. Na obra, o autor propõe

que técnicas usadas em pesquisas na área de ciências sociais, especialmente as

estatísticas, fossem incorporadas às rotinas jornalísticas na verificação de registros

públicos e na análise de dados por categorias, por exemplo. Este seria, portanto, um

método científico para a checagem de informações. Um jeito de trabalhar que, na lógica

de Meyer, possibilitaria não apenas uma forma mais rigorosa para averiguar os fatos,

como também para comunicar os assuntos ao público. Para o pesquisador, também é

preciso haver um esforço por parte do jornalista para traduzir a informação de um jeito

que o público entenda.

Para Träsel (2014), embora continue sendo praticado, o Jornalismo de Precisão

não perdurou como de referência entre os jornalistas nas redações -- e acabou sendo

substituído pelo conceito de Jornalismo Guiado por Dados (JGD), que engloba, numa

perspectiva mais contemporânea, a Reportagem Assistida por Computador (RAC)16,

assim como a criação e manutenção de bases de dados e o acesso a informações públicas

na internet17.

O JGD tem por objetivo a produção, tratamento e cruzamento de

grandes quantidades de dados, de modo a permitir maior eficiência na

16 Dentre os recursos possibilitados pela RAC em reportagens investigativas, Toledo (2011) elenca a busca avançada

na internet, os cálculos complexos usando planilhas eletrônicas, a construção de bancos de dados, o mapeamento de

informações através de georreferenciamento para criar mapas temáticos, pesquisa de opinião, entre outros.

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recuperação das informações, na apuração das reportagens a partir de

um conjunto de dados, na distribuição em diferentes plataformas

(computadores pessoais, smartphones, tablets) na geração de

visualizações e infografias. (TRÄSEL, 2014, p.108)

A diferença em relação ao jornalismo convencional está justamente na

combinação do tradicional “faro jornalístico” com a habilidade técnica para encontrar

informações – em geral, em meio a números, nomes e códigos – disponíveis em bases de

dados. De acordo com o Manual de Jornalismo de Dados18, tem a ver também com novas

possibilidades de obtenção de informação com o uso da tecnologia: desde o uso de

programas de computador para calcular e combinar dados, como também a utilização de

softwares para encontrar conexões entre milhares de documentos digitais.

Tais referências – que indicam a necessidade de competências técnicas específicas

por parte do jornalista -- nos ajudam a observar as modulações do tom dos apresentadores

a partir das menções aos métodos de apuração utilizados na reportagem. Por isso,

propomos como corpus deste artigo o projeto Resultado – que utiliza procedimentos do

Jornalismo Guiado por Dados – e que se apresenta ao público como uma iniciativa da TV

Globo no cruzamento e análise de informações públicas.

A análise foi realizada em duas séries de reportagem distribuídas entre as duas

edições do telejornal SPTV 1ª e 2ª Edição. Todas foram exibidas em abril de 2016 na

Grande São Paulo. Uma das séries tinha como tema os supersalários e contou com quatro

reportagens e uma nota coberta. A outra tinha como tema as mortes violentas, também

com quatro reportagens. Para fins de recorte, foram observadas apenas as participações

dos apresentadores nas cabeças, notas-pé, escaladas e passagens de bloco e ainda durante

as entrevistas ao fim de uma das séries. Também foram verificadas as perguntas feitas ao

vivo pelo apresentador às fontes, demarcando assim, o lugar de fala do âncora.

3.1. A análise do tom

As categorias tonais principais que se atribuem às reportagens exibidas com o selo

Resultado se dividem, a nosso ver, em dois pólos -- que dizem respeito à disposição de

18 O Data Journalism Handbook foi escrito em um esforço coletivo de profissionais em 2011, durante o Festival

Mozilla, em Londres. No Brasil, da mesma forma, o trabalho foi traduzido numa iniciativa conjunta entre o EJC

(European Journalism Centre ) e a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), com o apoio de 24

voluntários.

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suas articulações através da sobriedade e à atitude baseada na convicção. Enquanto a

sobriedade confere efeitos de sentido de austeridade e firmeza, o de convicção confere

ares de opinião com base na técnica de apuração.

Na figura abaixo, desenhada a exemplo da ilustração criada por Duarte (2004) na

descrição da metodologia de análise da tonalização, é possível visualizar que o texto se

movimenta através desses dois pólos, criando combinações tonais diversas a partir dos

tons complementares oriundos da categoria de matiz: frieza e calorosidade. Por frieza,

entende-se um modo de expressar-se com traços de rigidez, especialmente quando são

mencionados os resultados da apuração e as técnicas e rotinas jornalísticas que

possibilitaram sua obtenção. Por calorosidade, entende-se um modo de falar de forma

mais suave, geralmente em relação às histórias das pessoas por trás das estatísticas

mostradas nas reportagens ou na forma didática de explicar os dados.

proximidade

calorosidade frieza

sobriedade convicção

não frieza não calorosidade

distanciamento

O esquema mostra, ainda, os eixos que os reúnem -- e que, por vezes, também

modulam o discurso, dentro da categoria tonal de posição: o distanciamento e a

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proximidade – ora evocando sentidos de humanização, ora se valendo do distanciamento

para emitir comentários críticos.

Dentre as estratégias empregadas para autenticar o discurso, é possível apontar

para quatro dimensões verbais percebidas na performance dos apresentadores: marcas

sobre o trabalho jornalístico, que incluem a firmeza na fiscalização do poder público, a

firmeza no conhecimento das leis e na seleção do que é notícia; marcas relacionadas às

fontes de informação, que inclui a citação de autoridades, instituições ou a própria

personalização da estatística – essa última percebida com o tom de calorosidade – em

oposição à frieza notada no posicionamento crítico a partir dos dados coletados; as marcas

discursivas de opinião, que aparecem geralmente ao final da reportagem; e, por fim, as

marcas do método de apuração da notícia – que se baseia no esforço ou competência

para a produção da reportagem.

Considerando que o método de verificação é o foco desta análise, listaremos,

abaixo, as marcas discursivas que denotam o processo de tonalização mais próximo da

convicção do que o tradicional tom de sobriedade dos telejornais:

a) Convicção no trabalho com planilhas de dados19:

“Nosso cruzamento mostrou”; “Nós trouxemos à tona”; “Nossos produtores chegaram à

conclusão”; “Mas a gente descobriu pelas análises”; “Os dados revelam o perfil das

vítimas”; “O resultado da análise”; “Mas a Globo seguiu a metodologia publicada no site

da Secretaria de Segurança Pública”; “Nossas equipes concluem”; “Descobrimos que a

polícia foi responsável por 1 em cada 4 assassinatos”; “Ontem, a secretaria disse que

nosso cruzamento de dados não era correto, hoje recebemos outra nota do governo”. “A

secretaria esclarece que é correta a comparação entre os dados”. “São poucos, mas

acabam pesando demais”; “Nossos repórteres traçam um raio-x dos super salários no

estado”, “A gente mostra como é desigual a distribuição dos salários”.

b) Convicção no selo de exclusivo:

“A reportagem faz parte do projeto Resultado, uma iniciativa do nosso jornalismo de

análise e cruzamento de informações públicas”; Essa é uma reportagem com o selo

Resultado”; “Um levantamento exclusivo feito pelo SPTV”; “A reportagem é de (cita

nomes)”; “Uma série de reportagens que traz à tona”;

19 Trasel (2014) usa o termo “entrevistando planilhas” em sua tese de doutorado sobre as crenças de um

grupo de profissionais de Jornalismo Guiado por Dados. Geralmente o manejo dos dados é feito através

de sotfwares como o Excel.

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c) Convicção na apuração rigorosa:

“Mapeamos 1.335 mortes”; “Um ano de análise”; “Mês a mês”; “Todo o ano

de 2015”; “Treze milhões de contracheques”; “Quatro mil boletins de ocorrência”; “Um

ano de pesquisa”; “Nossa equipe passou um ano inteiro debruçada sobre”; “Analisamos

oitocentos e noventa e sete casos de homicídio”; “A nossa apuração foi feita com base

em ”;

d) Convicção na didática visual 20:

“Cada ponto desse mapa representa uma morte”; “O mapeamento mostra que a

realidade é pior na região do Butantã”; “Existem ilhas de violência na cidade”; “Mostra

alguns exemplos práticos”; “Na página de São Paulo do G1, você pode ver o mapa

completo com a localização”; “O mapa das mortes violentas”; “Aqui no telão, as áreas

mais claras são os locais com poucos crimes”; “Já as áreas que você vê em vermelho, são

as que tiveram mais assassinatos”; “Olha como tá grande a mancha de crimes”; “Bolinhas

vermelhas são os homicídios”; “Você pode clicar e ver quando e onde aconteceu o crime,

o sexo, a idade e a cor da vítima”; “Bolinha laranja são as vítimas de violência policial e

azul de latrocínio”.

Deste modo, a partir dos resultados acima descritos e da proposta de uma

combinação tonal autenticante a partir das ferramentas do Jornalismo Guiado por Dados,

é possível refletir sobre a linguagem adotada no jornalismo contemporâneo com base em

Piccinin (2016)), que vem observando uma nova performance do jornalista – que fala de

si, de seus sentimentos e dos bastidores da produção da matéria. De acordo com a autora,

tais atitudes, planejadas ou não, se constituem em novas formas de narrar a realidade –

marcada por regimes inaugurais de visibilidade. Piccinin (2016, pg 300) afirma, ainda,

que esse protagonismo acaba “jogando o foco sobre si mesmo e seus jornalistas e

conferindo um sentido de “humanidade” ao relato com o objetivo de estabelecer uma

relação de cumplicidade com as audiências.

Também percebemos no corpus uma configuração híbrida de gêneros

jornalísticos, tendo como base comum a convicção do método de verificação da notícia.

Isso nos leva a vislumbrar uma nova forma de narrar marcada pela mistura, num só

produto, entre os gêneros jornalísticos uma vez propostos por Marques de Melo (2010,

20 Vizeu (2010) denomina de “didática” a função pedagógica dos jornalistas, a partir do conceito de

“enunciador pedagógico” de Verón.

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pg. 25): “informativo (vigilância social), opinativo (fórum de ideias), interpretativo

(papel educativo) e diversional (entretenimento ou lazer).

Quem nos guia nesta aproximação teórica é Jost (2007) ao refletir sobre os gêneros

na TV, aproximando-a à ideia de identidade:

O gênero é uma interface entre produtores, difusores e telespectadores,

via mediadores que são os jornalistas. Se ele possui uma função

estratégica na comunicação televisual, isso se deve à virtude de um

nome, uma etiqueta, como os discursos produzidos no lançamento de

um novo programa. Ele é a promessa de uma relação com o mundo a

que se refere. (JOST, 2007, pg. 70, grifo nosso).

Sendo assim, o esforço para criar uma identidade – subindo o tom da convicção –

para consequentemente garantir aderência com o público a que se destina também tem a

ver com a legitimação do jornalismo e seu entendimento como produto. Não apenas para

efeitos de relevância, mas como diferencial em um mercado tão competitivo.

Considerações Finais

O cruzamento de referências bibliográficas neste artigo nos leva a concluir que as

práticas do Jornalismo Guiado por Dados no âmbito do telejornalismo denotam uma forte

influência na formação de sentidos -- principalmente no modo autenticante do tom da

emissão, que reforça seu suporte televisual.

No que tange à modulação da fala e a combinação tonal, entendemos que existe

uma oscilação entre os tons de sobriedade e convicção a partir da mistura de elementos

de ordens diversas – como a estética, a emoção, as subjetividades, a técnica de apuração

e as materialidades. Esta observação também nos permite apontar para a natureza híbrida

da emissão dentre os gêneros jornalísticos.

Ademais, compreende-se que o testemunho de verificação da notícia é utilizado

de forma estratégica, assim como o tratamento televisual dado à informação em tom

didático da fala -- certificando a compreensão da realidade por parte do enunciador.

Também defendemos que, ao analisar as estratégicas mais empregadas para

autenticar o discurso, a frieza e a calorosidade do tom ajudam a modular o discurso – por

vezes valendo-se da proximidade ou do distanciamento assim constituídos para enunciar

convicções.

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Por fim, é válido enaltecer a importância da figura do âncora nesse processo de

mediação através das ferramentas do Jornalismo Guiado por Dados. Ao trazer para si a

função de explicador21, o apresentador pode ser visto também como um tutor nesses

novos espaços interativos. Através de pequenas interações ou simulações de proximidade

ou distanciamento, o âncora personifica a intenção de precisão na TV através de ênfases

embasadas no trabalho de apuração. É preciso problematizar, no entanto, que tal estratégia

também pode afetar a pluralidade no tratamento de temas pelo jornalismo contemporâneo

– ampliando o caráter de certeza em relação às informações veiculadas.

Referências Bibliográficas

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21 O “jornalista explicador” aparece em (Kovach; Rosenstiel, 2001).

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