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ESTEVES CARLOS HILÁRIO A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS AUTÁRQUIAS EM ANGOLA: ANÁLISE DOS PRESSUPOSTOS CONSTITUCIONAIS

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ESTEVES CARLOS HILÁRIO

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS AUTÁRQUIAS EM

ANGOLA: ANÁLISE DOS PRESSUPOSTOS

CONSTITUCIONAIS

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ESTEVES CARLOS HILÁRIO

Professor de direito constitucional

Decano da Faculdade de Direito da Universidade Metodista de Angola

Presidente do Centro de Estudos Jurídicos - CEJ

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS AUTÁRQUIAS EM

ANGOLA: ANÁLISE DOS PRESSUPOSTOS

CONSTITUCIONAIS

Luanda

2014

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"Se o Senhor não guardar a cidade,

em vão vigia a sentinela”

Salmo 127:1

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Ao Rafael. Inesgotável

fonte de inspiração e

causa deste labor.

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ÍNDICE

. Introdução

. Princípio democrático

. Democracia participativa, autarquias e estado unitário

. Estado unitário e o Princípio da subsidiariedade

. Princípio do respeito pela identidade nacional e diversidade

cultural dos povos

. Autonomia local e o princípio da proibição do retrocesso

. Princípio da autonomia local e a tutela administrativa

. Autarquias e o princípio do gradualismo

. O senso populacional na constituição dos órgãos autárquicos

. Do órgão deliberativo autárquico

- Da elegibilidade e composição das casas deliberativas

. Formas de financiamento às autarquias

- Participação do Estado no financiamento das autarquias

. Eleições autárquicas e sistema de administração e controlo

eleitoral.

- Sistema de administração e controlo eleitoral vigente.

- Alteração ao Sistema de administração e controlo eleitoral

vigente.

- Tribunal eleitoral

. Referências bibliográficas

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ABREVIATURAS

Art. Artigo

AN. Assembleia Nacional

CNE. Comissão Nacional de Eleições

CRA. Constituição da República de Angola

OGE. Orçamento geral do Estado

Op cit. obra citada

TC. Tribunal Constitucional

TS. Tribunal Supremo

TSE. Tribunal Superior Eleitoral

TR. Tribunal da Relação

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1. INTRODUÇÃO

O Estado angolano que vem de um período de instabilidade

institucional, marcado desde a sua criação a 11 de Novembro de 1975,

inaugurou com o advento da estabilidade político-militar em 2002 um

período de progressiva normalidade institucional. A aprovação da

Constituição de 2010 passa então a ser um marco neste sentido, na

medida em que não apenas institui, como sistematiza os órgãos do

poder local e dentre os quais as autarquia. a despeito de haver já entre

nós previsões constitucionais anteriores sobre a temática das

autarquias, reconhecemos que é na Constituição de 2010 que se

inaugura a disciplina do direito constitucional autárquico em Angola.

O legislador constituinte dissociando as autarquias do Estado

central, conceituo-as como pessoas colectivas territoriais que

correspondem ao conjunto de residentes de uma determinada

circunscrição do território nacional com o fito de assegurarem a

prossecução dos interesses específicos resultantes da vizinhança.

Ademais, consagra o constituinte que tal desiderato será alcançado com

o concurso de órgãos próprios representativos das populações

respectivas. Ora, disso decorre a necessidade da criação dos aludidos

órgãos autárquicos obedecendo os primados da descentralização

político-administrativa, da autonomia local, sem contudo ignorar a

observância do sacrossanto princípio democrático.

Como de resto ficará evidente ao longo deste estudo, a entrada em

vigor da Mater Lex em 2010, inaugurou entre nós uma nova disciplina

jurídica, qual seja, o direito constitucional autárquico. O presente

trabalho abordará os pressupostos constitucionais que determinarão a

institucionalização das autarquias em Angola. Como qualquer trabalho

científico nas ciências jurídicas terá um carácter eminentemente

dogmático. Trata-se de uma pesquisa que pretende experimentar a

dogmática nas suas três dimensões: analítica, empírica e normativa.

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Como se pode ver, este ensaio oferece maior atenção a análise dos

pressupostos constitucionais referentes as autarquias em Angola. Não

se trata, por isso de um trabalho de direito administrativo, nem

abordaremos questões de natureza da organização administrativa das

autarquias. Por outro lado, por razões de acomodação, didáctica não

faremos uma conclusão geral em relação as questões abordadas, haja

em vista que a medida em que formos discutindo os temas

apresentaremos conclusões e recomendações.

Como se disse o constituinte inaugurou o direito constitucional

autárquico, e fê-lo a nosso ver de forma auto-suficiente. Por isso e salvo

melhor juízo, não acompanhamos a corrente que defende que a

institucionalização das autarquias passará necessariamente por uma

revisão constitucional. O direito autárquico está constitucionalmente

bem pensado e servido, dispensando assim qualquer manifestação

superveniente do poder constituinte.

Resta neste introito uma palavra de apreço e agradecimento a

Fundação Open Society por nos ter franqueado a oportunidade de

participar na elaboração deste estudo, que esperamos desde já possa

contribuir para o entendimento e a construção de uma doutrina do

direito constitucional autárquico.

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2. PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO

O primado da soberania popular, consubstanciado na necessária

legitimação do poder político pela vontade popular, permanece na

ribalta das discussões doutrinárias. As lutas políticas que estiveram na

base do constitucionalismo moderno prendem-se com a necessidade da

participação efectiva dos indivíduos no exercício do poder político.1 O

desenvolvimento deste princípio conduziu a um modelo democrático

assente não mais na participação directa do cidadão, todavia, na

representação democrática. Isto elevou sobremaneira a importância do

sufrágio, na medida em que a eleição dos representantes do povo passa

a ser o critério. Importa aqui recorrer as palavras de Gomes Canotilho,

para entender que a democracia participativa é “a estruturação de

processos que ofereçam aos cidadãos efectivas possibilidades de

aprender a democracia, participar nos processos de decisão, exercer

controlo crítico na divergência de opiniões, produzir inputs políticos

democráticos”2.

Todavia, nos dias actuais, o modelo de representação democrática

parece claramente em crise3, o que obriga a criação de um modelo

híbrido em que se possa miscigenar importantes traços da

representação democrática com outros da participação democrática.

Como sabemos, desde os primórdios da democracia representativa o

povo é representado por um grupo de indivíduos democraticamente

eleitos, para um horizonte temporal razoável. Porém, enquanto dura o

mandato, o povo titular do poder, abstêm-se de qualquer participação,

quer na tomada prática de decisões, como no controlo da actividade dos

eleitos. Isso faz a nosso ver, com que o eleito disponha em absoluto do

mandato ao que volta a entregar ao soberano, transcorrido o prazo.

Nesta altura, era suposta uma prestação de contas, porém, o processo

1 Cfr., MACHADO. Jónatas et alli. Direito constitucional angolano. 2.ª ed. Coimbra

Editora. Coimbra. 2013. 2 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3 ed.

Coimbra: Almedina, 1998. p. 282. 3 Sobre esse tema cfr. As redes sociais, na transição paradigmática da democracia. In esteveshilario.wordpress.com (consultado aos 12/09/13

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eleitoral absorve sobremaneira as atenções deixando-a para um plano

subalterno, ou seja, efectivamente inexistente.

A evolução social e o surgimento de novos meios de comunicação

e informação introduziram um novo paradigma democrático.4 Trata-se

de um novo paradigma, na medida em que não tendo ocorrido o fim da

democracia representativa, também não ocorreu o regresso a

democracia participativa.

Fica, portanto, claro que o modelo de participação democrática, se

conjugado com o modelo de representação, resolve melhor os anseios

democráticos das sociedades do século XXI. De resto foi este o

entendimento do legislador constituinte, ao consagrar no número 1 do

artigo 2.º da CRA, a democracia representativa ao mesmo tempo que a

participativa, como fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Como sabemos, este princípio transporta consigo uma

imensurável densidade. Seria impossível, inoportuno e até certo ponto

despiciendo “desconstrui-lo” aqui ao ponto de lhe retirar a densidade.

Para efeitos deste ensaio, do princípio democrático enquanto

fundamento do próprio Estado de Direito angolano, extraímos o ideal da

participação do cidadão na vida pública. Como à cima dito, o princípio

democrático previsto na CRA, estabelece que a participação do cidadão

em Angola não se limita ao debitar periódico e secreto de votos

(democracia representativa), para a eleição de representantes, como

mera legitimação de quem exerce o poder político, porém, muito além,

na participação activa e efectiva do cidadão no processo de decisão

(democracia participativa).

O regime jurídico do poder local consagrado na Mater Lex

privilegia o regime de democracia participativa, ao mesmo tempo em

que não ignora o regime de democracia representativa. Ora, a grande

questão não reside na consagração constitucional, mas nas normas que

lhe darão eficácia e aplicabilidade. Ao legislador ordinário caberá

4 idem

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também por força do disposto no número 2 do artigo 213.º da CRA a

criação de instrumentos hábeis a franquear a participação do cidadão

na vida pública da sua autarquia.

A despeito desta previsão constitucional o legislador não poderá

ignorar as especificidades de cada região, como adiante se verá. Assim,

será imprescindível uma margem para que as assembleias autárquicas

possam regulamentar com o fito de criarem formas de participação

popular que satisfaçam as necessidades e anseios locais, que podem ser

desconhecidos do legislador, dada a extensão do território nacional.

3. DEMOCRACIA PARTICIPATIVA, AUTARQUIAS E ESTADO

UNITÁRIO

Quer a representação popular, como a participação popular no

caso especifico angolano, devem conviver com a forma unitária do

Estado. Ora, sabendo-se que esta forma de Estado centraliza

naturalmente o poder num órgão único (Estado), que irradia por via

legiferante as decisões políticas, urge indagar como promover a

democratização ao nível do poder local.

Trata-se de uma indagação legítima, na medida em que na

realidade angolana a criação de estruturas descentralizadas é por vezes

entendida como um perigo a unidade nacional e ao Estado unitário. A

latência desta preocupação veio à tona quando o legislador constituinte

naquilo que podemos considerar um autêntico exagero, consagrou a

natureza unitária do Estado como cláusula de intangibilidade. (art.º

236, d))

Cabe-nos aqui pacificar as almas inquietas. O poder local

descentralizado, autónomo pode perfeitamente conviver com o primado

da unidade do Estado5. Estes temores são também encontrados no

5 CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Ed.

Livraria Almedina, Coimbra 2003, p., 361 e seguintes.

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direito comparado. No Uruguai, por exemplo, o poder local autónomo

começa a ser discutido apenas com a reforma constitucional de 1996,

porém, a sua real institucionalização acontece com a entrada em vigor

da Lei 18.567, de 13 de setembro de 2009, chamada de Lei de

Descentralização Política e Participação Cidadã.

A grande questão na construção do poder local autárquico e na

sua convivência com o primado do Estado unitário a nosso ver parece

ser: qual será o papel dos governos provinciais enquanto autênticas

longa manus do Estado central a nível provincial? E como este se

relacionariam com as autarquias locais?

Embora haja quem entenda, que a institucionalização das

autarquias locais determine a inexistência dos governos provinciais,

pois aquelas esvaziariam completamente as competências destes6, data

máxima vénia, não nos parece ser esta a solução. Como supra dito, os

governos províncias podem e devem permanecer como instrumentos de

representação do poder central.

Nas cidades compostas por várias autarquias será fundamental a

existência dos governos províncias que exerceriam as competências

metropolitanas. Todavia, parece-nos permanecer um problema de

legitimidade democrática, uma vez que o provimento ao cargo de

governador provincial não é precedido de um pleito eleitoral legitimador

os mesmos exercem localmente o poder legitimado do Executivo eleito

nas eleições gerais. Assim, respondendo a necessidade da democracia

participativa na institucionalização do poder local autárquico,

entendemos que os governos províncias deverão exercer competências

mínimas e residuais. Ademais, o constituinte não ignorou este detalhe,

pois consagra nas disposições transitórias (242.º, n.º 2) que haverá uma

transferência gradual das actuais responsabilidades dos Governos

províncias para as autarquias locais, todavia, depreende-se que estes

deverão prosseguir a função de representação do Estado, sobretudo no

6 In entrevista concedida ao jornal Nova Gazeta n.º 67 de 03/10/13

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estímulo a solidariedade entre as autarquias constitucionalmente

prevista.

Os governos provinciais a semelhança do que ocorre em

Moçambique7 devem ser o instrumento do executivo na tutela

administrativa. Como sabemos, por imperativo constitucional8 as

autarquias locais são administrativamente tuteladas pelo executivo.

Ora, sendo o executivo monolítico, caberá a nosso ver aos governos

provinciais o processo de tutela e acompanhamento das autarquias

locais. Faz-se mister esclarecer, como adiante se verá, que a tutela

administrativa a que a CRA se refere (art. 221) recai sobre a mera

legalidade dos actos e não sobre o seu mérito.

Resta portanto, claro que a continuidade dos governos provinciais

irá além da transferência total das suas actuais atribuições para as

autarquias locais como prevê o artigo 242.º, n.º 2 da CRA, todavia, a

sua permanência ditará uma nova modalidade nas suas atribuições e

competências, que passarão a ter claramente um caracter residual e

subsidiário.

A institucionalização das autarquias locais, quer tomem a forma

municipal, supramunicipal ou ainda inframunicipal, obrigará do

legislador ordinário um esforço redobrado, no sentido de uma

reestruturação da actual divisão político-administrativa. Deverá ocorrer,

a semelhança do que ocorreu na província de Luanda9 uma fusão de

municípios ou ainda o desmembramento de municípios e localidades

para a constituição de outros municípios. Aqui parece-nos também

residir uma dificuldade acrescida para o legislador, haja em vista a

necessidade de fazer dialogar as vontades populares locais com a

divisão administrativa das actuais províncias. Ora, se por questões de

identidade étnica, cultural, ou mesmo de ordem económica duas

7FARIA, Fernanda, CHICHAVA, Ana. Descentralização e cooperação descentralizada

em moçambique. 1999. EU., p, 12. 8 Art. 221.º. 9 Lei n.º 29/11, de 1 de Setembro – Lei de Alteração da Divisão Político-

Administrativa das províncias de Luanda e Bengo.

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localidades fronteiriças e adstritas à províncias diferentes pretendam

democraticamente fundir-se e constituir uma única autarquia, caberá,

como é óbvio, uma palavra do legislador ordinário, todavia, sem

qualquer menosprezo a vontade dos habitantes locais. Nisto, de resto

consiste a aludida democracia participativa.

4. ESTADO UNITÁRIO E O PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE

A institucionalização do poder local é, em Angola uma realidade

nova, portanto, e como se disse antes será imprescindível fazer dialogar

essa nova realidade com o primado do Estado unitário que vigora desde

a fundação da república em 1975. Este diálogo, não se avizinha

facilitado, haja em vista a cultura centralizadora que se enraizou entre

nós. A descentralização administrativa que atingirá o seu cume com a

transferência total das competências dos governos provinciais para as

autarquias, como de resto prevê o artigo 242.º da CRA, deve a nosso ver

ser acompanhada por uma aplicação rigorosa do princípio da

subsidiariedade.10

O princípio da subsidiariedade nas palavras do celebrado

doutrinador alemão Zippelius estabelece que organizações políticas

superiores na relação vertical entre os entes públicos só deverão exercer

as funções que as comunidades verticalmente inferiores não podem

cumprir da mesma forma ou de forma mais eficiente.11

À despeito de não encontrar previsão expressa na CRA, dentre os

princípios que consagram o direito constitucional autárquico, não se

pode entender como é óbvio que o princípio da subsidiariedade não

esteja presente. Trata-se de um princípio implícito12 que decorre da

10 Este parece-nos ser também o entendimento de Gomes Canotilho. Op cit., p., 362 e

363. 11 ZIPPELIUS. Reinhold. Teoria Geral do Estado, 3.º ed. saraiva. São Paulo. 1997. 12 Sobre a actuação dos princípios implícitos na ordem jurídica por todos

CANOTILHO. J.J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador, Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas, 2ª ed. Coimbra.

Coimbra Editora, 2001, p., 283 e FARIAS. Edilsom Pereira. Colisão de Direitos: A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem, versus a liberdade de expressão e de

informação. 2ª ed. Sérgio António Fabris Editor. Porto Alegre, 2000, p., 45 e seguintes.

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própria relação do Estado unitário com os órgãos do poder local. Este

primado como recomenda Zippelius, impõe ao Estado angolano, a

obrigação de manter consigo apenas aquelas competências que as

autarquias não possam realizar ou caso as realizassem não o fariam

com a mesma perfeição com que o Estado central as realiza hoje.

Portanto, o princípio da subsidiariedade será o critério para se

aferir o nível e a velocidade da transferência das actuais competências

dos governos provinciais para as autarquias. Sendo assim, o grau de

transferência destas responsabilidades deverá ser proporcional a

capacidade que cada autarquia manifestar. A nosso ver, o legislador

deverá estabelecer requisitos objectivos, que possam nortear a

actividade de transferência destas competência, pelo executivo

enquanto entidade tutelar.

Como prevê o texto constitucional, competirá ao executivo a

transferência gradual das actuais competências dos governos províncias

para as autarquias, porém, esse trabalho deverá a nosso ver ser

acompanhado de um processo de auditoria dos órgãos do executivo, ou

mesmo de auditores externos, como parece óbvio, porém, nada obsta

que haja um acompanhamento de uma comissão eventual da

Assembleia Nacional, formada não em atenção ao critério da

proporcionalidade, mas da pluralidade política. Este processo a nosso

ver pode e deve ser acompanhado também pelas organizações da

sociedade civil organizada, a nível local, provincial, ou mesmo nacional,

com o fito de garantir não apenas a lisura como e sobretudo a

imparcialidade e a não interferência de decisões de natureza

eminentemente político-partidária.

Como temos vindo a afirmar, entendemos importante o papel dos

Governos provinciais, na medida em que serão o braço do executivo

localmente para a tutela administrativa. Todavia, defendemos que a

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intervenção destes órgãos no processo de emancipação das autarquias

deva ser nula, ao passo que no que tange as transferências de

competências, esta deve limitar-se a mera emissão de pareceres, pois a

atribuição de competências decisoras a estes órgãos terá um elevado

potencial gerador de conflitos, na medida em as conveniências políticas

locais poderão interferir negativamente no processo.

5. PRINCÍPIO DO RESPEITO PELA IDENTIDADE NACIONAL E

DIVERSIDADE CULTURAL DOS POVOS

Como sabemos, o território angolano é ocupado por uma

diversidade étnica que não pode ser ignorada na elaboração de políticas

públicas sob pena das mesmas fracassarem. A despeito da República de

Angola configurar-se num Estado unitário, o respeito pela identidade

nacional e cultural dos povos que habitam as diferentes partes do

território nacional deve ser tida em consideração na elaboração das

normas que regerão as autarquias. Este primado, em circunstâncias

nenhumas pode ser visto como uma afronta a unicidade do Estado de

Direito Angolano, na medida em que convivem em absoluto sem que

haja necessidade de suplantação de um por outro.13

Na aprovação do conjunto de normas que virão a disciplinar o

regime autárquico em Angola, deverá promover-se a unidade e a

solidariedade institucional entre as autarquias, por imperativo

constitucional, porém, não se pode ignorar o facto de as autarquias

serem apenas mais um mecanismo de realização do poder dos povos

que habitam as respectivas regiões. O crescimento e o desenvolvimento

estarão intrinsecamente ligados a necessária tensão dialéctica entre a

unicidade estadual e o respeito pela diversidade nacional e cultural dos

povos.

13 Sobre o assunto por todos Cfr FEIJÓ. Carlos Maria. Problemas actuais de direito

público Angolano: contributos para a sua compreensão. Principia. Cascais. 2001. p.,

137.

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6. AUTONOMIA LOCAL E O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO

RETROCESSO

A autonomia local foi alçada a categoria de princípio material na

CRA. O constituinte estabelece o alcance e dimensão deste princípio

dizendo que a mesma “compreende o direito e a capacidade efectiva de

as autarquias locais gerirem e regulamentarem, nos termos da

Constituição e da lei, sob sua responsabilidade e no interesse das

respectivas populações, os assuntos públicos locais.” No essencial o

princípio em análise redunda num corolário do princípio democrático.

Neste caso a autonomia local nas palavras do próprio constituinte,

significa a capacidade das populações de uma determinada

circunscrição territorial, de forma livre assumirem a responsabilidade

sobre a regulamentação e gestão dos assuntos públicos locais em

benefício das próprias populações.14

A autonomia que o constituinte oferece ao poder autárquico local

deve ser entendida na nossa opinião em três dimensões: (i) numa

dimensão normativa, consubstanciada na capacidade de as autarquias

regularem os interesses próprios e locais através da criação de normas;

(ii) numa dimensão de gestão, consistente na capacidade de gerir de

forma autónoma os seus recursos financeiros e territoriais; (iii) e numa

dimensão de autonomia política esta, consubstanciada na realização da

vontade política local, na definição autónoma dos destinos e interesses

das populações locais.

Como podemos ver, toda a estrutura normativa-constitucional a

que denominamos “direito constitucional autárquico” assenta no ideal

de proporcionar uma participação efectiva e democrática do cidadão na

vida pública. Na realização de uma real democracia participativa.

Como se pode ver, este ensaio oferece maior atenção a análise dos

pressupostos constitucionais referentes as autarquias em Angola. Não

se trata, por isso de um trabalho de direito administrativo, embora não

14

Este parece ser também o entendimento de ALEXANDRINO. José Melo. In O poder

local na Constituição da República de Angola: os princípios fundamentais. Luanda, 9

a 13 de Agosto de 2010

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nos escusamos em absoluto de nele emergir em determinadas

situações. Ora, analisado o primado da autonomia local, embora de

forma muito superficial, importa olharmos para o princípio da proibição

de retrocesso.

A CRA no seu artigo 218.º consagra a municipalização das

autarquias locais, ao mesmo tempo em que estabelece que atendendo a

requisitos constitucionais podem ser constituídas autarquias ao nível

supra e infra municipal. Da inteligência desta disposição extrai-se que o

legislador constituinte consagrou e distinguiu duas categorias de

autarquias locais. José Melo Alexandrino15 chega mesmo a classifica-las

em autarquias previstas e autarquias admitidas. Esta norma

constitucional induz-nos ainda a pensar que o direito constitucional

autárquico angolano estabelece como regra a municipalização. Ou seja,

em regra, as autarquias tomarão a feição municipal e excepcionalmente

poderão tomar as outras duas feições constitucionalmente admitidas.

Ora, a institucionalização de uma autarquia numa determinada

circunscrição geográfica municipal significa antes de qualquer análise a

emancipação dos seus residentes, na medida em que passam a poder

auto-determinar-se. Portanto, uma vez estabelecida a autarquia, os

seus residentes adquirem o direito a não retroceder na sua

emancipação. Disso decorre a ideia de que uma autarquia não poderá

perder o seu estatuto e autonomia se não por manifesta vontade dos

seus populares titulares do poder local, nas formas previstas pela CRA.

Por outro lado, o princípio da proibição do retrocesso veda

qualquer retrocesso no modelo de autonomia local consagrado na CRA.

Atento a esse primado e a sua preservação o constituinte estabeleceu

como garantia da sua inviolabilidade o disposto na alínea k) do artigo

236.º. A autonomia local, na sua feição constitucional actual é,

portanto, cláusula pétrea. Isto pressupõe, que qualquer tentativa de

diminuição ou de atribuir-se as autarquias autonomia aquém da

prevista na Carta Maior redundará numa inconstitucionalidade

material, embora o contrário (entenda-se atribuição de uma autonomia

15 Idem

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além do previsto na CRA) encontrará amparo constitucional através do

princípio da proibição do retrocesso. Conclui-se antão, que o princípio

da proibição do retrocesso implica em duas linhas: (i) na proibição de

que um município constituído em autarquia, possa por vontade alheia

aos seus habitantes retroceder a um status pré autárquico; (ii) e na

proibição absoluta de qualquer alteração ao figurino na autonomia

local, que não seja para lhe acrescer maior autonomia.

7. PRINCÍPIO DA AUTONOMIA LOCAL E A TUTELA

ADMINISTRATIVA

O constituinte 2010 repetindo o de 1992 levou a questão da

autonomia local a minúcia ao ponto de ignorar o brocardo latino omnis

difinitio in lege periculosa est, que desaconselha definições no corpo de

disposições normativas e conceituo a autonomia local no artigo 214.º

como “o direito e a capacidade efectiva de as autarquias locais gerirem e

regulamentarem, nos termos da Constituição e da lei, sob sua

responsabilidade e no interesse das respectivas populações, os assuntos

públicos locais.”

O princípio da autonomia local, como parece óbvio, compreende

uma ligação intrínseca o primado da descentralização administrativa.

Compreende também a necessária existência de um território, uma

população, um património próprio e recursos também.16 Todavia, não

se completa se não houver também uma capacidade de auto-

determinação política, na orientação dos destinos desta população, uma

reconhecida e delimitada esfera de exercício de poder normativo, assim

como uma manifesta capacidade de não se subordinar aos órgãos do

poder central. Alguns autores defendem ainda a tutela administrativa

como requisito da autonomia local. E aqui reside o cerne do que

queremos discutir neste ponto: Como estabelecer uma autonomia local

e faze-la dialogar com uma necessária tutela administrativa? A esta

indagação parece responder-nos um modelo de tutela que respeite o

16 Bis idem

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núcleo fundamental da autonomia local. E isto é alcançável apenas se a

tutela se restringir ao controlo da legalidade. O entendimento do

legislador constituinte parece-nos exactamente o mesmo.

A CRA estabelece no artigo 221.º, n.º 2 que a tutela

administrativa sobre as autarquias consistira na mera verificação da

legalidade, todavia, outra disposição do mesmo texto precisamente a do

artigo 242.º n.º 2, faz menção ao “doseamento da tutela de mérito”, o

que induz a depreender que a tutela poderá também alcançar o mérito

dos actos administrativos autárquicos. A nosso ver, a primeira solução

constitucional reveste-se de maior acerto, embora deixe uma reserva de

legalidade que pode levar a mudanças nesta decisão. Pode parecer

dramatismo exacerbado da nossa parte, mas na realidade esta

disposição é carregada de um nível de abstração que pode conduzir as

mais variadas decisões políticas. Essas decisões serão legítimas se não

aniquilarem a independência e a autonomia local.

Como acabamos de afirmar o constituinte estabelece duas

distintas modalidades de tutela administrativa: uma que incide apenas

na fiscalização da conformidade legal dos actos administrativos

autárquicos pelo poder executivo e outra que indo além incide sobre a

fiscalização do mérito dos actos administrativos. Convém estabelecer a

diferença entre uma e outra modalidade de tutela administrativa e para

tanto e com a devida vénia fazemo-lo com exemplos:

1. Imaginemos que uma autarquia resolva por deliberação da sua

assembleia mudar a toponímia de uma determinada região e

estabelece que a rua outrora denominada “rua Dr. João

António” passe a chamar-se “rua Manuel João”. Se sobre esse

acto incidir a tutela de mera fiscalização da legalidade, o

executivo analisará se havia competência legal, e se o processo

de aprovação cumpriu com o estipulado por lei. Se a resposta

for negativa pode ser este acto revogado por ilegalidade;

2. Imaginemos o caso supra narrado, porém, noutras

circunstâncias. Se a tutela incidir sobre o mérito do acto, o

executivo poderá revogar o acto, mesmo que cumpra com

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todos os pressupostos legais, desde que o mesmo entenda que

não é “bom” que a rua se chame Manuel João, por qualquer

motivo, incluindo de natureza meramente político-partidária e

ideológica.

Ora, a análise do mérito de qualquer acto é sempre subjectiva. A

bondade ou a maldade do acto só pode ser objectivamente analisada se

tiver como substrato a sua legalidade. O que é bom para um,

obviamente não será necessariamente para outros. O que é bom para os

interesses político-partidários destes, não será necessariamente para os

outros. O mérito do acto será sempre uma decisão política e não

jurídica. Está aqui a nosso ver um instrumento potencial gerador de

conflitos.

O ordenamento jurídico não concebe a possibilidade de antinomia

de normas e resolve naturalmente com recurso a critérios como o da

especialidade ((lex especialis derogat generali) ou ao critério cronológico

(Lex posterior derogat priori). A antinomia nas palavras de Tércio

Sampaio Ferraz Júnior é “a oposição que ocorre entre duas normas

contraditórias (total ou parcialmente), emanadas de autoridade

competentes num mesmo âmbito normativo, que colocam o sujeito

numa posição insustentável pela ausência ou inconsistência de critérios

aptos a permitir-lhe uma saída nos quadros de um ordenamento

dado”.17 Resta claro que estamos diante de uma situação antinómica na

medida em que os critérios supra apresentados não a resolvem, pois

trata-se de normas da mesma hierarquia e emanadas do mesmo órgão

ao mesmo tempo.

A solução a nosso ver encontrar-se-á numa aturada exegese das

duas normas, com recurso natural ao princípio da unidade da

Constituição. Deste modo, entendemos a luz deste princípio que as

normas da Constituição devem merecer uma interpretação que as

mantenha unas, ou seja, que afaste qualquer antagonismo ou

17 FERRAZ. Tércio Sampaio Júnior. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão,

dominação. 6.ª ed., 3.ª reimpr. Atlas. São Paulo. 2011.

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contradições entre si18. Ora, como sabemos, as normas constitucionais

não se escalonam hierarquicamente entre si, nem pela sua localização

geográfica (a norma do artigo 1.º não é mais importante que a do artigo

100.º), nem mesmo pelo tempo da sua entrada no texto constitucional

(a norma oriunda de uma reforma constitucional não é menos ou mais

importante que a norma do texto original).

Desta análise redunda a ideia de que entre as normas dos artigos

221.º e 242 da CRA não existe superioridade hierárquica. Essa análise

hermenêutica, pode a priori fazer pensar que entramos num labirinto

sem saída, porém, felizmente a hermenêutica oferece outros subsídios

para a solução destas contradições, como adiante se verá.

Como se disse supra, o princípio da unidade da Constituição

obriga-nos a interpretar essas duas normas antagónicas e

contraditórias de forma a debelar tal aparente contradição, mantendo a

unidade e a coerência do sistema constitucional. Não se olvida,

entretanto, de analisar a actuação do princípio da concordância prática

neste caso. Assim, entendemos e salvo melhor juízo, que deverá dar-se

primazia ao primado da autonomia autárquica em detrimento do

princípio do gradualismo, sem contudo aniquilar o princípio preterido,

fazendo, destarte, com que dialoguem e concordem entre si.

Socorremo-nos ainda de um importante instrumento

hermenêutico, qual seja, a análise da qualidade das normas em conflito.

Quando se trata de conflito entre princípios e regras, a primazia dar-se-

á ao princípio aniquilando a regra conflituante. Todavia, não é

definitivamente o caso, pois o conflito ocorre entre dois princípios – a

autonomia local versus o gradualismo.

O princípio da autonomia local é um princípio material, por isso,

o constituinte reconhecendo a sua fundamentalidade colocou-o como

limite matéria de revisão constitucional (cláusula pétrea), ao passo que

o princípio do gradualismo é procedimental (instrumental). Ora,

havendo colisão como nos parece haver, a primazia é sem embargo

18 CANOTILHO. J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª Ed.

Livraria Almedina, Coimbra 2003, p., 1223, 1224.

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dada ao princípio material. Ou seja, nesta colisão deverá privilegiar-se o

princípio da autonomia local e não o princípio do gradualismo por este

ser apenas um princípio do procedimento administrativo, enquanto

aquele é matéria constitucional, sujeito à protecção da cláusula de

intangibilidade. (art. 236.º, k))

Nestes termos, entendemos que deverá manter-se o modelo de

tutela administrativa enunciado pelo artigo 221.º, ou seja, a tutela

administrativa que incide sobre a apreciação da mera legalidade dos

actos em detrimento da tutela sobre o mérito dos mesmo, sem contudo

afastarmos em absoluto o gradualismo, que deverá incidir sobre outros

assuntos previstos no artigo 242.º, tais como a oportunidade da criação

das autarquias, o alargamento gradual das suas atribuições, e a

transitoriedade entre a administração local do Estado e as autarquias

locais e não sobre a tutela já disciplinada em artigo próprio. (221.º)

A despeito do próprio constituinte estabelecer no artigo 221.º, n.º

4, a possibilidade de as autarquias poderem impugnar judicialmente os

actos da autoridade tutelar, não exclui a análise e a solução

hermenêutica que ora apresentamos. Como sabemos, o nosso Estado

ainda enferma de uma endémica morosidade judicial, fruto de uma

serie de constrangimentos estruturais, conjunturais e humanos que

inviabilizariam a realização do direito a autonomia e autogoverno das

populações nas respectivas autarquias, na medida em que pode

claramente provocar uma insanável lesão ao primado da segurança

jurídica.

Entendemos ainda que o Ministério Público deverá exercer um

importante papel deste sistema de organização, na medida em que na

qualidade de fiscal da legalidade deverá promover as competentes

acções para a reposição da legalidade ou para prevenir eventuais lesões

a direitos fundamentais, ou ainda quando se perceba improbidade na

gestão da coisa pública local, por parte do autarca.

Como temos vindo a fazer até aqui, é importante olhar para a

realidade do direito comparado, tendo como bases obviamente países

que nos são próximos. Chama-nos a atenção o número 3 do artigo 277.º

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da Constituição da República de Moçambique, que a semelhança da

disposição transitória do artigo 242.º da CRA dispõe que o “exercício do

poder tutelar pode ser ainda aplicado sobre o mérito dos actos

administrativos, apenas nos casos e nos termos expressamente previstos

na lei”. Ora, embora no número anterior estabelece que a tutela sobre

as autarquias consiste na verificação da legalidade dos actos

administrativos, a disposição que transcrevemos extravasa em absoluto

ao ponto de atingir o núcleo fundamental da autonomia local, e em

consequência aniquilar o suso dito princípio.

Como se disse supra, existe uma clara e inequívoca diferença

entre a análise da legalidade de um acto administrativo e a análise do

mérito do respectivo acto. No primeiro caso essa análise será de

caracter jurídico, tendo como pressuposto a lei, ao passo que no

segundo caso será meramente política. A bondade ou a maldade de uma

decisão política é sempre subjectiva, não pode ser, portanto, critério de

avaliação do tutelado, pelo tutor.

As remissões a que a Constituição moçambicana faz a lei, deviam

data vénia ser entendidas como verdadeiros comandos constitucionais

para uma manifestação do legislador ordinário. Ao que nos parece no

tocante ao poder local, o legislador tem delegado esta competência ao

governo.19 Da experiência moçambicana devemos reter uma atenção

muito especial (1) a aplicação do princípio do gradualismo, ou seja, a

forma como o legislador ordinário decidiu aplicar o gradualismo parece

cercear o direito a auto-determinação dos povos, assim como (2) a

sufocante tutela do executivo sobre o poder local, que não permite o

desenvolvimento da autonomia local. Na realidade angolana, estes dois

ingredientes dos nossos irmãos do índico, seriam suficientes para

inaugurar uma era de conflitos entre o poder local autónomo e o poder

central. Portanto, não seriam recomendáveis.

19 Exemplo disso é o Decreto n.º 56/2008, de 30 de Dezembro que define as

modalidades do exercício da tutela administrativa exercida pelos Governadores e pelos

Governos Provinciais.

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8. AUTARQUIAS E O PRINCÍPIO DO GRADUALISMO

O princípio do gradualismo foi consagrado como critério

instrumental e, procedimental do processo de institucionalização das

autarquias. Para Lazarino Poulson, “o princípio do gradualismo é aquele

segundo o qual as entidades administrativas devem ser faseadamente

criadas, implementadas ou reconhecidas num determinado país20”. Este

princípio a despeito da sua consagração constitucional parece-nos longe

de reunir consenso entre a classe política nacional. Não são poucas as

vozes que apresentam a realidade moçambicana como um exemplo

pouco recomendável21.

Trata-se, a nosso ver de uma discussão despicienda, na medida

em que existe o imperativo constitucional da institucionalização das

autarquias de forma gradual. O gradualismo configura-se como um

princípio constitucional de caracter transitório, haja em vista que será

aplicado enquanto e até o fim do processo de descentralização

administrativa22.

Resta-nos então entender a voluntas legislatore contida na

disposição do artigo 242.º da CRA, ciente de que estamos ainda longe

de reunir consenso sobre esta temática.

A CRA consagrou como se disse, que o processo de

institucionalização das autarquias locais será regulado pelo princípio do

gradualismo, atribuindo aos “órgãos competentes do Estado” a

competência para aferir da oportunidade da criação, e do alargamento

das atribuições das mesmas, bem como o processo de transição da

20 Cfr. As autarquias locais e as autoridades tradicionais no direito angolano. Esboço

de uma teoria subjectiva do poder local. Casa das ideias. Luanda. 2009., p. 57. 21 Convém lembrar que os motivos aventados pelo constituinte moçambicano que de

resto são os mesmo aventados pelo constituinte guineense para a institucionalização

gradual das autarquias locais, não são os mesmos apresentados pela CRA. Neste

sentido cfr., ALEXANDRINO. José Melo. Síntese comparativa: jornadas de direito

municipal comparado lusófono. Lisboa 2012.

http://icjp.pt/sites/default/files/media/sintese_comparativa.pdf consultado a 15/10/2013 22 Ressalve-se ser difícil hoje aferir quanto tempo durará o processo de criação das

autarquias locais a escala do território nacional. Isto visto, remete-nos a ideia de que o

princípio pode de facto tomar um caracter perene desvirtuando assim a vontade do

constituinte que o havia consagrado como transitório.

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administração local do Estado para as autarquias locais. Embora não

tivesse o constituinte mencionado o órgão competente, resta fácil

perceber que trata-se do legislador ordinário (AN), por força da

referência a lei na condução deste processo. Portanto, apenas por força

de lei deverá ser aplicado o princípio do gradualismo.

Este princípio resulta a nosso ver de uma decisão de caracter

meramente político, pois não conseguimos vislumbrar, como de resto

tentaremos demonstrar qualquer outra razão, de qualquer outra

natureza que pudesse oferecer substrato teórico ao suso dito princípio.

Todavia, tendo em linha de conta o caracter imperativo da norma do

artigo 242.º, podemos apenas fazer análises do conteúdo prático, ou

seja, como deve ser aplicado o princípio do gradualismo, para que não

colida com outros princípios constitucionais.

Ora, pelo que se pode reter da leitura da disposição constitucional

em causa, o princípio do gradualismo impõe:

a) A institucionalização gradual das autarquias;

b) O alargamento gradual das atribuições das autarquias;

c) A medida exacta e gradual da tutela;

d) A transitoriedade entre a administração local do Estado e as

autarquias locais.

Estas parecem-nos ser e salvo melhor juízo, as obrigações

impostas pelo constituinte ao legislador ordinário no que ao

gradualismo se trata. Há no mosaico político nacional uma clara

intenção de incluir neste rol, uma nova actividade, que a nosso ver

afasta-se totalmente da previsão constitucional, qual seja, a

experimentação23 - o gradualismo experimental. Neste caso o

entendimento é que a institucionalização das autarquias locais

obedeceria um critério experimental. Inicialmente alguns município

seria alçados a categoria de autarquias locais a título meramente

experimental (autarquias piloto), o que pressupõe que uma vez

fracassado o experimento retornariam ao status quo ante. Não nos

23 http://www.angonoticias.com/Artigos/item/30870, consultado à 15/10/2013

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restaria dúvida de que estaríamos diante de uma afronta ao princípio

da proibição do retrocesso. (vide supra)

Feito este reparo que reputamos de fundamental importância,

olhemos então para as duas actividades fundamentais impostas ao

legislador ordinário pelo constituinte.

1) A institucionalização gradual das autarquias locais: neste

tocante importa lembrar que o constituinte consagrou como regra a

municipalização, ou seja, as denominadas autarquias previstas que

dão-se ao nível dos actuais municípios, ao mesmo tempo em que

consagrou como excepção a regra outras modalidades de autarquia as

denominadas autarquias admitidas, que dar-se-ão ao nível supra ou

infra municipal.

Entendemos que para gerar conformidade entre o princípio do

gradualismo e o próprio sistema constitucional, do qual o mesmo é

parte, o gradualismo na institucionalização das autarquias dá-se não

nas autarquias previstas, porém, nas autarquias admitidas.24 Ou seja, o

legislador ordinário poderá apenas criar autarquias novas, dentro da

moldura estabelecida pelo constituinte. Isto pressupõe dizer que os

actuais municípios desde que mantidos com esta categoria pela nova

divisão político-administrativa (se houver) deverão ser autarquias locais,

pois aqui não cabe ao legislador ordinário definir, na medida em que

elas foram criadas pelo constituinte. A Assembleia Nacional não teria

competência para recriar o que já foi criado pelo constituinte. Ademais,

não poderão conviver na ordem jurídica angolana municípios que sejam

autarquias locais, com outros que não o sejam, sob pena de afronta ao

sacrossanto princípio da igualdade.

Como sabemos a CRA, não estabeleceu os critérios a serem

observados para que um determinado território fosse alçado a categoria

de autarquia local, deixando ao critério do legislador tal definição na

forma de lei. Ora, neste caso os critério não nos parecem que sejam os

mesmos que levaram a institucionalização gradual das autarquias em

24 Os conceitos de autarquias previstas e admitidas, devemos a José Melo Alexandrino. Cfr., supra.

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Moçambique e na Guine Bissau.25 No caso angolano, ao que nos parece

os critérios seriam de natureza económica, infraestrutural e sobretudo

da capacidade de gestão administrativa. José Melo Alexandrino, assim

como nós entende não haver racionalidade na hipótese de adiar a

institucionalização de autarquias locais em localidades menos

favorecidas economicamente sob pena a atrasar ainda mais o

desenvolvimento.26

Não se pode olvidar, que as autarquias resolvem antes de mais

nada a democratização do país, atendendo assim, o princípio

democrático. Porém, também não se deve ignorar que há muitos

municípios, com débil infraestrutura, fraco potencial económica para

uma sobrevivência autónoma, bem como parcos recursos humanos,

todavia, às populações destes municípios não se pode cercear o direito à

autodeterminação, consubstanciado no direito de livre e

democraticamente gerirem os deus próprios interesses e assuntos

públicos locais. (art. 214.º CRA)

No domínio económico a CRA também parece-nos resolver o

problema ao consagrar no artigo 215.º que os recursos financeiros das

autarquias locais terão duas origens. Uma parte oriunda do OGE e

outra proveniente de rendimentos e tributação local. Há subjacente no

princípio do gradualismo um temor de que as autarquias não tenham

capacidade financeira para se auto governarem, o que motivaria um

adiamento da emancipação destes territórios e povos.

Como se disse, o constituinte não ignorou essa possibilidade e

estabeleceu que os recursos oriundos do OGE deverão ser proporcionais

as atribuições constitucionais e legais, bem como os programas de

desenvolvimento gizados pela política nacional de desenvolvimento

territorial.

Ora, isso posto, torna-se impossível pensar que alguma autarquia

não terá recursos, ainda que tenha fraca capacidade de arrecadação

local. Os recursos do OGE deverão então ser transferidos aos

25 Cfr., ALEXANDRINO. José Melo. Síntese comparativa: jornadas de direito municipal

comparado lusófono. Lisboa. 2012. 26 In O poder local na Constituição da República de Angola (…)

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municípios atendendo aos programas de desenvolvimento local e a

capacidade de arrecadação local.

As autarquias serão também um importante instrumento de

desenvolvimento económico. Inicialmente a transferência de recursos do

OGE para as autarquias locais poderá ser a principal fonte de

financiamento destas, porém, a autodeterminação gerará

necessariamente maior atracção de investimento e potenciará os

municípios economicamente de modo que se pode progressivamente

diminuir a dimensão destas transferências sobrando recursos para

financiar a criação de mais autarquias admitidas.

2) O alargamento gradual das atribuições das autarquias e a

medida exacta e gradual da tutela: trata-se de duas medidas que

definirão o volume e a velocidade com que as actividades hoje exercidas

pelo poder central, através da sua administração local, serão

transferidas para as autarquias locais27.

Chamado a abordar esta mesma situação na realidade

moçambicana José Melo Alexandrino fez uma análise que importa aqui

transcrever com a devida vénia:

“ Relativamente à Moçambique: o receio,

também subjacente à ideia de gradualismo, de

que alguns entes locais pudessem cair nas

mãos da oposição; a politização das decisões de

transferência de competências; a existência de

um processo de recentralização, com ofensas

directas a dimensões da autonomia local (como

em sede de tutela revogatória e da restrição dos

poderes de denominação de ruas e lugares); a

necessidade de reforçar a autonomia local (ao

nível da eficácia e da prestação de contas,

nomeadamente).”

27Para maiores detalhes, vide supra abordagem que fazemos ao princípio da

subsidiariedade.

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Este parece ser também um problema latente na jovem

democracia angolana, aliás trata-se de uma realidade muito conhecida

das sociedades africanas. Portanto, parece-nos que devemos prestar

particular atenção as advertência que acabamos de transcrever. O

legislador ordinário pode a priori resolver futuros problemas dessa

natureza, consagrando instrumentos que possam diminuir a

discricionariedade do executivo quer no alargamento das atribuições

das autarquias como também na progressividade da diminuição da

tutela.

Por outro lado, o gradualismo na transferência das atribuições

previstas no artigo 219.º da CRA deve ter como critérios o estrito

cumprimento do princípio da subsidiariedade28. Entendemos também,

que a despeito da previsão do citado artigo, haverá funções cuja

execução por uma autarquia nas regiões metropolitanas torna-se

absolutamente inviáveis. Neste tocante, caberá ao legislador limitar os

marcos nas regiões metropolitanas, onde os equipamentos públicos são

normalmente partilhados entre municípios e a sua gestão deve ser

compartilhada dentro de balizas estabelecidas pelo legislador, ou

geridas por um “órgão supra autárquico.”

Poderíamos ilustrar com os equipamentos de transporte

metropolitano: em Luanda por exemplo em que a maioria da população

tem o município de Luanda apenas como local de trabalho os

transportes públicos de e para Luanda deverão contar com o concurso

de mais de uma autarquia. Neste caso, e embora essa actividade seja

constitucionalmente atribuída as autarquias (219.º) entendemos que o

transporte intermunicipal deverá ser regido por um órgão supra

autárquico sob pena de desarticulação. O mesmo dir-se-á por exemplo,

da tributação sobre a circulação de automóveis, que embora

entendamos que deverá ser arrecadada pela autarquia, nas regiões

metropolitanas poderá gerar distorções capazes de induzir a injustiças.

Pois vejamos:

28 Vide supra abordagem ao princípio da subsidiariedade.

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Se o contribuinte estiver obrigado ao pagamento do tributo no

município do seu domicílio, isso poderá gerar a que o individuo

contribua num município em que efectivamente não faz uso corrente

dos equipamentos urbanos (estradas), deixando de tributar lá onde faz

maior uso dos equipamentos. A nosso ver a solução passava pela

tributação por um sujeito passivo indirecto.

9. O SENSO POPULACIONAL NA CONSTITUIÇÃO DOS ORGÃOS

AUTÁRQUICOS

As eleições autárquicas, não podem ser entendidas como um fim

em si mesmo, senão, como um meio de realização da cidadania, da

participação activa do cidadão na vida pública e da consequente

melhoria da sua condição de vida.

Ora, isto posto, importa reflectir sobre o day after. Transcorrido o

processo eleitoral, será necessária a conformação e a efectivação do

almejado no pleito eleitoral com a criação de órgãos da administração

que garantam o funcionamento da autarquia com independência e

autonomia política, financeira, administrativa e patrimonial, nos termos

do previsto pelo artigo 214.º da CRA.

Como suso abordado, se de um lado a institucionalização das

autarquias poderá estabelecer uma viragem na divisão político-

administrativa, quiçá um novo mapa, por outro lado, o constituinte não

estabeleceu objectivamente os critérios a serem utilizados neste

processo. Poderão ser constituídas, nas palavras do constituinte

autarquias ao nível supra e infra municipal. Resta claro, como de resto

abordamos, que o critério (regra) na institucionalização das autarquias

é a municipalização, ou seja, as autarquias supra e infra municipais

serão excepcionais.

Um importante instrumento de aferição da possibilidade de

emancipação de uma determinada região a autarquia será sem dúvidas

a sua densidade populacional. Ora esta apenas pode ser aferida por via

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de um senso populacional. Como sabemos, o senso populacional

previsto para 2014 vai não apenas aferir a densidade populacional, mas

também a habitação e a forma como vivem os angolanos e estrangeiros

que aqui residem. Isso fará dele um imponente instrumento de

formulação de políticas públicas locais.

9.1. DO ORGÃO DELIBERATIVO AUTÁRQUICO

Como supra abordado, a CRA estabeleceu uma nova disciplina do

direito constitucional entre nós, qual seja, o direito constitucional

autárquico. No que tange a separação das funções da autoridade

autárquica, o constituinte estabeleceu no artigo 220.º, apenas duas

funções – a função executiva e a regulamentar.

Como podemos ver, o constituinte não atribui aos órgãos

autárquicos qualquer competência legislativa, senão apenas

competências regulamentares. Da inteligência do disposto no n.º 4 do

artigo 217.º da CRA, observa-se que não se trata de uma desatenção do

legislador constituinte, mas sim de um acto deliberado com o fito de

vedar aos órgãos autárquicos qualquer possibilidade de legislar,

deixando essa apenas ao nível do poder central.

No Brasil, a questão foi objecto de amplos debates doutrinário,

tendo sido amenizada com a entrada em vigor da Constituição Federal

de 1988.29 O texto constitucional de 1988 em resposta ao grande loby

municipalista estabeleceu o município como ente federativo, num

federalismo composto então por União Federal, Estados federados,

Distrito Federal e Municípios. Indo além o constituinte brasileiro de

1988, pacificou o entendimento segundo o qual o poder local organiza-

se por um órgão legislativo com competências legislativas circunscritas

a determinadas matérias e a sua área de jurisdição geográfica. Nem

assim, viram-se findas as discussões doutrinárias sobre o assunto.

Todavia, o que interessa para este estudo, não é exactamente qual é a

29 Cfr MAURANO. Adriana. O poder legislativo municipal. Letra da lei. Curitiba.

2008

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denominação constitucional deste ente, mas a sua natureza, as suas

atribuições e competências.

Trata-se no essencial de uma câmara de representantes do povo,

a nível local, livremente eleitos nas eleições autárquicas, cuja

competência regulamentar circunscrever-se-á a matérias devidamente

estabelecidas por lei nos termos dispostos pela CRA e cuja competência

territorial, será obviamente circunscrita aos limites do município.

9.1.1. Da elegibilidade e composição das casas deliberativas

Como supra abordado, a democracia representativa de matriz

ocidental está em manifesta crise, o que impõe-nos uma profunda

reflexão que embora não caiba neste estudo, importa estabelecer

apenas bases.

As eleições municipais deverão aprofundar a democratização do

Estado angolano. Este aprofundamento não pode ser entendido apenas

como a regularidade do próprio processo eleitoral, entendido como o

debitar periódico e secreto de votos neste ou naquele candidato, neste

ou naquele partido político, mas sobretudo, deve reflectir o

fortalecimento da capacidade de participação do cidadão na organização

da colectividade em que se insere e se realiza. É no município onde o

cidadão realiza os seus actos da vida privada, e familiar; é no município

onde o cidadão tem a escola, o hospital, a igreja, enfim, uma sorte de

actividades do seu quotidiano.

Isto posto, faz-se mister indagar, que modelo democrático

interessa para a realização social do cidadão numa república do seculo

XXI, num continente e sub-região com as suas peculiaridades e

originalidades? A resposta a esta questão deverá como parece óbvio,

advir de uma ampla discussão.

A despeito da partidarização da sociedade angolana somos de

opinião que as eleições municipais deverão ir além da democracia

partidária. Isto pressupõe de resto como prevê a CRA no número 5 do

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seu artigo 220.º, que os candidatos aos órgãos legislativos municipais,

não deverão apenas vir de listas partidárias. Sem desprimor desta

secular forma de organização político-social, queremos crer que em

vários pontos encontra-se ultrapassada especialmente no que tange a

realização e participação cidadã.

Para a eleição dos membros das casas legislativas municipais deverá

antes de mais observa-se os requisitos de elegibilidade estabelecidos

pela CRA, tais como maior idade e pleno exercício dos direitos políticos,

entre outros, porém, aqui a escala municipal acresce-se o sacrossanto

requisito do (i) domicílio eleitoral no município respectivo:

(i) O requisito da domiciliação eleitoral impõe que seja candidato

apenas quem seja efectivamente residente do município, que

seja conhecido pelos seus eleitores, que conheça

objectivamente os anseios da colectivadade, conheça os seus

problemas para que possa ser parte das suas soluções. Isso

afastaria em absoluto a possibilidade de haver candidatos que

mesmo sendo estranhos a comunidade local, sejam eleitos

merce da força do aparelho partidário a que estejam filiados.

Neste tocante a lei regulará o espaço de tempo pregresso em que o

cidadão deverá residir no município, obedecendo os hábitos de

mobilidade das regiões angolanas e o critério jurídico da razoabilidade.

A razoabilidade é aqui invocada, pois apenas assim poderão ser

resolvidos os problemas decorrentes dos fluxos migratórios nas regiões

em que as populações não tenham comportamentos sedentários.

No que tange a formulação e composição das Assembleias

autarquicas, somos de opinião que o critério deverá ser estabelecido por

lei (strictu senso), ou seja, não deverá ficar a merce das Assembleias

municipais nem mesmo do exercício de competência regulamentar do

executivo.

O número de representantes deverá ter como critério objectivo o

senso populacional. Isto pressupõe que a lei deverá estabelecer um

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número de representantes, proporcional e equivalente ao número de

cidadãos que residam no município. Por exemplo, poderá estabelecer

que as Assembleias tenham um máximo de (50) cinquenta

representantes, e um mínimo de (15) quinze. Os máximos alcançar-se-

iam nos municípios com mais de (500) quinhentos mil habitantes e os

mínimos nos municípios com menos de (200) duzentos mil habitantes.

Os dados do senso populacional, ao definirem a demografia de cada

município ou região poderão servir de instrumento para o legislador

decidir a criação ou não das autarquias admitidas pelo constituinte.

Existem regiões do território nacional em que a sede de um município e

as suas comunas distam mais de quinhentos quilómetros, o que torna

inviável a governabilidade e sobretudo a capacidade de auto-governo

das suas populações. Nestes casos, e atendendo a densidade

populacional recomenda-se a instituição de uma autarquia, ainda que

de natureza infra municipal, sendo certo que a criação de pequenos

focos de emanação do poder resolve melhor os problemas locais e

consequentemente realiza a democracia em maior escala.

Por outro lado, a transferência de renda do OGE para as autarquias

deverá obedecer os requisitos já previstos pela CRA, observando

obviamente a densidade populacional, ou seja, as autarquias que se

constituírem em maiores conglomerados populacionais, certamente

deverão absorver maior dotação orçamental em relação as menos

populosas.

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10. FORMAS DE FINANCIAMENTO ÀS AUTARQUIAS

Do próprio conceito constitucional de autarquias locais chega-se

facilmente a conclusão de que as autarquias, enquanto pessoas

colectivas territoriais asseguram a prossecução de interesses que

demandam um financiamento. Portanto, não poderia o constituinte

ignorar essa necessidade, todavia, remeteu para o legislador

ordinário o estabelecimento do regime das finanças locais, sem

olvidar de firmar balizas, quais sejam, a justeza na repartição dos

recursos entre o Estado e as autarquias, a correçção necessária das

assimetrias entre as autarquias e a consagração de um regime de

arrecadação de receitas próprias assim como o estabelecimento dos

limites as despesas locais.30

Da inteligência desta disposição constitucional pode-se extrai a

ideia de que o regime das finanças locais deverá comportar receitas

próprias, e receitas oriundas do Estado. Ou seja, as autarquias terão

capacidades de arrecadação de tributos para o seu auto-

financiamento, todavia, deverão também contar com recursos

oriundos do OGE, que serão distribuídos pelo Estado atendendo o

primado da equidade e da resolução das assimetrias entre as regiões

e as respectivas autarquias.

Ainda desta disposição constitucional pode-se extrai que a mes

leigislatore não vai no sentido da retenção na fonte dos fundos

oriundos da exploração de recursos naturais na circunscrição da

autarquia respectiva. O legislador constituinte parece-nos deixar

claro que caberá ao Estado a arrecadação e a consequente

transferência às autarquias. Ora, como sabemos, neste sentido

levanta-se sempre a questão relativa aos possíveis royalties

decorrentes da exploração de petróleo, diamantes e outros recursos

minerais. Parece-nos ser diversa a vontade do constituinte.

A CRA estabelece que a arrecadação neste caso será concentrada

no Estado que providenciará a distribuição para as autarquias. Esta

30 Art.º 217.º, 3 CRA.

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distribuição na visão do constituinte será per se um factor de

desenvolvimento económico e social. Assim, a distribuição deverá

responder a critério de justiça e de equidade. Distribuir mais para as

autarquias mais necessitadas e menos para as menos necessitadas,

por forma a reduzir as assimetrias e equilibrar o desenvolvimento

nacional.

10.1. Participação do Estado no financiamento das autarquias.

Como vimos as autarquias contarão para o seu financiamento

com um contributo do OGE. Para além da transferência direita de

renda como prevê de resto a CRA, somos de opinião que a maioria

dos actuais municípios não conseguirá produzir receitas capazes de

financiarem os projectos de infraestruturas. Para tanto, a guisa de

sugestão apresentamos algumas ideias:

a) A criação de um fundo de investimentos a semelhança do

fundo soberano que possa financiar os projectos de

infraestruturas nos municípios especialmente os menos

desenvolvidos neste domínio.

Este fundo, deverá ser gerido por uma administração autónoma e

plural, por um período mínimo que não coincida como os períodos

eleitorais, por forma ser o mais politicamente isento. Para este fundo

deverão na nossa opinião ser canalizados apenas projectos de

infraestruturas, devidamente estruturados e cuja viabilidade seja

tecnicamente testada pelos especialistas do fundo.

Não competiria a administração do fundo negar o financiamento

do projecto, porém, apenas reformula-lo caso fosse necessário. Este

seria um importante instrumento de combate as quezilas políticas

que são inerentes ao processo democrático;

b) A possibilidade de um crédito junto do Estado: neste tocante

as administrações autárquicas poderiam desde que

autorizadas pela Assembleia por uma maioria simples, contrair

crédito junto do poder estatal a fim de fazerem frente a

questões de tesouraria;

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c) Por fim a possibilidade de colocar no mercado primário títulos

da divida pública local, dentro dos limites de endividamento

impostos pela lei das finanças locais e desde que autorizados

expressamente pela Assembleia, neste caso por uma maioria

qualificada de 2/3.31

31 NOBREGA, Marcos. Comentários à Lei de Responsabilidade Fiscal. 2ªed. São Paulo:

RT, 2001, p. 170

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11. ELEIÇÕES AUTÁRQUICAS E SISTEMA DE

ADMINISTRAÇÃO E CONTROLO ELEITORAL

A democracia representativa realiza-se com eleições livres e

periódicas. Não pressupõe com isso dizer que ela se reduza e consuma

na ida periódica as urnas, todavia, esta é fundamental para a sua

realização. Não poucas vezes somos levados a entender o sufrágio na

sua concepção restritiva, ou seja, naquela que o limita ao direito de

eleger e ser eleito. Todavia, não nos podemos esquecer, que enquanto

direito fundamental este assume uma dimensão objectiva, que o galga

ao patamar dos mais importantes princípios do Estado de Direito

Democrático, na medida em que viabiliza a realização da própria

representação democrática32. Não seria despiciendo lembrar que seria

inviável a representação democrática sem eleições, assim como tornar-

se-ia também inviável a limitação do poder sem este precioso

instrumento democrático.

A obrigatoriedade da realização periódica de eleições, imposta pelo

próprio princípio democrático, exacerbou o crescimento em importância

e em nobreza da tarefa de organização e realização dos pleitos eleitorais.

O princípio democrático, ao tornar obrigatória a periodicidade das

eleições, impôs também a lisura e a fiabilidade do processo e dos seus

resultados. Disso decorre a necessária transparência do processo que

vai desde o registo dos eleitores, a elaboração dos cadernos eleitorais e

consequente afixação das listas, passando pela constituição das mesas

à recolha dos votos culminando com a contagem e publicação dos

resultados.

Na confiança depositada pelo cidadão na lisura do processo

eleitoral, residirá a legitimidade material do mandatado. Esta confiança

se aliada a competitividade entre os postulantes aos mandatos e

sobretudo a ampla realização do direito ao sufrágio será condição de

32 Assim, por todos DUVERGER, Maurice. Os regimes políticos. Tradução de

Geraldo Gerson de Souza. 2. ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1966, p. 23

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garantia do que chamamos de eleições justas. Dito de outra forma, a

justeza das eleições dependerá da lisura do processo eleitoral e da

confiança que o eleitor nele deposita, bem como a competitividade entre

os candidatos e na liberdade de exercício do voto.

Como se pode ler neste introito o processo de administração dos

pleitos eleitorais ganha particular importância quando tratamos da

questão das eleições autárquicas. A despeito de não haver previsão

constitucional sobre o modo de organização, administração e controlo

das eleições autárquicas, pedimos vénia ao leitor para discutir a

questão, ainda que de forma vestibular, pois a entendemos importante

pelas razões suso elencadas.

11.1. Sistema de administração e controlo eleitoral vigente.

O processo eleitoral compreende o conjunto de tarefas supra

elencadas. A despeito, a administração das eleições, comporta ainda

outra importante actividade, qual seja, a de verificação da regularidade

dos actos e procedimentos eleitorais. Este processo, a que a doutrina

denomina de controlo das eleições33 define a natureza do sistema

vigente.

Em Angola pode classificar-se o sistema como misto, na medida em

que a competência para o controlo e verificação dos actos e

procedimentos eleitorais é atribuída concomitantemente a Comissão

Nacional de Eleições, órgão administrativo e ao Tribunal Constitucional.

Como se disse, de um lado compete nos termos da alínea j) do art.

6.º da Lei n.º 12/12 de 13 de Abril, à CNE decidir sobre as reclamações

dos cidadãos e dos partidos políticos e coligações de partidos políticos

no âmbito das eleições gerais, por outro lado essa mesma competência é

atribuída ao Tribunal Constitucional nos termos do número 2, alínea c)

33 Cfr. VELLOSO. Carlos Mário da Silva e AGRA. Walber de Moura. Elementos de

Direito Eleitoral. 3.ª ed. Saraiva. São Paulo, 2012. E ainda HENRÍQUEZ, Jesús Orozco. El contencioso electoral, la calificación electoral. In: NOHLEN. Dieter et

al.(comp.). Tratado de derecho electoral comparado de América Latina. 2. ed. México:

FCE, Instituto Interamericano de Derechos Humanos, Universidad de Heidelberg.

International IDEA. Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, Instituto

Federal Electoral. Mexico. 2007, p. 1163

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do artigo 180 da CRA. Esta bicefalia não configura em si qualquer

problema jurídico, na medida em que o TC age como órgão recursal no

contencioso eleitoral que deve sempre começar na CNE em celebração

do primado da subsidiariedade processual.

A CNE é o órgão a quem incumbe como se disse a administração das

eleições e a verificação da regularidade das mesmas. Ora, nos termos da

CRA as eleições devem ser organizadas por órgão da administração

eleitoral independente. O constituinte remete ao legislador ordinário a

definição das competências, da composição e do funcionamento deste

importante órgão. (art. 107.º, n.º 1)

Em resposta ao comando constitucional foi então aprovada à 13 de

Abril de 2012 a Lei n.º 12/12. Neste mesmo ano as primeiras eleições

gerais ao abrigo do novo regime constitucional ocorreram já na vigência

desta norma. Não se pode, contudo, dizer que seja consensual o sistema

de administração e controlo das eleições imposto pela citada lei. Há

quem advogue a necessidade da criação de um órgão de jurisdição

especial eleitoral.34

A temática da criação de um tribunal eleitoral, não tem qualquer

previsão constitucional. Pelo contrário, o constituinte, como se disse

estabeleceu que os processos eleitorais serão administrados por um

órgão administrativo independente. Todavia, ao que nos parece a

aludida independência será apenas em relação à administração do

Estado (directa e indirecta) e não propriamente em relação aos partidos

políticos concorrentes. Ademais, não seria despiciendo lembrar que os

mesmos compõem a CNE, nos termos da alínea b) do número 1 do

artigo 7.º da Lei n.º 12/12.

As eleições autárquicas ao contrário das eleições gerais não

comportam necessariamente um acto eleitoral unificado. Variam de

acordo com o número de autarquias, cujos actos eleitorais podem não

obedecer qualquer simultaneidade, ou seja, podem ocorrer em tempos e

34

Nestes sentido o relatório do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Processo

Eleitoral. Trata-se de um grupo informal constituído por associações e indivíduos com

o objectivo de analisar e contribuir no processo eleitoral angolano de 2012.

Recomenda-se neste relatório a criação de um tribunal eleitoral.

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momentos diferentes. Talvez esse facto justificasse a descentralização

da autonomia na organização e controlo das eleições.

11.2. Alteração ao Sistema de administração e controlo eleitoral

vigente.

Como se disse supra, o constituinte ao estabelecer o sistema de

organização do poder judicial elencou de forma taxativa os tribunais

existentes (formalmente ao menos) e aqueles que podem, havendo

disposição política, ser criados. (art.º 176) Todavia, inexiste a previsão

de um tribunal eleitoral.

Como se pode até aqui perceber o presente estudo tem por objecto a

abordagem dos pressupostos constitucionais das autarquias, porém,

mesmo sabendo que este tema afasta-se deste objecto, pedimos vénia

para ainda que de forma muito ténue abordarmos aquele que

entendemos ser o mais adequado sistema de organização e controlo das

eleições, tendo em consideração a realidade geográfica e cultural do

nosso país35.

Entendemos que a possibilidade de construir um sistema de

organização e controlo eleitoral diferente do ora vigente, passa

necessariamente por uma reforma constitucional, que possa

concomitantemente alterar a redação do disposto nos artigos 107.º e

176.º da CRA. Ou ainda, a manutenção da disposição do artigo 107.º, e

o consequente estabelecimento da CNE como órgão de administração

eleitoral com a introdução de um microssistema de jurisdição eleitoral

encabeçado por um tribunal superior que tenha na base os tribunais de

comarca previstos no ante projecto de reforma da justiça e do direito.

O que acabamos de afirmar representa no essencial duas opções

políticas diferentes: na primeira seria o fim do sistema de organização e

controlo misto para se introduzir um sistema jurisdicional, ao passo

que a segunda opção seria a manutenção do sistema misto, todavia,

Este é também de resto o entendimento de Dieter NOHLEN. Op cit., p 306. Ao abordar

o sistema alemão em comparação com o sistema dos EUA e do conjunto dos estados

sul-americanos, o autor deixa claro que o ideal é a construção de um modelo que

atenda as realidades locais, na medida em que o nível de conflitualidade e a própria

especificidade dos conflitos nunca será igual de país para país.

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com a adaptação que estabeleça a competência para o controlo e a

verificação da regularidade das eleições a um órgão de jurisdição,

restando à CNE apenas competências de administração dos processos.

Isto posto, somos de opinião que das duas opções políticas suso

apresentadas a que melhor se adapta e salvo melhor juízo seria o

sistema misto com as necessárias alterações. Pois vejamos: o actual

sistema (misto) parece-nos potencialmente gerador de conflitos

eleitorais, que nas eleições gerais são mais facilmente dirimidos na

medida em que se aglutinam num órgão para a sua resolução. Porém,

nas eleições autárquicas há uma necessária pulverização do potencial

de conflito pelo país. Por outro lado, um sistema exclusivamente

judicial, onde os processos fossem organizados, administrados e

controlados por magistrados judiciais investidos de jurisdição esbararia

numa ineficiência na medida em que há uma gritante escassez destes

servidores do Estado em Angola. Neste caso não cremos resolver a

contento o problema.

O sistema misto de organização e controlo das eleições, como

sabemos, comporta a organização e controlo exercidos por um órgão

administrativo e por outro jurisdicional. No caso vertente, a CNE não

apenas organiza e administra, como também controla, sendo que o

tribunal constitucional actua como corte eleitoral em última instância

do contencioso. Ora, parece-nos que a solução seria a manutenção das

competências da CNE no que tange a administração das eleições,

deixando o controlo da regularidade do processo por para o órgão de

jurisdição.

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11.3. Tribunal Eleitoral

A justiça eleitoral pelo seu caracter apresenta peculiaridade de

buscar a verdade material sobre as eleições. Ora, isto per se torna-a

diferente em relação aos demais ramos do direito, requerendo métodos,

critérios e ritos processuais diferenciados daqueles que conhecemos.

Como dissemos, a despeito de não ser propriamente o objecto do

presente ensaio queremos data vénia apresentar o que consideramos

ser um modelo viável de justiça eleitoral entre nós, tendo desde já em

conta o mapa proposto pela reforma da justiça e do direito em curso.

A justiça eleitoral deve ser composta por uma pirâmide cujo topo é

ocupado por um Tribunal Superior Eleitoral (TSE), secundado por

órgãos regionais (Tribunais eleitorais regionais) e na base da mesma os

tribunais de comarca.

Como supra dito, a justiça eleitoral é peculiar, pois embora as suas

instituições tenham um caracter perene, não possui quadros próprios,

sendo os mesmos emprestados de outros órgão judiciais em regime ad

hoc e em caracter rotativo. Isto deve-se ao facto de os processos

eleitorais terem caracter sazonal, o que tornaria despicienda a

necessidade de um quadro de pessoal permanente. É todavia,

importante não confundir-se o regime excepcional dos quadros que

compõe o tribunal com o próprio tribunal, o que redundaria numa

inconstitucionalidade, haja em vista que a CRA veda a possibilidade de

tribunais de excepção. ( art.º 176.º, n.º 5)

Assim, importa olharmos para a constituição dos tribunais eleitorais:

como dissemos a peculiaridade da justiça eleitoral impõe um maior

escrutínio popular ao mesmo tempo que impõe uma elevação do

princípio democrático.

O TSE enquanto órgão superior da justiça eleitoral deve ser

composto por um conjunto de sete juízes conselheiros, sendo dois

oriundos do Tribunal Constitucional, outros dois do Tribunal Supremo

em regime rotativo para um mandato de um ano não renovável, porém,

obediente a própria rotação. Um advogado eleito pela Ordem dos

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Advogados, um magistrado do MP e por fim um cidadão de idoneidade

moral e reputação ilibada eleito por maioria qualificada dos deputados a

AN em efectividade de funções. A presidência deste órgão pode ser

atribuída também rotativamente ao TC e ao TS.

A nível regional os tribunais da relação cedem dois juízes que

compõe os tribunais eleitorais regionais, e que se compõe ainda por um

advogado eleito pelos seus pares, um membro da magistratura do MP e

um cidadão local de idoneidade moral e reputação ilibada, cujo

mandato obedece a mesma lógica, e os mesmos critérios. Já a nível

local, a jurisdição eleitoral seria exercida pelos tribunais de comarca,

tendo sempre como critério a representação democrática nos termos

suso apresentados observado o pressuposto de que três quintos dos

membros não sejam magistrados judiciais.

Faz-se mister lembrar que a fiscalização da constitucionalidade das

decisões destes órgãos fica entregue ao TC nos termos do artigo 180.º,

n.º 2 d).

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