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A INTENCIONALIDADE DA OBRA DE ARTE NA EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS PEQUENAS Kátia Batista Martins 1 Universidade Federal de Lavras Gislaine de Fátima Ferreira da Silva 2 Universidade Federal de Lavras EDUCAÇÃO DO SENSÍVEL Neste artigo, no qual temos como lente os referenciais críticos e pós-críticos, busca problematizar o fazer artístico com as crianças pequenas e os discursos que transitam na escola acerca dessas relações. Para tanto, refletimos sobre o material empírico decorrente de pesquisa realizada com crianças de cinco anos, numa escola da rede pública do interior de Minas Gerais. Procurando compreender e problematizar a educação do sensível de forma intencional, estética, ética e política e, como nos instiga Silva uma teoria define-se pelos conceitos que utiliza para conhecer a ‘realidade’. Os conceitos de uma teoria dirigem nossa atenção para certas coisas que sem eles não veríamos” (SILVA, 2011, p.17). Assim, na escrita deste artigo, no qual focamos em referenciais que abordam a educação do sensível, percebe-se os sujeitos imersos em uma cultura mercadológica e consumista, na qual perde- se a beleza da vida (DUARTE JÚNIOR, 2004). Entretanto, problematizamos essa lógica, à luz dos estudos culturais e dos estudos pós-críticos, tendo como princípio a concepção de infância enigmática que nos escapa (LARROSA, 2013) e o conceito de dispositivo nos quais os discursos são (re)produzidos e circulam (FOUCAULT, 1993). Com as transformações científico-tecnológicas que ocorreram nas últimas décadas, a educação vem sendo estruturada com a finalidade de formar pessoas para atuarem no mercado de trabalho. Mercado esse que vem se expandindo cada vez mais com o aumento 1 Mestranda em Educação (Ufla); Coordenadora do curso Gênero e Diversidade na EscolaUfla .Integra o Grupo de Pesquisa: Relações entre a Filosofia e Educação para a Sexualidade na Contemporaneidade: a problemática da formação docente (Fesex) coordenado pela professora Dra. Cláudia Maria Ribeiro. [email protected] 2 Mestranda em Educação (Ufla); Pedagoga (UFSJ). Coordenadora pedagógicaCead/Ufla. Integra o Fesex. [email protected]

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A INTENCIONALIDADE DA OBRA DE ARTE NA EDUCAÇÃO DE

CRIANÇAS PEQUENAS

Kátia Batista Martins1

Universidade Federal de Lavras

Gislaine de Fátima Ferreira da Silva2

Universidade Federal de Lavras

EDUCAÇÃO DO SENSÍVEL

Neste artigo, no qual temos como lente os referenciais críticos e pós-críticos, busca

problematizar o fazer artístico com as crianças pequenas e os discursos que transitam na

escola acerca dessas relações. Para tanto, refletimos sobre o material empírico decorrente de

pesquisa realizada com crianças de cinco anos, numa escola da rede pública do interior de

Minas Gerais. Procurando compreender e problematizar a educação do sensível de forma

intencional, estética, ética e política e, como nos instiga Silva “uma teoria define-se pelos

conceitos que utiliza para conhecer a ‘realidade’. Os conceitos de uma teoria dirigem nossa

atenção para certas coisas que sem eles não veríamos” (SILVA, 2011, p.17). Assim, na

escrita deste artigo, no qual focamos em referenciais que abordam a educação do sensível,

percebe-se os sujeitos imersos em uma cultura mercadológica e consumista, na qual perde-

se a beleza da vida (DUARTE JÚNIOR, 2004). Entretanto, problematizamos essa lógica, à

luz dos estudos culturais e dos estudos pós-críticos, tendo como princípio a concepção de

infância enigmática que nos escapa (LARROSA, 2013) e o conceito de dispositivo nos quais

os discursos são (re)produzidos e circulam (FOUCAULT, 1993).

Com as transformações científico-tecnológicas que ocorreram nas últimas décadas, a

educação vem sendo estruturada com a finalidade de formar pessoas para atuarem no

mercado de trabalho. Mercado esse que vem se expandindo cada vez mais com o aumento

1Mestranda em Educação (Ufla); Coordenadora do curso Gênero e Diversidade na Escola–Ufla .Integra o

Grupo de Pesquisa: Relações entre a Filosofia e Educação para a Sexualidade na Contemporaneidade: a

problemática da formação docente (Fesex) coordenado pela professora Dra. Cláudia Maria Ribeiro.

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2Mestranda em Educação (Ufla); Pedagoga (UFSJ). Coordenadora pedagógica–Cead/Ufla. Integra o Fesex.

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excessivo do consumo. Desse modo, encontramos na contemporaneidade acelerada, de

fronteiras fluidas3 um consumismo acelerado, em que as imagens tomam formas e

comportamentos normativos que absorvem as relações e as substituem de forma a anestesiar

os sujeitos. Neste contexto, é imprescindível buscar práxis educativas voltadas ao

desenvolvimento emocional, sensível e criativo das crianças nos espaços da Educação

Infantil.

Como estudiosas das sexualidades, das relações de gênero e da Educação Infantil,

refletimos que o fazer artístico, algumas vezes, não é tratado com intencionalidade nas

instituições de educação. Percebemos que a arte assume na escola o objetivo de desenvolver

capacidades relativas à psicomotricidade, ao desenvolvimento cognitivo “gráfico e em

particular, no caso do desenho, da pintura e da escultura, como formas de registro e

comprovação das atividades que as crianças têm realizado nas instituições [...]”

(OLIVEIRA, 2009, p. 1) no período que ali permanecem.

Isso remete a pensar: como as crianças vêm experienciando esse fazer artístico? E

ainda como se apropriam dele? E as professoras e professores dessas instâncias, que

formação possuem no âmbito das artes e do fazer artístico? Que contribuições esse saber

artístico pode trazer na e para a formação da Educação Infantil?

Pupo (2006) explicita que a arte/fazer artístico ensina as diferentes formas de se

relacionar e interagir com os elementos da cena e da vida, tornando a atmosfera do trabalho

e a vivência significativos à experiência. De acordo com Almeida (1992), ao conhecer e

compreender melhor as artes, as crianças tornam-se pessoas mais sensíveis, capazes de

perceber, de modo acurado, modificações no mundo físico e natural, e também de

experimentar diversos sentimentos que simbolizam o campo afetuoso de ternura, de

simpatia e de compaixão. Nesse cenário, no presente artigo buscamos problematizar o

material empírico decorrente da pesquisa: “A intencionalidade da arte na Educação Infantil”

considerando uma atividade desenvolvida em uma instituição pública de Educação Infantil,

visando sensibilizar o olhar das crianças e da instituição educativa. A pesquisa previu a

construção de um espaço que denominamos oficina, para a qual selecionamos uma obra de

arte e instigamos, intencionalmente, a observação, discussão e problematização da pintura

intitulada O casal Arnolfini, de Jan Van Eyck (figura 1).

3Cf. Bauman, Zygmunt. Tempos Líquidos (2007)

Figura 1 – O casal Arnolfini – 1434

Fonte: The National Gallery4

De acordo com Venson (2011), no início do século XV Jan Van Eyck destacou-se

pelo realismo pictórico, alcançando sucesso com a pintura de retratos. O Casamento de

Arnolfini, datado de 1434, pintado com óleo sobre madeira com medidas de 81,8 x 59,7 cm,

representa Giovanni de Arrigo Arnolfini, um mercador italiano, na companhia de sua noiva,

Giovanna Cenami. A obra é rica em detalhes, apresentando objetos e personagens que

propiciam a interpretação da cena e dos símbolos. Beckett (1997) detalha a cena:

O leito, a solitária vela acesa, o solene momento de união em que o jovem

noivo está prestes a pousar a mão direita na de sua prometida, as frutas, o

fiel cãozinho, o rosário, os pés descalço (pois se trata do chão em que se

dará uma união sagrada e até mesmo a distância respeitosa entre Giovanni

Arnolfini e Giovanna Cenami) todos esses elementos unificam-se no

reflexo do espelho (BECKETT,1997, p. 64 apud VENSON, 2011, p. 23).

A pintura representa o casamento dos Arnolfini. Cumming (1998) descreve que no

século XV, o matrimônio não requeria a presença de um sacerdote cristão, no entanto, a

autenticação da união exigia o comparecimento de duas testemunhas. Diante disso, suscitam

pensamentos de que a obra “O casamento de Arnolfini” seria um autorretrato de Van Eyck, 4Disponível em: http://www.nationalgallery.org.uk/paintings/jan-van-eyck-the-arnolfini-portrait Acesso em 9.

Abr. 2015.

o qual apareceria no espelho, junto à outra pessoa (BECKETT, 1997). Outro fator que

instiga essa reflexão é a assinatura acima do espelho- “Johannes de Eyck fuithic1434”

(CUMMING, 1998). Atualmente a pintura encontra-se em National Gallery de Londres, e é

considerada uma das obras mais notáveis de Van Eyck.

A obra de arte suscitou a fala das crianças sobre os seguintes temas: família,

moradia, gênero, casamento e outros temas que foram inusitados para as pesquisadoras. As

crianças propuseram ainda, a produção de uma história; texto coletivo produzido pelas

crianças.

ARTE, EDUCAÇÃO E A CRIANÇA PEQUENA

Ao iniciarmos esta discussão, torna-se necessário e de suma importância, refletirmos

o que prevê a legislação em relação à arte na Educação Infantil. Nos PCNs5 está proposto o

ensino de arte em todos os anos do ensino fundamental. Nos RNCEIs6, a arte é prevista como

“artes visuais”. Englobando e atribuindo

Sentido a sensações, sentimentos, pensamentos e realidade por meio da

organização de linhas, formas, pontos, tanto bidimensional como

tridimensional, além de volume, espaço, cor e luz na pintura, no desenho,

na escultura, na gravura, na arquitetura, nos brinquedos, bordados, entalhes

etc. O movimento, o equilíbrio, o ritmo, a harmonia, o contraste, a

continuidade, a proximidade e a semelhança são atributos da criação

artística. A integração entre os aspectos sensíveis, afetivos, intuitivos,

estéticos e cognitivos, assim como a promoção de interação e comunicação

social, conferem caráter significativo às Artes Visuais (BRASIL.

MEC/SEF. 1998, p, 84).

Cabe salientar que a arte está presente nas diversas formas de expressar das

infâncias: desenhar, rabiscar, amassar, riscar o chão, modelar. E como forma de expressão

humana, as artes visuais também são formas de linguagem. Entretanto, percebe-se que essas

práticas têm sido pouco recorrentes nas instituições de Educação Infantil de forma

intencional. Assim como os jogos e brincadeiras, a arte também possui uma dimensão

lúdica, poética, estética, política, possibilitando à criança criar e recriar seu mundo,

(re)pensa-lo de forma crítica e (re)produzi-lo. Como forma de linguagem e expressão a arte

5Parâmetros Curriculares Nacionais– Arte (BRASIL. MEC/SEF. 1997). 6Referenciais Curriculares Nacionais para Educação Infantil (BRASIL. MEC. 1998).

também liberta e alarga fronteiras, conduzindo os sujeitos a viajarem no imaginário e

materializarem suas invenções.

A arte aproxima as pessoas, assim, através das interações as crianças constroem

conhecimentos a partir das experiências com os outros. Logo, a arte torna-se ferramenta

essencial no processo de aprendizagem e formação humana desde a Educação Infantil. O

objetivo aqui não é somente discutir os benefícios da arte na Educação Infantil, mas,

também problematizar e dialogar a educação do sensível e das sexualidades, partindo das

experiências e falas das crianças e, de processos educativos que intencionalmente, provocam

problematizações sobre conceitos fundamentais ao cotidiano da educação. Uma vez que na

contemporaneidade vivenciamos mudanças nas composições familiares. A obra nos

apresenta um casal heterossexual. O que dizem as crianças sobre as famílias? Quais as

configurações familiares que atualmente se encontram nas escolas?

OFICINA DE ARTE EOS INUSITADOS DAS CRIANÇAS

Para suscitar as falas das crianças, a pesquisa realizada previu e foi desenvolvida

uma oficina para apreciação e observação da obra O casal Arnolfini. Analisando a obra do

ponto de vista simbólico, encontram-se várias denotações cabíveis de serem

problematizadas. Aprimeira impressão obeservada foi: um casal, aparentemente um homem

e uma mulher de mãos dadas em um quarto. A conotação que temos é a representação7 de

uma família nuclear. Isso porque temos um casal de mãos dadas com os pés no chão, uma

cama, o que leva a interpretar que estão à vontade e em casa. Embora em tempos e culturas

diferentes, de acordo com algumas análises, a cena presente representa uma cerimônia de

casamento. Ainda assim, percebe-se certa frieza nas expressões do e da modelo. Outro

destaque é a mulher segurando o vestido na altura do ventre. Qual o significado presente

nessa postura?

Cabe ressaltar que a problematização feita, não contempla uma análise profunda e/ou

detalhada do ponto de vista artístico, pois, o que objetiva-se coma oficina é refletir sobre as

falas das crianças quanto àobra, embora se perceba as muitas formas de olhar e analisar, os

7Conceito central em campos como a Filosofia e a Psicologia Social, nos quais tem conotações bastante

diferentes. Na análise cultural mais recente, refere-se às formas textuais e visuais através das quais se

descrevem os diferentes grupos culturais e suas características. No contexto dos Estatutos Culturais, a análise

da representação concentra-se em sua expressão material como “significante”: um texto, uma pintura, um

filme, uma fotografia. Pesquisam-se aqui, sobre tudo, as conexões no pressuposto de que não existe identidade

fora da representação (SILVA, 2000. p.97).

significados e temáticas envolvidas, bem como o contexto histórico social e cultural de sua

criação, o que resultaria em outro trabalho.

Assim, foi realizada no dia quatro de setembro de 2013, uma oficina intitulada O ficina

de Arte, com dezessete crianças de cinco anos em uma instituição de Educação Infantil no sul

de Minas Gerais. Sentadas em roda com as crianças iniciamos os trabalhos, nós e a professora

regente que foi parceira na realização da oficina. Nos apresentamos às crianças e iniciamos

nossos diálogos.

Na roda de conversa dialogamos sobre arte. Lançamos algumas questões:

Pesquisadora: Quem sabe o que é arte? O que é arte? Quem gosta de arte?

(Diário de campo (transcrição de registro auditivo): 04/09/2013).

As crianças foram se familiarizando com a nossa presença e ficando à vontade para

responderem e debaterem. Assim para aquelas crianças, arte seria:

Crianças:“Pintar”,“Brincar no parque”,“Fazer dever”,“Brincar de

massinha”, “Colorir”, “Escrever”...

Após essas falas, conversamos um pouco com as crianças sobre o que é arte, quem

as produz e indagamos: quem já viu uma obra de arte? As crianças silenciaram e então uma

respondeu, “eu já vi um homem pintando no Art Attack8

”. Em seguida expusemos em

retroprojetor algumas obras de arte: pintura, escultura, música e uma poesia. As crianças

observavam.

Ao terminar a exposição oral, apresentamos às crianças uma reprodução da obra “O

casal Arnolfini” em papel A3 e as convidamos para se aproximarem da reprodução e a

observarem. Observaram por alguns minutos e foram novamente confrontadas com outras

perguntas.

Pesquisadora: O que vocês estão vendo?

8Art Attack é um programa infantil de televisão, originalmente britânico, sendo transmitido pela primeira vez

em junho de 1990 pela Independet Television, por Neil Buchanan. O objetivo do programa é fazer com que os

telespectadores (crianças) façam arte com coisas muito simples. A primeira temporada do programa, em

versão brasileira foi produzida em 2000. Atualmente, a nova temporada é transmitida todos os dias pela manhã

no Disney Channel. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Art_Attack> Consultado em set. 2013.

Crianças:“Uma pintura”, “Uma moça”, “Cama”, “Sapato”, “Um

cachorro”, “Chifre” (se referindo ao penteado da modelo), “Chapéu”,

“Um moço”,“Uma janela”, “Um espelho! E dá pra ver gente no espelho”.

A instituição de Educação Infantil tem como uma de suas finalidades oportunizar o

acesso ao mundo da cultura para que a criança se aproprie dele. Entre esses conhecimentos,

encontra-se a linguagem, e é através dela que “o ser humano se comunica, tem acesso à

informação, expressa e defende seus pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo,

produz conhecimento” (NEDER; POSSARI; SOUZA, 2008, p.15). Desse modo, utilizando

a linguagem e o relato verbal - material empírico constituído pelas falas das crianças, as

quais expressaram e falaram sobre suas concepções e opiniões – nós problematizamos as

referidas falas. É importante destacar que as falas, sentimentos, e formas de perceber e estar

no mundo, é uma construção social, histórica e cultural.

Percebemos na Educação Infantil, através de nossas experiências profissionais e de

nossos estudos, uma práxis educativa na qual muitas vezes as professoras e professores

falam pelas crianças e/ou não oferecem oportunidades e possibilidades para que elas

mesmas falem por si. Numa atividade de releitura antes de apresentar uma obra, suas

características e seu contexto, porque não oportunizar às crianças de expressarem suas

impressões, seus sentimentos e sua imaginação?

Pesquisadora: Onde eles estão?

Crianças: “No quarto”

Pesquisadora: E onde fica esse quarto?

Crianças: “No castelo”

Pesquisadora: Por que no castelo? Crianças:

“Porque tem chão de madeira”

“Chão de madeira... castelo...” Concepções de moradia que as crianças conhecem

advinda da clássica literatura infantil e de desenhos animados embasados nesses clássicos. As

crianças criam novas possibilidades articulando suas realidades e os textos culturais9

.

Pesquisadora: E as roupas?

9Nas análises culturais de inspiração pós-estruturalista, que dão grande importância à linguagem, a expressão

textos culturais é utilizada para se referir a uma variada e ampla gama de artefatos que nos ‘contam’ coisas

sobre si e sobre o contexto em que circulam e em que foram produzidos. Filmes, obras literárias, peças

publicitárias, programas de rádio e TV, músicas, quadros, ilustrações, bem como livros didáticos, leis,

manuais, provas e pareceres descritivos, ou mesmo um museu, um shopping center, um edifício, uma peça de

vestuário ou de mobiliário, etc., são textos culturais (COSTA, 2002, p. 138).

Crianças: “A mulher está de vestido verde e ele está de roupa azul”, “O

homem está de vestido! Eu nunca vi homem de vestido”, “Ele é mulher”,

“Não! Ele não pode ser mulher. Nunca vi mulher casando com mulher!”, “A

mulher está grávida!”

Pesquisadora: Por que você acha que ela está grávida?

Crianças: “Porque eles querem ter filhos”, “Porque eles vão casar”,

“Porque são namorados” “Porque são uma família, igual a mim, minha

mãe e meu pai. Eu adoro minha família”.

Pesquisadora: O que vocês sentem ao observá-la?

Crianças:“Um tanto de coisas boas”, “Felicidade”, “Alegria”.

Nesse diálogo as crianças explicitam sua concepção de feminino, de masculino e de

família; trazem nessas falas a família dita ‘ideal’ e/ou ‘nuclear’, composta por um casal

heterossexual com filhos e/ou filhas.

Após a observação da obra foi proposto às crianças fazerem a sua releitura em papel

A3 com lápis de escrever e de colorir. Durante a releitura as crianças levantavam de seus

lugares iam até a reprodução da obra e observavam. Uma criança perguntou “Posso

desenhar a filhinha deles?” Reafirmamos a importância da criação livre de acordo com a

sua imaginação.

Figura 2

Releitura da obra O casal Arnolfini.

“Ela estava grávida. Agora os filhinhos já nasceram”.

Autora: Raissa, 2013

Figura 3

Releitura da obra O casal Arnolfini

“[...] são uma família, igual a mim, minha mãe e meu pai. Eu adoro minha família”.

Autora: Emily, 2013

Analisando as últimas falas e as produções das crianças (figuras 2 e 3), evidencia-se

a concepção normativa de família. Concepção essa que foi construída ao longo da história,

nos dispositivos10 e discursos produzidos social e culturalmente. Cabe salientar que as

normas contribuem para a produção de hierarquias a partir de determinados valores. Desse

modo, os sujeitos são posicionados de acordo com os padrões de legitimidade: alguns com

mais privilégios e outros com menos.

A ideia de família ideal ou nuclear, composta por pai, mãe e filhos/as, atípica “família

doriana” é uma concepção produzida culturalmente.

Os indicativos dessa idealização são facilmente encontrados em

propagandas e outros artefatos culturais produzidos socialmente [...] É

comum observamos imagens que contemplam casais felizes –em sua

maioria de pele branca– crianças obedientes alegres e bem nutridas. Esta

cena que compõe a “família doriana” destoa da realidade vivida pelas

famílias reais com as quais convivemos e até mesmo com a nossa

(XAVIERFILHA, 2012, p. 314-315).

Desse modo, a norma diz respeito a um padrão pré-estabelecido pela sociedade, uma

norma/regra a seguir e desejada pela cultura dominante. Mas, sabemos que esse modelo de

família tido como ideal é apenas um dentre tantos outros arranjos familiares existentes na

10Um conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas,

decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais

filantrópicas [...] o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer

entre esses elementos (FOUCAULT, 1993 apud LOURO, 2010, p. 12).

sociedade. Podemos citar aqui os arranjos familiares compostos por famílias amplas, na qual

se tem pai, mãe, filhos/as, avó, avô, tios/as, primos/as e agregados/as.

Temos também as famílias de casais que optaram em não ter filhos/as, famílias de

casais separados/as compostas por pai e filhos/as e talvez um/a companheira/o, ou a mãe e

filhos/as e um/a companheiro/a. Famílias sem laços sanguíneos, que adotam uma ou mais

crianças. E as famílias homoafetivas, formadas por dois homens ou duas mulheres. Esta

última concepção de família tem sido a mais criticada, por fugir à regra normativa de família

estabelecida pela sociedade. Assim, os arranjos que fogem a essa norma são ditos anormais,

pois, estão fora do padrão desejável.

A norma, em primeiro lugar, é testemunho de um facto pode ser também

um valor [...]. A norma, enquanto média, provém de uma constatação.

Mas, esta média, na medida que é a expressão estatística daquilo que é

vivido como saúde, exprime um valor: o ponto de equilíbrio pressentido

por um sujeito como seu bem. [...] A norma é, em consequência,

polaridade. [...] Com efeito, como já pudemos observar, o anormal não

encontra fora do normal; a partilha do normal e do anormal é uma espécie

de partilha interna, que procede sem exclusão e por inclusão (EWALD,

2000, p.116).

A escola, através de seus discursos normativos, tem reforçado a representação de

família nuclear. Quando a escola identifica uma dificuldade ou comportamento dito anormal

da criança, geralmente busca conhecer o relacionamento e a vivência familiar, não para

culpabilizar a criança, mas, para encontrar um problema nessa família que justifique seu

comportamento ou atitude fora do desejado pela escola, que pode estar relacionado a

motivos diversos (XAVIERFILHA, 2012). “Assim, cabe pensar que a escola contribui para

a reprodução da sociedade capitalista ao transmitir, através das matérias escolares, as

crenças que nos fazem ver os arranjos sociais existentes como bons e desejáveis” (SILVA,

2011. p. 32).

Segue a história criada pelas crianças, a partir da observação e problematização da

obra:

Era uma vez um casal bem bonito que queria ter muitos filhos. Eles

moravam em um castelo com muitas flores em volta. O casal tinha muito

amor e era muito feliz. A esposa se chamava Tifani Arnolfini e seu marido

se chamava Alenilson Arnolfini. Eles tinham um cachorro que se chamava

Bilu. Eles se casaram na igreja. Alenilson deu uma flor para Tifani e foram

comemorar o amor deles.

As crianças têm um jeito singular de se expressarem. São destemidas e falam a partir

da cultura em que estão inseridas, considerando

[...] os relatos construídos pelas crianças. Parto do princípio que uma

criança, de qualquer grupo social, após breves espaços de tempo, já

construiu algum tipo de identidade, tem uma memória construída (FARIA;

DEMARTINI; PRADO, 2005, p.7).

O texto, as falas e releituras produzidas pelas crianças nos instigam a pensar em

como essas ideais e concepções de família têm sido reproduzidas pela escola e pelos

diversos aparatos culturais presentes no cotidiano. Pensar a ideia de amor, casamento e

felicidade. É preciso casar na igreja para se constituir uma família? Ao problematizar as

falas das crianças, questiona-se: quais outros aspectos da realidade se relacionam?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo dessas linhas tentamos chamar a atenção para as relações estabelecidas

entre a arte presente na Educação Infantil e os processos de subjetivação que aos poucos vão

dando forma às várias subjetividades que a criança constrói processualmente ao longo do

tempo, através das diversas interações sociais e da cultura em que está inserida. Vimos que é

possível (des)construir discursos normativos e expandir olhares no sentido de problematizar

normas pré-estabelecidas gerando mais perguntas.

Precisamos revisitar nossas concepções, sensibilizar o nosso olhar, pensar na

complexidade das relações e assumir cotidianamente práticas que possibilitem novas formas

de perceber o mundo, de se relacionar com as pessoas e alargar as fronteiras do

conhecimento. E a arte, enquanto saber e fazer artístico afirma-se como instrumento de

reflexão, questionamentos e novas possibilidades. A arte possibilita a educação do sensível.

Educar para o sensível implica em (des)educar nosso olhar de educadoras e educadores.

Nossa formação deu-se a partir de uma educação tecnicista em que o saber sensível tinha

pouco valor.

Aqui se insistirá, pois, na necessidade atual e algo urgente de se dar maior

atenção a uma educação do sensível, a uma educação do sentimento, que

poder-se-ia muito bem denominar educação estética. Contudo, não nesse

sentido um tanto desvirtuado que a expressão parece ter tomado no âmbito

escolar, onde vem se resumindo ao repasse de informações teóricas acerca

da arte, de artistas consagrados e de objetos estéticos (DUARTE JÚNIOR,

2004. p. 15).

A arte, como componente curricular, é uma ferramenta que possibilita a educação

sensorial e crítica. Ela permite formar cidadãos e cidadãs críticos/as e questionadores/as.

Permite perceber o mundo com uma lente diferenciada daquilo que é produzido pelos

discursos normativos.

(...) professores e professoras ainda têm medo do desafio, ainda deixam que

suas preocupações sobre perda de controle prevaleçam sobre seus desejos de

ensinar. Ao mesmo tempo, aqueles e aquelas de nós que ensinamos os

mesmos velhos assuntos das mesmas velhas maneiras estamos, muitas

vezes, intimamente aborrecidos, incapazes de reacender paixões que um dia

podíamos ter sentido. Se, como sugere Thomas Merton, em seu ensaio sobre

pedagogia Aprendendo a viver, o propósito da educação é demonstrar aos

estudantes como definir a si mesmos "autêntica e espontaneamente em

relação" ao mundo, então professores e professoras podem ensinar melhor se

são auto-realizados (BELL HOOKS apud LOURO, 2010, p. 122-123).

Retomando a obra aqui exposta, salientamos que a mesma foi utilizada para suscitar

as falas das crianças de modo que estas pudessem expressar suas concepções e capacidade

de análise crítica. Aqui a arte foi ferramenta e metodologia para o exercício da livre

expressão e para a educação do sensível.

Alvarenga (2010) e Cruz (1998), reafirmam que a escola pode ser um lugar onde

novas práticas e novas (re)construções sejam possíveis. Mas como intervir? Onde intervir?

Para que intervir? Deve-se intervir? E quanto aos saberes que estão presentes no currículo?

Quem dita esses saberes? Para quem? E para quê? Nesse sentido, Tomaz Tadeu (2011), traz

questões em relação ao currículo e à diversidade existente na sociedade. Por que o currículo

privilegia alguns saberes e exclui outros? Como educar para o sensível? Como promover a

educação dos sentidos? Como sensibilizar profissionais da Educação Infantil para

acessarem obras de arte percebendo a educação sensível como um dos caminhos para a

formação de sujeitos politicamente críticos, pensantes, democráticos e ativos na sociedade?

Há inúmeros desafios a serem problematizados e intermináveis processos de

(des)construções para serem vivenciados. É preciso sensibilizar o olhar para quebrarmos

antigos paradigmas e tecermos novos aprendizados.

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