A intervenção do Serviço Social na Toxicodependencia
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1
TÍTULO: Para além do espelho - a intervenção de proximidade nas toxicodependências
RESUMO:
Os autores avaliaram uma população de utilizadores de drogas acompanhados por Equipas de
Rua protocoladas com o IDT ao longo de 1 ano de intervenção, no âmbito do modelo de
acompanhamento e avaliação de Equipas de Rua. No final de 1 ano, verificaram ganhos para a
saúde dos utentes, ao nível de alterações no seu padrão de consumo de substâncias, de
práticas de risco associadas a este consumo e a nível sexual e na inserção em projectos
terapêuticos. Constataram a necessidade de intervir de uma forma mais eficaz ao nível da
alteração do poli-consumo, da partilha de utensílios para o consumo pela via fumada e no
desenvolvimento de respostas de proximidade facilitadoras da realização de rastreios e do
tratamento de doenças infecciosas. Salientam a importância das respostas de proximidade
com uma orientação de investigação-acção como forma de incrementar a qualidade da
intervenção.
PALAVRAS-CHAVE: proximidade, equipas de rua, redução de riscos e minimização de danos,
avaliação
AGRADECIMENTOS: a realização deste estudo é apenas possível no quadro da intervenção
das equipas de rua que nele participaram, com o acompanhamento prestado pelo IDT.
Agradecemos também o apoio prestado pelo Núcleo de Investigação do ODT.
AUTORES:
Andrade, Paula Vale
Carapinha, Ludmila
Sampaio, Miguel
Shirley, Susana
Rodrigues, Isabel
Silva, Marta
2
Seduzido com a projecção de si próprio, Narciso desconhecia o seu verdadeiro Eu, sendo
consequentemente impermeável e absolutamente desconhecedor do Outro.
Também as instituições que funcionam em espelho, alimentando uma imagem de eficácia e
qualidade, qual Narciso1, viciadas em si próprias, sem serem capazes de se olhar criticamente
e simultaneamente apreender a realidade a que se destinam, estão condenadas a
permanecerem encerradas na sua própria toxicidade. Face a estas circunstâncias, perdem os
cidadãos reais, com necessidades reais.
Olhando para além do espelho, constatou-se também em Portugal que uma parte importante
da população dependente de drogas, com consumos muito problemáticos, não se deslocava
aos serviços de tratamento e/ou quando o fazia não prosseguia o percurso de tratamento,
mantendo-se, em muitos casos, numa situação de marginalidade.
A exclusão é um fenómeno que configura um défice de recursos (económicos, sociais,
culturais) que dificultam a participação social dos indivíduos (Capucha, 1998). É reprodutora de
si mesma, em que a cisão social proporciona por sua vez uma maior marginalização, não só
materialmente mas também simbolicamente, conduzindo a um sentimento de auto-exclusão.
Independentemente de o consumo de drogas ser causa ou consequência da exclusão social, o
consumo problemático é mais um factor potenciador da manutenção desta realidade. A
existência de cenas abertas de consumo de drogas, nas cidades metropolitanas de Lisboa e
Porto, locais emblemáticos como o Casal Ventoso ou o Bº do Lagarteiro, denunciavam, à vista
desarmada esta realidade.
O caminho para um serviço de tratamento apresentava-se como uma via de múltiplos sentidos,
o qual nem todos estavam dispostos ou conseguiam percorrer.
De facto, as estruturas existentes a nível estatal encontravam-se sobretudo vocacionadas para
uma população com um determinado nível de organização e de suporte familiar, prestando
sobretudo um atendimento clínico em contexto de gabinete, condições dificilmente compatíveis
com esta realidade em termos de exclusão (Marques e Fugas, 1996).
O fenómeno da toxicodependência tem-se revestido ao longo dos séculos na civilização
ocidental de uma (des)valorização moral muito marcada, caindo o consumo de drogas na
esfera do não aceite, variando a sua conotação com o vício, o crime ou a doença, consoante
as épocas e o desenvolvimento específico de cada sociedade. Independentemente da
conotação específica atribuída, o consumo de drogas tem sido entendido como algo a expurgar
pela sociedade, algo a punir ou algo a tratar.
Contudo, a constatação da existência de uma realidade onde se situam pessoas que não
beneficiam dos serviços sociais e/ou de saúde existentes, quer pela sua situação de exclusão
quer por não quererem ou não conseguirem deixar de consumir substâncias (nos casos dos
serviços de tratamento de dependências), aliada à noção fundamental do direito à saúde para
1 Etimologicamente, Narciso provém de narké, donde deriva também narcose e narcótico
3
todos, revelaram a necessidade de criar respostas na área da toxicodependência
caracterizadas por uma abordagem de proximidade, de uma maior flexibilidade, e pelo respeito
pela autonomia da pessoa nas suas escolhas relativamente à sua saúde (nomeadamente a
escolha de não abandonar o consumo de substâncias ilícitas) e nas suas opções de vida em
geral.
Perante este quadro, e tendo sido estabelecido o enquadramento legal para a implementação
de respostas de redução de riscos e minimização de danos através do decreto-lei 183/2001 de
21 de Junho, iniciou-se de uma forma sustentada em 2001 a implementação de uma rede
nacional de estruturas de redução de riscos e minimização de danos.
Reconhecendo que as organizações da sociedade civil de base territorial (IPSS) apreendem
melhor as expressões específicas do fenómeno da toxicodependência nos locais onde se
manifestam, entendeu-se constituírem estas as organizações mais adequadas para o
desenvolvimento de intervenções de proximidade, pelo que é através do estabelecimento de
parcerias com as IPSS que começaram a ser implementadas em 2001 as equipas de rua no
domínio da intervenção em RRMD.
Redução de Riscos e Minimização de Danos – uma abordagem de proximidade –
A Redução de Riscos e Minimização de Danos é uma abordagem eminentemente pragmática e
humanista. Segundo este tipo de intervenção, o olhar dos técnicos centra-se de forma não
valorativa nos comportamentos de consumo dos utentes, bem como no estilo de vida
entretanto desenvolvido por estes como forma de sustentar o seu hábito. Esta abordagem
preconiza uma hierarquia de metas realistas intermédias, desde o ponto em que o indivíduo
está, em termos de riscos e potenciais danos associados ao consumo, até ao ponto final, que
seria idealmente a abstinência. Cada uma destas metas intermédias corresponde por sua vez a
níveis maiores de protecção e menores níveis de risco para o indivíduo e para a saúde pública.
(Marlatt e col., 1998).
Esta abordagem concebe a existência de uma escala contínua em termos das consequências
associadas ao consumo de substâncias psico-activas, que vai desde o ponto de mais
numerosas e graves consequências, até ao ponto em que não existem consequências porque
não existe consumo. De facto, nesta abordagem mais moderada e gradual, sucede mesmo que
uma parte dos indivíduos acaba por escolher a abstinência apesar de inicialmente se ter
proposto a um objectivo intermédio (Marlatt, Blume e Parks, 2001).
Numa perspectiva humanista, importa identificar as necessidades do indivíduo consumidor
como um todo, procurando-se corresponder às necessidades mais básicas, frequentemente
insatisfeitas, e, a partir daí subir na hierarquia da satisfação das necessidades existentes.
(Marlatt e col.,1998).
Segundo este modelo, os técnicos vão ao encontro do nível de motivação para a mudança em
que se encontra o indivíduo, em alternativa ao nível de motivação que consideram que este
deveria ter. Neste processo gradual, é essencial o estabelecimento de uma relação de
confiança e a adopção de uma atitude empática relativamente aos comportamentos que a
4
pessoa tem na altura e suas motivações para a mudança, em alternativa a um modelo de “tudo
ou nada” em que o utente é directamente confrontado com o seu consumo e impelido a
procurar a abstinência.
Kellogg (2003) propõe a designação de “Gradualismo” para a abordagem de passos que ligam
a Redução de Riscos e Minimização de Danos sem objectivos de abstinência ao tratamento
com este tipo de objectivos. Este autor propõe mesmo neste âmbito uma tipologia evolutiva
segundo três categorias: diagnóstico da população, objectivos genéricos da intervenção e
motivação dos utentes.
Do ponto de vista do diagnóstico da população, considera uma escala que iria desde a situação
de extrema dependência de substâncias, passando pela dependência, abuso até à situação de
utilização esporádica. Relativamente aos objectivos genéricos da intervenção, considera um
ponto extremo em que o objectivo consiste em manter a pessoa viva, passando por objectivos
de manutenção da saúde até ao objectivo de a pessoa ficar saudável. Finalmente,
relativamente à dimensão motivacional, propõe uma categorização considerando as pessoas
que não conseguem parar de consumir no momento em causa, as pessoas que não pretendem
deixar de consumir e as que conscientemente escolhem utilizar substâncias.
A categorização proposta por Kellogg, tal como qualquer tipo de categorização, tem as suas
limitações, sobretudo na medida em que pretendem espelhar uma realidade que na verdade é
mais complexa. Naturalmente que existem situações intermédias das descritas e que mesmo
entre as categorias propostas não existe necessariamente uma situação de completa
exclusividade. Contudo, trata-se de uma categorização que facilita a compreensão da
gradualidade da intervenção nesta área, seja em termos das características da população alvo,
e, consequentemente, dos objectivos de intervenção delineados.
Existe alguma discussão se a abstinência deve ser considerada ou não dentro do âmbito da
Redução de Riscos e Minimização de Danos, ainda que se considere a situação limite em que
se anulam os riscos associados ao consumo de substâncias (Kellogg, 2003). Neste trabalho
importa sobretudo clarificar que cada passo no sentido de uma maior qualidade de vida do
indivíduo é reconhecido como um sucesso, pelo que, como poderá ser apreciado na
apresentação dos resultados, estes são analisados a vários níveis. Por exemplo, são
analisados resultados relativamente ao abandono do consumo de substâncias mas, de igual
forma, são analisados resultados relativamente à diminuição das práticas de risco.
No âmbito do modelo de Redução de Riscos e Minimização de Danos, são possíveis diversas
modalidades de intervenção, pretendendo-se descrever em maior detalhe neste artigo a
intervenção das equipas de rua.
O trabalho de rua é caracterizado por uma inserção na comunidade, constituindo-se como
factor de mudança desta. É também caracterizado por uma teia de relações entre técnicos,
consumidores de substâncias e seus pares, que, embora assumindo papéis diferenciados na
relação, interagem de forma democrática nos processos de tomada de decisão relativamente
ao percurso do utente (EMCDDA, 2001).
5
Esta abordagem de proximidade utilizada pelas equipas de rua, tem sido implementada de
forma diferenciada ao longo dos anos, segundo modelos mais centrados na mudança de
comportamentos de indivíduos ou centrados na rede de relações dos consumidores de uma
determinada comunidade, recorrendo ou não a pares, líderes comunitários, voluntários, com
componentes diversificadas (inclusão ou não de troca de seringas, fornecimento de outro tipo
de material, realização de rastreios, encaminhamentos, entre outros) (Needle e col., 2005).
O modelo mais vulgarmente utilizado pelas equipas de rua em Portugal é bastante diversificado
e abrangente em termos de serviços prestados.
Inclui genericamente actividades como: (a) informação/sensibilização relativamente a
comportamentos de risco; (b) troca de seringas; (c) oferta de outro tipo de material como água
destilada, filtro, preservativos, toalhete; (d) encaminhamento para respostas sociais e de
saúde, nomeadamente estruturas de tratamento para a toxicodependência; (e)
acompanhamento em termos de apoio social, psicológico, cuidados de enfermagem, entre
outros; (f) programa de metadona de baixo limiar de exigência (apenas em algumas equipas).
Estas respostas desenvolvem-se sempre com a orientação primária do respeito pelas opções
do utente relativamente ao consumo de substâncias.
Um olhar para além do espelho – modelo de avaliação das equipas de rua
A parceria estabelecida com as IPSS para a implementação das equipas de rua, tem-se
concretizado segundo um modelo de acompanhamento e avaliação específico, com
características semelhantes ao modelo proposto por Ogborne e Birchmore-Timney (Ogborne e
Birchmore-Timney, 1999).
Este modelo concretiza-se a nível local, através do acompanhamento realizado pelos
interlocutores dos CAT para a área da redução de riscos e minimização de danos, a nível
regional pela monitorização efectuada pelas Delegações Regionais e ao nível dos Serviços
Centrais, no Núcleo de Redução de Danos, que propõe as linhas de orientação técnico-
normativas para a prossecução e uniformização deste acompanhamento a nível nacional. Esta
sede de coordenação garante, de uma forma participada, a unidade intrínseca de todo o
processo de acompanhamento e avaliação realizado a nível local e regional.
O modelo de avaliação da intervenção das equipas de rua consiste na análise da
implementação da intervenção em relação aos resultados alcançados, tendo em conta o
contexto onde esta é desenvolvida e os factores pessoais, comunitários, profissionais e
institucionais inerentes ao trabalho de rua.
Este processo permite obter informação objectiva acerca da evolução das necessidades da
população-alvo e da comunidade envolvente, sobretudo em termos de disponibilidade de
serviços, bem como da evolução das especificidades da intervenção das equipas de rua a nível
nacional.
Neste sentido, foram desenvolvidos instrumentos que possibilitam a avaliação da execução
técnica e financeira dos projectos implementados pelas entidades parceiras, nomeadamente:
6
Relatório de Avaliação (Técnico e Financeiro), Relatório Mensal de Indicadores, Ficha do
Utente (Caracterização e Avaliação), Relatório de Acompanhamento do CAT e Parecer da
Delegação Regional (Técnico Financeiro).
O estudo que se apresenta neste artigo constitui uma abordagem relativamente à apreciação
da evolução de uma amostra de consumidores de substâncias que são utentes de Equipas de
Rua com as quais o IDT estabeleceu um protocolo de Autorização para Criação,
Funcionamento e concessão de Financiamento.
Não sendo do âmbito deste estudo identificar todas as variáveis que influenciam a mudança
dos utentes, nem tão pouco a medida e a forma como se processa esta influência numa
população tão alargada, pressupõe-se que a intervenção das Equipas de Rua tem um
contributo muito importante na alteração de comportamentos de consumo, de comportamentos
de risco, de adopção de projectos terapêuticos, de cuidado com a saúde e que portanto as
alterações observadas são também resultado da intervenção destas, em interacção,
naturalmente, com outras variáveis.
A análise das modificações observadas no percurso dos utentes alvo do estudo permitirá
identificar quais as áreas em que a intervenção tem tido um maior sucesso, bem como levantar
questões relativamente a outras áreas em que a intervenção tem tido um sucesso inferior e que
portanto deverão ser melhor discutidas e trabalhadas.
Somente com um olhar crítico face ao trabalho desenvolvido é possível identificar lacunas e
transformá-las em desafios para melhorar a intervenção.
Metodologia
A investigação que se apresenta é resultado do trabalho das Equipas de Rua protocoladas com
o IDT, que acompanharam, numa lógica de proximidade a amostra de indivíduos estudada.
Estudou-se uma amostra de 331 utentes acompanhados ao longo de 1 ano pelas Equipas de
Rua participantes (15 em 24 equipas) no estudo (Tabela 1). A composição desta amostra não
obedeceu a nenhum critério específico de selecção.
7
Tabela 1. Distribuição de utentes que compõem a amostra pelas equipas de rua participantes
Utentes
(nº)
In Loco 46 S.M.A.C.T.E. 52 Aproximar 49 E.R. Barlavento 1 FOCUS 3 PORTO + SEGURO 44 Encontros de Rua 11 Cidade Segura 5 E.R. Espaço Pessoa 7 GIRU - GAIA 19 FILOS 1 METAS 18 Encontros de Rua (Setúbal) 13 Estrada com Horizontes 61 E.R. Pioneira do Casal Ventoso – Bv 1
Equipa de Rua
TOTAL 331 Este estudo baseia-se numa comparação de dados recolhidos numa fase inicial da intervenção
destas Equipas de Rua com estes utentes (através da Ficha de Caracterização do Utente) com
dados recolhidos após 1 ano de intervenção com estes (através da Ficha de Avaliação do
Utente). Isto significa que foram considerados utentes caracterizados em 2004 e avaliados
após 1 ano até ao final de 2005.
A Ficha de Caracterização do Utente compreende como áreas de informação: dados sócio-
demográficos, dados familiares, história dos consumos anteriores, bem como de tratamentos
anteriormente realizados, situação actual dos consumos, comportamentos de risco, dados
clínicos, dados judiciais, acompanhamento e encaminhamento a realizar ao utente.
Por sua vez, a Ficha de Avaliação do Utente compreende um conjunto de áreas idênticas
(situação actual dos consumos, comportamentos de risco, dados clínicos, história do último ano
em termos de projectos terapêuticos desenvolvidos e acompanhamento e encaminhamento
efectuados ao utente), permitindo desta forma efectuar uma comparação de dados.
O preenchimento de ambos os instrumentos é realizado por um técnico da Equipa de Rua que
intervém junto do utente, a partir do momento em que existe uma relação de proximidade que
proporcione a colocação de questões. A recolha de informação é realizada informalmente, em
contexto de rua, no âmbito dos contactos que vão sendo estabelecidos entre o técnico e o
utente. Uma das orientações fundamentais na recolha desta informação consiste no
compromisso de confidencialidade com o utente relativamente à informação recolhida.
Os dados recolhidos foram analisados estatisticamente com o apoio do software SPSS 14.0
para Windows.
8
Resultados
I. Caracterização da população
Na fase inicial da intervenção verificou-se que, em termos de caracterização sócio-
demográfica, a generalidade dos utentes era do género masculino (84,8%), solteira (63,0%), de
nacionalidade portuguesa (94,2%) e com idade compreendida entre 27 e 46 anos (85,8%).
A maioria dos utentes tinha habilitações literárias ao nível do ensino básico (71,2%),
encontrava-se desempregada (88,5%) e, em termos habitacionais, vivia em casa de familiares
(42,7%). A generalidade dos utentes não beneficiava de qualquer apoio pecuniário (75,9%).
A maior fatia da população vivia com os pais (32,1%), seguida dos utentes que viviam sozinhos
(26,8%).
Verifica-se ainda que praticamente metade dos utentes avaliava a sua relação com a família
como satisfatória (41,8%). Uma parte importante destes tinha familiares que consumiam
substâncias psico-activas (41,3%), sendo que, de entre estes, a grande maioria consumia
substâncias ilícitas (82,2%), sendo estas consumidas sobretudo por membros da família directa
do utente (83,6%).
No que diz respeito à sua situação judicial, constata-se que cerca de 36,5% dos utentes já
tinham sido detidos pelo menos uma vez na vida e 28,1% já tinham estado efectivamente
presos. À data da caracterização, 39,4% dos utentes tinham situações para resolver com a
justiça2.
No que diz respeito à história clínica dos utentes, verifica-se que 11,6% haviam sofrido
situações de sobredosagem aguda ao longo da vida. A grande maioria já tinha realizado algum
tipo de desabituação do consumo (85,7%)3 e mais de metade já tinha efectuado algum tipo de
tratamento relativamente ao consumo de substâncias (69,4%).
Trata-se portanto de uma população que conhecia o sistema de tratamento, que já havia
iniciado projectos terapêuticos com vista a melhorar a sua qualidade de vida, projectos e
percursos sem sucesso.
Relativamente ao perfil de consumo de substâncias, praticamente todos os utentes (85,2%)
consumiam heroína e mais de metade consumia cocaína (64,5%), ou seja, uma boa parte dos
utentes consumia heroína e cocaína. Destaca-se em terceiro lugar a percentagem de utentes
que consumia cannabis (32,6%). Menos frequentes, mas também com percentagens
relevantes, são os utentes que consumiam benzodiazepinas (13,0%) e aqueles que
consumiam álcool (14,8%).
De facto, praticamente todos os utentes faziam poli-consumo de substâncias (83,0%). Regra
geral, a substância eleita como principal era a heroína (para 59,0% dos utentes), seguida da
2 Desconhece-se este dado para 10,3% dos utentes 3 Desconhece-se este dado para 11,5% dos utentes
9
cocaína (para 7,9% dos utentes). 11,4% dos utentes consideravam por sua vez a conjugação
destas duas substâncias como prioritário.
Estes utentes consumiam heroína sobretudo pela via endovenosa (62,2%) mas também em
larga medida pela via fumada (42,9%). O consumo era essencialmente diário (89,0%).
Por outro lado, no grupo dos utentes que consumia cocaína, uma dimensão semelhante
utilizava a via fumada (50,0%) e a via injectada (51,0%). Da mesma forma, uma percentagem
semelhante de utentes referia um consumo esporádico (50,0%) e diário (49,1%) desta
substância.
De entre os utentes que consumiam benzodiazepinas, 90,5% utilizava a via oral mas 19% dos
utentes injectavam estas substâncias. O seu consumo era essencialmente esporádico (61,9%),
mas 35,7% dos utentes que consumiam benzodiazepinas faziam-no segundo um regime diário.
Relativamente à adopção de práticas de risco, verifica-se que cerca de 28,5% partilhava
material de consumo e 62,9% (de entre os utentes com parceiro) tinha práticas de risco a nível
sexual (não utilizavam preservativo)4.
No que diz respeito à situação clínica dos utentes, constatou-se que a condição infecciosa
mais presente na população era a Hepatite C (identificada em 59,5% dos Utentes rastreados),
seguida do VIH/SIDA (33,5%) e Hepatite B (22,5%)5.
II. Intervenção realizada pelas equipas de rua junto desta população
A intervenção que aqui se apresenta como tendo sido planeada e concretizada pelas Equipas
de Rua, diz respeito a um conjunto de serviços sociais e de saúde que as Equipas executam
directamente (acompanhamento) ou para os quais encaminham os utentes, seleccionados de
entre os genericamente propostos na Ficha de Caracterização do Utente e Ficha de Avaliação
do Utente, não delimitando todo o universo da intervenção realizada por estas estruturas.
O Acompanhamento planificado no início da intervenção centra-se sobretudo no Apoio Social
(85,2%), Apoio Psicológico (60,1%) e Alimentação (50,5%). Estas foram também as áreas de
intervenção mais implementadas a este nível, tanto no 1º semestre como no 2º semestre de
intervenção (Figuras 1 e 2)6.
4 Desconhece-se esta informação relativamente a 11,2% dos utentes 5 Estes dados são relativos aos utentes que foram rastreados. Note-se que cerca de metade dos utentes não foram rastreados 6 Desconhece-se a informação relativamente ao acompanhamento concretizado no 1º semestre para 11,5% dos utentes
10
Figura 1. Acompanhamento concretizado no 1º semestre
Figura 2. Acompanhamento concretizado no 2º semestre
Considerando por outro lado os encaminhamentos planificados, as estruturas para onde foi
planificado o encaminhamento de um maior número de indivíduos foram o CAT (Figuras 3,4:
70,6%) e a Segurança Social (Figuras 3,4: 34,5%).
Verifica-se portanto uma priorização no encaminhamento para tratamento no CAT. De facto,
somando a percentagem de utentes para os quais se planificou o encaminhamento para o CAT
(70,6%) com a percentagem de utentes para os quais se planificou o encaminhamento para
Comunidade Terapêutica (10,9%), constata-se que para praticamente todos os utentes (cerca
de 80%) se planificou uma abordagem de tratamento com vista ao abandono do consumo de
substâncias.
No caso do CAT, a percentagem de utentes para os quais foi planificado este encaminhamento
(70,6%) é claramente superior à percentagem de utentes efectivamente encaminhados, quer
no 1º semestre (56,5%), quer no 2º semestre (43,0%), ainda que estas percentagens sejam
bastante elevadas, sobretudo se se considerar que se trata de consumidores de longa duração
e com experiências de insucesso no tratamento.
77,4%
17,0%
12,4%
13,9%
5,3%
61,6%
13,6%
5,3%
45,5%
3,1%
85,2%
27,8%
18,4%
24,2%
6,6%
60,1%
17,5%
2,1%
50,5%
3,0%
Apoio Social
Consultas Médicas
PSO
Cuidados de Higiene
Apoio Jurídico
Apoio Psicológico
Cuidados de Enfermagem
Terapêutica Medicamentosa
Alimentação
Outro acompanhamento
Concretizado no 2º semestre Planeado
83,3%
16,0%
15,0%
21,8%
6,1%
61,2%
16,7%
5,4%
56,5%
8,5%
85,2%
27,8%
18,4%
24,2%
6,6%
60,1%
17,5%
2,1%
50,5%
3,0%
Apoio Social
Consultas Médicas
PSO
Cuidados de Higiene
Apoio Jurídico
Apoio Psicológico
Cuidados de Enfermagem
Terapêutica Medicamentosa
Alimentação
Outro acompanhamento
Concretizado no 1º semestre Planeado
11
Por outro lado, os encaminhamentos planeados para a Segurança Social foram largamente
ultrapassados no 1º semestre (em cerca de 10%), tendo coincidido com os que efectivamente
se concretizaram no 2º semestre.
Numa medida semelhante aos acompanhamentos planeados em termos de Consultas Médicas
(27,8%) é planeado o encaminhamento de Utentes para o Centro de Saúde (23,6%) e um
pouco menos para o Hospital (8,5%).
De uma forma geral, comparando a intervenção planeada ao nível dos encaminhamentos com
a concretizada, existe uma correspondência entre ambas (Figuras 3 e 4)7.
Figura 3. Encaminhamentos concretizados no 1º semestre
Figura 4. Encaminhamentos concretizados no 2º semestre
7 Desconhece-se os encaminhamentos concretizados para 11,5% dos utentes no 1º semestre
12,6%
10,2%
8,5%
56,5%
10,6%
1,4%
24,5%
6,1%
5,4%
0,7%
8,5%
44,6%
10,2%
8,5%
15,5%
13,3%
70,6%
4,8%
1,8%
23,6%
4,9%
6,6%
0,0%
10,9%
34,5%
8,5%
Hospital
CDP
Gabinete de Apoio
CAT
Unidade de Desabituação
Centro de Dia
Centro de Saúde
CAD
C. Acolhimento
C. Abrigo
Comunidade Terapêutica
Segurança Social
Outra estrutura
Concretizado no 1º semestre Planeado
11,1%
8,0%
9,0%
43,0%
5,3%
1,5%
14,2%
5,6%
5,3%
0,0%
7,1%
33,1%
11,5%
8,5%
15,5%
13,3%
70,6%
4,8%
1,8%
23,6%
4,9%
6,6%
0,0%
10,9%
34,5%
8,5%
Hospital
CDP
Gabinete de Apoio
CAT
Unidade de Desabituação
Centro de Dia
Centro de Saúde
CAD
C. Acolhimento
C. Abrigo
Comunidade Terapêutica
Segurança Social
Outra estrutura
Concretizado no 2ºsemestre Planeado
12
III. Evoluções observadas na amostra em estudo
Evolução observada no perfil de consumo da população
De entre os 331 utentes em estudo, apenas 229 mantiveram o consumo de substâncias psico-
activas ilícitas ao longo do ano em análise. Em termos percentuais, verificou-se um decréscimo
em cerca de 26,2% na percentagem de consumidores de substâncias psico-activas ilícitas.
Por outro lado, tendo em conta os consumidores de substâncias psico-activas ilícitas (319
utentes no início da intervenção e 217 após 1 ano), constata-se que a percentagem que
efectuava poli-consumo diminuiu de 83,0% para 77,9%.
No entanto, os utentes que mantiveram o poli-consumo de substâncias (264 utentes
efectuavam poli-consumo no início da intervenção, tendo mantido esta prática cerca de 169
utentes) não efectuaram grandes alterações no que diz respeito ao número de substâncias
principais (sp) e ao número de substâncias secundárias (ss) consumidas. Como se pode
observar nas Figuras 5 e 6, as percentagens apresentam poucas variações após 1 ano de
intervenção.
Figura 5. Evolução no número de substâncias principais (sp) consumidas
Figura 6. Evolução no número de substâncias secundárias (ss) consumidas
67,9%66,0%
27,9%30,9%
3,4% 2,5% 0,4% 0,6% 0,4%
1sp 2sp 3sp 4sp 5sp
Início 1 ano
18,6% 17,9%
51,5%45,7%
22,3%25,9%
4,5%8,0%
2,3% 1,9% 0,8% 0,6%
0ss 1ss 2ss 3ss 4ss > 4ss
Início 1 ano
13
Analisando a evolução no tipo de substâncias consumidas pelos utentes que mantiveram o
consumo de substâncias psico-activas ilícitas (319 consumidores no início da intervenção, 217
após 1 ano), salienta-se com maior evidência o decréscimo em 16,8% na percentagem de
utentes que consome heroína (de 88,1% para 71,3%). De forma oposta, a percentagem de
utentes que consome cannabis aumentou cerca de 7,1%. É de registar também o aumento,
embora que ligeiro, da percentagem de utentes que consome benzodiazepinas. Por outro lado,
a percentagem de utentes que consome cocaína manteve-se inalterada. De facto, no final de 1
ano de intervenção, é muito semelhante entre si a percentagem de utentes que consome
heroína e cocaína (Figura 7).
Figura 7. Evolução no tipo de substâncias consumidas
Como é possível observar na Tabela 2, destaca-se sobretudo a tendência ao nível da
diminuição da percentagem de utentes que consome heroína e/ou cocaína pela via
endovenosa e, paralelamente, o aumento na percentagem de utentes que consome estas
substâncias pela via fumada. Estes dados sugerem que uma parte dos utentes acompanhados
terá substituído a via injectada pela via fumada no consumo destas substâncias.
Tabela 2. Evolução na via de administração utilizada no consumo de substâncias
(1) Note-se que estes dados são relativos apenas a 4 utentes dado que dos 18 utentes que consumiam buprenorfina não prescrita no início da intervenção apenas se dispõe de dados sobre a via de administração utilizada relativamente a 4. (2) Note-se que estes dados são relativos a apenas 10 utentes (número de utentes que no final de 1 ano referiu consumir buprenorfina não prescrita). Desconhece-se a via de administração utilizada relativamente a 5 utentes.
Analisando a frequência do consumo de substâncias, será de destacar a tendência para a
diminuição do consumo diário de heroína, cocaína e buprenorfina não prescrita. De forma
Via Injectada Via Fumada Via Inalada Via Snifada Via Oral
Início 1 ano Início 1 ano Início 1 ano Início 1 ano Início 1 ano
Heroína 62,2%
55,2%
42,9%
47,9%
2,9%
0,7%
Cocaína 51,0% 47,5% 50,0% 52,6%
2,4% 3,6%
Benzodiazepinas 20,0% 16,2%
90,0% 86,5%
Buprenorfina np 75,0%
(1) 90,0%
(2)
25,0% (1)
20,0% (2)
88,1%
67,0%
5,6%
5,6%
1,3%
3,1%
13,5%
1,3%
33,9%
71,3%
67,3%
2,3%
5,6%
0,5%
3,1%
17,9%
0,9%
41,0%
Heroína
Cocaína
Metadona np
Buprenorfina np
Alucinogéneos
Anfetaminas
Benzodiazepinas
Ecstasy
Cannabis
Início 1 ano
14
oposta, observa-se um aumento no consumo diário de benzodiazepinas. Finalmente, a
percentagem de utentes que consome cannabis diariamente mantém-se semelhante após 1
ano de intervenção (Tabela 3).
Tabela 3. Evolução no consumo diário de substâncias
Evolução observada na adopção de práticas de risco
A percentagem de utentes que partilhava material de consumo no início da intervenção
diminuiu em 6,7% (28,5% no início e 21,8% passado 1 ano), apesar de o número absoluto de
utentes que partilham este material ter diminuído drasticamente (de 89 para 46 utentes). Tal é
explicado pelo facto de ter reduzido muito o universo de utentes que consome substâncias
psico-activas ilícitas.
Os utensílios relativamente aos quais se observa uma diminuição da partilha são aqueles
fornecidos no kit de consumo asséptico: a seringa e o filtro. De facto, diminuiu em 37,7% a
percentagem de utentes que partilha seringa e em 13,8% a percentagem de utentes que
partilha o filtro.
Por outro lado, a partilha de recipiente diminuiu ligeiramente (6,8%), tendo mesmo aumentado a
percentagem de utentes que partilham o tubo de fumar, o tubo de inalar e o cachimbo/garrafa
(Figura 8).
Figura 8. Evolução nos utensílios partilhados
Início 1 ano
Heroína 89,3% 71,8%
Cocaína 49,5% 37,6%
Metadona np 12,5% 20,0%
Buprenorfina np 33,3% 20,0%
Benzodiazepinas 36,6% 43,2%
Cannabis 55,5% 51,1%
64,1%
24,4%
48,3%
41,5%
23,0%
46,3%
4,6%
33,3%
19,5%
2,3% 4,9% 4,6%
12,2%
Seringa Recipiente/colher Tubo de fumar Tubo de snifar Algodão/filtro Tubo de inalar Cachimbo/garrafa
Início 1 ano
15
No que diz respeito aos comportamentos de risco a nível sexual (não utilização de preservativo
na relação sexual), os dados apontam para que, de entre os utentes com parceiro sexual (161
no início da intervenção e 125 passado 1 ano), a tendência é no sentido da adopção de
práticas mais seguras: a percentagem de utentes que não utiliza protecção na relação sexual
diminuiu de 62,9% para 47,9%, sendo também de salientar a diminuição de não respostas (no
início da intervenção, a percentagem de Utentes dos quais se desconhece este comportamento
é de 11,3%, anulando-se praticamente este valor no final de 1 ano de intervenção).
Evolução observada na população relativamente à sua situação clínica
A percentagem de utentes rastreados sofreu poucas alterações ao longo do ano de
intervenção, sendo de concluir que a generalidade dos utentes foi rastreada logo no início da
intervenção.
De entre os utentes que fizeram rastreio, cerca de metade beneficiou de aconselhamento pré-
análise. Por outro lado, de entre os utentes que fizeram rastreio e apresentaram os resultados
das análises, mais de 70% em todas as situações clínicas beneficiou de aconselhamento pós-
análise (Tabela 4)8.
Tabela 4. Realização de aconselhamento pré e pós análise
Considerando os utentes com diagnóstico positivo de cada uma das situações clínicas
estudadas, constata-se que de uma forma geral a percentagem de utentes em tratamento
diminuiu.
Constitui excepção as IST, dado que neste caso a percentagem de utentes em tratamento
aumentou (Figura 9)9.
8 Note-se que a percentagem de utentes relativamente aos quais se desconhece se fizeram o aconselhamento pré-análise é bastante elevada, variando entre 30% e 45%. No caso do aconselhamento pós-análise situa-se entre 10% e 11% 9 Note-se que tanto no início do ano como no fim, a percentagem de utentes com diagnóstico positivo de cada uma das situações infecciosas relativamente aos quais se desconhece se estão em tratamento ou não, é muito elevada, variando entre 20% e 60%
Situação Clínica Aconselhamento pré-análise Aconselhamento pós-análise
VIH/SIDA 58,9% 86,3% Hepatite B 58,6% 84,8% Hepatite C 57,6% 71,1% Tuberculose 58,8% 86,8% IST 59,0% 86,1%
16
Figura 9. Evolução da percentagem de utentes em tratamento
Figura 9. Evolução da percentagem de utentes em tratamento
Evolução observada relativamente à realização de alguma abordagem terapêutica
relativamente ao consumo de substâncias (Programa de Substituição Opiácea, Unidade
de Desabituação, CAT, Comunidade Terapêutica…)
De entre os 331 utentes da população em estudo, ao longo do ano de intervenção, cerca de 132
fizeram desabituação do consumo, 127 iniciaram um programa de substituição opiácea (PSO.)
e 68 iniciaram outro tipo de abordagem terapêutica, em CAT, Comunidade Terapêutica, Médico
Particular...
a. Projecto de desabituação do consumo de substancias psico-activas
Em ambos os semestres, constata-se que a maior parte dos utentes que fez desabituações do
consumo utilizou medicação como recurso, sendo no 2º semestre esta tendência menos
acentuada (Figura 10).
Figura 10. Utilização de medicação em processos de desabituação
De forma semelhante em ambos os semestres, a maior fatia realizou a desabituação do
consumo em casa, sendo no entanto também de salientar a percentagem de utentes que a
62,2%56,5%
30,0%
8,3%
27,6%
15,0%
50,0%50,0%
33,3%
100,0%
HIV Hepatite B Hepatite C Tuberculose DST
Início 1 ano
74,3%
60,6%
19,8%
39,4%
5,9%
com medicação sem medicação paragens com esem medicação
1º semestre 2º semestre
17
realizou numa Unidade de Desabituação (Figura 11)10. A grande maioria efectuou entre 1 e 2
paragens ao longo do ano em causa.
Figura 11. Contexto de realização de processos de desabituação
Analisando a relação entre a realização de processo de desabituação e o consumo de
substâncias psico-activas ilícitas constata-se que a maior percentagem de utentes que realizou
processos de desabituação no 1º ou no 2º semestre manteve o consumo de substâncias psico-
activas ilícitas: 67,8% dos utentes que efectuaram desabituação do consumo no 1º semestre e
73,1% dos utentes que efectuaram este processo no 2º semestre (Tabela 5). É possível que,
para alguns destes utentes a desabituação do consumo seja utilizada de forma instrumental,
com o propósito de diminuir o nível de tolerância à substância.
Tabela 5. Relação entre a realização de desabituação do consumo e o consumo de substâncias
b. Projecto de programa de substituição opiácea (PSO)
De entre os utentes que frequentaram PSO ao longo do ano de intervenção, a grande maioria
integrou um programa terapêutico com metadona, em ambos os semestres (Figura 12).
10 Note-se que se desconhece esta informação relativamente a 14,4% dos utentes
Realizou desabituações no 1º semestre
Realizou desabituações no 2º semestre
Sim Não Sim Não
Sim 67,8% 80,7% 73,1% 70,2% Consumo de substâncias psico-activas Não 32,2% 19,3% 26,9% 29,8%
TOTAL 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
14,3%
3,0%
56,3%56,1%
31,1% 31,8%
13,4% 13,6%
Ambulatório Casa Unidade deDesabituação
Outraestrutura
1º semestre 2º semestre
18
Figura 12. Tipo de PSO realizado
Cerca de metade dos utentes que fizeram PSO utilizaram como contexto de administração o
CAT. Os restantes utentes realizaram este programa em colaboração com as Equipas de Rua
ou com outras entidades – sobretudo o Centro de Saúde e a administração pelo próprio utente
(Figura 13).
Figura 13. Contexto de administração do PSO
De entre os utentes que começaram a frequentar o PSO, cerca de 20% deixou de consumir
substâncias no 1º semestre e 21,8% no 2º (Tabela 6).
Tabela 6. Relação entre a inserção em PSO e o consumo de substâncias
Frequência de PSO no
1º semestre Frequência de PSO no
2º semestre
Sim Não Sim Não
Sim 80,0% 100,0% 78,2% 63,5% Consumo de substâncias psico-activas Não 20,0% 0,0% 21,8% 36,5%
80,2%84,3%
20,7%15,7%
Metadona Buprenorfina
1º semestre 2º semestre
64,6%
57,9%
20,4% 23,1%19,5%
25,6%
CAT Equipa de Rua Outra Entidade
1º semestre 2º semestre
19
c. Outro projecto de tratamento (em Comunidade Terapêutica, CAT,…)
De entre os utentes que realizaram tratamento, a generalidade efectuou este processo no CAT.
Destaca-se em segundo lugar a percentagem de utentes que realizou tratamento em
Comunidade Terapêutica (Figura 14).
Figura 14. Contexto de realização de tratamento
Constata-se que a inserção em tratamento não foi determinante do abandono do consumo de
substâncias psico-activas ilícitas. Como se pode observar na Tabela 7, 69,0% dos utentes que
iniciaram tratamento no 1º semestre continuaram a consumir substâncias psico-activas ilícitas,
o mesmo sucedendo a 60,0% dos utentes em tratamento no 2º semestre. Por outro lado, em
ambos os semestres, a percentagem de utentes que consome substâncias psico-activas ilícitas
é superior no grupo de utentes que não iniciou tratamento (88,0% no 1º semestre e 76,3% no
2º).
Tabela 7. Relação entre a inserção em tratamento e o consumo de substâncias psico-activas
ilícitas
Discussão e Conclusões
As Equipas de Rua efectuaram um extenso trabalho de acompanhamento e encaminhamento
dos utentes estudados, sobretudo nos domínios Social, Psicológico, de Alimentação, de
encaminhamento para a Segurança Social, Centro de Saúde e CAT, para além da restante
intervenção no domínio da redução de riscos e minimização de danos.
De facto, na caracterização da amostra, constatou-se que se tratava de uma população sem
recursos financeiros estáveis e que uma percentagem importante não beneficiava de qualquer
Inserção em tratamento no 1º semestre
Inserção em tratamento no 2º semestre
Sim Não Sim Não
Sim 69,0% 88,0% 60,0% 76,3% Consumo de substâncias psico-activas Não 31,0% 12,0% 40,0% 23,7%
TOTAL 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%
64,3%
7,1%
7,1%
4,8%
21,4%
2,4%
60,0%
3,3%
3,3%
36,7%
6,7%
3,3%
CAT
Centro de Saúde
Hospital
Médico Particular
Comunidade Terapêutica
Estabelecimento Prisional
Outro local
1º semestre 2º semestre
20
apoio pecuniário. Por outro lado, o próprio estilo de vida associado a um consumo problemático
de substâncias de longa data são factores que indiciam a necessidade de um apoio psicológico
genérico, constituído por vias de uma relação de confiança com o técnico da Equipa de Rua.
Neste âmbito é de salientar a ênfase colocada pelas Equipas de Rua na vertente do
encaminhamento para o tratamento (planeou-se o encaminhamento de praticamente todos os
Utentes para tratamento). Será portanto de colocar a questão de se nesta fase inicial da
intervenção, esta planificação centrada no tratamento reflecte as reais motivações dos utentes
ou se, por outro lado, reflecte os desejos e motivações dos técnicos.
Há contudo um conjunto de respostas menos accionadas, nomeadamente o Acompanhamento
Jurídico ou Encaminhamento para serviços que efectuem este acompanhamento, reflectindo
por um lado eventuais constrangimentos na rede comunitária de apoio, constrangimentos
operacionais das próprias Equipas ou as atitudes/necessidades dos utentes.
Após um ano de intervenção das equipas de rua, os resultados descritos descrevem ganhos
importantes para os utentes, ganhos estes que se consubstanciam numa qualidade de vida
superior à do início da intervenção (tendo em conta os parâmetros estudados), com
comportamentos de um maior nível de protecção e de menor risco para a sua saúde e a nível
social. De facto, tendo como referência a escala gradual desde a situação de maiores riscos e
danos até à situação de ausência de riscos, é possível afirmar que estes 331 utentes
genericamente deram importantes passos no sentido de uma vida com maior qualidade.
O balanço realizado acerca destes resultados ganha uma conotação particularmente positiva
quando se tem em consideração algumas características genéricas dos utentes alvo da
intervenção: o número de anos de consumo de substâncias psico-activas ilícitas (15 a 25
anos), a situação de exclusão tendo em conta parâmetros como o emprego, o apoio social, a
habitação ou a educação, as experiências de insucesso no que diz respeito a tentativas
anteriores de realização de desabituação e tratamento.
De facto, os dados identificados na fase de caracterização ao nível da prevalência de situações
infecciosas, são coerentes com uma longa experiência de consumo de substâncias, um
desenraizamento social, possivelmente associado a um estilo de vida mais desorganizado, um
consumo problemático de substâncias e à prática de comportamentos de risco quer a nível
sexual, quer no âmbito do consumo de substâncias.
As áreas em que é possível identificar ganhos mais evidentes são marcadamente o abandono
do consumo de substâncias psico-activas ilícitas, a diminuição do consumo de heroína, a
diminuição da partilha de seringa e filtro, a utilização do preservativo e a inserção em diversos
programas terapêuticos.
O decréscimo expressivo na percentagem de consumidores de substâncias ilícitas é
significativo sobretudo tendo em conta que se trata de uma população que consome
substâncias ilícitas há muitos anos e que a abordagem de redução de riscos e minimização de
danos não tem como objectivo central o abandono do consumo de substâncias pelos utentes.
21
Na amostra estudada, é bastante evidente que a utilização de uma abordagem gradual, sem
exigência de abstinência e indo ao encontro do ponto em que o indivíduo está (situação
psicológica, social, geográfica…) pode ter mesmo resultados significativos em termos de
abstinência e, consequentemente, de anulação de riscos associados ao consumo.
A diminuição do consumo de heroína é também bastante significativa do ponto de vista
estatístico e significativa também pelo que representa em redução de riscos para o utente,
dada a sua elevada toxicidade. Terá contribuído também para esta redução, a inserção de uma
parte importante de utentes em PSO. Por outro lado, o consumo de cocaína manteve-se,
apesar de ter diminuído a sua frequência e a sua utilização pela via injectada.
A diminuição observada no consumo endovenoso de substâncias representa uma mais valia
em termos da prevenção do contágio de doenças infecciosas, mas também ao nível de
patologias venosas e outros problemas de saúde, ou mesmo de probabilidade de ocorrência de
sobredosagens agudas, mais facilmente decorrentes deste tipo de via de administração.
Note-se que os dados relativos ao consumo, sua via de administração e frequência apontam
para um maior sucesso na redução da frequência do consumo do que na mudança da via de
administração utilizada. Por outro lado, a redução do poli-consumo é pouco expressiva, sendo
de referir que quem manteve a prática de poli-consumo de substâncias não mudou o seu perfil
de consumo em termos do número de substâncias consideradas prioritárias e do número de
substâncias consideradas secundárias. Trata-se portanto de duas áreas de intervenção que
devem ser merecedoras de uma maior atenção.
A descida expressiva na prática de partilha da seringa e do filtro são por sua vez certamente
reflexo do programa de troca de seringas, no âmbito do qual é fornecido este material, dado
que a descida na partilha deste material é bastante mais evidente do que a evolução registada
na partilha de outros materiais. Terá contribuído para esta também o facto de ter diminuído o
consumo injectado de heroína e de cocaína. Por outro lado, terão tido um importante papel, a
acção educativa e motivadora das Equipas e a aquisição de conhecimentos, motivação,
desenvolvimento de recursos, dos utentes.
Note-se que, pela análise apresentada, observa-se uma tendência para a substituição do
consumo endovenoso pelo consumo fumado, ao qual, está associada a partilha de utensílios
necessários (verificou-se o aumento da partilha de tubo de fumar, tubo de inalar e
cachimbo/garrafa).
Desta forma, resulta que é necessário fazer um maior investimento na informação, mudança de
crenças e atitudes relativamente às práticas de risco associadas ao consumo fumado, sendo
também uma resposta possível a oferta/troca de utensílios necessários para este consumo. Por
outro lado, os resultados verificados relativamente à diminuição da partilha do recipiente,
demonstram também que é necessário trabalhar na mensagem de que a partilha deste
utensílio comporta riscos importantes para a saúde, sendo por outro lado a oferta deste
material muito importante.
O aumento de práticas de protecção a nível sexual é também um importante ganho. Terão
contribuído para esta certamente a distribuição de preservativos pelas Equipas de Rua, mas
22
também a sua acção educativa, motivadora, afectiva, em relação com as crenças, atitudes,
competências dos utentes.
A inserção em programas terapêuticos foi também bastante elevada, sendo de referir que
praticamente todos os utentes efectuaram algum tipo de abordagem terapêutica, seja esta a
desabituação, inserção em PSO ou outros tipos de tratamento. Nestas três modalidades
apresentadas, uma percentagem importante de utentes deixou de consumir.
Uma nota importante deve contudo ser realizada relativamente a esta conclusão: pela análise
dos resultados apresentados da inserção de utentes nestes programas, conclui-se que uma
parte destes fez movimentos entre programas diferentes (desabituação, PSO, outro
tratamento), o que em alguns casos resultou na abstinência, mas noutros não.
Naturalmente que se um utente inicia um determinado percurso terapêutico que resulta não ser
o mais adequado para si numa determinada fase da sua vida, devem ser realizadas
adaptações. Contudo, estes resultados conferem-nos a responsabilidade de reflectir para
assegurar o mais possível que quando o utente é encaminhado para um determinado percurso
terapêutico esteja efectivamente preparado para este, bem como assegurar uma articulação
próxima com o serviço para o qual o utente foi encaminhado (note-se que estão em causa
pessoas com uma experiência alargada de insucessos relativamente a projectos terapêuticos).
Relativamente à realização de rastreios de doenças infecciosas, refira-se que cerca de metade
dos utentes fizeram rastreio logo no início deste ano de referência, o que é de facto um
importante sucesso, mas também representa um importante desafio.
De facto, tendo por referência a amostra estudada, nesta área de domínio clínico, enfrentam-se
constrangimentos e há um trabalho muito importante a desenvolver, nomeadamente na
facilitação do acesso à realização de rastreios, na motivação dos utentes para conhecerem a
sua situação clínica, na preparação dos técnicos para efectuarem o aconselhamento
necessário a este nível, na facilitação do acesso ao tratamento relativamente a situações
clínicas diagnosticadas (o que passará por uma solução de proximidade), dado que a adesão
ao tratamento é bastante reduzida, independentemente da situação clínica.
Este trabalho demonstra a mais valia da intervenção das Equipas de Rua com os utentes
estudados, permitindo reconhecer sucessos na abordagem adoptada mas sobretudo identificar
um maior número de desafios para que a intervenção efectuada seja da maior qualidade e
eficácia e com um real impacto na melhoria da qualidade de vida das pessoas a que se destina
e, consequentemente, também da saúde pública.
Se é verdade que todos nós corremos o risco de ficarmos presos a uma imagem, o mesmo
acontece quando falamos de Instituições, já que estas não são mais do que o reflexo de várias
vontades. Assim, importa olhar para além do espelho continuando a investir numa abordagem
que permita a inquietude necessária a quem trabalha com esta população, potenciando desta
forma uma mudança quer nas instituições quer na realidade a que estas se destinam.
23
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