A Invenção de Morel e O Processo de Kafka

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    UMA LEITURA DO FANTÁSTICO: AINVENÇÃO DE MOREL (A.B. CASARES) E

    O PROCESSO (F. KAFKA)

    Karin Volobuef*

    Preâmbulo: a narrativa fantástica

    Amoderna na r ra t iva fan tás t i ca remonta , em ú l t ima ins tânc ia , ao ro -m a n c e g ó t i c o (g o th ic novel) q u e s u rg i u n o s é c u l o X V I I I . A o c o n t r á r i od e s e u a n c e s t r a l - q u e e x p l o r a v a d i r e t a m e n t e o s a m b i e n t e s m a c a b r o s ,os l an ce s d r am át ic os e o r itmo a ce l e ra do de aven tu ra - o f an tás t i co fo i s en dop a u l a t i n a m e n t e d e p u r a d o a o l o n g o d o s é c u l o X I X a t é c h e g a r a o X X c o m u ma r s e n a l n a r r a t i v o m a i s s u t i l , e n r e d o s m a i s c o n d e n s a d o s , e s c r i t u r a m a i s r e q u i n -

    t a d a. S e u c a m p o t e m á t i c o , p o r é m , f o i a b a n d o n a n d o a r á p i d a s u c e s s ã o d ea c o n t e c i m e n t o s s u r p r e e n d e n t e s , a s s u s t a d o r e s e e m o c i o n a n t e s p a r a a d e n t r a re s f e r a s m a i s c o m p l e x a s q u e o a p r o x i m a m d o m i t o e d o s í m b o l o . A n a r r a t i vf a n t á s t i c a t o r n o u - s e r e c e p t i v a à i n q u i e t a ç ã o p e r a n t e o s a v a n ç o s c i e n t í f i c o s et e c n o l ó g i c o s (O homem da areia, d e E . T. A . H o f f m a n n ; Frankenstein, d e M a r yS h e l l e y ; Os canibais, d e Á l v a r o d o C a r v a l h a l ) , a o s d e v a n e i o s o n í r i c o s o u d ef a z - d e - c o n t a ( O i cavalinhos de Platiplanto, de J .J . Ve iga ; Aurélia, de Géra rd d e

    * Departamen to de Letras Mod ernas da Faculdade de Ciências e Letras da U niversidadeEstadual Paulista (UNESP).

    Revista Letras, Curitiba, n. 53, p. 109-123. jan./jun. 2000. Editora da UFPR 1 9

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    Nerval) , às angúst ias exis tenciais e psicológicas (A metamorfose, de Kafka; Thefall of the house of Usher, de E.A. Poe; A terceira margem do rio, de GuimarãesRosa) , à sensação de impotência frente à real idade opressiva (Casa tomada, deJulio Cortázar; A casa do girassol vermelho, de M urilo Ru biã o). O efe ito criadopor esses textos pode, por conseguinte, cobrir um grande leque de reaçõesincômodo, surpresa, dúvida, es tranhamento, mas também encantamento e r iso

    Qualquer que seja seu pretexto ou contexto, a narrativa fantástica efetuauma reaval iação dos pressupostos da real idade, quest ionando sua naturezaprecipua e colocando em dúvida nossa capacidade de efet ivamente captá- latravés da percepção dos sentidos. Com isso, o fantástico faz emergir a incerteze o desconforto diante daquilo que era t ido como familiar. Já o romântico E.T.AHoffmann (1776-1822) c r iou tex tos em que o mundo cot id iano é most rado souma perspect iva diferente da usual (veja-se, a t í tulo de exemplo, a relesmaçaneta de porta contorcendo-se em caretas diante do aterrorizado estudanteA n s e l m o e m O vaso de ouro). A o contrár io do gên ero Fantasy (The lord of therings, de J.R .R. To lkien ), tão ao go sto dos leitores m od ern os , o fantá stico nãocria m un do s fab ulo sos, dis t intos do nos so e pov oa dos por cr ia turas imagináriamas revela e problematiza a vida e o ambiente que conhecemos do dia-a-dia .

    E sse real ismo do fantást ico não implica, poré m, em uma l imitação oupau periza ção de seu alcanc e na abordagem de prob lem as hum an os. An tes , é fonte de sua complexidade estét ica e de representação social - es tando a

    justa m ente sua dis t inç ão em rela ção à s im ples his tór ia de horror , compostade personagens e s i tuações macabros visando tão somente o efei to de terrorBom exemplo dessa d i fe rença es tá en t re o l ivro Frankenstein ou o novoPrometeu (1 81 8) , de M ary She l ley - que real iza um profun do estudo dapsicologia humana (efei tos da rejeição e fal ta de afeto sobre o indivíduo) também das re lações soc ia is (preconcei tos e va lor ização das aparênciascausando a marginal ização daqueles que são minoria) - e diversas versõescinematográf icas da mesma obra, em que as nuances do texto or iginal es tãoapagadas e, em seu lugar, é apresentada apenas a trajetória de um monstro feio

    e mau.O fantástico, portanto, ultrapassa as fronteiras da literatura trivial, con-

    tando-se em suas f i le i ras escr i tores de pr imeira grandeza. Aqui encontram-setextos de esmerada escr i tura , enredos complexos, temas e abordagens cr í t icasa lém de um cont ínuo processo de evolução most rando que o gênero não éestanq ue. Se lemb rarm os da af i rm açã o de Tod orov de que A obra-primahabi tual não entra em nenhum gênero senão o seu próprio; mas a obra-prima dal iteratura de m assa é precisa m ente o l ivro que m elho r se inscr eve no seu gênero

    (1969, p. 95), verificamos que a l i teratura fantástica nunca deixa de procura

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    novas fo rmas de exp re s são e novos con teúdos , e s t ando sua de f in i ção s empreadiante do es t ipulado por his tor iadores e teór icos .

    Segundo Coa l l a (1994) , ao l ongo do caminho , o f an t á s t i co a t r aves soufases dis t in tas , em que lançou mão de expedientes di ferentes para cr iar asensação de insegurança :

    - em f ins do sécu lo XVII I e começo do XIX, o fan tás t ico ex ig ia a p resença de lemento sobrena tura l , mate r ia l izando-se o medo na f igura de um fan tasmaou monstro (a causa da angúst ia es tá no ambiente externo) ;

    - no séc u lo XI X, o fan tás t ico passa a explora r a d im en são ps ico lóg ica , sen do sobrena tura l subs t i tu ído pe las imagens assus tadoras p roduz idas pe la loucura ,a lu cin açõ es , pes ad elo s (a cau sa da ang úst ia es tá no inter ior do suje i to) ;

    - no sécu lo X X , o fan tás t ico t ranspor tou-se para a l ing ua gem , por m ei o da quaé c r iada a incoerênc ia en t re e lementos do co t id iano (a causa da angús t ia es tána fa l ta de nexo na ordenação de co isas comuns , na fa l ta de sen t ido , nosurg im ento do absurdo) . Se an tes o insó l i to e ra p rod uz ido n o n íve l sem ân t icono sé cu lo X X e le se inf il t ra no nív el s intá t ico.

    Devido ao cará te r inus i tado das nar ra t ivas fan tás t icas do sécu lo XX,Todorov hes i ta d ian te de tex tos como os de Kafka , que parecem esquivar-se dco nc ep çã o de fan tá s t ico por e le e labora da (1 97 5 , p . 177-1 80) . Es cor r ega dio ,

    t ex to kafk iano apresen ta t raços tan to do gênero es t ranho como do marav i lhosoe fog e à c l a s s i f i caç ão de Todorov, cu jo e squ em a , s egun do Bro ok e -R os e (19 8p . 66-67) , não equac ionou dev idamente a s i tuação de tex tos que se s i tuam ncruzamento ou in te rsecção de gêneros e não prev iu a in tegração da l i t e ra turarea l i s ta (no sen t ido de obras i sen tas de e lementos sobrena tura i s ) . Como apr i -moramen to do quad ro de gêne ros e l abo rado po r Todorov ( t endo o e s t r anhonum a ponta , o mar av i lh oso na ou t ra , e o fan tás t ico no cen t ro) , B ro ok e- R os e(198 1 , p . 84 ) suge re que e l e s ej a t r ans fo rmad o em um a e s f e r a , ap r ox im and o- sas duas pontas (es t ranho e marav i lhoso) e in t roduz indo-se en t re e las o gênerorea l i s ta . Ainda ass im, t en tando-se loca l iza r a obra de Kafka no l imi te en t re ogênero rea l i s ta e o marav i lhoso , e la não se enca ixa per fe i tamente no esquema

    Cons ide rando- se e s se s p rob lemas e a cons t i t u i ção sui generis do fan-tás t ico em nosso tempo, passaremos agora a ana l i sa r A invenção de Morei(1940) , de Ado l fo B ioy Casa re s (1914-1999) , uma na r r a t i va que pouca a t ençdesper tou entre os es tudiosos de l i tera tura no Brasi l . A anál ise terá comoreferenc ia l O processo ( 1925) , de F ranz Ka fka (18 83 -19 24 ) , um t ex to ve rdade i -ram ente para d igm át ico para a l it e ra tura do sé cu lo X X (e não ap ena s a fan-

    tás t ica ) . Esses do is t ex tos represen tam momentos d i s t in tos do fan tás t ico nes t

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    sécu lo , mas , a inda ass im, es tão em es t re i to con ta to a t ravés de numerosos pon tode convergênc ia . A l e i tu ra pa ra le la das duas obras conf i rma a op in ião da c r í t i caespec ia l i zada ( Jozef , 1986 , p . 155) , que a r ro la Kafka en t re os au to res quecon t r ibu í ram de fo rma s ign i f i ca t iva pa ra a fo rmação de Casa res .

    O fantástico em O processo

    O porteiro percebe que o homem já está no fim, e para aindaalcançar sua audição em declínio, ele berra: Aq ui ningu émmais podia ser admitido, pois esta entrada estava destinada só

    a você. Agora eu vou embora e fecho-a.(Kafka, 1997, p. 263)

    E m O processo ( 1 9 2 5 - p o s t u m o ) , d e F r a n z K a f k a , c o n f o r m e j á in d i c a d ono t í tu lo , na r ram-se as e tapas do p rocesso movido con t ra Jose f K . Não hán e n h u m e l e m e n t o s o b r e n a t u r a l n o t e x t o e , c o m o s e i s s o n ã o b a s t a s s e , K a f k ae s m e r a - s e e m r e c h ea r o l i v r o d e d e s c r i ç õ e s m i n u c i o s a s , r e a l is t a s , m o s t r a n dqu e aqu e le m un do ficcional co r res po nd e ao n os so em ca da de ta lhe : os in te r io rede casas , e sc r i tó r ios e ou t ros ambien tes púb l i cos ; a aparênc ia das pessoas ; aa t iv idade p rof i s s ion a l do s burocra tas - tu do es tá ap rese n ta do se m qua lq uer t r aç oq u e e x t r a p o l e o q u e h a b i t u a l m e n t e c o n h e c e m o s . I s s o n ã o n o s i m p e d e , p o r é md e d e f i n i r m o s O processo c o m o u m t e x t o i m b u í d o d o i n s ó l i t o , d o e s t r a n h o , d ofantás t ico .

    E s s e e f e i t o d e v e - s e b a s i c a m e n t e a d o i s f a t o r e s :

    - a u s ê n c i a d e n e x o : e m b o r a o c o m p o r t a m e n t o d o s p e r s o n a g e n s s e j a , e m s ip e r f e i t a m e n t e n o rm a l , e l e é p e r c e b i d o p e l o l e i t o r c o m o i n a d e q u a d o e a b s u r de n q u a n t o reação a d e t e r m i n a d a s s i t u a ç õ e s ;

    - ausência de expl icações / jus t i f ica t ivas fundamenta is : o texto não oferece ao le i ti n f o r m a ç õ e s i n d i s p e n s á v e i s p a r a u m a c o m p r e e n s ã o r a c i o n a l d o s f a t o s , n ã ose nd o nun ca esc l a re c ido de qu e Jo se f K . é ac us ad o ou qua l a na tu r eza d ot r ibuna l que o es tá p rocessando .

    Tra ta - se aqu i de um fan tás t i co en t ranhado na l inguagem, i s to é , naprópr ia e sc r i tu ra do t ex to : a incongruênc ia daqu i lo que é apresen tado e asl a c u n a s d e i x a d a s p o r a q u i l o q u e e s t á a u s e n t e l e v a m a u m a s i t u a ç ã o e m q u e l e i t o r p e r m a n e c e d e s o r i e n t a d o , i n s e g u r o , a n g u s t i a d o . O l e i t o r n ã o p e r d e a

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    or ien tação , po is nunca chegou a t ê - la , nunca pôde de fa to te r segurança quantoàs c i rcunstâncias vividas por K. ( já na pr imeira l inha do texto surge o inex-p l i cáve l e i ncongruen te , po i s o pe r sonagem é p re so s em que t enha come t idoqualquer del i to) .

    E é jus tamente essa fa l ta de compreensão quanto à rea l idade den t ro dotexto que dá or igem ao fantás t ico, ao insól i to , ao a terrador. Decer to não se t ra taa í de qu es tõ es en vo lv en do a lgu m cr im e normal qu e K. po ssa ter com et id otam po uc o é um cas o t rami tando pe la Jus t iça co m u m . A desp e i to do c l im aburocrá t ico qu e se es tend e pe lo tex to , e apesar de o pr oce sso a g r oss o m od osegu ir as e tap as usu ais no s is tem a pen al (B eic ke n, 199 5, p. 148) , a culp a de Ké de ou t ra es pé c ie e g rau , e , da me sm a forma , t am bé m te m out ra o r igem o órgã oinst i tu ído para julgá- lo .

    Segundo o guarda , no pr imei ro cap í tu lo , as au tor idades desse órgão nãosae m à procura do s cu lp ad os , mas , con form e con s ta na le i , são a t ra ídas pe lacu lpa (K afk a, 1 99 7, p. 15), e o sac erd ote , já per to do final do tex to, afirma

    Per tenço po is ao t r ibuna l . Por que dever ia querer a lguma co isa de você? Ot r ibuna l nã o quer nada de você . E le o ac o lh e qu an do vo cê v em e o de ixa qu andvo cê va i . (p . 271 ). D es sa forma, se l emb rarm os que K. es tá co nv en c id o de suino cê nc ia , o t r ibunal represen ta um a ent id ad e ca pa z de farejar o de l i tocome t ido mesmo sem o conhec imen to ou consc i ênc i a do de l inqüen te - o de l i tque impregna a pes soa s em que e l a t enha come t ido exp l i c i t amen te uma o fensa

    Daí as inúmeras in te rpre tações ap l icadas ao Processo (B e ick en , 199 5 , p . 176 -180) , que vê em no des t ino de K. a per seg uiçã o ao s jud eu s ; a angú s t ia ex i s tenc ido se r humano; uma sá t i ra ao s i s tema pena l ; a in te rna l ização de uma ins tânc iarepressora e autor i tár ia ; o pecado or iginal .

    A p reo cup açã o co m a cu lpa , a l iás , j á fo i t raba lhada por Heinr ich vo nKle is t em A marquesa de O... ( 1 8 1 0 / 1 8 1 1 ) , o n d e p r e s e n c i a m o s i g u a l m e n t e u mpersonagem sendo acusado e cas t igado por uma fa l ta que , a despe i to das p rovai r re fu táve is em cont rá r io , abso lu tamente não tem consc iênc ia de te r comet idoK leis t apre senta a qu estã o da cu lpa so b um a pe rsp ect iv a filosófica , ind ag an doo que é a cu lpa e como comprová - l a ( j á que mesmo ev idênc i a s conc re t a s epa lpá ve i s po de m induz i r a e r ro s de j u lg am en t o ) , m as t amb ém exp lo ra op rob lema do pon to de v i s t a soc i a l mos t r ando como a r eve l ação da i nocênc i apod e so f r e r en t r aves dev ido a p recon ce i to s e con c lu sõe s fundadas em s im p leaparênc ias .

    E m Kafk a , a m esm a p reoc upa ção co m o b in ôm io cu lp a / inoc ênc i a t o rna -se a inda mais complexa , po is as poss ib i l idades de in te rpre tação do tex totorna m-se m úl t ip las . E i s to porque a c r ia tu ra hu m an a em Ka fka não é re a lm ente

    dona de seu des t ino , e sua re lação com o mundo segue uma t rama que es tá a lém

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    de seu a lcance - t a l como o pe rsonagem que passou a v ida in te i ra aguardandope rm iss ão pa ra en t ra r por um a por ta se m saber qu e e la e s tav a des t inad ae s p e c i a l m e n t e p a r a e l e .

    O fantástico em A invenção de Morei

    Pero sigo mi destino.(Casares, 1968, p. 17)

    A invenção de Morel ( 1 9 4 0 ) , d e A d o l f o B i o y C a s a r e s , é u m t e x t opo n t i l ha do de t em as e m ot iv os j á ex i s t e n t es na l i te ra tu ra fan tá s t i ca t r a d ic ion a lA c i e n c i a e n q u a n t o a m e a ç a a o s v a l o r e s h u m a n i s t a s e à i n t e g r i d a d e p s i c o l ó g i ce f í s i c a d o s er h u m a n o j á é m o t i v o q u e n o r t e i a M a r y S h e l l e y e m Frankenstein( 1 8 1 8 ) ; o d u p l o o u s ó s i a é déjà vu d e s d e H o f f m a n n e P o e ; O s c a r Wi l d e j ám o s t r o u e m O retrato de Dorian Gray ( 1 8 9 1 ) u m h o m e m u t i l i z a n d o s u a i m a g e mp i c t ó r i c a p a r a a l c a n ç a r a e t e r n a b e l e z a e j u v e n t u d e .

    Não fa l t am, po i s , à Invenção de Morei n u m e r o s o s e i l u s tr e s a n c e s t r a i sl i t e rá r ios . Não lhe fa l t a t ampouco um t ino pa ra a inovação que pe rmi te ar e t o m a d a d e e l e m e n t o s j á tr a d i c i o n a i s , m a s d e f o r m a c r i a t i v a e r e v i g o r a n t e .C o m o d i s s e B o rg e s ( 1 9 6 8 , p . 1 3 ) , o a rg u m e n t o d e A invenção de Moreie q u i p a r a - s e e m g e n i a l i d a d e a n a r r a t iv a s c o m o O processo ( K a f k a ) e A volta doparafuso (H . Ja m es) . Ora , A invenção de Morei c o n t a c o m o u m i n d i v í d u o a p o r tae m u m a i l h a d e s e r t a , a l i m e n t a - s e p r e c a r i a m e n t e , r e s i s t e à s m a r é s q u e i n u n d a mo t e r r e n o e f i n a l m e n t e s u c u m b e a u m a e n f e r m i d a d e a t r o z . E u m a o b r a q u e e ms u a s 1 5 0 p á g i n a s d i s p e n s a q u a s e q u e p o r i n t e ir o o s c o m p o n e n t e s b á s i c o s dq u a l q u e r n a r r a t i v a : p r a t i c a m e n t e n ã o h á a ç ã o ( e n r e d o ) e e x i s t e u m ú n i c op e r s o - n a g e m . E s t e p e r s o n a g e m , d e q u e m n u n c a s e c h e g a a c o n h e c e r o n o m e , t a m bé m o na r rador (en qu an to voz ou loc u çã o a t r ansmi t i r a h i s tó r i a ) , a l é m dea p r e s e n t a r - s e c o m o autor, j á qu e o t ex to cor resp on der ia a um re la to ou d iá r ior e d i g i d o d u r a n t e a p e r m a n ê n c i a d o p e r s o n a g e m - n a r r a d o r n a i l h a d e s e r t a ep u b l i c a d o p o s t e r i o r m e n t e . C o m o s e v ê , t u d o a q u i é c o m p a c t o , r e d u z i d o a om í n i m o n e c e s s á r i o - o q u e a t e s t a a v i r t u o s i d a d e d o a u to r, q u e c o m t ã o e s c a s s o

    a c e s s ó r i o s c o n s t r u i u u m t e x t o c o m p l e x o e i n s t i g a n t e .

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    Apenas um e lemento vem aba la r a ro t ine i ra lu ta do pro tagonis ta con t rao am bien te inósp i to : a súb i ta apar ição de um gru po de pesso as , se m qu e se sa ibcomo ou de onde v i e r am. A obse rvação de l a s r eve l a háb i to s e s t r anhos einexpl icáve is : nadam na p i sc ina su ja e in fes tada de b ichos ; sen tem f r io em d iaex t r em am ente qu entes ; repe tem , na m es m a hora e loca l , um a con ver sa já t idhá a lguns dias (Casares , 1968, p . 87 e 60) . A proximidade delas inspira terroao persona gem -nar rado r : Con est ira r de l b razo , l a hub ie ra tocad o . Es ta pos i -b i l idad m e hor ror izó (co m o si hubie ra es tado en pe l ig ro de tocar un fan tasm a) .(Casares , 1968, p . 45)

    Mais t a rde , esses es t ranhos se res reve lam-se como imagens p ro je tadaspor uma máquina ac ionada pe las águas da maré a l ta . A deduz i r das anotaçõesencont radas pe lo personagem-nar rador, e cons iderando-se a l enda , cor ren teentre os marinheiros e mercadores , de uma terr ível peste que infes ta a i lha , essaimagens são de pessoas que , anos a t rás , passaram a lguns d ias a l i e acabaramperecendo v i t imadas pe lo ins t rumento que as f i lmou. Tudo ind ica que o mecanismo cap ta a imagem dos se res , e , ao mesmo tempo, saca- lhes a lgo v i ta l , dmodo que homens , p l an t a s e an ima i s sucumbem a lgumas ho ra s ou d i a s após filmagem.

    A despe i to da mor te dos se res o r ig ina i s , as imagens gravadas sãoperpé tuas : enq uan to ex is t i r e fun c ion ar o motor, e las con t in uarã o ex ecu tan do omesmos ges to s , emi t i r ão a s mesmas f a l a s , e ( supõe - se ) t e r ão o s mesmos pe

    samentos e sen t imentos das pessoas duran te o per íodo em que foram gravadasO ins t rumento inventado e ac ionado por More i fo i o meio esco lh ido por e le paa lcançar a imor ta l idade - não d i re tamente , mas a t ravés de sua imagem pro-je tada . Na verdad e , co m a a juda da m áqu ina e le a lcan ça um a im or ta l ida deparcia l . Parcia l em dois sent idos: porque só é p r e se rvada a im ag em ou dup lo ,enquanto o ser humano morre; e porque a f igura proje tada repete e ternamenteo s m o m e n t o s g r a v a d o s , n ã o h a v e n d o p o s s i b i l i d a d e d e e v o l u ç ã o o u m o d i f i c a ç ãCr i a - se , de s sa fo rm a , um a segund a r ea li dade , um ou t ro mun do , po i s a s im ag enpro j e t adas não t êm pe rcepção do mundo das pes soas v ivas , apenas daqu i lo quvia m e sen t iam durante a filmagem. T am p ou co ela s têm no çã o de qu e rep ete mcon t inuamen te uma seqüênc i a s empre i gua l . Pa ra e l a s , há apenas um t empo um espaço , co r r e sponden te s ao t empo e e spaço da g ravação . O ún ico pon to dco nv erg ên c ia en t re e la s e o mu nd o rea l es tá no pro je tor - qu e M ore i encer rocu id ado sam en te em u m qua rt inho sem e lha n te a um ab r igo con t r a bom bas .

    Co inc iden temen te , o engenho r ep re sen t a a so lução de um p rob lema quejá hav ia oc up ad o o pers ona gem -nar rad or an tes de che ga r à i lha - e m sua op in iãoo ho m em sem pre busco u a imor t a l i dade de fo rm a equ ivoca da , ou se j a , t en t and

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    preservar o ser por in te i ro , quando o correto é manter vivo o pensamento, aconsc i ênc i a :

    Recorrí los estantes buscando ayuda para ciertas investigacionesque el proceso interrumpió y que en la soledad de la isla traté decontinuar (creo qu e perd em os la inm ortalidad porque la resisten-cia a la muerte no ha evolucionado; sus perfeccionamientosinsisten en la primera idea, rudimentaria: retener vivo todo elcuerpo. S ól o habría que buscar la con serv ació n d e lo que interesaa la conciencia). (Casares, 1968, p. 26)

    A convergênc ia en t re o personagem-nar rador e More i não se l imi ta àp reoc upa ção r e fe r en t e à e t e rn idade . A m b os a pa ix on am -se po r Faus t i ne , e aambos e la ignora . I rmanados pe la pa ixão , ambos vão lançar mão da máquinapara es ta r e te rnam ente ao lado de la , m e sm o a pre ço da própr ia des t ru ição . M oreconvidou os amigos , den t re os qua is a moça , para passarem 8 d ias na i lha que le hav ia comprado e em que cons t ru í ra uma habi tação (ape l idada de museu)uma cape la e uma p isc ina . Duran te o per íodo , sem a le r ta r a n inguém, fazfun cio na r a câm ara filmadora, qu e regis t ra a pa isa ge m ( in clu siv e sol e lua) e oseres v iven tes . Depois d i sso par tem, mas quando seu barco é resga tado , todo

    a bordo t inham perd ido a v i são , unhas , cabe lo , pe le . Em uma semana ou duastodos hav iam perec ido . Ent re tan to , as marés for tes e regula res que banham ai lha prop orc ion am en erg ia para propu ls ionar o p ro je tor fa zen do v ive r ou t ra v eza imagem de Faus t ine , para sempre cor te jada por More i . O personagem-nar rador, por sua vez , inven ta um a es t ra tég ia para o m e sm o f im: en sa ia um a seq üê ncd e aç õe s e fa la s co m qu e s im ul a integrar o gru po. A p ó s filmar-se e in t rod uzina máquina a nova f i t a , t ambém e le saúda a poss ib i l idade de e te rnamenteaco m pa nh ar Faus t ine . A an t iga fita con t inh a a f i c çã o p lane jada por M ore i (ofilme co m a rep rese nta ção do s 8 dia s) , a no va f ita co n té m a f ic çã o den tro df ic çã o (o f ilme do perso nag em -nar r ado r con t race na nd o co m a gra vaç ão an terior).

    O personagem-nar rador seguiu os passos de seu an tecessor e t rans for-mou- se numa e spéc i e de s egundo More i . Ta l como e l e , en t r egou seu fu tu ro fe l ic idade à máquina , que lhe permi t i r i a es ta r para sempre ao lado de Faus t ineA m b o s plan ejara m e real iza ram a própr ia filmagem. M ais d o qu e isso, po réma equiparação dos do is se dá pe lo fa to de se rem ambos c r iadores : o p r imei ro , dmáquina que produz as imagens , o segundo , do re la to sobre o encont ro com a

    imagens . Ass im como a sa la da máquina es tá rep le ta de espe lhos e de ins t ru

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    mentos para reverberar os sons , o re la to (ou d iá r io ) do personagem-nar rador écomo uma complexa ca ixa de r e s sonânc i a p roduz indo ecos e r e f l exos da f i cçã

    A invenção de Morei: a ficcionalidade da ficção

    A invenção de Morei enc on t ra - se na l inha de um a an t iga t rad içãol it erá ria: a do s tex tos apresen tado s ao le i to r c o m o m anu scr i tos ve r íd ico s , red igdos pe lo própr io ind iv íduo que v iveu os inc iden tes nar rados , e que pos te r io rmente são publ icados como l iv ros . Essa carac te r í s t i ca faz com que o cará tef iccional da narra t iva seja realçado a priori, po is o le i tor (quer ace i te ou não asupos ta au ten t ic idade dos fa tos ) sempre tem em mente que aqui lo é uma h is tó r iescrita por a lg ué m . Con s t ru ída c o m o um a casa de esp e lh os , a nar ra tiva a indaco nt ém outr os e l em en to s qu e rea f i rm am a ficcionalidade e cr ia m u m j o g o entro real e o i lusório.

    U m des se s e l em en t os é r ep re sen t ado pe lo ed ito r do vo lum e , que , emnotas de pé de pág ina , in te r fe re no tex to . Tecendo comentár ios d iversos esupos t amen te p rocu rando complemen ta r a s i n fo rmações do pe r sonagem-na r r ador, esse edi tor f ic t íc io é um expediente para reforçar a idéia de uma his tór iaver íd ica , ma s qu e acaba cont r ibu indo para cor roborar o fan tás t ico . Ve jam os do iexemplos em que os comen tá r io s do ed i to r a s sumem fo rma de c r í t i c a oucontes tação . Quando o personagem-nar rador d iz ac red i ta r que es tá em uma dasi lhas do a rq u ipé lago El l i ce (ho je Tu va lu ) , o ed i to r d i scorda : Lo du do . H ablde una col ina y de árboles de diversas c lases . Las is las El l ice - o de las lagunas- son ba jas y no t i enen m ás á rbo les que los co co te r os a r ra igados en e l po lv o dcoral . (N. del E.) (Casa re s , 1968 , p . 22 ) . Da mesma fo rma , quando o pe r so -nagem-na r r ado r com en ta a d i f i cu ldad e em c ons egu i r vege t a i s co m es t ív e i s (p36) , o ed i to r expressa sua surpresa pe lo fa to de o personagem não comer oco co s que , a s s im a f i rma , cob rem a i lha . Ora , l eva nd o- se em cons ide raç ão qu

    as á rvores da i lha foram cap tadas pe la máquina f i lmadora de More i e que todoos seres as s im filmados m orr em , à ép oc a do edi to r (qu e, p o d e m o s infer ir, an om ais ta rde enc on t rou o man uscr i to de ixa do p e lo nar rador ) j á não hav ia m aisárvores na i lha ; por ou t ro lado , os coq ue i ro s pod em te r co m eç a d o a se espa lhape lo l uga r pos t e r io rm en te . Co m o se vê , o s apon tam en tos do ed ito r ( co mreferên c ias a i lhas verdad e i ras e a um a ve ge ta çã o t íp ica nes sas i lhas ) u t i l i za m -de dados da r ea l i dade , mas que en t r am em choque com as c i r cuns t ânc i a snar radas : ao desprezar o e fe i to mor ta l do maquinár io (a f i rmado pe lo person-age m-n arra dor ) , o edi to r refo rça a idé ia de qu e tud o é um a ficção.

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    Outra form a de enfa t iza r a f i cc ion a l ida de é o p lano do person agem -nar-rador de redigir, a lém de seu diár io , mais outras duas obras não-f iceionais :Defensa ante sobrevivientes e Elogio de Malthus. A rep et içã o de ss es t í tu los aolongo do tex to mos t ra que e les não são mero de ta lhe , devendo se r cons ideradoum a chav e para a co m pr een são do tex to . O s t í tu los , à p r imei ra v i s ta parec endrefe r i r t ra tados c ien t í f i cos , reve lam uma d imensão au tob iográf ica : o p r imei rore lac iona-se à condição de fug i t ivo e sobrev iven te do personagem-nar rador ; s eg un do e s t á li gado ao c r e sc im en to da pop u lação hu ma na e à e sca s sez dal imentos . Conforme se vê a té o f inal do diár io , a máquina de Morei permitjus tam en te a du pl ic açã o d os seres pe la filmagem e a imo rta l id ad e das im ag enreg is t radas . Para essas imagens desaparecem os prob lemas levantados porMal thus : e las não se mul t ip l icam, não necess i tam de a l imentação , e a inda

    possuem a van tagem de se rem e te rnas . Em out ras pa lavras , e las não consomemrecursos na tura i s nem t razem inconvenien tes ou gas tos ao res to da populaçãoe las são au to-suf ic ien tes e inconsc ien tes de qua lquer co isa que não tenha es tadpresen te qu and o da grava ção: La con serv ac ió n ind ef in id a de las a lma s enfun c ion am ien to e s t á a segu rada . O me jo r d i cho : e s ta r á com ple t a m en te a segu radel día que los hombres ent iendam que para defender su lugar en la t ierra lesco nv ien e p red i ca r y p ract ica r e l m a l tu s i a n i sm o . (Casa re s , 1968 , p . 118 )

    O t ex to r ea l iza uma e spé c i e de j o g o com a ve ros s im i lhança , e m quereal ismo e fantás t ico se a l ternam: a forma do diár io parece indicar um discurso

    mais espontâneo e au tên t ico , mas e le cont ras ta com os senões levan tados pe led i to r ( supos tamente ver íd icos) ; o d iá r io , de cunho ín t imo e confess iona lopõe - se aos ensa io s p l ane j ados ( supos t amen te c i en t í f i cos ) .

    A lém d i s so , o p róp r io pe r sonagem-na r r ado r fo rnece e l emen tos queco lo ca m e m dú vida a exa t idã o e con f iab i l id ade de sua nar rat iva : por d iversavezes menciona te r es tado doente ou t ido febre , e fa la em sonhos , em loucuraem a luc inações . D ian t e de a lgo mu i to a s sombroso (o s hab i t an t e s do museou v ind o d i sc os e dan çand o ao a r l iv r e em m e io a um a pesada t empes t ade )af i rma: Es to es ver íd ico , no es una inv en c ión de mi re nc or . . . (Casares , 1968p . 39) , demons t rando que tem per fe i ta noção de que tudo pode parecer in -veross ími l aos o lhos do le i to r. Ent re tan to , em out ro momento (p . 79-83) , sebom senso dá lugar a uma sé r ie de cogi tações aber ran tes : como expl icação parsua s i tuação , l evan ta a h ipó tese de que a má a l imentação e o ambien te dopântano o de ixaram inv is íve l ; de que es tá com a pes te e e la p roduz a v i sãodaque las pessoas ; de que os hab i tan tes do museu se r iam seres de ou t ro p lane tade que es tá num as i lo de loucos ; de que as pessoas são mor tos no purga tór io que e le o es tá v i s i t ando ta l como na Divina comédia', de qu e e le própr io es támor to . Ent re a l t e rna t ivas exorb i tan tes e ou t ras razoáve is , a veross imi lhança é

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    ass im, permanentemente cons t ru ída e des t ru ída . Dessa forma, o fan tás t ico nãoes tá ap ena s ma ter ia l izad o na má quin a pro d ig io sa , mas tam bé m na própr ia fo r mde narrar.

    Quanto à máquina, é e la que gera e reproduz aquele outro mundo em queviv em as imag ens , o sobrenatural. Paradoxa lm ente , e la p rópr ia des fa z essa m es m aimp ressã o de sobrenatural, pois - enqu anto f ruto da c iência e do raciocín io hu m an- ela é algo natural. A ex is tê nc ia da m áq uin a ex pl ica (ao final do tex to) oseventos an tes cons iderados insó l i tos pe lo le i to r, a t r ibu indo- lhes uma causarac iona l e , pe lo menos em pr inc íp io , conforme às l e i s f í s icas . Com a máquinsa ímos do âmbi to do gênero fan tás t ico e pene t ramos no da f icção c ien t í f i ca .

    Mas s e r á A invenção de Morei ficção c ie nt í f ica ? Aq ui sã o ne ces sár iasa lgu m as con s ide raç ões . A ficção c ien t í f i ca ca rac te r iza -se pe la ên fas e na av entura e pe lo uso de temas como a exploração de ou t ros mundos (ou t ros p lane tae c iv i l i z ações desconhec idas ) ; v i agens no t empo ou pe lo n íve l mic roscóp ict ran sform açõ es f í s ic as perm i t indo a inv is ib i l idade , a m uta ção em out ras fo rmade v ida , e tc . ) . Essas duas premissas não são sa t i s fe i tas pe lo tex to de Casaresque exp lo ra em p r ime i r a i n s t ânc i a o e s t ado ps i co lóg i co e emoc iona l do pe r sonagem ( sendo o en redo pob re em e l emen tos emoc ionan te s ) , e em que s e r evea exis tência da máquina apenas no f inal . Note-se que o t í tu lo do l ivro apontpara essa c r iação c ien t í f i ca , m as de m od o ind i re to (um a su t i l eza desprez ada pe lt r adução de Vera Neves Ped roso : A máqu ina fantástica).

    A lém d i s so , o t e rmo invenç ão t am bém recebe ou t ro s s ign i f i cad os empor tuguês , podendo des igna r um p rodu to da imag inação ou mesmo uma mentir a. Es s a s cono taç õe s c r iam um e fe i t o de dub ieda de e i nce r t eza que , com bin adàs carac te r í s t i cas j á mencionadas do tex to de Casares , aponta para o fan tás t icoe m ina a pos s ib i l i dade de A invenção de Morei s e r cons ide rada , pe lo m en os empr imei ra l inha , como f icção c ien t í f i ca . Seu paren tesco com uma das mairenomadas h i s tó r ias fan tás t icas - O processo - com pr ova i s so .

    A invenção de Morei e O processo

    Tanto A invenção de Morei c o m o O processo i n i c i am co m um a invasãode ter r itó r io sof r ida por seu pro tagonis ta : K. acorda e pe rce be a pe ns ão on demora t omada po r gua rdas que o p rendem; o pe r sonagem-na r r ado r de Casa re svê - se acos sado pe l a p re sença i ne spe rada de e s t r anhos na i l ha que j u lgavadesab i t ada . Nos do i s ca sos a i n t e rvenção t r az cons igo a mudança fo rçada dháb i to s , a pe rda do so s s eg o ( em oc io na l e f í s i co ) , a s en saç ão de pe r igo .

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    No caso do protagonista de Casares, porém, essa invasão não é seu principaproblema: tend o s ido julga do e co nd en ad o à pr isão perpétua, e le refugiou -se na ilpara escapar da polícia, pois um mercador i tal iano em Calcutá lhe assegurara qunen hu m na vio jam ais a tracava a li ( 196 8, p. 18 -19) . Da m es m a form a co m o no texde Kafka, o lei tor não fica sabendo qual foi o deli to cometido pelo personagem-narador, embora possamos inferir tratar-se de um caso de perseguição polí t ica. Assico m o Jo se fK . (Kafka , 196 4 ,p . 10), e le se cons idera inocente e in jus t içad o (Casar1968 , p . 18) . Além d isso , a p ron t idão com que o pro tagonis ta de A invenção deMorei vê em tod os um perseguidor, a inaba láve l ce r teza de te r s ido reco nh ec id oe a co nv icç ão d e que sua pr i são é imine nte c r iam n o tex to um efe i to j á p rodu z ide m O processo: de qu e todo s os de m ais são cú m plic es da acu sação , e de que oprotagonis ta es tá imbuído de uma culpa que lhe é in t r ínseca, que independe d

    comprovação exter ior e , como se fosse um sinal es tampado na tes ta , é impossívde ser escondida ou negada.Kafka e também Casares fazem seus protagonis tas depararem-se com uma

    figura fem inin a que se torna impo rtante para ele s. Jo se f K. já con he cia a senh oriBürstner, mas, depois de iniciado seu processo, passa a procurá-la para conversaGr ada tivam ente, K . enco ntra ainda outras m oç as (a lavad eira do tr ibunal, Le ni, etc.de quem tenta conquis tar a conf iança e o apoio. O personagem-narrador encontrapenas Faust ine , que lhe inspira um sent imento de esperança. Nos dois l ivros , afiguras fem inina s são indivíd uos s ingulares ou não -con ven cion ais : a senhori

    Bürstner sempre chega muito tarde em casa (o que parece indicar pouca respei tabi l idade) , Leni tem uma pele entre os dedos (como a das aves aquát icas) ; Faust inf ica durante horas sentada sozinha, longe dos demais , contemplando o pôr-do-soNos do is t ex tos é in t roduz ida uma nota de e ro t i smo, cu ja qua l idade e in tens idade , po rém, d ive rgem: em O processo há cen as de for te sen sua l idad e , ao pa ssoque em A invenção de Morei o tom é m ais con t ido e p lan gen te . Fau s t ine to rna-separa o personagem-nar rador a ún ica fon te de prazer, de be leza , de esperança( Faus t ine me impor ta m ás que la v ida . - C asares , 196 8 , p . 128) . Co ntu do , i s snã o im p ed e qu e e le qu al i f iq ue de r idículos os seu s en or m es e co lor id os turbat e s , t ampouco impede que r econheça como an t iquadas a s suas roupas .

    Ao f ina l do tex to , ambos os p ro tagonis tas morrem. A pass iv idade de K- que acompanha seus car rascos sem res i s tênc ia - decer to não equiva le ao gesde l ibe rado do pe r sonagem-na r r ado r - que vo lun ta r i amen te ac iona a máqu inapara se r filmado. Ain da ass im , há e m co m u m o co nh ec im en to prév io de qu e vãmorrer, a lém de um sen t imento de pros t ração e amargura d ian te da v ida : depoide enf ren ta r o inquér i to por um ano , K. es tá cansado e des i s te de convencer mundo de sua i nocênc i a ; o pe r sonagem-na r r ado r r econheceu que Faus t ine há

    mui to não v ive mais e , sem e la , não tem a len to para cont inuar v ivendo . Pouc

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    antes de con sum ar -se a ex ec uç ão , K. a inda vê (ou pen sa ver ) a senhor i ta B i i rs tncam inha ndo pe l a s ruas; o pe r sonagem-n a r r ado r e spe ra con tem pla r para s em prea imagem de Faus t ine ao t ransformar-se , e le p rópr io , em uma imagem pro je tadpe la máquina . Para os do is p ro tagonis tas , no en tan to , a mulher que dese jamcon t inua i na l cançáve l .

    Ess a so l id ão no final, es se aban do no com pl e to e i r rem ediáv e l , en t re tan tonã o é a lg o que apareç a som en te no final d os textos . A o contrár io , a fa l ta dcom un icaç ão en t re a s pe s s oas e o i so l am en to im pene t r áve l de t odo o se r hum ansão t raços imanentes ao un iverso kafk iano e Casares re toma-os de forma tão omais in tensa - exce tuando a lguns conta tos recordados em re t rospec t iva , opersonagem-nar rador é o ún ico se r humano da h i s tó r ia , e mesmo en t re asima gen s p ro j e tadas r e ina o d i s t anc i am en to e a de sc on f i a nça . C o m o con seq üên

    c ia , A invenção de Morei quase não con tém d i á log os .Embora Kafka u t i l i z e e s sa i ncomun icab i l i dade de um modo ma i s com-p le xo ( r em e tendo a qu es tõe s ex i s t enc i a i s , soc i a i s , p s i co lóg i ca s , e tc . ), enq uanem Casa re s a s pe s soas não vêem o pe r sonagem-na r r ado r po r s e r em meraspro jeções de uma máquina , a so l idão sof r ida pe los p ro tagonis tas é semelhanteIncapaz de a t ravessar a ponte que o co loque em conta to com os ou t ros , opro ta gonis ta vê -se aba nd ona do , desa mp ara do , f rágil, e acab a suc um bin do . EmA invenção de Morel a so l id ão es tá represen tada pe lo es p aç o ge og rá f ic o - a i lha .Se gu nd o Co al la ( 199 4 , p . 144 ) , em fase pos te r io r de sua obra , por ex em p lo e

    El sueño de los heroes (1 95 4) , Ca sares descar ta o recurso da im ag em insu la r epassa a re t ra ta r a so l idão de seus personagens em meio ao espaço urbano .

    Esses tóp icos - so l idão e c idade grande - es tão en t re as marcas maist íp icas da l i t e ra tura do sécu lo XX e impregnam inc lus ive o gênero fan tás t icoA o lad o de les , t am bé m sã o re lev ante s a perda dos va lo res e a fa l ta de parâm et rosól idos perante a vida e a real idade. Dentro da narra t iva fantás t ica , i sso revela-sna abso lu t a na tu ra l i dade com que os pe r sonagens ace i t am even tos dos ma iexor b i tan tes (c o m o tudo é enc arad o c o m o re la t ivo , nada é d i fe ren te a po ntde choca r ) . Ass im , um dos pon tos em comum en t r e A invenção de Morei e Oprocesso é p r ec i s am en te a imp ass íve l t r anqü i li dade dos p ro t agon i s t a s d i an t e d oque se r i a i ncompreens íve l : da mesma fo rma como Jose f K . de scob re (nocapí tu lo 5) , sem maiores sus tos , que um rec in to do banco em que t raba lha es tsendo u t i l i zado para to r tu ra r os guardas que o prenderam, ass im também opro tagonis ta de Casares ce r ta manhã cons ta ta , sem per turbar-se espec ia lmentecom i sso , que no céu br i lham dois só i s . Em O processo, a ce n a da tor tura é um adas mu i t a s s i t uaçõe s em qu e o h om em so f r e po r im po s i çã o do s i s t em a soc i a lum s i s t ema que acusa e não o fe rece chance de de fe sa , que s egue uma l e i qu

    não se conhece nem se en t ende , que domina a t odos e e sco lhe suas v í t imas

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    m o d o i m p r e v i s í v e l . E m A invenção de Morei, a lém da agonia ps ico ló g ica v iv idapelo perso-nagem -narrador, há o sofr ime nto inf l ig id o pela Natureza, qu e represena am eaç a de afoga m en to (a e lev açã o inesperada das águ as na região pantan osa p ocobri - lo enquanto e le dorme) , de intoxicação (a fome obr iga-o a exper imentaplantas desc onh ecida s) , de doen ças , de inaniçã o, calor exorbi tante , insetos e outrpragas.

    E m Kafk a a des t ru i ção final do ho m em ve m do p róp r io ho m em , c am u-f lada pe la ins t itu ição do tr ibuna l e o rg an iza da seg un do u m co lo ss o burocrá t icoEm Casares , a burocrac ia é subs t i tu ída por uma máquina que também des t ró i ohomem: sugando- lhe a a lma e roubando sua v ida , a i nvenção de More i é umout ro m ei o de anula ção da von tade e da l iberdade hum ana s . A máq uina (a r t i f í c ihumano) acompanha o c ic lo das marés (Natureza) : em ambos , o e te rno re torn

    forma um c í rcu lo fechado e in te rmináve l . Em Kafka , ao cont rá r io , os d iversop roces sos mov idos pe lo t r i buna l co r r em em pa ra l e lo , i ndependen temen te undos ou t ros . O que aqui re torna in f in i tamente é a máquina pena l , insac iáve l ,pronta a levar mais uma ví t ima ao a l tar de sacr i f íc io .

    E m Kafka , o ho m em mor re co m o um cão (19 97 , p . 278 ) , po i s pe rdeua d ign idad e e a qua l idade de hu m ano . E m Ca sares , o h o m em perde a a lm a parque f iguras p roduz idas por uma máquina v ivam para sempre . Essa a lma pro-je tada pe lo apare lho represen ta metafor icamente a v ida nos grandes cen t ros deho je : t a l como a s imagens na i l ha , o homem moderno r epe t e i ncansave lmen t

    a mesma ro t i na , i nconsc i en t e de um ho r i zon te ma i s amplo , c i en t e apenas dm om en to presen te , sem l iberdade para a l te ra r o ge s to ou o pe ns am en to .

    Kafka p in tou os hor rores da soc iedade to ta l i t á r ia ; Casares p rev iu osr e f l exos p roduz idos pe l a soc i edade de massa .

    RESUMO

    O p ropó sito d o artigo é realizar um a an álise da narrativa La invención de Morei(1940), de Adolfo Bioy Casares. Em primeiro lugar, mostra-se que o texto apresendiversos traços característicos do gênero fantástico no século XX. Em segundo lugsão indicados vários elementos que Casares aproveitou do romance O processo (1925),de Franz Kafka.

    Palavras-chave: Adolfo Bioy Casares, Franz Kafka, fantástico.

    122 Revista Letras, Curitiba, n. 53, p. 109-123. jan./jun. 2000. Editora da UFPR

  • 8/16/2019 A Invenção de Morel e O Processo de Kafka

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    VOLOBUEF, K. Uma leitura do fantástico: A invenção

    ZUSAMMENFASSUNG

    In diesem Essay wird die Erzählung La invención de Morel (1940) von AdolfoBioy Casares analysiert. Erstens wird geze igt, da ss der Text viele Hauptmerkmale der Gattdes Phantastischen im 20. Jahrhundert aufweist. Zweitens wird darauf hingewiesen, dCasares mehrere Elemente von Franz Kafkas Prozess (1925) aufgenommen hat .

    Schlüsselwörter: Adolfo Bioy Casares, Franz Kafka, phantastisch.

    REFERÊNCIAS

    Uma vez que se optou por não usar no texto citações em alemão, utilizou-se a tradubrasileira de Kafka para esse fim - m otiv o p elo qual a sua obra aparece listada aqui duvezes.

    BEICKEN, Peter. Franz Kafka: Der Prozeß. München: Oldenbourg, 1995.

    BORGES, Jorge Luis. Prólogo. In : CASARES, Adol fo Bioy. La invención de Morel.Buenos Aires: Emecé, 1968. p. 11-15.

    BRO OK E-RO SE, Christ ine . A rhetoric of the unreal: studies in narrative and structure,specially of the fantastic. Cambridge/London: Cambridge University Press, 1981.CASARES, Adol fo Bioy. La invención de Morel. Bu eno s Aires: Em ecé, 1968.

    COALLA, Francisca Suárez. Lo fantástico en la obra de Adolfo Bioy C asares. Estadode México: Universidad Autónoma del Estado de México, 1994. (Colección LectuCríticas, 18).

    JOZEF, Bella. Romance hispano-americano. São Paulo: Ática, 1986. (Fundam entos, 14).

    KAFKA, Franz. Der Prozeß. Frankfurt a. M.: Fische r Tasch enbu ch Verlag, 1 964.

    . O processo. Tradução e posfácio de M ode sto Carone. 2. ed. São Paulo: Com pan-hia das Letras, 1997.

    TOD ORO V, Tzvetan. / l i estruturas narrativas. Tradução de Ley la Perron e-Mo isés. SãoPaulo: Perspectiva, 1969. (Debates, 14).

    . Introdução à literatura fantástica. Trad ução de Maria Clara Correa Ca stello. SãoPaulo: Perspectiva, 1975. (Debates, 98).