A INVENÇÃO DO CAMINHANTE-DEVOTO · A invenção do caminhante de Nossa Senhora se deu à medida...
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A INVENÇÃO DO CAMINHANTE-DEVOTO
FRANCISCA MÁRCIA COSTA DE SOUZA1
Caminhantes-devotos, múltiplos e singulares
Essa reflexão debruça-se sobre a invenção do caminhante-devoto. Este conceito foi
elaborado a partir da experiência de pesquisa com a História Oral. A metodologia da história
oral “consiste na realização de entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de, ou
testemunharam acontecimentos e conjunturas do passado e do presente” (ALBERTI, 2008:
155). Por invenção entendemos um conjunto de práticas e procedimentos regulados,
conscientemente construídos. A invenção do caminhante de Nossa Senhora se deu à medida
que nos apropriarmos da memória, da história, dos objetos cotidianos e das suas práticas
caminheiras na cidade de Teresina, capital do Piauí. Nesse sentido, a pretensão é sobretudo
problematizar, ou melhor, fabricar o festeiro de Nossa Senhora das Dores na perspectiva de
sua singularidade e multiplicidade, que incluem especialmente as suas vivências e as práticas
caminheiras no referido espaço urbano.
A fabricação do caminhante-devoto foi problematizada à luz de Peter Burke (1999).
Seu objeto é a personagem de Luis XIV, o Rei-Sol, que reinou durante 72 anos e se
transformou no grande monarca absolutista francês. Esse monarca foi o inventor do marketing
político, na qual a propaganda veicula a glória, o prestígio e grandeza como imagens que
sustentam o seu reinado. Assim, Burke (1999) preocupa-se com o mito de Luís XIV,
problematiza os artistas que o pintaram, que o recitaram; debruça-se sobre os escritos dos
biógrafos, dos poetas, dos escritores, dos cientistas e dos historiadores com o propósito de
fabricar o rei. O grande teatro de Luís XIV é uma dramatização diária. Portanto, nosso
interesse é problematizar as dramatizações, as práticas caminheiras diárias dos festeiros de
Nossa Senhora das Dores. Esse repertório do cotidiano é especiaria fina para a fabricação do
caminhante-devoto.
o cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão no presente. [...] O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. [...] É uma história a caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. [...] Talvez não seja inútil sublinhar a importância do domínio desta história “irracional”, ou desta ‘não história’, como o diz ainda A. Dupont.“O que interessa ao historiador do cotidiano é o Invisível (...) (CERTEAU, 1996: 31).
1 Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí – UFPI. Membro do Grupo de Pesquisa /CNPq “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural”, de autoria e coordenação da Dra. Áurea da Paz Pinheiro Atualmente é docente do Curso de Licenciatura Plena em História, Universidade Estadual do Piauí - UESPI, Campus Professor Posidônio Queiroz, Oeiras - PI.
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Dessa maneira, inventar é elaborar com contornos nítidos, definindo as fronteiras
borradas e, assim, retirar da opacidade e da sombra sujeitos ou objetos, é uma construção que
implica a relação entre o passado e o presente, continuidade e mudança, cidade e
religiosidade. A invenção do caminhante-devoto tenta dá conta dos sujeitos que vivem e
praticam a cidade de Teresina, especialmente o Centro Antigo, onde ocorre a festa de Nossa
Senhora das Dores. Considerando que o Centro Antigo é atravessado pelo movimento de
múltiplos sujeitos ao tempo que essa mudança própria dos espaços da cidade elabora e dá
vivacidade a festa de Nossa Senhora das Dores.
O caminhante-devoto foi pensado e construído a partir do contato com os
interlocutores da Festa de Nossa Senhora das Dores e na experiência de campo. O
caminhante-devoto, portanto, tomou corpo através das pistas deixadas pelas entrevistas,
conversas exploratórias em campo. Nesse diálogo vivo com os informantes, a nossa pretensão
não era, apenas, comunicar o conteúdo de nossas conversas, mas os contextos dessas falas, os
lugares onde se realizaram, os tempos, o compotamento social, as emoções, os sentimentos, as
reticências, as interjeições, as frases cadenciadas e a força dos verbos e dos silêncios, as
advertências, as frustações, os ritmos das falas e dos passos desses caminhantes-devotos.
Nesses diálogos estão presentes o ver,o dizer e o ouvir.
Imagem 1: Nossa Senhora das Dores é recebida pelos festeiros com devoção. Foto: Dielson Mendes. Teresina - PI, 2011.
A metodologia da História Oral foi empregada na investigação sobre o trabalho de
memória (BOSI, 1994) realizado pelos festeiros de Nossa Senhora das Dores, na cidade de
Teresina, capital do Piauí, entre 1950 e 2012. A memória que a história se apropria não é
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somente voluntária, estimulada, mas seu fluxo no tempo e no espaço é descontínuo, obedece
às ordens do paladar, das pedras das ruas, dos sentimentos. Por outro lado, a memória também
não opera apenas naturalmente ou artificialmente, pois a memória é seletiva, produto da
organização imaginativa, criativa; por exemplo, temos o Grande Mentiroso2, que, à moda de
Menocchio, utilizou a tradição oral e as leituras que fizera e construiu seu sistema de
compreensão do mundo: compara a criação do mundo com os vermes que aparecem no queijo
que está em estado de putrefação. “[...] tudo era um caos, isto é, terra, ar, fogo e água juntos, e
de todo aquele volume se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite,
e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos” (GINZBURG, 2006: 36-37).
A memória tem caráter seletivo no que diz respeito, também, ao balanço que uma
pessoa faz, diga-se de passagem, àquilo que confessamos a si mesmo e àquilo que pode ser
dito com segurança, sem mal entendido ou sentido dúbio. Assim, o ato de lembrar é um
trabalho da memória, arrumação dos sentimentos, das emoções, dos sentidos atribuídos aos
lugares, às pessoas, que opera por meio de mecanismos psíquicos, sociais e políticos.
Muitos sentimentos atravessam a festa de Nossa Senhora das Dores. Essa celebração
remonta ao século XIX, ocorre na Catedral das Dores, localizada no Centro antigo dessa
cidade. Nos tempos áureos era permeada por música, parques de diversões, jogos e
brincadeiras, tomava por inteiro a Praça Saraiva com a grande agitação e euforia da população
que prestigiava o festejo. As festas em louvor a Nossa Senhora das Dores ocorrem em todo o
Brasil. Essa celebração faz parte do patrimônio imaterial3, é uma referência cultural dos
teresinenses, especialmente constitui a história e a memória dos caminhantes - devotos. Os
fieis de Nossa Senhora das Dores são denominados neste estudo de caminhantes - devotos.
2 Cf. AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral. Revista História. São Paulo, n. 14, p. 125- 135,1995. 3 Com o Decreto n. 3.551, de 4 de agosto de 2000 houve um avanço na perspectiva patrimonial; ele é o marco legal do registro do patrimônio imaterial. A Resolução n. 1, de 3 de agosto de 2006 completou o decreto anteriormente referido numa perspectiva marcadamente antropológica, e de alcance amplo, especialmente, direcionada as culturas tradicionais populares e indígena.
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Imagem 2 Praça Saraiva: espaço de sociabilidade do Centro Antigo de Teresina - PI, onde ocorre a festa de Nossa Senhora das Dores, década de 1990. Fonte: Arquivo Público do Piauí, Casa Anísio Brito.
Nesse estudo, dialogamos com uma perspectiva ampla de patrimônio cultural, que
inclui o direito a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira: as
culturas indígenas e afro-brasileiras e as culturas populares. No Brasil foi registrada como
patrimônio cultural imaterial a expressão musical, pinturas corporais, celebrações, samba de
roda, modo de fazer, lugar sagrado. Além disso, criação cultural processual e dinâmica,
fundada na tradição, o saber geracional, e manifestado por grupos ou indivíduos, como
expressão da identidade social e cultural.
Hartog (2006) relaciona o patrimônio com o tempo, bem como com a memória. O
patrimônio é um indício do tempo, é uma das diversas formas de tradução do tempo. São
testemunhas das durações que atravessam a história. Quando falamos da universalização do
patrimônio, das várias políticas de usos do patrimônio ou da longa lista de sítios patrimoniais,
a que tempo no referimos? Qual o regime de historicidade da patrimonialização? É um gosto
pela nostalgia? Vivemos o tempo do dever da memória? É possível preservar o patrimônio
contra o desgaste do tempo? O patrimônio só se constitui como tal quando faz parte das
referencias simbólicas e afetivas de um povo.
As festas em louvor aos santos, às vivências e as experiências religiosas privadas nos
espaços sagrados dos oratórios e altares domésticos, por exemplo, fazem parte do patrimônio
cultural dos brasileiros, eles são constantemente reinventados, assumem novas sentidos,
acolhem novos contornos e significações. Segundo Sérgio Ferretti, “a festa brasileira se liga
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essencialmente à religião e, desde o período colonial, a sociabilidade constitui traço marcante
da identidade nacional” (FERRETTI, 2007: 4).
Atualmente, a festa de Nossa Senhora das Dores circunscreve ao reduzido espaço da
praça, e mobiliza principalmente os antigos habitantes que vivem ou viveram cotidianamente
os vários espaços do Centro, que, especialmente nos dias de festa enchem-se de cantorias e
vivas a Nossa Senhora das Dores! Assim, tendo em vista esse caminhante de todos os dias, ou
caminhante-devoto, compreendemos ser uma oportunidade de discutir memória, história,
cidade, religiosidade, patrimônio cultural e história oral.
Nesse sentido, pensar a história oral como metodologia de trabalho, sobretudo na
perspectiva de invenção de novos sujeitos de pesquisa para a investigação histórica; no
entendimento que esses caminhantes são permeados por sentimentos, desejos, angústias,
medos, utopias e sonhos realizados ou não. A invenção do caminhante-devoto foi uma
solução teórica e metodológica de trabalho, uma vez que nos deparamos com a singularidade
do objeto de pesquisa, quanto à relação verificada entre universo simbólico e a construção de
sentidos sobre a devoção a Nossa Senhora que, por sua vez, atravessavam a vida cotidiana dos
caminhantes-devotos.
Assim, partindo do pressuposto que os festeiros fazem parte dos múltiplos espaços da
cidade, portanto tornando-os seus pelos passos caminheiros de todos os dias, especificamente
no Centro Antigo, eles estabelecem relações de sentidos com os demais caminhantes e outros
espaços, cotidianamente tecem sociabilidades, vivências e memórias, responsáveis, dessa
maneira, pelas mudanças e permanências da festa em louvor a Nossa Senhora das Dores.
Dessa maneira, combinamos a prática dos antropólogos, portanto a etnografia e a
crítica histórica. Além disso, utilizamos a metodologia da história oral e o trabalho de campo4.
4 Cf. GIUMBELLI, Emerson. Para além do “trabalho de campo”: reflexões supostamente malinowskianas. Revista brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 17, n. 48, p. 91- 107, fev., 2002. Essa reflexão procura questionar a relação direta entre Antropologia e trabalho de campo, fundamenta a cidadania aos antropólogos que utilizaram a metodologia da História; as fontes documentais: processos judiciais, jornais, textos médicos, jornalísticos etc. Assim como privilegiaram tempo/espaço recuados. Nesse caso, as décadas finais do século XIX até a década de 1940. Propõem o uso de outras metodologias, fontes de pesquisa e critica o trabalho de campo como método privilegiado da antropologia. Assim, procura desmitificar o fazer dos antropólogos como conhecimento essencialmente do tempo presente. Ou seja, questiona a relação entre sujeito e objeto do conhecimento antropológico. Também cf. PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia. Série Antropológica – 130. Brasília, p. 2-21, 1992, procura mostrar que a pesquisa de campo é o procedimento básico da Antropologia, mas que não se limita a uma técnica de coleta de dados, antes é um procedimento com implicações teóricas, ou seja, questionamentos suscitados a partir do diálogo e as vivências em campo, contribuindo com a teoria acumulada sobre a disciplina.
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A história oral5 trata de narrativas sobre vivências, expressões de vida. Dessa maneira, a Festa
de Nossa Senhora das Dores é uma construção realizada a partir dessas vivências e sentidos e
também de nossa experiência de campo, o que pressupõe um dentro e um fora. A história oral
é uma escuta e registro das experiências de indivíduos vivos, que interagem constantemente
uns com os outros e esses com os espaços, caminhantes que inventam cotidianamente suas
trajetórias e percursos de vida.
Portanto, história oral é “[...] a interpretação da história e das mutáveis sociedades e
culturas através da escuta das pessoas e do registro de suas lembranças e experiências”
(THOMPSON, 2002: 9). Nossas entrevistas cruzaram a Festa com a experiência de vida dos
caminhantes, não se caracterizaram como história de vida, pois não abrange a totalidade da
vida dos caminhantes. Embora, fosse a nossa pretensão nos aproximarmos ao máximo deles,
notadamente, dos sentimentos, das angústias, das particularidades dos gestos e dos ritmos dos
passos. Contudo, contempla uma temática específica com as experiências mais amplas dos
entrevistados. Assim, “[...] a entrevista tem caráter temático e é realizada com grupo de
pessoas, sobre um assunto específico” (FREITAS, 2006: 19). O trabalho com fontes orais é
uma prática interdisciplinar, realizada e pensada por historiadores, antropólogos, sociólogos,
psicólogos.
O advento do trabalho de campo na Antropologia é contemporâneo ao cinema. O olhar
cinematográfico, nessas primeiras investidas, apenas enxergava o semelhante a si mesmo,
uma miopia profunda, que via no outro o reflexo do seu rosto. Um dos primeiros filmes
etnográficos pensados como documentação audiovisual, quanto ao uso de tecnologias na
pesquisa de campo na Antropologia foi realizado durante a expedição ao Estreito de Torres,
entre a Austrália e Papua-Nova Guiné, pela Cambridge University Expedition to Torres
Straits, em 1888, organizada por Alfred Cort Haddon [1855-1940], zoólogo e etnólogo. Nessa
5 Até o final da década de 70, a história oral não figurava como metodologia aceita por historiadores. Os antropólogos e sociólogos a viam com indiferença, uma vez que já tinham experiencia com os depoimentos orais. Além disso, não aparecia em programas e cursos universitários e na programação de seminários. Isso se dava por motivos econômicos e políticos e, especialmente, pela concepção de história que vigorava no Brasil. As fontes orais eram vistas com desconfiança uma vez que, segundo essa perspectiva, trazia uma visão particular do acontecimento. Todavia, a proximidade temporal ou o que chamamos de história do tempo presente trazia risco para a objetividade da pesquisa. Entretanto, no Brasil, desde a década de 70, havia experiências com a História Oral, como, por exemplo, no Museu da Imagem e do Som [1971], Museu do Arquivo Histórico da Universidade Estadual de Londrina [1972], no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC [1975]. Cf. FERREIRA, Marieta Moraes. Desafios da história oral nos anos 90: o caso do Brasil. História Oral, Rio de Janeiro, n. 1, p. 19-30, 1998; D’ARAUJO, Maria Celina. Como a História Oral chegou ao Brasil- Entrevista com Aspásia Camargo. História Oral, Rio de Janeiro, n. 2, p. 167-179, 1999.
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expedição foram registrados, por meio do cinema, gravador e fotografia, vários aspectos da
cultura aborígene.
Imagem 3: Expedição ao Estreito de Torres, 1888. Os nativos nos rituais e em atividades tradicionais. Foto: Haddon.
No rastro dessa expedição, os deslocamentos às sociedades primitivas tinham o
interesse de coletar dados, de inquirir mais que observar, num contexto marcado pelo
evolucionismo. Naquele momento, predominava a antropologia de gabinete. A imersão no
universo cultural e social do “Outro” é mais recente. Na antropologia, pesquisadores se
destacaram na pesquisa de campo e no uso das imagens. Franz Boas [1858-1943] inaugurou a
pesquisa de campo com o estudo dos Inuit, no ártico canadense. Em decorrência dessa
pesquisa, publicou em 1888, The Central Eskimo; Malinowski [1884-1942] 6 inaugurou a
Antropologia moderna, realizou três expedições entre 1914 e 1920, e desde o início daquela
expedição utilizou a fotografia. Com Os Argonautas do Pacífico Ocidental [1922],
notabilizou-se na pesquisa de campo e na observação participante. Relativamente à ética e ao
ofício do etnógrafo de campo:
O etnógrafo de campo deve analisar com seriedade e moderação todos os fenômenos que caracterizam cada aspecto da cultura tribal sem privilegiar aqueles que lhe causam admiração ou estranheza em detrimento dos fatos comuns e rotineiros. Deve, ao mesmo tempo, perscrutar a cultura nativa na totalidade de seus aspectos. A lei, a ordem e a coerência que prevalecem em cada um desses aspectos
6 Cf. MALINOWSKI, Bronislaw Kasper. Argonautas do Pacífico ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia; prefácio de Sir James George Frazer; tradução de Anton P. Carr e Lígia Aparecida Cardieri Mendonça; revisão técnica de Eunice Ribeiro Durham. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978; SAMAIN, Etienne. “Ver” e “dizer” na tradição etnográfica: Bronislaw Malinowski e a fotografia. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 1, n. 2, p. 23-60, jul./set. 1995.
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são as mesmas que os unem e fazem deles um todo coerente (MALINOWSKI, 1995: 24).
A História Oral e Antropologia orientaram as práticas desse trabalho de campo. Os
testemunhos produzidos pela História Oral, as entrevistas, são documentos-monumentos7, ou
seja, o caráter intencional de legitimar uma memória sobre o que aconteceu, construção da
imagem de um determinado grupo que é imposta aos Outros. “O documento não é inócuo. É,
antes de tudo, o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época
que o produziram” (LE GOFF, 2003: 537-538). É produto da intervenção, das preferências,
dos cortes, das escolhas dos entrevistados, dos historiadores sobre o conjunto de dados sobre
o passado. Essa manipulação dá-se mesmo em silêncio. Por isso, é sempre bom ter em mãos
um caderno de campo8 para alicerçar no momento da entrevista. No caderno de campo
podemos anotar reações, expressões, gestos, murmúrios, circunstâncias da entrevista, dados
sobre o entrevistado, novas questões e possíveis interlocutores da pesquisa.
A prática etnográfica não é simplesmente se deter sobre detalhes, na busca por
pormenores reveladores na descrição da Festa, muito menos é reproduzir diálogos com os
informantes ou um ato de nos portamos como porta voz. A etnografia é um esforço intelectual
com o intuito de elaborar uma descrição densa. É um trabalho continuado e paciente, que
ordena os fragmentos dos mais diversos diálogos e vivências, em diferentes espaços, na casa
dos caminhantes - devotos, na Praça Saraiva, na Igreja de Nossa Senhora das Dores. O que
realizamos é uma prática etnográfica na cidade de Teresina, notadamente, no Centro de
Teresina, onde ocorre a Festa de Nossa Senhora das Dores. O Centro da Cidade é uma área de
ofertas de bens e serviços variados, onde encontramos comércios, lojas, escolas, órgãos
públicos, bancos. Por outro lado, abriga em seu interior a Festa de Nossa Senhora das Dores e
sua comunidade. 7 Cf. LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: _____. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão [et al.]. 5. ed. Campinas – SP: Editora Contexto, 2003. 8 O diário de campo ou caderno de campo é um instrumento não apenas do pesquisador da área da antropologia. Contudo, nele se exerce a etnografia. Ele é um exercício da observação direta dos comportamentos socioculturais. Nele relacionamos eventos, compartilhamos os materiais para a análise posterior, expomos os discursos e o posicionamento dos entrevistados, compreendemos os lugares relacionados pelos observados, esclarecemos atitudes, levantamos hipótese, registramos reflexões suscitadas durante a estada em campo, informamos as fazes de investigação, fazemos críticas às entrevistas transcritas, aos jornais ou aporte teórico. No caderno de campo são registramos as especulações teóricas, os enganos, a ingenuidade do pesquisador, os medos e os preconceitos, relatamos aspectos distintos da pesquisa, páginas escritas sobre a intimidade do pesquisador, registro com datas e outros sem essa informação, notas esparsas e anexos. O caderno de campo mostra etapas de reflexão e do desenvolvimento da pesquisa, bem como permite uma autoanálise. O diário e/ou caderno de campo não é secreto, mas antes um manancial de materiais que podem ser trabalhados, desde que haja a manutenção do diário. Cf. WEBER, Florence. A entrevista, a pesquisa e o íntimo, ou: por que censurar seu diário de campo? Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano. 15, n. 32, p. 157-170, jul./dez, 2009; MALINOWSKI, Bronislaw Kasper. Um diário no sentido estrito do termo. Tradução de Celina Falk. Rio de Janeiro: Record, 1997.
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[...] a boa etnografia de inspiração antropológica não é apenas uma metodologia e/ou uma prática de pesquisa, mas a própria teoria vivida. Uma referência teórica não apenas informa a pesquisa, mas é o par inseparável da etnografia. É o diálogo íntimo entre ambas, teoria e etnografia, que cria as condições indispensáveis para a renovação e sofisticação da disciplina – a “eterna juventude” de que falou Weber. No fazer etnográfico, a teoria está, assim, de maneira óbvia, em ação, emaranhada nas evidências empíricas e nos nossos dados. Mais: a união da etnografia e da teoria não se manifesta apenas no exercício monográfico. Ela está presente no dia a dia acadêmico, em sala de aula, nas trocas entre professor e aluno, nos debates com colegas e pares, e, especialmente, na transformação em “fatos etnográficos” de eventos dos quais participamos ou que observamos. Desta perspectiva, etnografia não é apenas um método, mas uma forma de ver e ouvir, uma maneira de interpretar, uma perspectiva analítica, a própria teoria em aça (PEIRANO, 2011, s/p).
Assim, a etnografia é uma maneira de estabelecer um contato, relações com o mundo
dos caminhantes - devotos. A prática antropológica é a descrição densa que tenta apreender e
apresentar o emaranhado e sobreposições culturais recolhidas em campo, muitas vezes,
figuras estranhas, uma leitura da Festa de Nossa Senhora das Dores, uma atualização sensível,
com todos os seus passados, as práticas dos festeiros de Nossa Senhora das Dores.
Fazer etnografia é como tentar ler [no sentido de construir uma leitura de] um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado (GEERTZ, 1989: 20).
Nesse trabalho de olhar e de sentir a Festa de Nossa Senhora das Dores, conhecemos,
entre muitos outros igualmente especiais caminhantes-devotos, Dona Ceiça, professora,
formada em Geografia, 58 anos, nascida em Teresina. Seu pai era do interior do Maranhão e
sua mãe era teresinense, sempre morou na paróquia de Nossa Senhora das Dores, na rua Santa
Luzia. Essa Senhora foi uma das primeiras pessoas da paróquia com quem entramos em
contato. Através de nossas conversas e visitas à sua casa, pudemos ampliar a rede de
interlocutores desta pesquisa, mais do que isso, entramos em contato com o mundo cultural,
simbólico dessa caminhante – devota. “As lembranças que ouvimos de pessoas idosas têm
assento nas pedras da cidade presentes em nossos afetos, de uma maneira bem mais
entranhada do que podemos imaginar” (BOSI, 1994: 443).
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Imagem 4: Oratório doméstico: múltiplos olhares e objetos da memória, situado no quarto de D. Ceiça. Foto: Márcia Costa. Teresina - PI, 2010.
Em uma tarde de muito sol na cidade de Teresina, chegamos à casa de Dona Ceiça.
Antes que fossêmos recebida por ela, deparamos-nos, ainda na rua Santa Luzia, com o seu
altar doméstico, que nos apresentou. Da rua se vê logo a entrada da casa, seu portão com
grade, cujo espaçamento entre elas nos permite ver o interior da casa e dali mesmo nos
comunicar sem nenhum atropelo, casa e rua estão ligadas. Assim, os movimentos que
ocorriam na rua, o barulho, o ruído, os passos de estranhos adentravam à casa de Dona Ceiça.
O altar está na sala de visita, de frente à porta que dá acesso ao terraço, cômodo que por sua
vez estabelece o limite entre a casa e a rua.
Logo depois, Dona Ceiça apareceu na sala. Vinha sorridente ao nosso encontro. Nesse
embate, conversamos demoradamente. Mas antes disso, no primeiro momento, Dona Ceiça,
ainda, estava pouco à vontade com os equipamentos que usávamos para a entrevista. Apesar
de expontânea e alegre, deixava entrever seu nervosismo. Do nosso lado, o embaralho com os
papéis e o questionário, que tiraravam de nós a desenvoltura necessária para esse encontro.
Todavia, com o passar do tempo, fomos nos aproximando, e depois desse tempo de
acamodação dos sentimentos, pudemos, finalmente, conversar. Nesse diálogo, Dona Ceiça se
apresentou:
Eu sou Conceição de Maria de Meneses Sobreira, 58 anos, e nasci aqui em Teresina. Sempre fui dessa paróquia. Toda vida trabalhei em várias associações e movimentos daqui da paróquia. Eu sou conhecida como Ceiça. Geralmente, as pessoas com quem eu convivo são da minha idade e os jovens me chamam de Dona Conceição. Os da minha idade me chamam de Conceição ou Ceiça, eu não tenho apelido. Eu sempre morei aqui. Os meus pais são daqui. Praticamente, meu pai veio
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pra cá com dezoito anos. Ele era do sul do Maranhão. E a minha mãe é daqui. E ele veio do interior pra cá, aqui eles se encontraram, começaram a trabalhar juntos, se casaram e tiveram doze filhos, ficaram vivos dez e os dois primeiros morreram (SOBREIRA, 2010, s/p).
À medida que percorríamos os espaços de sua casa, Dona Ceiça nos apontava objetos,
quadros, relatava-nos momentos de sua vida que ainda repercutiam com toda vitalidade. Falou
desses objetos de lembranças, contou-nos a história do seu oratório e dos altares. Mostrou-nos
os seus cartões postais, falou de sua vida cotidiana. As portas da casa de Dona Ceiça eram
espaços de passagens, pois quando nos aproximávamos de outro cômodo, éramos avisados,
advertidos de sua importância, de sua fragilidade, de sua beleza, de sua afetividade. Ao
adentrarmos o quarto de Dona Ceiça, não fora diferente. Antes de abrir a porta, ela nos fez ver
um quadro de Nossa Senhora com Jesus Crucificado, passaríamos, talvez, sem percebê-lo,
sem olhar para o alto, para a estremidade superior da porta. Dessa maneira, fomos advertido
pelo destaque que dera aos quadros, haviam sido de sua Mãe, Dona Amélia.
Esse percurso foi marcado por muitas descobertas, camadas e mais camadas de
sentidos, sonoridades e descobertas arqueológicas afloravam do chão, das paredes, dos
objetos, dos gestos e afetos dispendidos em todos os espaços que percorremos juntas. As
horas escorregaram sorrateiramente sem que dêssemos conta. Assim, os sons produzidos em
uma casa, bem como aqueles ouvidos nas ruas têm sua repercussão na memória. Cada passo
dado encontra nas pedras declives, a textura acolhedora, necessária para o sentimento de
pertencer àquele lugar. “As lembranças se apoiam nas pedras da cidade” (BOSI, 2003: 441).
Portanto, os passos caminheiros se apropriam das entradas e saídas da cidade, por outro lado,
inventam novos itinerários e praticam a cidade em seus múltiplos aspectos.
Para Certeau (1996), caminhantes são os praticantes, aqueles que com sua enunciação
pedestre conhecem, exploram o bairro ou, no caso deste estudo, a festa da igreja, porque
andam pela cidade e, assim, sabem distinguir os declives, as pedras, os cheiros; uma vez que
estão nos lugares de devoção de algum modo. Além de caminhantes são também devotos de
Nossa Senhora das Dores. Praticam a festa, tornado-a sua; celebração modificadora de
atitudes sociais amplas e íntimas. A prática é o movimento que imprime às coisas e aos
lugares o vento modificador da história.
O caminhante - devoto precisa do movimento, opera com a instabilidade do tempo,
das pessoas e circunstâncias, pois é essa habilidade que faz dele um caminhante - devoto.
Afinal, ele vive no espaço urbano, no centro de Teresina. As ruas da Cidade, por exemplo, de
dia têm outros ritmos, são apropriadas de maneiras diferentes, uma vez que entramos em
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contado com movimentos distintos. Todavia, nessas mesmas ruas, nos dias de festa de Nossa
Senhora das Dores, os movimentos dos passos são lentos, cantados e piedosos, a ponto de
poderem rezar um terço, de fazerem suas penitências. “Assim, a rua geometricamente definida
por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres” (CERTEAU, 1994: 202). Para
que o lugar próprio permaneça vivo para o caminhante - devoto é preciso apreender a
gramática das ruas, do Centro de Teresina.
Esse equilibrista dos ritmos mantém as relações tecidas ao longo do tempo com os
vizinhos, com a festa de Nossa Senhora sem perder de vista o movimento da história. Essa
clara distinção entre os ritmos do centro da Urbe pressupõe a capacidade de apropriação
tecida cotidianamente do caminhante - devoto, uma vez que cada caminhante constrói para si,
através do jogo de exclusões e preferência [gosto], o percurso diário. Essa presença
caminheira é uma enunciação de si, portanto de um modo de viver e fazer, “os relatos
cotidianos contam aquilo que, apesar de tudo, se pode fabricar e fazer. São feituras de
espaços” (CERTEAU, 1994: 207).
Esse personagem do dia a dia estabelece relações de ajustamento de gestos e passos,
ou seja, essas operações diárias, o caminhar possui uma destreza familiar, ao tempo em que à
medida que caminha, cria espaços e trajetórias infinitas, o caminhante apropria-se das ruas, da
Igreja das Dores, etc. Os espaços não permanecem os mesmos, por seu turno, uma das suas
principais características é a mudança operada pela prática caminheira diária, o que pressupõe
também vários investimentos em si e nos modos de apropriação. Os passos caminheiros,
portanto, mantêm a vitalidade desses lugares.
O percurso do caminhante é descontinuo. Os passos que levam da casa à rua e vice-
versa se fazem de maneira indireta, através de triagens de trajetórias e deslocamentos, que
podem variar no tempo, porque estão sujeitos a uma série de variáveis econômicas, sociais ou
urbanas. Essas práticas são fundamentais para a continuidade da Festa de Nossa Senhora das
Dores, pois, enquanto os caminhantes – devotos, pela condição mesma de descontinuidade
dos percursos, atualizam para si e para os outros esses deslocamentos; isso significa o
movimento ininterrupto da vida, da Festa e do sentimento de religiosidade dos caminhantes -
devotos que se renovam. A descontinuidade de todo percurso estabelece condições de
invenção de outras trajetórias, provocando, a cada investida dos passos, o encontro com
espaços raros, ilegítimos ou personagens novos dessas tramas diárias. A descontinuidade de
cada percurso diário do caminhante - devoto é condição para o avivamento da Festa de Nossa
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Senhora das Dores. A Festa é elemento vivo, porque está no fluxo do tempo e das
transformações que opera nas atitudes e comportamentos.
Outra característica do caminhante é a “apropriação presente” (CERTEAU, 1994: 178).
Ele faz do andar uma prática do hoje, de todo dia, tornando uma caçada diária aos percursos
que ele atravessa. Assim, a descontinuidade das trajetórias não se torna um novelo de difícil
rearranjo, porque se caminha todos os dias, inventam-se novas trajetórias, e a novidade que
permeiam esses caminhos não desconstrói a permanência delas na história e memória dos
caminhantes de Nossa Senhora das Dores.
Na velhice é comum associar as memórias aos espaços, estes ancoram as lembranças.
Os espaços são entrecortados por camadas e camadas de cheiros, lembranças, sensações,
sobretudo, são temperos da afetividade e sociabilidade duradouras e que mudam a cada passo,
para conhecê-los é preciso à enunciação pedestre cotidiana. Assim: “A caminhada, que
sucessivamente persegue e faz perseguir cria uma organicidade móvel do ambiente, uma
sucessão topoi, fática” (CERTEAU, 1994: 178).
Contudo, muitas vezes, os passos caminheiros já não podem atravessar os percursos
diários, muitas vezes, o trabalho de memória, ao invés dos passos de cada dia, atualiza e
enche de vida esses espaços e estreitam, assim, as relações dos caminhantes com os “outros”.
Chegamos, dessa maneira, à terceira característica do caminhante- a comunicação. A
enunciação pedestre é um texto no qual marcamos nossas impressões e gestos. Cada
deslocamento comunica ao corpo os desvios, o tipo de calçamento, as descidas, “não é de
causar espécime que anterior ou paralela à elocução informativa, ela também saltite, caminhe
em quatro patas, dance e passeie pesada ou leve, como uma sequência de “alô!”, em um
labirinto de ecos” (CERTEAU, 1994: 179). Com essa composição de vozes e gestos, as
trajetórias falam, “o que é individual é a religiosidade como forma particular de participar e
experimentar a religião” (SILVA, 2010: 205-216).
O caminhante é aquele que atualiza os percursos cotidianamente e quando o faz
imprime o seu texto naquele espaço, estabelecendo trajetórias secretas, íntimas, mas o faz
comunicando-se com os outros. A prática caminheira possibilita fazer seu um espaço
anônimo, manipulá-lo de acordo com as tonalidades e instrumentos que informam suas
preferências e gostos. O caminhante usa os passos, as ruas, a Festa de Nossa Senhora das
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Dores para comunicar a si e aos outros, no jogo face a face de solidariedades e crenças. O
caminhante - devoto é movimento produzido na história.
[...] é um processo de apropriação do sistema topográfico pelo pedestre [assim como o locutor se apropria e assume a língua]; é uma realização espacial do lugar (assim como o ato de palavra é uma realização sonora da língua); enfim, implica relações entre posições diferenciadas, ou seja, contratos pragmáticos sob a forma de movimentos (assim como a enunciação verbal é ‘alocução’, ’coloca o outro em face‘ do locutor e põe em jogo contratos entre locutores). O ato de caminhar parece, portanto, encontrar uma primeira definição como espaço de enunciação. (CERTEAU, 1994: 177).
Esse personagem do dia a dia estabelece relações de ajustamento de gestos e passos,
ou seja, essas operações diárias, o caminhar possui uma destreza familiar, ao tempo em que à
medida que caminha, cria espaços e trajetórias infinitas, o caminhante apropria-se das ruas, da
Igreja das Dores, etc. Os espaços não permanecem os mesmos, por seu turno, uma das suas
principais características é a mudança operada pela prática caminheira diária, o que pressupõe
também vários investimentos em si e nos modos de apropriação. Os passos caminheiros,
portanto, mantêm a vitalidade desses lugares e da festa de Nossa Senhora das Dores, enquanto
componente alegre e simbólico desses espaços de todo dia.
Assim, quanto à experiência com a metodologia da História Oral, mais que apenas
citar o conteúdo das entrevistas que fizemos com os caminhantes - devotos, nossa intenção foi
trazer a potência viva de seus traços singulares, particulares, vivências sob escombros,
camadas arqueológicas, profundas, que demandam preparação íntima para recebê-los,
apresentá-los, planejamento para fazer investidas seguras, que só dessa maneira, nós
poderíamos, os historiadores e os informantes, construir um ambiente de respeito, de
confiança, através também de diálogos abertos e com escuta atenta e respeitosa. “Esse vínculo
não traduz apenas uma simpatia espontânea que se foi desenvolvendo durante a pesquisa, mas
resulta de um amadurecimento de quem deseja compreender a própria vida relevada do
sujeito” (BOSI, 1994, p. 38). Uma vez que estávamos conversando com pessoas vivas (com
pulsão viva de suas paixões, desejos e utopias), tendo em vista, especialmente, o sentimento, a
afetividade, a angústia, a incerteza, a imaginação, o desejo, a subjetividade.
Conversar com os vivos implica, por parte do historiador, uma parcela muito maior de responsabilidade e compromisso, pois tudo aquilo que escrever ou disser não apenas lançará luz sobre pessoas e personagens históricos [como acontece quando o diálogo é com os mortos], mas trará consequências imediatas para as existências dos informantes e seus círculos familiares, sociais e profissionais (AMADO, 1997: 146).
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Esses sujeitos caminheiros de Nossa Senhora das Dores são atravessados por muitas
temporalidades, espaços, pessoas, objetos. O que nos interessou foram à matéria viva e as
camadas de vivências sobre, como que atravessando os espaços, os objetos, e tudo mais que
tocam os nossos caminheiros.
A memória da festa de Nossa Senhora das Dores é atualizada pelos passos
caminheiros. Isso não a faz vulnerável, mas viva, atuante, presente. Essa atualização é,
sobretudo, um fenômeno social e coletivo, sujeito às transformações e mudanças nesse
contexto de construção de significação da festa. Os interlocutores constroem afetiva e
subjetivamente a festa. Além disso, a substância da memória é composta pelos
acontecimentos que experienciamos, de que participamos e, por outro lado, os acontecimentos
vivenciados por tabela, ou seja, a memória herdada, aquela de ouvir dizer, de ter visto em
algum álbum, de ter lido em jornais ou revistas. “São acontecimentos dos quais a pessoa nem
sempre participou, mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é
quase impossível que ela consiga saber se participou ou não” (POLLAK, 1992: 201).
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