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A história e as ciências sociais na profissionalização da historiografia argentina Fernando J. Devoto Tradução de Antonio Brasil Jr. As relações que a história estabeleceu com outras ciências nos séculos XIX e XX foram se modificando ao longo do tempo em qualquer contexto oci- dental e, portanto, também na Argentina. Elas oscilaram entre a indiferen- ça ou a hostilidade de uma disciplina antiga que procurava definir sua cien- tificidade em oposição, primeiro, à filosofia e, depois, às ciências das naturezas (e às ciências sociais que usavam como paradigma as da natureza), e uma assunção acrítica e indiscriminada do vocabulário, dos métodos e dos es- quemas conceituais destas últimas. Recorrentes debates marcaram assim a segunda metade do século anterior à Primeira Guerra Mundial, no contex- to do clima “positivista”, até que foram encerrados, antes ou depois de acordo com os casos nacionais, com a assunção por parte da grande maioria dos historiadores de uma ideia de história entendida como uma disciplina de baixa densidade teórica, orientada para o estudo dos fenômenos indivi- duais e irrepetíveis, no marco de uma perspectiva de singularização e não de generalização dos processos históricos. Os debates se deram tanto entre aqueles que se podiam definir como historiadores quanto entre estes e os cultores de outras ciências sociais como a economia e a sociologia 1 . Nesse contexto, o caso argentino não é original, ainda que o processo tenha adquirido modulações e temporalidades próprias que buscaremos indagar aqui. Não o é, antes de tudo, porque a história e as ciências sociais argentinas olharam permanentemente para a Europa em busca de esque- 1. Entre os mais emblemáti- cos destes debates encon- tram-se: a Methodenstreit (ou querela dos métodos) en- tre Carl Menger e Gustav Schmoller, a discussão em torno da obra de Lamprecht, a polêmica entre N. Fustel de Coulanges e Gustav Monod, a que opôs Paul Lacombe a Alexandru Xenopol, e aquele que confrontou François Si- miand e Émile Durkheim com Charles Seignobos, ou de Benedetto Croce com a chamada escola econômico- jurídica italiana. Acerca de cada um deles podem ser vis- tos: Reinert (2003, pp. 160- 192); Chickering (1993, pp. 211-252); Hartog (1988); Arcangeli e Platania (1981); Virad et al. (1997); Pertici (1999).

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A história e as ciências sociais naprofissionalização da historiografia argentinaFernando J. Devoto

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  • A histria e as cincias sociais naprofissionalizao da historiografia argentina

    Fernando J. DevotoTraduo de Antonio Brasil Jr.

    As relaes que a histria estabeleceu com outras cincias nos sculos XIX eXX foram se modificando ao longo do tempo em qualquer contexto oci-dental e, portanto, tambm na Argentina. Elas oscilaram entre a indiferen-a ou a hostilidade de uma disciplina antiga que procurava definir sua cien-tificidade em oposio, primeiro, filosofia e, depois, s cincias das naturezas(e s cincias sociais que usavam como paradigma as da natureza), e umaassuno acrtica e indiscriminada do vocabulrio, dos mtodos e dos es-quemas conceituais destas ltimas. Recorrentes debates marcaram assim asegunda metade do sculo anterior Primeira Guerra Mundial, no contex-to do clima positivista, at que foram encerrados, antes ou depois de acordocom os casos nacionais, com a assuno por parte da grande maioria doshistoriadores de uma ideia de histria entendida como uma disciplina debaixa densidade terica, orientada para o estudo dos fenmenos indivi-duais e irrepetveis, no marco de uma perspectiva de singularizao e node generalizao dos processos histricos. Os debates se deram tanto entreaqueles que se podiam definir como historiadores quanto entre estes e oscultores de outras cincias sociais como a economia e a sociologia1.

    Nesse contexto, o caso argentino no original, ainda que o processotenha adquirido modulaes e temporalidades prprias que buscaremosindagar aqui. No o , antes de tudo, porque a histria e as cincias sociaisargentinas olharam permanentemente para a Europa em busca de esque-

    1. Entre os mais emblemti-cos destes debates encon-tram-se: a Methodenstreit(ou querela dos mtodos) en-tre Carl Menger e GustavSchmoller, a discusso emtorno da obra de Lamprecht,a polmica entre N. Fustel deCoulanges e Gustav Monod,a que ops Paul Lacombe aAlexandru Xenopol, e aqueleque confrontou Franois Si-miand e mile Durkheimcom Charles Seignobos, oude Benedetto Croce com achamada escola econmico-jurdica italiana. Acerca decada um deles podem ser vis-tos: Reinert (2003, pp. 160-192); Chickering (1993, pp.211-252); Hartog (1988);Arcangeli e Platania (1981);Virad et al. (1997); Pertici(1999).

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    mas, modelos e prticas para aplicar ao prprio caso. Embora seja evidenteque, do ponto de vista interpretativo (e tambm do erudito), muitas dasobras produzidas na metade de sculo anterior Primeira Guerra Mundialtambm eram tributrias de outras publicadas antes na Argentina e inclusi-ve em outros mbitos sul-americanos, e que existia uma trama de debates eintercmbios que abarcavam esse espao, nessas questes acima aludidas osexemplos procediam da Europa e isso ocorrer do mesmo modo posterior-mente. Tambm evidente que aqueles esquemas e modelos eram recebi-dos frequentemente sem benefcio de inventrio e mesclados algumas vezesde modo engenhoso, outras de maneira contraditria.

    O ponto de partida de uma historiografia moderna na Argentina, se nosativermos a dar relevncia nova combinao entre erudio, mtodofilolgico-crtico e esquemas gerais, que se costuma admitir como ponto departida para a operao histrica2, encontra-se na Historia de Belgrano deBartolom Mitre, de 1857. A obra, influenciada pelos modelos historiogr-ficos liberais da primeira metade do sculo XIX (e pelo clima mais geral doromantismo), enquadra-se claramente no processo de individualizao, sin-gularizao e erudio (com sua nfase no papel dos documentos, na especi-ficidade do processo histrico argentino e na liberdade do indivduo na his-tria), estando bem longe das incitaes que por ento emergiam doshistoriadores positivistas europeus. A histria de Mitre, que consagra, aomesmo tempo, um personagem individual, Belgrano, e outro coletivo, opovo argentino, por meio da gesta da revoluo de independncia, contmtodas as caractersticas de um processo cujo sentido se encontra no marcoconceitual de uma nao. No necessrio recriminar Mitre por isso, j quefinalmente aqueles modelos liberais e o clima romntico seguiam vigentesno contexto europeu, muito embora se deva assinalar que este ltimo, quepodia ser uma novidade quando Esteban Echeverra o trouxe ao Prata, jno o era um quarto de sculo mais tarde.

    Certamente, o positivismo tambm comeou sua carreira no Rio da Pra-ta pouco tempo depois, mas seu influxo na historiografia deveria demorarmais tempo. Um eco de que as coisas estavam mudando no clima geral j seencontra no texto, que passou longo tempo indito, escrito por Juan Bautis-ta Alberdi por volta de 1865 para criticar a Historia de Mitre, Belgrano ysus historiadores, no qual propunha uma leitura completamente diferenteda revoluo de maio. Esta era filha, em sua leitura, de causas profundas eno da vontade dos homens, era filha de leis ou foras naturais e dos interes-ses econmicos. Desse modo, a revoluo rio-platense era um apndice da

    2. Ver Momigliano (1950,pp. 285-315).

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    revoluo americana que, por sua vez, era um apndice das revolues euro-peias (ideia tributria da noo de revoluo atlntica de Tocqueville) (cf.Alberdi, 1974, pp. 31-70). Por outra parte, esse observador atento que eraMitre incorporou os motivos que emergiam do positivismo na introduoque anteps, em 1876-1877, terceira edio da agora chamada Historia deBelgrano y de la independencia argentina. Nela, tambm tentou encontrar asdeterminaes profundas que explicavam, desde sua prpria origem na po-ca colonial, o destino posterior da Argentina. A raa, o meio fsico, as rela-es sociais, a sociabilidade, a caracterstica de suas instituies aparecementre outras constantes dessa histria. Embora o texto no tenha refern-cias, parece que Mitre que alude duas vezes existncia de leis naturais (cf.Mitre, 1967, pp. 18 e 25) aproveitou aqui as proposies historiogrficasdo positivismo e provavelmente se deva indicar o nome de Taine, que jhavia tematizado algumas dessas mesmas questes apresentadas pelo histo-riador de Belgrano (como a raa e o meio) na conhecida e to deterministaintroduo de 1863 (a histria, seu presente e seu porvir) que abre suaHistria da literatura inglesa, e o de Henry Buckle, com sua nfase no papeldo ambiente fsico (cf. Taine, 1863, pp. III-XLVIII; Buckle, 1865, pp. 5-17). Mais ainda, talvez se possa sugerir que sua imagem to positiva da po-ca colonial poderia ser vista em muitos pontos como um olhar sobre o casoargentino em oposio primeira parte da obra de Taine sobre o AntigoRegime, que do ano anterior (cf. Taine, 1986). De todo modo, essas inova-es de Mitre devem ser vistas tambm a partir de seus limites. No se tratade uma enunciao de novos princpios gerais conceituais ou metodolgi-cos, e sim de uma influncia mais genrica que opera como aplicao prticae que, por outro lado, caso se refletita parcialmente nos captulos reorgani-zados ou agregados nessa edio (na qual a narrao se estende de 1816 at acrise do ano de 1920 e seu desenlace), no altera em nada o eixo da histriatal qual havia sido narrada nas edies anteriores. Por outro lado, quandoanos mais tarde (em 1886) Mitre publica sua segunda grande obra, La histo-ria de San Martn y de la independencia sudamericana, voltaremos a encon-trar uma obra dentro dos cnones da viso da histria liberal e romntica daprimeira metade do sculo XIX, com sua nfase na histria poltica e nosheris como emergentes de coletividades nacionais.

    Os limites na abertura historiografia positivista e s outras cinciassociais em geral podem ser percebidos com maior claridade ainda nodebate que travaram Bartolom Mitre e Vicente Fidel Lpez em 1881-1882 e que constitui, em qualquer viso clssica, o momento em que se

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    organiza o campo historiogrfico argentino. Certamente ali aparecem indi-cados alguns dos historiadores positivistas (Buckle, Taine), mas de formabastante decepcionante. Com relao a Taine, mesmo que ambos se dete-nham em As origens da Frana contempornea, percebendo a importnciado livro na historiografia da poca, fazem-no simplesmente para extrairargumentos para suas prprias perspectivas acerca da prtica histrica. Mitre,erudito empirista e acumulativo, defende a ideia de que a novidade da obrade Taine se refere ao achado de novas fontes que lhe permitem oferecer umarenovada leitura da revoluo. Lpez, que no acreditava nesse procedi-mento, j que, segundo ele, cada historiador reconstri a histria a partir deum ponto de vista prprio (e sempre segundo seus interesses e seu partido),e por isso cada leitura nica, impessoal e intransfervel, e que, ainda, acre-ditava pouco nos documentos e muito mais nas virtudes artsticas, v emTaine uma nova interpretao da revoluo, que negava seu carter liberale progressista (o que, na forma em que o formulava, no era incorreto), eno uma nova erudio (cf. Lpez, 1921, pp. 222-224). Com relao aBuckle, Lpez o cita brevemente junto com outros historiadores com ten-dncias filosficas, entre os quais se inclui e entre os quais inclui Taine,mas tambm outros pertencentes estao historiogrfica anterior, de Thiersa Michelet, de Carlyle a Macaulay (o maior de todos para ele junto com osantigos). Mitre responde que Buckle, no obstante suas faculdades genera-lizadoras e suas tendncias filosficas, havia sustentado a prioridade davasta reconstruo dos fatos e que cada linha de sua obra estava compro-vada com uma biblioteca citada no rodap. Ambos, no entanto, parecempassar por alto todas as questes metodolgicas que os positivistas tinhamse esforado para apresentar, alm de sua ideia mesma de cincia histrica(cf. Mitre 1921, pp. 28-30; Lpez, 1921, p. 84).

    O que a polmica mostra em quo grande medida ambos esto anco-rados historiograficamente na primeira metade do sculo XIX. Por exem-plo, Mitre cita brevemente Wilhelm von Humboldt como emblema dehistria cientfica e esta observao certamente perspicaz, j que naconhecida conferncia de Humboldt de 1821 que tantos procurariam, deRanke a Dilthey ou ao jovem Croce, o novo ponto de partida terico paraa disciplina3. E apesar de mostrar que havia lido alguns dos economistasclssicos, por exemplo Thomas Malthus, coloca-o argumentativamente (emsua polmica contra Lpez sobre a populao) junto ao matemtico suodo sculo XVIII, Leonhard Euler (cf. Mitre, 1916, p. 57). Lpez, por suavez, era ainda menos aberto s novidades que pudessem provir no j de

    3. O texto clssico de Hum-boldt Ueber die Aufgabedes Geschichtschreibers, ci-tado aqui na verso italiana.Ver Humboldt (1980, pp.117-139).

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    historiadores positivistas, mas de economistas ou socilogos. bem conhe-cido que acreditava muito mais que Mitre nos historiadores antigos (e tam-bm se sabe o quanto Tucdides o influenciou em sua interpretao da criseargentina do ano de 1920). Mitre, em contrapartida, ainda que igualmentepouco disponvel s novas cincias sociais, ao menos percebia bem todas asdistncias que as convenes historiogrficas oitocentistas estabeleciam en-tre os historiadores antigos e os modernos. Alguma vez afirmou, por exem-plo, o contrrio de Fustel de Coulanges: que Niebuhr com suas escavaeshavia refeito completamente Tito Lvio. Por outra parte, Lpez, no semalgumas ambivalncias precedentes (como veremos), graas sua curiosi-dade para com todas as novidades, foi na polmica muito mais explcitoque Mitre em sua rejeio aplicabilidade das concepes historiogrficasdas cincias naturais e do positivismo ao caso argentino. Como escreveu:Ns no atuamos nas grandes evolues da Histria e da civilizao [...]no podemos por essa razo elevar os nossos acontecimentos ptrios s re-gies transcendentalssimas dessas escolas da cincia pura que estudam asorigens e as leis imanentes da civilizao (Lpez, 1921, p. 262).

    Em todo caso, essas e outras referncias s novas correntes historiogrfi-cas de ento (acompanhadas de uma quase total ausncia de referncias snovas cincias sociais) so notas marginais a uma polmica que de umamaneira muito tradicional se detm em discutir sobre os fatos e os docu-mentos, sobre inexatides e possveis plgios.

    Estando dessa maneira as coisas entre os pais da historiografia modernaargentina, era presumvel que as modas aparecessem numa nova geraohistoriogrfica. Em 1878, Jos Mara Ramos Meja publica a primeira par-te de Las neurosis de los hombres clebres en la historia argentina, propondouma viso sobre as figuras do passado a partir dos avanos das cinciasnaturais. Vicente Fidel Lpez, que lhe fez um prlogo simptico mas comreservas heursticas, chamou o livro de uma obra de cincia pura queaspirava a abrir uma nova etapa nos estudos sociais argentinos ao aplicarnestes as conquistas das cincias naturais. Isso significava a introduo dasleis da evoluo na vida social incorporando em seu estudo o papel dosgermens fsicos, da raa e do meio ambiente de seu tempo e de seupas (Lpez, [1878]* 1932, pp. 69-73).

    O mesmo livro de Ramos Meja celebrava no seu primeiro captulo aenorme transformao que trazia o avano da biologia, o que permitiadeixar para trs aquilo que Auguste Comte (cujo Curso de filosofia positivaera para ele um dos produtos mais perfeitos do esprito humano) tinha

    * A data entre colchetes refe-re-se edio original daobra. Ela indicada na pri-meira vez que a obra citada.Nas demais, indica-se so-mente a edio utilizada peloautor (N. E.).

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    chamado de pocas teolgica e metafsica. No entanto, assim que se iniciao livro j se observa que a operao que Ramos Meja realiza psiquiatriaretrospectiva, e no uma operao histrica. Percebe-se tambm que, domesmo modo como vimos em Mitre e em Lpez, a recepo dos historia-dores positivistas ou das novas cincias sociais bastante ocasional. Duascitaes de Taine (uma referida a seu ensaio sobre Jonathan Swift e a outraprovavelmente primeira parte de Les origines) e uma de Buckle, na segun-da parte publicada em 1882, referida ao papel do meio climtico sobre ocarter, so insuficientes. O que domina o livro no a influncia tericados historiadores e cientistas sociais positivistas, e sim a literatura mdicapsiquitrica. No tampouco a combinao de elementos conceituais einterpretativos procedentes das cincias da natureza acompanhada de umavasta erudio. Pelo contrrio, o conhecimento do passado que o livro pro-pe pobre e de segunda mo, e serve apenas para ilustrar as teses mdicasde Ramos Meja (em especial aquelas vinculadas teoria das localizaescerebrais e emergente psicologia das massas maneira de Despine ouLaborde) com uma boa fatura literria. Era, por outra parte, a operaoexatamente contrria que, na Europa, estava fazendo Taine, que, em Lesorigines, no deixava certamente de referir-se aos 12 milhes de clulascerebrais cuja combinao singular era como um impreciso mecanismo derelojoaria (que, se no dava a hora mais ou menos certa, levava alucina-o, ao delrio e monomania), mas o fazia em anotaes dispersas, perdi-das num oceano integrado por outras anotaes sociais, ideolgicas, cultu-rais que, alm disso, repousavam sobre uma extensa erudio (cf. Taine,1986, p. 178). Esse balanceio inverso no to surpreendente se observa-mos que Ramos Meja um jovem estudante de medicina pouco antes dese formar, que leu rpida e desordenadamente os livros que chegavam suamo e que opera sobre um territrio intelectual no qual a erudio carecede peso e de tradio. Novamente, encontramos aqui uma influncia gen-rica do positivismo em termos historiogrficos que parte de uma decididainsero em climas deterministas nos quais o comportamento das pessoasfoi subtrado sua vontade e sua conscincia dos fatos.

    Alguns anos depois, em 1887, o irmo mais velho de Jos Mara, Fran-cisco Ramos Meja, advogado, oferece outra viso sinttica apoiada no cre-do positivista. primeira vista, El federalismo argentino uma obra quedeve colocar-se sob a invocao de Spencer e das leis orgnicas da evoluo,citadas reiteradamente. Entretanto, analisando-se mais de perto, a obra devemenos do que parece a Spencer e muito mais a Savigny e ao seu enfoque

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    historicista do direito. H pouco no livro do complexo movimento de es-truturas e funes spenceriano; h, sim, uma histria social-institucionalque propunha uma leitura baseada em fontes secundrias, em sua grandemaioria historiadores (Mitre, Lpez e historiadores institucionais espanhise ingleses). Entre as citaes de positivistas aparecem apenas brevementeTaine (Les origines) e Fustel de Coulanges (La ciudad antigua). Tudo inte-grado num relato gil e no qual predominam as foras sociais sobre as ins-tituies e a necessidade sobre a liberdade (com as foras da natureza nose faz o que se quer, e sim o que se pode). Contudo, muito mais prudenteque seu irmo, no exibia as referncias que podiam vincul-lo com o mo-vimento cientfico (mesmo que estivesse certamente imerso nele, comomostra o seu lugar central na Sociedade de Antropologia Jurdica, da qualfoi fundador) e inclusive pedia desculpas ao leitor por citar a integrao dematria social (se me permite o spencerismo) (Ramos Meja, 1915, p. 216).Novamente, encontramos aqui um uso genrico e ocasional da historiogra-fia positivista europeia e um quadro que recupera no essencial alguns traosfortes da mesma, embora, neste caso, atenuados por uma reintroduo dopapel dos grandes homens na histria, seja como anis indispensveisatravs dos quais as causas gerais produzem os efeitos (e aqui a cauo uma referncia a John S. Mill), seja, indo mais alm, e maneira romnti-ca, porque personificam as tendncias e aspiraes de seu povo e inclusiveas orientam ou as potencializam (cf. Idem, p. 315).

    Para alm das ambiguidades, o positivismo, as iluses da cincia, seusclimas e seus motivos continuaram em expanso na Argentina entre o s-culo XIX e o sculo XX. Como disse Paul Groussac, em prlogo a outraobra de Jos Mara Ramos Meja, La locura en la historia, em 1895, paramostrar a mudana dos tempos intelectuais argentinos: j se necessita tan-to valor moral para discutir o darwinismo como h trinta anos paradefend-lo publicamente (Groussac, 1933). Assim, novos estudiosos vi-nham se juntar anlise da histria e das cincias sociais dentro desse mar-co geral de ideias. Desse amplo movimento deter-nos-emos inicialmenteem trs figuras: Ernesto Quesada, Juan Augustn Garca e novamente JosMara Ramos Meja.

    Garca e Quesada apresentam algumas semelhanas formais e vrias di-ferenas substanciais. Ambos eram egressos da Faculdade de Direito daUniversidade de Buenos Aires em 1882, ambos tambm trabalhariam, en-tre outras atividades, como professores universitrios, os dois teriam algu-mas influncias comuns (Comte, Taine) e os dois alternariam entre a hist-

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    ria e a sociologia (matria esta que ambos ensinariam na Universidade deBuenos Aires). No entanto, terminam as semelhanas quase por a. Garcaera substancialmente um autodidata que constituiu uma cultura histricaecltica e ampla muito mais por seus prprios meios do que pela influnciade seus professores.

    Em 1899, Garca, que era professor na Faculdade de Direito, publicarianela uma verso ampliada de suas aulas com o ttulo Introduccin a lasciencias sociales. A obra tem uma enorme utilidade para reconstruir ummapa de suas leituras, que, at certo ponto e com prudncia, podem repre-sentar as que tinham seus coetneos egressados da Faculdade de Direito,lugar de onde surgiria umas das tradies do positivismo argentino. J noprprio ttulo da obra se sugere o enfoque de Garca: a integrao do direi-to dentro de algo mais abarcador como as cincias sociais, implicando issouma proximidade com as noes gerais do positivismo. No entanto, logo sedescobre que se trata de um positivismo atenuado, j que, nos diz Garca:no h leis absolutas em cincias sociais, no h um direito mas direitos, aeconomia poltica no pode fixar princpios aplicveis a todos os povos; eminentemente relativa e mais ainda nacional. As verdades das cincias so-ciais so assim relativas e de aplicao limitada (Garca, 1955a, pp. 84 e108). Quer dizer, um clima positivista combinado ecleticamente com umenfoque historicista individualizador (e aqui a matriz para Garca tam-bm Savigny e a escola histrica do direito, no os desenvolvimentos oito-centistas). Mesmo assim, para Garca, como para a maioria dos historiado-res positivistas, a psicologia social a disciplina unificadora e, do mesmomodo que para Taine, o autor mais recorrentemente citado no texto, asbases dela se encontram na Lgica de Alexander Bain4. O percurso queinclui outros historiadores positivistas, como Fustel ou Buckle, se completacom uma explorao da economia poltica, apoiada em autores franceses(no sempre congruentes com seu enfoque histrico, como, por exemplo,Maurice Block), e pela sociologia. Neste ltimo campo, Garca novamen-te ecltico e cita de Gabriel Tarde a Gustave Le Bon, passando por Simmel(Durkheim aparecer em sua obra poucos anos mais tarde), e algumas figu-ras que deixaro uma marca no menor em sua construo intelectual, comoAuguste Comte e Frdric Le Play, so citadas de fontes de segunda mo.Em suma, uma sntese bastante francesa com algumas incrustaes inglesase italianas.

    No ano seguinte, em 1900, Garca publica sua obra maior, La ciudadindiana, na qual aquele universo de leituras deve ser confrontado com a

    4. Sobre a relao entre aobra de Bain e a de Taine, verPozzi (1993).

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    prtica concreta que implica a realizao de uma obra de histria (cf. Garca,1955b, pp. 285-475). O resultado, celebrado no contexto argentino e tam-bm em certos ambientes intelectuais hispano-americanos, pode ser consi-derado a primeira tentativa relativamente exitosa de oferecer uma histriasegundo os cnones europeus da historiografia positivista num momentoem que a mesma j se encontrava em declnio no contexto europeu5. Aindaque o livro repousasse sobre uma pesquisa emprica limitada, ele suportavabem uma interpretao sobre a qual pairava mais o modelo do Taine de Lesorigines que a obra de Fustel, qual devia, entretanto, o ttulo, algumasanalogias e a vontade de olhar diretamente os textos da poca sem interme-dirios. Com Taine, Garca compartilhava a ideia de que um conjunto desentimentos coletivos articulados numa poca pretrita organizava o quechamaramos de uma forma de mentalidade, que estaria destinada a permeartodas as dimenses da sociedade ao longo do tempo, de forma equivalente que o esprito clssico havia feito para o primeiro no caso francs. Ossentimentos e as crenas que apresentava Garca no eram desde j os mes-mos que os de Taine, mas sim o mecanismo explicativo do processo histri-co. Em ambos casos, e com as devidas diferenas, tratava-se de uma histriasocial na qual se buscava, mesmo que de maneira muito menos determinis-ta em Garca (a verdade um feliz acidente), encontrar as chaves de leitu-ra do passado em algo que eram ou pareciam ser leis que ditavam a longoprazo a evoluo das sociedades para alm da poltica e da vontade dosgrandes homens.

    Em Ernesto Quesada, o caminho foi diferente. Antes de tudo, deve-seobservar que, diferena de seus coetneos, Quesada fez vrias experinciasacadmicas de estudo na Europa (em especial na Alemanha), e isso pareciaproduzir dois fatos diferenciais: uma formao mais ampla e aparentemen-te mais sistemtica e um contato com a cultura historiogrfica alem (ava-lizado tambm pelo conhecimento da lngua) que nenhum de seus colegasdessa poca teve disposio. Nesse ponto, Quesada era (talvez junto comGroussac) a pessoa mais informada do movimento de ideias que tinha lugarsimultaneamente na Europa em torno da histria e das cincias sociais.

    Tambm Quesada aspirou a se movimentar no amplo espao das cin-cias sociais, em especial no binmio histria-sociologia, e como Garca,segundo assinalamos, procurou e encontrou suas referncias ao mesmo tem-po entre os historiadores positivistas e os novos cientistas sociais. Contudo,sua trajetria intelectual foi bastante diferente, j que comeou na dcadade 1890 praticando uma histria erudita e tradicional sobre aspectos das

    5. A histria positivista pa-recia estar claramente em re-tirada em pases como Ale-manha (o caso de Lampre-cht era emblemtico), Frana(com a consolidao dos his-toriadores do mtodo eru-dito, com Lavisse, Langloise Seignobos na cabea), In-glaterra (onde Buckle haviatido poucos sucessores etriunfava em toda linha a tra-dio empirista, tornadaemblemtica em Lord Actone sua The Cambridge modernhistory).

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    guerras civis argentinas, centrada na dimenso poltica e avalizada por umaampla consulta de arquivos, aos que havia chegado atravs de legados desua famlia poltica. Em 1894 exps o que chamou de critrio doutrin-rio que devia preceder as pesquisas histricas e, para alm das elogiosasreferncias a historiadores positivistas europeus (Buckle e Taine, mais umavez), o que aparece a uma imagem bem mais tradicional da histria,centrada nas duas operaes clssicas que chama de anlise e sntese. Estaltima tentar levar a cabo em 1898 no livro La poca de Rosas, que deviacondensar todas as pesquisas monogrficas precedentes (ainda que isso noseja de nenhum modo evidente). Nesse livro j aparecem algumas das ope-raes clssicas do positivismo, como a proposio de explicar uma pocano por seus personagens notveis, e sim pelo meio social e poltico, ou aapelao recorrente s leis da evoluo ou o uso em grande escala de umaperspectiva comparativa que, de todo modo, no era nem sempre pertinen-te, nem realizada de modo sistemtico, mas atravs do emprego de discut-veis analogias gerais. No entanto, essas operaes so bastante atenuadas,por exemplo, por afirmaes que outorgam um carter provisrio e cumu-lativo ao conhecimento histrico ou pela interpretao geral que o livroprope, que menos eliminar do quadro os grandes personagens do queutilizar o contexto para oferecer uma leitura favorvel ou ao menos com-preensiva da figura principal. Desse modo, o arsenal metodolgico em-pregado muito mais para reler interpretativamente a figura de Rosas do quepara oferecer um olhar do passado argentino a partir de outro lugar. Nessesentido, o uso de Taine, de longe o autor europeu mais citado, est apenasem parte vinculado a uma nova metodologia; trata-se muito mais de en-contrar em sua clebre obra sobre a revoluo francesa um arsenal de argu-mentos contra o abstracionismo doutrinrio dos opositores de Rosas. Domesmo modo, o uso paralelo de Leopold von Ranke, que uma perspectivamais atenta s concepes respectivas da histria teria achado contradit-ria, empregado aqui para extrair argumentos acerca da imparcialidadedevida a todo historiador (cf. Quesada, 1950).

    Nos anos seguintes, sua reflexo intelectual sofre algumas mudanas ealgumas reafirmaes. Isso pode ser percebido em seus prolixos e eruditoscursos de sociologia, que mostram um amplo conhecimento das publica-es europeias. Como assinalou Carlos Altamirano, Quesada desloca-se agorapara uma concepo na qual a histria se torna algo parecido (o que tam-bm sustentado no contexto europeu pelos ascendentes socilogos) a umadisciplina auxiliar da sociologia (ou, se se prefere, uma cincia particular), e

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    esta, maneira comtiana, numa cincia das cincias. No entanto, paraalm das distintas matrizes que convergem no pensamento de Quesada, docomtismo a certo spencerismo, passando por Taine e outros no que tangeao papel no apenas agora do meio mas tambm da raa (neste ponto,longe de Buckle) nos processos sociais ou inclusive na defesa do mtodocomparativo, sua imagem da sociologia e tambm da histria segue encon-trando limites derivados de uma forte distino, que subsiste em sua refle-xo, entre as cincias sociais e as cincias da natureza (cf. Altamirano, 2004,pp. 42-44). Desse modo, e nisso se aproxima do primeiro momento doshistoriadores positivistas europeus (meados do sculo XIX), no somente ahistria seria uma cincia na infncia como tambm o seriam a sociologia eo conjunto das cincias sociais. Essa condio se agravava pela necessidadede se considerar nestas ltimas a vontade humana, o que limitava a formu-lao de leis gerais.

    Em 1910, Quesada publicou um livro enorme sobre La enseanza de lahistoria en las universidades alemanas. O trabalho, um novo alarde de minu-ciosa erudio, passava em detida revista a histria universitria e seus his-toriadores na Alemanha. Um longussimo espao era dedicado ao debateem torno obra de Lamprecht, o que mostrava que Quesada havia tomadoboa nota das distintas posies na polmica (tambm se destacava em outraparte o labor de Schmoller, mas no a polmica com Menger). No entanto,Quesada no falava em sua apresentao da derrota, ento to evidente, deLamprecht na historiografia alem. Fazia-o ou porque sua leitura no erasuficientemente perceptiva ou porque queria manter-se tenazmente na li-nha conceitual do historiador de Leipzig, que era, nesse momento, ainda asua. Em todo caso, um dos traos mais salientes da relao de Quesada coma histria e as cincias sociais a sua dificuldade em lograr uma articulaona prtica entre ambas e oferecer, ainda num marco de grande ecletismo,uma obra histrica concreta na qual operassem aquelas diversas inclina-es, tal como aconteceria, com os limites indicados, em Garca ou depoisem Ramos Meja.

    Este ltimo, aps sucessivas tentativas, se no falhas ao menos ampla-mente criticadas pelos seus interlocutores argentinos, conseguiu oferecerem 1907 outra obra que se aproxima como concepo e realizao aos mo-delos historiogrficos positivistas europeus. Trata-se de Rosas y su tiempo.Nele, Ramos Meja conjuga agora uma ampla pesquisa original com umquadro conceitual heterogneo no qual se podem rastrear suas sucessivasinfluncias intelectuais. A primeira diferena com suas obras anteriores (Las

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    neurosis..., La locura en la historia ou Las multitudes argentinas) que a di-menso emprica domina agora o quadro, acima das referncias tericas.A segunda que, para alm da permanncia de todas as estaes preceden-tes, de Moreau de Tours a Lombroso, e destes a Le Bon e Tarde, agora Ra-mos Meja parece buscar guias mais seguros para o que deseja fazer nessemomento, que escrever um livro de histria e no algo que poderamoschamar de psiquiatria histrica ou sociologia retrospectiva. Encontra-osonde os haviam encontrado tantos outros na Argentina de ento: no mes-tre Taine6.

    O livro de Ramos Meja prope-se a estudar uma poca do passadoargentino que ele j havia explorado em obras anteriores, com a impassibi-lidade de um entomlogo que estuda um inseto ou de um microbilogoque analisa uma partcula na busca de uma verdade objetiva que se obtm(e aqui cita Renan) como um precipitado qumico. Como se v, RamosMeja apela para metforas semelhantes s dos historiadores positivistas,ainda que no seu caso a superposio simultnea das analogias torne amb-gua a definio de se a histria uma cincia de observao ou de expe-rimentao7. Alm disso, o livro pretende apresentar uma histria socialtotal, estruturada em torno de dois eixos que caminham paralelos: a psi-cologia social (ou melhor, uma psicossociologia) e a psicologia individual.De todo modo, talvez porque insatisfeito com os resultados de suas obrasanteriores, Ramos Meja no explora agora somente as dimenses que po-demos chamar de inconscientes, mas tambm aqueles incentivos racio-nais na ao social. Desse modo, por exemplo, as relaes entre Rosas e aplebe de Buenos Aires so indagadas ao mesmo tempo a partir das caracte-rsticas fsicas e psicolgicas do ditador e de outros atores intermedirios e apartir dos incentivos no apenas simblicos, mas tambm materiais e racio-nais8. Resulta disso um quadro irregular que, no entanto, alcana em al-guns captulos uma grande sugesto analtica e interpretativa que repousasobre uma valorizao de novas fontes (dos arquivos de polcia aos livros decontabilidade, passando pela iconografia do regime). evidente que essaoperao aproveita o modelo daquela realizada por Taine em Les origines.Nesse ponto, parece sustentvel que, entre os positivistas argentinos, foiRamos Meja quem mais integralmente aproveitou as receitas historiogrfi-cas e as propostas de mtodo do historiador francs (uma cuidadosa aten-o foi dedicada tambm a Histria da literatura inglesa). Assim, RamosMeja ia mais alm de um uso formal ou, simplesmente, da clave polticaconservadora do historiador (ainda que novamente o motivo do doutrina-

    6. Acerca da onipresena deTaine na cultura argentinade ento, permito-me reme-ter a Devoto (1990, pp. 85-107).

    7. Ver Ramos Meja (s/d, pp.6-9) e em geral a Introduc-cin e o captulo I. Os histo-riadores positivistas euro-peus, por sua parte, haviamproposto diferentes analogiasque mostravam no poucasambiguidades em suas pro-postas cientficas. Em Tai-ne, por exemplo, abarcaramdesde a comparao da hist-ria com a geometria ou a bio-logia, passando pela fisiologia(Guizot havia sido pioneironessa analogia em 1828). EmFustel, por sua vez, o trnsitofoi da referncia s cinciasexperimentais (a qumica emespecial) s cincias da obser-vao (a geologia), ante a ad-misso da impossibilidade deaplicar histria o mtodoexperimental e inclusive omtodo indutivo; cabendo,sim, o mtodo do que chama-va de cincias da observao (ahistria como cincia passi-va). Posio em muitos pon-tos prxima de Renan, quetambm pensava, ainda quede modo mais ecltico, que ahistria era uma cincia aomesmo tempo como a geolo-gia e como a qumica.

    8. Ver em especial os cap-tulos VII e VIII, t. II, pp.57-195.

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    rismo abstrato, leit motif no qual Taine dava continuidade a Burke, volte aaparecer). Que isso fosse realizado em 1907, momento j de baixa do histo-riador francs em seu contexto de origem, volta a ser um dado relevante, damesma forma que, para reforar a posio daquele, Ramos Meja apele ecle-ticamente autoridade de um Monod para avaliz-lo9.

    Certamente, a construo de Ramos Meja no pode ser resumida aoaporte de Taine, j que em todos os sentidos ele continua sendo um eclticode primeira ordem (j em Las multitudes argentinas havia tentado combinarLe Bon com Tarde, por exemplo). Para sua construo podia apelar tam-bm a autoridades to diversas como Ribot, o marechal Von der Goltz,Fustel de Coulanges ou Sully Prudhomme. Em todo caso, o certo que nonovo livro dominam as notas de rodap de fontes originais e no de obrascientficas, e que a verso resultante uma interpretao da histria com-plexa e heterognea na qual no reinam sem obstculos as concepes de-terministas ou as leis sociais, seno que estas aparecem em tenso com aao de sujeitos sociais ou indivduos.

    Se a obra de Ramos Meja aparece num momento em que o pndulodas relaes entre a histria e as cincias sociais parece mudar tambm naArgentina, o positivismo historiogrfico ainda ter um trecho a percorrernesse pas. Mais alm do ensasmo biolgico-sociolgico com temtica his-trica de Jos Ingenieros, ser na obra de Juan lvarez em que talvez seencontrem os frutos mais maduros de uma estao historiogrfica.

    lvarez, advogado, juiz e professor universitrio, formado duas dcadasmais tarde que os autores at agora referidos, conseguir apresentar em doislivros escritos em 1909 e 1914 uma viso persuasiva, primeiro num estudoregional a longo prazo (seu Ensayo sobre la historia de Santa Fe) e depoisnuma interpretao geral do sculo XIX argentino, na qual os conflitossociais so lidos agora a partir da economia (Las guerras civiles argentinas).No primeiro dos dois livros, lvarez no faz quase nenhuma referncia aosestudiosos positivistas e ao vocabulrio procedente das cincias da nature-za. No entanto, dele permanece o essencial: a luta dos homens pela subsis-tncia que explica o processo histrico argentino visto a partir de umquadro regional. Inclusive os grandes episdios polticos, como a Revolu-o de Maio, ou o papel dos grandes homens foram drasticamente desvalo-rizados (uma Histria desprovida de gnios e de heris). A primeira teriaocorrido antes ou depois, independentemente da poltica ou da guerra, e ossegundos apenas fizeram o que puderam, prisioneiros que estavam defrreas lgicas nas quais predominava o interesse e a necessidade (mais que

    9. Ver t. I, pp. 32-33.

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    o ideal, a necessidade que traa rumos espcie humana) acima de qual-quer outra considerao (cf. lvarez, 1910, pp. 29 e 47).

    Nessa luta para apenas sobreviver que dominava dois sculos e meio dahistria da regio, a geografia e a demografia (o espao, as vias de circula-o, a populao) explicam para lvarez muitas coisas, tanto quanto a eco-nomia (os capitais e o trem) o far para o meio sculo posterior de notvelexpanso. Desse modo, sua obra, que repousa sobre uma surpreendenteriqueza de informao (que inclui uma significativa consulta de fontes pri-mrias), consegue uma persuasiva reconstruo histrica que repousa emmatrizes que provm de muitas partes, entre outras de Alberdi. Nesse senti-do, o livro de lvarez pode ser visto como uma combinao tambm elainevitavelmente ecltica (haja vista, mais uma vez, o carter autodidata desua formao), mas feliz, cujo marco menos tal ou qual referncia teri-ca e mais um clima cultural: esse que lavrou o positivismo em suas mlti-plas vertentes na Argentina poca do Centenrio.

    Na segunda de suas obras, Las guerras civiles argentinas, lvarez propeuma empresa conceitualmente mais ambiciosa. J no prlogo, mesmo querodeado de distintas precaues retricas, aprofunda a ideia presente emsua obra anterior de que os conflitos emergentes dos interesses materiaisexplicam as lutas sociais e que estas ltimas so centrais no estudo do pro-cesso histrico. So centrais porque, ao desentranh-las, permitem-lhe fa-zer previses sobre o problema central da Argentina a ele contempornea.Nesse ponto, contudo, armado de seu tradicional bom senso, lvarez noafirma determinaes inflexveis ou leis sociais, preferindo apresentar umexemplo climatolgico (o que sugeria uma certa imagem cclica da ativida-de econmica a partir do smile do ciclo da natureza). Tal qual havia feitoGustave Monod, sugere que o conhecimento do passado tem margens deimpreciso e isso faz com que suas previses sejam equiparveis em certeza meteorologia (cf. lvarez, 1936, pp. 7-10)10.

    Na busca para conferir inteligibilidade ao processo histrico sem apelar vontade dos atores, lvarez prope a operao que havia sugerido Bucklee que depois seria seguida pelos socilogos durkheimianos: trabalhar comfatos recorrentes que possam ser colocados em uma srie e depois compararessas sries. Inevitavelmente isso o leva (como em Franois Simiand, porexemplo) a trabalhar com sries econmicas. No tendo material nem ins-trumental para reconstruir preos e salrios, reconstri arrecadaes estataise as relaciona com conflitos sociais ou polticos (a partir da hiptese de quea capacidade de fazer poltica est vinculada disponibilidade de recursos,

    10. A mesma referncia emMonod (que pode ter sidouma curiosa fonte de inspi-rao), citada por Hartog(1988, p. 138).

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    neste caso, militares), ou relaciona o tipo de cmbio-ouro da moeda argen-tina com conflitos polticos (a partir da hiptese que ser sua e dos socialis-tas argentinos de que as moedas desvalorizadas pioram a renda real dos tra-balhadores). A operao engenhosa, e muito nova no mbito argentino,repousa sobre alguns modelos nem sempre fceis de precisar. De sada, umainfluncia certa o economista ingls Thorold Rogers, cuja obra El sentidoeconmico de la historia central para lvarez, tanto nos temas como nosenfoques11. Mais ainda o se tambm considerarmos a monumental, aindaque descritiva, histria da agricultura e dos preos em geral na Inglaterra dosculo XIII ao XVIII, do mesmo Rogers. Por outra parte, no plano da his-tria serial muito provvel que lvarez conhecesse o livro no menos am-bicioso de Georges DAvenel, que abarcava preos de todo tipo (desde osagrrios at os da propriedade) e salrios na Frana de 1200 a 180012. Espe-cialmente neste ltimo abundavam, tal como em lvarez, as correlaes en-tre a marcha da economia, assim medida, e a poltica. Mais incerta, mas noto improvvel, , em contrapartida, a relao de lvarez com pensadoresoitocentistas precursores da anlise do ciclo econmico, como Juglar ou Je-vons. Certamente tinha referncias, de primeira ou segunda mo, da obradeste ltimo sobre o ciclo econmico (na qual era estabelecida uma relaoentre este ciclo e o da natureza, segundo as variaes das manchas solares),mas nada indica que tivesse noes claras sobre a teoria econmica margi-nalista da qual Jevons era um dos fundadores. Num artigo posterior, de finsda dcada de 192013, demonstrou estar muito a par do ciclo decenal dosnegcios, em especial dos trabalhos do chamado barmetro de Harvard, eda obra do economista russo Kondratieff, terico do ciclo longo. Mas essano parece ter sido a situao na dcada anterior. E no o parece ser no spelo que emerge de suas prprias obras, mas tambm porque (e o pontono menor) a economia neoclssica apenas faria um desembarque visvele sistemtico no mbito rio-platense quando de sua difuso pelo estatsticoitaliano Ugo Broggi nas universidades argentinas em fins dos anos de 1910(cf. Fernndez Lpez, 2002, pp. 67-97; 2003, pp. 303-328). Assim, o pro-blema da relao entre a histria e as cincias sociais no concernia somentes vocaes dos historiadores, mas igualmente ao desenvolvimento que ti-vessem alcanado no pas as outras disciplinas com as quais se queria esta-belecer uma interlocuo.

    Em todo caso, Las guerras civiles de lvarez repousava tambm em suasexperincias pessoais. Seu enfoque serial quantitativo para indagar flutua-es econmicas e, a partir das mesmas, explicar os fenmenos polticos (o

    11. Ver Thorold Rogers(1905). Agradeo ao profes-sor Manuel Fernndez L-pez, que me forneceu umexemplar da obra.

    12. Ver Thorold Rogers(1886-1902) e DAvenel(1894-1898), acerca de cujosproblemas metodolgicos,talvez excessivamente, cha-maram a ateno Lucien Feb-vre e Ernest Labrousse.

    13. Series de precios y suutilizacin, includo emlvarez (1929, pp. 190-191).

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    que apresenta analogias com o que levar adiante Simiand e depois seu dis-cpulo Labrousse na Frana) requeria um minucioso trabalho emprico paraconstruir as sries e o uso, ainda que no fosse extremamente sofisticado, daestatstica e dos elementos conceituais da economia e da demografia. A res-peito da estatstica, deve ser assinalado o papel de lvarez como autor doTerceiro Censo de Rosrio. Atencioso, havia sido levado a operar com dadosagregados e formas classificatrias, estudando, para isso, numerosos mate-riais estatsticos (e reflexes sobre os mesmos) elaborados em outros contex-tos, seja para propor comparaes, seja para formular sua enquete. Nessesentido, conceitualmente a operao que praticava lvarez estava mais pr-xima de Buckle ou de Simiand, e at certo ponto da escola histrica nova daAlemanha (com sua nfase na anlise histrica e seu desdm pela teoria eco-nmica), que das novas correntes que se impunham na teoria econmicanesses anos. Preferncia que, seja dito rapidamente, era tambm a de umFranois Simiand.

    Como observamos anteriormente, no momento do Centenrio, no qualse iam concretizando os melhores produtos historiogrficos da tradio po-sitivista e de uma interao com as cincias sociais, os mesmos princpios emque ditas operaes se sustentavam comearam a ser postos em suspeio.Curiosamente, a polmica que levar adiante uma parte de um novo grupode historiadores (Rmulo Carbia, Diego Luis Molinari, Roberto Levillier) que ser conhecido como Nova Escola Histrica pela denominao a elesdada por Juan Augustn Garca, todos eles advogados e de formao livresca,j que dificilmente teriam podido adquirir as habilidades no exerccio daprofisso de historiador no se orientou contra os historiadores positivistasque exploramos at aqui, mas contra Paul Groussac.

    Groussac era um intelectual francs autodidata que chegara muito jo-vem na Argentina e que se convertera rapidamente no referente principaldo mundo intelectual no trnsito entre os sculos XIX e XX (entre outroslugares, a partir da direo da Biblioteca Nacional). Em 1908 Paul Grous-sac publicou um de seus maiores livros, Santiago de Liniers, conde de BuenosAires. De certo modo, tratava-se da homenagem de um francs a outrofrancs de destacada atuao no Rio da Prata a princpios do sculo XIX.No prefcio defendia a ideia de que a histria era, ao mesmo tempo, arte efilosofia, a qual tinha uma tradio bastante ampla, presente ainda entrealguns positivistas como Taine ou mesmo at, sob uma formulao ligeira-mente diferente, em Paul Lacombe14. De novo, a apario aqui de Taineno deve j a esta altura nos surpreender: nele que Groussac encontra,

    14. Ver seu Prefcio em La-combe ([1894] 1948).

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    ento, seu modelo de historiador; em sua obra que se realiza essa combi-nao inseparvel entre as trs dimenses (aspectos de uma mesma subs-tncia) da disciplina histrica. Como afirma Groussac (1942), em LesOrigines de Taine no h uma s considerao feita maneira deMontesquieu: ali, a cincia substitui a erudio, como a arte a literatura, ea psicologia precisa toma o lugar da v filosofia. Contudo, essa aproxima-o ao pensador francs recortava a dimenso menos determinista e natura-lista de sua obra. No toa, uns anos antes, entre 1895 e 1896, Groussactinha se pronunciado, de um lado, contra o emprego das psicopatologiascomo instrumento conceitual aplicado anlise do passado (ao criticar aobra de Ramos Meja) e, de outro, contra as cincias sociais em geral, acu-sadas de elaborar teorias que no se atinham a uma observao metdicados fatos. Pecado em que, segundo Groussac, caa sobretudo a economia,com suas aspiraes de fixar leis universais (e claro que aqui se referiaindistintamente economia clssica e neoclssica) (cf. Groussac, 1896)15.Em todo caso, no Liniers, para alm das afirmaes contidas no prlogo,Groussac faz muito pouco uso do vocabulrio fornecido pelo positivismo,e nos casos em que aparecem termos como fatalidade geogrfica, orga-nismo ou leis biolgicas, ou raa (no mesmo sentido que j o haviafeito Mitre), o emprego substancialmente metafrico e aplicado a umabiografia com alguns tons hagiogrficos. Desse modo, para Groussac, oshistoriadores positivistas (franceses) aos quais sempre admirou (Taine, Fus-tel, Renan) eram e seriam seus modelos de boa histria e, alm disso, talvezsobretudo, de boa escritura, mas no exemplos a imitar de maneira conse-quente em sua prtica historiogrfica.

    O Liniers de Groussac, e sua obra em geral como historiador e tambmcomo documentarista, encontrou j em 1908 a objeo de quem seria de-pois o especialista em histria da historiografia da Nova Escola Histrica:Rmulo Carbia. Este lhe imputava distintos defeitos: um mau uso da erudi-o a contrapelo dos novos preceitos metodolgicos, a emisso de opinies ejuzos sem base documental suficiente, o hipercriticismo aos historiadoresprecedentes e a excessiva simpatia ao seu biografado. Dessas dimenses nosinteressa uma: o problema do mtodo histrico. O que desembarcava aquiera a tendncia dominante na historiografia europeia, centrada nas dimen-ses chamadas pomposamente de heurstica e hermenutica da opera-o erudita (sobretudo a primeira). No h ainda, no entanto, unanimida-de. Um dos mais destacados representantes dessa chamada Nova EscolaHistrica, Ricardo Levene (que no participar ativamente na polmica an-

    15. Sobre o tema, ver as ob-servaes de Julio Stortini(1987, pp. 20-22).

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    terior ou posterior), no apenas tinha feito o doutorado na Faculdade deDireito com uma tese sobre as leis sociolgicas, como tambm estreariacomo historiador em 1911 com um livro sobre Los orgenes de la democraciaargentina, que, ainda que fosse escrito com o propsito de aspirar a um car-go de professor suplente de sociologia, no por isso deixava de ser significa-tivo das ambiguidades ainda subsistentes na Argentina a respeito do modelocientfico que os historiadores deviam utilizar. Levene (1911) no teme falarde leis sociais ou foras naturais, ou invocar em seus argumentos, numcontexto de citaes de todo modo eclticas, a autores to dspares como oinevitvel Taine ou Lester Ward, ou nosso Jos Ingenieros.

    Entretanto, a ladeira se inclinava decididamente rumo a uma ciso dahistria em relao s cincias sociais, tal como mostraria a continuao dapolmica contra Groussac nos anos subsequentes, entre 1914 e 1916 (emespecial nas pginas da revista Nosotros, emblema de uma nova gerao cul-tural), por obra do mesmo Carbia, de Roberto Levillier e de Diego LuisMolinari16. Entre as imputaes, uma questo sempre recorrente era o des-conhecimento do mtodo por parte de Groussac, seja em suas recompila-es documentais, seja em seu trabalho como historiador.

    A apario na Argentina da historiografia metdica, que havia aberto naEuropa um abismo intransponvel entre a histria, as cincias sociais e na-turais e, em geral, o positivismo, era provavelmente espervel e inevitvel.O interessante o problema das vias de recepo dessas questes. Os histo-riadores da Nova Escola Histrica assinalavam recorrentemente o Lehrbuchde Ernst Bernheim, uma figura no sem matizes, como havia mostrado suaadoo de uma posio mediadora na polmica entre Lamprecht e seuscontraditores. No entanto, o insuficiente ou inexistente conhecimento doalemo por parte deles (com a exceo de Molinari) fazia com que deves-sem se basear nas tradues italianas disponveis (em especial na que haviafeito Amadeo Crivellucci sobre as dimenses mais eruditas, euristica odoctrina delle fonti e critica delle fonti), e muito mais abundantementena Introduccin a los estudios histricos de Langlois e Seignobos17. Mesmoassim, um ponto de fora e uma influncia marcante entre os novos histo-riadores tinha sido a importante visita de Rafael Altamira a Buenos Airesem 1909. As conferncias do professor da Universidade de Oviedo, rodeadasde aclamaes feitas por auditrios muito numerosos e realadas por umaimprensa que lhe deu grande relevo, deviam significar um forte respaldopara os novos estudiosos que lutavam para conseguir um lugar no campohistoriogrfico e nas instituies acadmicas. certo, como foi sustentado,

    16. Acerca da polmica, verStortini (1999, pp. 75-98),Pagano e Rodrguez (1999,pp. 35-48) e Eujanin (1995,pp. 37-55).

    17. Ver Crivellucci (1897).Julio Stortini indicou tam-bm outra traduo de Ber-nheim ao italiano, de PaoloBarbati (La storiografia e lafilosofia della storia), que nopude consultar. Ver Stortini(1999, p. 75).

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    que a obra de Altamira era uma sntese, com aportes pessoais que implica-vam ao mesmo tempo uma combinao de distintas perspectivas metdi-cas europeias e algumas divergncias, em especial com o modelo francs domtodo erudito. No entanto, para nossos propsitos, suficiente indicarque todos esses aportes podiam ser colocados sob uma rubrica comum18.

    Paul Groussac respondeu com um forte discurso, no desprovido da iro-nia que lhe era to idiossincrtica, no prefcio ao seu novo livro, Mendoza yGaray, em 1916. No poupou a argumentos para desacreditar os jovenscontraditores, acusados de fraseologia pedante baseada em pedaos desa-linhavados de manuais europeus que, segundo entendo, vulgarizaria em cer-to meio estudantil o professor Altamira, convencido apstolo do evangelhometodolgico. Evangelho que repousava em frmulas ou receitas para es-crever histria que tinham muito de suprfluas e no pouco de ridculas(Groussac, 1916, pp. IX-XII). Classificao, anlise externa ou interna defontes, crtica de procedncia, de erudio, de interpretao, de veracidade emuita hermenutica depois de tanta heurstica, acrescentava Groussac,eram rtulos novos para coisas velhas que praticavam desde sempre os histo-riadores e, antes ou junto com eles, os mdicos, os sbios em seus experimen-tos e observaes, os juzes em seus processos, quer dizer, todos os investiga-dores empenhados em descobrir a verdade oculta. Em todo caso, osmaiores historiadores, que eram para ele sempre Renan, Taine, Fustel,acompanhados agora por Mommsen e Macaulay (combinao bastanteecltica), faziam-no de maneira insupervel (ainda que nenhum deles che-gasse perfeio, impossvel no conhecimento do passado), sem necessidadede manuais. De todo modo, um deslocamento se produziu nas prefernciasde Groussac, e isso no deixa de ser significativo. O maior historiador detodos agora Fustel, e no Taine. O sentido desse deslocamento, ainda queGroussac no o explicite, pode ser encontrado tanto no modelo de Fustel,que era muito mais flexvel e afastado do duro positivismo articulado com ascincias da experimentao, ento em crise, como nos instrumentos deGroussac, que na operao documental, tal qual praticada por ele, eram bas-tante prximos aos do historiador de A cidade antiga, apresentados no deba-te com Monod de meados da dcada de 1870. Isso significa outorgar totalprioridade dimenso interpretativa da fonte por sobre aquela heurstica.

    Em todo caso, a crtica de Groussac continha outras argcias. Em pri-meiro lugar, decidia que os jovens historiadores se baseavam em Langlois eSeignobos (e em Altamira), e no em Bernheim; em segundo, que Langloise Seignobos eram simplesmente uma verso aligeirada e clarificada de Ber-

    18. Sobre o tema, ver a tesede Gustavo Prado (2005),que analisa os materiais sub-sistentes das conferncias deAltamira.

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    nheim. O primeiro argumento era bastante sustentvel; j o segundo era,em contrapartida, muito discutvel, o que faz suspeitar que Groussac na ver-dade no conhecia o Lehrbuch. Essa operao lhe permitia concentrar a cr-tica sobre os dois autores franceses e sobre o espanhol com um argumentono desprovido de eficcia: o carter limitado das obras concretas que os trshaviam realizado como historiadores mostrava s claras a inutilidade detoda a perspectiva metodolgica. A isso acrescentava, polemicamente, ou-tros questionamentos que extraa dos debates europeus. Antes de tudo, de-tinha-se na polmica Seignobos-Durkheim e usava argumentos deste lti-mo para tratar de reforar sua ideia da futilidade do que chamava deprofisso de atesmo histrico de Seignobos (cf. Seignobos et al., 1908,pp. 217-247). Que se tratava de um expediente apenas polmico, indicamoutras duas referncias no texto. A primeira que junto s crticas de Dur-kheim (e s de Lacombe e Clestin Bougl) utilizava tambm as crticas detipo ideolgico que Pierre Lasserre, de um lado, e Agathon (quer dizer, oduo Henri Massis-Alfred de Tarde), pessoas do grupo da maurrasianaAction Franaise, de outro, levantavam contra a Nouvelle Sorbonne. Asegunda, de maior interesse para ns, que o uso de Durkheim no impli-cava nenhuma aceitao das novas propostas das cincias sociais. Pelo con-trrio, a histria no s no era suscetvel de construir leis deterministas degeneralizao e causalidade, como fazem temerariamente a filosofia da his-tria e a nascente sociologia, como nem sequer (afirmava agora) podia serconsiderada uma cincia (Idem, p. XVI). A histria devia limitar-se a apro-ximaes em parte conjecturais e em todo caso subjetivas. Desse modo,Groussac chegava a um beco sem sada que sugere que a sua ideia da hist-ria (se vista a partir do problema da relao com o positivismo e com ascincias sociais) no estava to longe, na verdade, da de Langlois e Seigno-bos, e que a querela era mais de formas que de substncia. Sua apelao fi-nal de que seria mais proveitoso retornar a Claude Bernard que aos manuaisde mtodo (afirmao, desde logo, bastante contraditria) parecia levarGroussac de novo a meados do sculo XIX, o mesmo acontecendo com asua ideia acerca de quais eram os historiadores arquetpicos. No se tratavade se ali havia ou no, potencialmente, um slido ponto de apoio para en-frentar com xito os debates contemporneos (bem se pode recordar queLucien Febvre e Fernand Braudel encontraram muitas inspiraes emMichelet, assim como Marc Bloch em Fustel), e sim de que Groussac noera capaz de faz-lo, imerso em contradies como estava, e de que, em todocaso, os ventos gerais da historiografia e do clima cultural no admitiam por

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    ento essas revalorizaes, entendidas como pontos de apoio para novaspropostas historiogrficas.

    A publicao do livro de Groussac coincidiu com dois fatos, um geral eoutro local. O geral era a grande guerra europeia, o especfico era a celebra-da visita de Ortega y Gasset Argentina em 1916. Ambos fatos significa-vam, em dois planos muito diferentes, a sano do colapso do positivismoem nvel internacional, o primeiro, e em nvel nacional, o segundo. Comesse colapso se fortaleciam definitivamente as novas tendncias historiogr-ficas que postulavam uma splendid isolation da histria em relao com asoutras cincias, sociais ou no. Os historiadores da Nova Escola Histricacontrolariam a partir dali (ajudados pela substituio professoral possibili-tada pela Reforma Universitria de 1918), ferreamente, a historiografia pro-fissional e acadmica por vrias dcadas, e inclusive ampliariam sua in-fluncia ( maneira da proposta de Seignobos19) sobre outras cincias sociais.Para citar um exemplo, j no seria a sociologia que reorganizaria a histria,mas seriam os historiadores os que ocupariam boa parte do territrio danascente sociologia acadmica argentina.

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    A histria e as cincias sociais na profissionalizao da historiografia argentina, pp. 109-132

    Resumo

    A histria e as cincias sociais na profissionalizao da historiografia argentina

    Neste artigo, o autor reconstri as relaes travadas entre os praticantes da disciplina

    histrica na Argentina e os novos aportes trazidos pelas cincias sociais, num perodo

    que vai desde meados do sculo XIX, com a Historia de Belgrano (1857), de Bartolom

    Mitre, at o trmino da Primeira Guerra Mundial, quando a chamada Nueva Escuela

    Histrica passa a controlar a disciplina na universidade (aps a Reforma Universitria

    de 1918). Para tal, detm-se especialmente nas apropriaes feitas pelo debate local

    argentino das proposies da historiografia positivista europeia, como a obra de H.

    Taine, por exemplo, concentrando-se nos seguintes autores: Bartolom Mitre, Vicente

    Fidel Lpez, Jos Mara Ramos Meja, Ernesto Quesada, Augustn Garca, Juan lva-

    rez e Paul Groussac.

    Palavras-chave: Historiografia argentina; Historiografia positivista; Cincias sociais.

    Abstract

    History and the social sciences in the professionalization of Argentine historiography

    In this article the author reconstructs the relations between academic historians in

    Argentina and the new contributions made by the social sciences during a period

    spanning from the mid 19th century, with the publication of Historia de Belgrano (1857)

    by Bartolom Mitre, to the end of the First World War, when the so-called New His-

    torical School began to control the discipline in the university following the 1918

    University Reform. To this end, the text pays special attention to the ways in which the

    local debate in Argentina appropriated the proposals of positivist European historiog-

    raphy, such as the work of H. Taine, concentrating on the following authors: Bartolom

    Mitre, Vicente Fidel Lpez, Jos Mara Ramos Meja, Ernesto Quesada, Augustn

    Garca, Juan lvarez and Paul Groussac.

    Keywords: Argentine historiography; Positivist historiography; Social sciences.

    Texto recebido e aprovadoem 17/9/2009.

    Fernando J. Devoto mem-bro do Instituto de HistriaArgentina e Americana Dr. E.Ravignani, da Universidadede Buenos Aires. E-mail: [email protected].

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