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A Joaquim Matos

De ti se servem, ó morte, inimiga nossa, para alcançar a alegria, tu, que és a mãe do infortúnio; adversária da glória, ao serviço da glória é que te colocam; de ti se servem, porta do Inferno, para entrar no Reino; de ti, abismo da perda, para atingir a salvação.

De um documento

cisterciense do século XIII.

AS NEVES

Um velho no Inverno é a morte soprada, o tempo dorido, os fan-tasmas que a paciência esfarrapou. Põem-lhe aos pés a braseira, remexe as cinzas à procura de um rosto mais claro, aquieta-se nos reposteiros da sombra que o habita. Agasalha-se o velho no capote de castorina, puído nos lugares do atrito dos gestos, salpicado pelos oceanos que imaginar. Está calado, e sente frio, não lhe perguntem da justiça dos homens que conheceu, nem da obra completa, nem do paraíso que pelo Mundo andou buscando. «Apartai-vos do lume, Vasco, cuidai da tosse que vos molesta, vou trazer-vos o vinho, ten-de tento», aconselha-o a mulher, Catarina de sempre, com os dedos afectados das frieiras de lavar hortaliças, o lanho pequeno do dente do cação que preparou. É assim a manhã, e antes que se lhe cum-pra o destino de velho, e um morrão lhe creste a manga, importará colocá-lo, sujeito à letargia com que atravessa o deserto de Janeiro, na longitude e na latitude para onde a história o arremessou. Revol-ve o borralho para que se não acuse da imobilidade que desonra, se experimente, vivo e personagem, a assumir o domínio dos pla-nos que o Senhor, ao concebê-lo como vértice da pirâmide natural, lhe atribuiu por apanágio da inigualável dignidade. E achega-lhe a companheira o copo fosco, e é numa tremura que o leva aos beiços, e contorce as feições no julgamento da vindima da charneca que

não recebe o hausto do Atlântico, e não ousaria dizer fosse quem fosse se lhe agrada ou desagrada a acidez que provou. Um velho no Inverno é isto que conto, e vai-se tecendo o livro com a sua figura, porque de surpresa entardece para o que arduamente respira, e sofre da maldição de persistir sem serventia, e se chama aquilo que lhe chamarmos, quando não o houver baptizado a história com o nome que o distinga.

Às cristalizações da inclemência da invernia pertence a cidade que em ilha o transformou, e observam-no os locais com o diverso timbre das emoções que deles se apoderam. É tão alva a povoação como nunca foi, sepultada nas neves que resolveram as charadas dos muros de cal, tão silenciosa que as lágrimas dos cansados se trans-formam em gelo antes de subir ao olhar. Não há horta ou jardim que se não converta em poalha muda, enrouqueceram os sinos na impossibilidade de suster o peso do seu dobre, pelos veios da rocha esgueira-se a alma da água que não cessa de cantar. E protege-se o velho do afrontamento dos vizinhos, ávidos de lhe calcular a riqueza que lhe invejam, céleres a diminuir-lhe o mérito, sinuosos a incul-car-lhe a fraqueza do braço e a mácula da virtude. Avançam pelos becos como fantasmas avantajados, escondendo-se por detrás dos abafos, recuperando o fôlego para prosseguir na murmuração dos rosários, cuspindo a praga que afugenta o cão que se lhes apegou aos calcanhares. Estamos em Évora, e volve-se a cidade espelho de um soberano opulento, e a ela afluem embaixadores dos potentados todos da Terra, e corre o ano esquecido dos calendários da rota da humanidade geral.

«O vinho ficou quente em demasia, futuro eu, mas bebe, que te convém, junta-se-lhe a pitada de cravo ou de canela, bebe como quiseres», incita-o a mulher, e não desiste o velho de mexericar nos tições que se consomem, abandonando a pá em contacto com as brasas, o que faz por uma espécie de travessura de ganapo que gosta que o repreendam. E obrigavam-no os frades, roliços nos hábitos crivados de buraquinhos, a decorar o latim de Cicero, e era num ápice que lhe passava o mano Paulo as respostas certas sem que os

outros se apercebessem. Na algazarra das crianças da escola cor-riam como um par de tolos, retiravam as salamandras dos tanques, jurando devorá-las diante das bocas abertas da rendida assistência, surripiavam os seis figos lampos que deveriam constituir o passadio diário de um menorita com fama de santo. E para além da tribuna dos maiores, empilhados num recesso do transepto da Igreja de São Francisco, arregalavam os olhos para o esplendor das núpcias do belo príncipe Afonso, o qual apoiava a mão de jaspe sobre a mão tri-gueira de Isabel, sua noiva, e vinha o arcebispo envolvê-las na estola de cravejadas pedrarias. Da cor do fogo açulado, igual ao que es-pertou naquelas sobras de brasido, fora o Verão de todos os verões, e nele o sangue escorria por quanto a essência rasava, linho de len-çol, carne da garganta e polpa de fruto, e conduziam numa carroça imensa, tirada por oito cavalos, o Senhor Dom Fernando, duque de Bragança, direito como a espada da justiça, e vendavam-lhe a mira-da, e cortavam-lhe a cabeça, esoltava-se um jorro que empapava os panejamentos do cadafalso, e andavam numa turbação os pombos da Praça do Giraldo, e descia a noite como um torso arquejante, impotente para alijar o peso que lhe oprimia as entranhas. Regressa-vam os rapazes em disciplina aos dentros do Convento, e mostrava--lhes um padre como a paixão se manifestava aborrecida pelos seres e castigada por Deus, e lia-lhes a passagem de São Boaventura de Bagnoregio, na qual se relata de como superou o poverello de Assis as dissenções que começavam a corroer os fundamentos da sua or-dem.

Arreda-se do calor que o incomoda, ao reconfortar-se com o tinto que lhe toca de rubor as faces, e decide-se a votar a energia renas-cida à conferência dos negócios, espalhados em minudências que se envolvem nos rolos diante dele dispostos. Retira as mitenes que lhe embaraçam o manuseamento dos documentos, estica as cartas e os alvarás, os recibos das rendas e dos foros, os atestados dos poderes e das liberdades, pisando-os nos cantos com seixos que há muito utiliza. E anima-se na verificação da grandeza que lhe cabe, tradu-zida em títulos e em privilégios de que não cessam de se ressentir os

representantes da fidalguia ancestral, e que arrastam na amargura os que vivem para o desejo de se tornar reparados, e que aspiram a que os louvem, e os remunerem, e os galardoem e os indemnizem. Aflige-o a obrigação de ter de pagar a vintena à Ordem de Cristo, porque se crê na legitimidade de gozar sem gravames dos bens que lhe nasceram do esforço, e que cumpre lhe aproveitem como amparo da solidão na travessia do fim. Mas é no rol das mercadorias que ob-teve o direito de embarcar nas naus da Índia até ao valor de duzen-tos cruzados, com vista a comutá-las por aquelas que lhe aprouver, que se vê este Vasco diligente enquanto o nevão vai caindo do lado de lá dos vidros. E à untuosa luminosidade do lampadário de cobre desenvolve-se a escrita em arcos que simulam o salto de um bicharo-co do mato, em espirais que parodiam a cauda de um monstro das profundezas. Com a unha que consente que cresça sem mesura vai sublinhando o velho os parágrafos a tinta preta, e ao soletrar o que lê a meia voz, pontua-se-lhe o papel de camarinhas de saliva. Tratam os textos daquilo de que a jornada se lhe preenche entre a arrogância e o tédio, a secura e o ressentimento, a cobiça e a astúcia, casais e herdades, dízimos e fretes, servidões e prerrogativas, e encanta-se ele por momentos da assinatura de El-Rei e do selo de chumbo preso por cordões brancos e vermelhos, e transforma-se-lhe a consulta da papelada em litúrgico acto de reconhecimento e de louvor. Mas um arrepio o trespassa, prenúncio desse pânico que o acompanha desde a infância, e que ascende de um poço de limos onde geme e grita um condenado, e arrasta correntes, e se atasca numa vasa excrementícia. E não pára de tombar, serena e verticalmente, a neve em flocos es-pessos, e sobre o arrazoado dos escritos a imagina descair Vasco da Gama, e aflora-lhe do pretérito da colegiada o tinir da campainha, o riso sufocado, a vergasta zurzida, e é Virgílio quem levanta o indica-dor, ao soletrar as palavras que não esqueceu, «Discite justitiam mo-niti, et non temuere divos, non temuere divos, non temuere divos».

*

Revela-se a meninice pelo descobrimento de uma alforreca, e alar-ga-se o mar até ao horizonte que o mistério de um animal indeci-frável, hesitando entre a solidez e a liquefacção, povoa do que quer que povoe a imaginária do pequeno. Para além da gelatinosa trans-parência, através da qual se espia a verdade como por uma lente gi-gantesca, oscilam os navios que demandam a África, acastelam-se as nuvens e formam-se as marés, brilha o sol com uma baça insistência. A medo vai palpá-la Vasco, mas recolhe-se numa pressa, temeroso do que não sabe a que reino da Natura haverá de pertencer, bicho ou planta ou película de minério. Progride-se na ciência por um medo de raiz, ignora-se a lei que repõe os factos e compensa da dúvida, serve como um atlas do continente do mistério que a curiosidade do homem haverá de largar sem mistério algum. E estremece a alforreca na esteira de águas que a depôs na areia, interrogação das interro-gações, chave da euforia da vida, apelo do arco-íris ao alcance da mão, explicação do segredo das criaturas do Planeta. Ignora se há--de chorar ou rir a criança diante do que se lhe desvenda no pacto que celebra com os ritmos e as esferas, e vai alta a manhã do mês de Maio de Sines.

Atrás de si levanta-se a vila toda que o sustém, tão branca como a pressupõem as gerações que se não fatigaram de caiar as casas, e que a uma súmula de certezas reduziram os espinhos e os enganos da existência que lhes foi concedida. Procede o rapazinho do castelo impregnado de sal, e admiram-no as mães dos cachopos pescadores, porque o julgam tão prudente no uso das palavras como económico na entrega às folias. E Sines inteira se debruça para ele, cuidando--lhe do presente e do futuro, e discute se haverá de ser clérigo ou pajem, ou algo como comandante de uma legião que irá derrotar os seguidores de Mafoma. Da fortaleza que o seu pai administra conhecem as peixeiras, divididas entre a escamação de um goraz ou de um robalo e o pregão de uma canastra de sardinha, que é o or-gulho e a defesa da localidade, e não se concebe o Mundo sem que se alicerce ali, provida dos seus baluartes ameiados, articulando-se por faces e ângulos que operam um obsessivo jogo de penumbras e

de luzes. Nas noites de tormenta, quando dorme o petiz, abrigado numa câmara aquecida pelo lume do fogão e pela presença dos sabu-jos, são farrapos de velames e de redes que a ventania atira ao longo das ruas estreitas, e não há candeia que resista ao sopro insinuado pelas frinchas, nem chão que fique enxuto de uma salsugem gelada. Iluminam os relâmpagos as torres onde habita o rapaz, e sonha ele com a sua alforreca de maravilhas, a que há-de discernir os enigmas do fundo do oceano. E trazem-lhe as ondas ao sono praias e praias de muito longe, e vai amainando a borrasca, e barco nenhum se per-deu. Regressa a puríssima claridade, ficam lisas e limpas as coisas, cobra a areia aquele tom tisnado dos marítimos sabidos, e vêm os taberneiros pôr a secar as moreias na empena das portas escancara-das para a manhã.

«Paulo, vamos ver o que as vagas trouxeram», propõe ele ao ir-mão mais velho, imagem da segurança a que aspira, e correm ambos ao areal, e atravessam a extensão de sargaços onde pincham os pul-gões. No outro vê o limite do território da liberdade, e a inventiva que lhe outorgam, escudando-se contra a solidão que acompanha o vazio das intenções, e vai pelo mano, e arrasta-o até à beira-mar. Comporta-se Paulo como a regra que é necessário manter, condes-cendendo com o ganapo, se bem que guardando a distância que lhe permita operar o súbito apelo ao mando. E aponta-lhe a variedade das algas, as que se mostram delgadas como um lenço de seda, as que se exibem rugosas como a pele de um sapo, as que desabrocham como arbustos frondosos, as que ostentam vesículas que estouram e libertam uma branda aguadilha. E toca um carrilhão, e dirigem-se para a missa com os pais e os irmãos e as irmãs, e saúda-os o cura, ao subir ao altar, e obriga-se Vasco a esquecer o exame das conchas que trouxe às ocultas, tolhido pelo aceno reprovador daquele que mais respeita. Diante do patriarca muito magro, contido na preocu-pação de constantes obrigações para com o colectivo dos adminis-trados e a pessoa de El-Rei, é Paulo quem invariavelmente assume as culpas. Por amor ao catraio aguentou com o chicote e a bofetada, com três dias a açorda sem sal nem azeite, com a confiscação dos

seus aprestos de pesca. Mas não desistiu de apoiar Vasco, porque nele identificava a surpresa a que conduz o ímpeto dos que fazem do curso das aventuras a condição maior da própria sobrevivência. As perguntas do menino sobre a forma das estrelas e o giro em que andam, fascinado de mágicas, a fim de satisfazer um insaciável gosto de revelações, tomou Paulo uma carta dos Céus e da Terra, marcada por seres de toda a morfologia, mistos de homem e de animal, híbri-dos de múltipla descrição. E quando chega o derrame da lua cheia, a inundá-los na madrugada de Agosto, tão queda que se ouve sem mácula a cantilena dos que andam nos botes, a pescar à linha, é pelo ladrilho que se deitam, e recordam as loucuras da história do gran-de Palmeirim de Inglaterra, e as andanças em que se meteu contra gigantes e dragões, munido de uma lança que deveria semelhar ela própria, talhada como seria em cristal de rocha, um raio condensa-do de luar.

E na velhice de Évora é na terrífica hidra, exprimindo a fúria das cores que se intercadeiam, amarelo e negro e vermelho, que haverá de se transformar a alforreca da infância de Sines. Por uma confusão de línguas esvoaçantes e de presas arreganhadas se exterioriza a ira da besta, pintada na parede do claustrim, obedecendo àquilo que or-denou ele que se executasse, não tanto com vista a apregoar a sump-tuosidade do seu estado como a exaurir um medo que não alcançou desfazer. E não sossega o monstro, e longamente o contempla o ve-lho com o seu jeito taciturno, protegendo-se do pavor que não vence com a escusa de que se saldará ele no edificante conceito de «temor de Deus». Repentinamente se suspende aquela extrema turbação, e nem as neves que persistem em fustigar o Alentejo bastam a repri-mir o grito que se expande na alma do que se encolhe de frio, e pela translucidez de uma alforreca perdida é que observa o mostrengo ali figurado, a mais profusa das hidras das sete cabeçorras do medo.

Afirmar-se-á a criatura uma velha conhecida, surta a cada volta do itinerário, rápida a fazer baixar a cerviz. Cortavam as naus a oi-tocentas léguas do litoral, e a noroeste do golfo da Guiné, e sobre elas se ia abatendo uma vasta cerração. Ressentia-se a equipagem

do que se lhe afigurava a proximidade da tormenta aterradora, e no silêncio em que se fechavam erguiam os nautas defensão contra o perigo das suas vidas. Aferrado à coragem que para si engendra-ra, apresentava-se-lhes o capitão na impassibilidade do semblante, e dava uma ordem a este, e outra àquele, e passeava pelo convés com a desenvoltura de quem pisasse o soalho da sua casa. Tombara o vento, e dir-se-ia sossegar o oceano, mas era de pura pausa que se tratava, porque urgia que obedecesse o teatro da tempestade a uma sequência adrede estabelecida. Deram de obliquamente cair uns pin-gos de chuva, graúdos e esparsos, sem que vento algum aparente-mente os puxasse. E cada vez mais nítida se vislumbrava a espuma no lábio das ondas, e cada vez mais tapado o ar, e cada vez mais os navios balançavam. Fortaleciam-se os marujos no tacto da corda que apertavam, dissolvendo-se num negrume onde o brilho das pupilas se lhes fazia intensíssimo. Um bafo quente, vomitado por cratera do Inferno, encrespava-lhes a pele do pescoço, e eis que lhes ia o palato encortiçando de sede como se a seu contacto se evaporasse a doçura das águas de que se afirma composto o corpo humano. Vinda dos confins, multiplicando-se e desmultiplicando-se, evoluía a ventania, e recolheram-se as velas, e apagaram-se os luzeiros, e não restava co-ração que não alçasse uma prece ao Todo-Poderoso. De repente foi como tudo se interrompesse, e baixaram de altura as ondas, e uma brisa fresquíssima redimia os embarcados da sua inquietude. Mas significava isso que desembestara a borrasca, a qual ia explodindo com enorme fragor, e desconjuntavam-se os cascos num rangido de pregos que se desprendessem das tábuas, e lambiam os vagalhões o cavername das barcas, e eram zurridos e berros, estrépitos e assobios que se cruzavam, e não sobrava Norte, nem Sul, nem Este, nem Oes-te, por onde se encaminhasse a navegação.

Rumo a que paragens se arrastaria o tufão, obedecendo aos de-sígnios de uma protectora divindade ou de um império maléfico? Era o Atlântico um caldeirão sem fronteiras, fervendo e refervendo em borbulhões de salsugem, descerrando-se em catarata por onde se resvalava, ou levantando-se em rampa que era necessário escalar. E

soturnamente se ia adensando a atmosfera, e não sobejava lugar da Terra onde pudesse identificar-se um humano, iluminado pelo astro a que conferiu primazia o Criador. Iguais a feixes de lâminas, despe-nhavam-se os raios, largando um charco amarelo no ponto onde se haviam engolfado, absorvidos pelas profundezas abissais. E no cen-tro da treva, tenso como o seio de uma rosa de obsidiana, principia-ra o comandante a divisar um dorso reptilíneo, esclarecendo-se ao fulgor de cada relâmpago, a boiar numa zona de sereníssimas águas. Para quem em seu volume se firmasse avantajava-se o bruto numa sucessão de corcovas, desfocando-se na nuvem de vapores e borrifos, e estático se garantiria, desde eras imemoriais ancorado na posição que lhe fora cometida. E pouco a pouco dissipava-se a intempérie, e rigorosamente se definia o contorno de um arquipélago breve, e deram os viajantes graças ao Altíssimo, e refaziam a promessa a pa-gar a Nossa Senhora da Ajuda, de cujo amorável patrocínio lhes resultara o valimento naquela provação grandiosa em que se tinham visto envolvidos.

No seu íntimo, alanceado pelo terror que as palavras não expri-miam, insistia em considerar o chefe da empresa da descoberta do caminho da Índia que era de bicho, e de bicho horrendo, que se curava na subitânea aparição ao cabo do temporal. E se ia acalman-do os que o respeitavam, não lograva sobrepor-se à ansiedade de que padecia, e se ia robustecendo o vozeirão, não se destacava do pranto que o ia sufocando. Era a consabida miragem que lhe surgia, ocultando as sete cabeças na fundura dos mares, apta a vir à tona, e a reassumir o seu poderio, e a subjugar a vontade dos que reduzira à escravatura. E não atinaria Vasco em determinar se no pélago que descortinava, ou em suas próprias entranhas, é que montara guarida a tenebrosa avantesma, espalhadora da consternação que revolve as tripas, e que precipita os valentes na mais abjecta das cobardias. Na manhã que ia despontando cravava-se o lombo da besta de uma sel-va de troncos negríssimos, e desde aí se estendia o areal, a embeber--se na fímbria das marés. Uma densa nebulosidade, idêntica a um penedo redondo e polido, ficara pairando, e com a emergência dos

raios solares lentamente se esfiavam os tules que empeciam a vista do fenómeno. Percebia-se o ribombo dos trovões, vindo das diversas bandas por onde o furacão desandaria, coroava-se a copa do arvore-do de um esplendor de encantamento, ou não seria tudo mais do que manha do mostrengo que insidiosamente se produzisse?

Resguarda-se Vasco de denunciar frente aos restantes capitães, e a toda a matulagem, o susto que no ânimo lhe incute a suspeição da sua hidra. Ao aposento que para si mesmo destinou é que se remete, e esfrega os pulsos, a fim de se libertar do formigueiro que os to-lhe, e emborca um trago de aguardente dos vinhedos do Bombarral, com vista a que lhe regresse aos membros a quentura. Proíbe que o distraiam da vagarosa tarefa de recomposição dos nervos, com gestos incertos vasculhando os escaninhos da papeleira na pesquisa da minúscula folha onde copiou a oração dos navegantes contra os riscos da travessia. E atropelam-se-lhe as frases da reza providencial, «Senhor Jesus, sede o amparo da nossa fraqueza», «porque nos des-viámos da rota que devemos levar», «para que nos não assaltem as hostes do Demónio», «e o Espírito nos fortaleça na determinação de fugir ao mal», «e as bênçãos do Senhor nos confortem no deserto», «e nos seja propício o socorro da sagrada Eucaristia». Mas assola--lhe um caos a inteireza da envergadura, e torcem-se-lhe os intestinos num espasmo sem saída, e defluem as correntezas da transpiração, a perlar-lhe as barbas sem cãs de cavaleiro de vinte e nove anos. No horizonte fixa o olhar que se reenfocou, superado o estonteamento que costuma transformá-lo, e não topa com qualquer razão de te-mor, e afigura-se-lhe não haver sido ele, mas um outro qualquer que nele se inseriu, quem terá experimentado as agonias da incerteza, e a angústia da iminência da morte, e o amargor de que salvação nenhuma haverá de o ressarcir dos trabalhos que arrostou. Produz efeito o álcool ingerido, e uma potência se restaura no íntimo do comandante, e mostra-se ele capaz de se aventurar à conquista do Mundo, e de submeter quem quer que se lhe atravesse perante, e escorreu o último grãozinho de areia da ampulheta, e reconhece-se a uma trintena de braças do maior dos ilhéus, e cumpre ordenar sem

tardança que arreiem quatro baixéis.

*

Mas quando vieram buscar Estêvão, seu pai, foi como se um bú-zio se tivesse estilhaçado, e o eco do mar se calasse para sempre. Penetraram pelos túneis da noite, e arrombaram armários, e desa-ferrolharam arcas e burras, e remeteram as mulheres que gritavam às câmaras onde os colchões retinham o relento dos que dormiam. Subia do pátio um chinfrim de éguas e de mulas, e andava a canzo-ada numa fona, ladrando por toda a parte e mordendo as botas dos soldados. Arrancado das mantas pela velha ama Teresa, foi envolvi-do Vasco num pano de lã, empurrado rumo às quadras baixas, im-pelido a postar-se em silêncio, e a pensar na misericórdia de Nossa Senhora das Salas. E por uma fresta da porta viu passar o autor dos seus dias, escoltado por dois gigantes que à compita lhe arrepelavam os cabelos, e o insultavam de judeu, de bonifrate e de traidor. Não deduzia o mocinho o que a Paulo sucedera, extraviado naquele tur-bilhão de rápidos interrogatórios e de ralhos intimativos, de ordens brusquíssimas e de lamentos sem fim. E a todo o instante esperava que se apresentasse o mano, e que o viesse buscar, ministrando-lhe a ensinança do que se lhe exigia. A meio da madrugada, quando numa mancha se ia apinhando a população de Sines em redor da barbacã, reuniu a soldadesca os habitantes do castelo no átrio de in-gresso. E tendo recusado os dedos de Teresa que soluçava baixinho, atentou o adolescente no cansaço de Estêvão, plantado de pulsos atados e com a vista numa distância que não havia quem descorti-nasse. Acumulavam-se-lhe em torno os códices e os cartulários, de carneira corroída pelo salitre dos anos, e insistia o responsável da patrulha em desentranhar-lhe as respostas a esta vertigem de per-guntas, «quando recebestes a mensagem?», «há quanto tempo não praticáveis com ele?», «que dizia esse recado?» E Matias Joanes, o que fora tão chegado ao preso que lhe cortava as unhas dos pés,

acometia-o como um bobo, saltitando a toda a volta, cuspindo-lhe nas faces, e increpando-o com isto, «julgáveis então, Senhor Alcaide, que haveria eu de servir-vos para todo o sempre, e que andaria cor-covado atrás de vós como os camelos que trouxestes dos pântanos de Arafé, julgáveis então?»

Estendeu-se a ausência depois disto como um ermo onde não houvesse lâmpada que bruxuleasse, nem nota de sanfona que se tornasse entendível. Encaminhavam-se para as vésperas as fêmeas de luto, rojavam-se no chão da capela de São Torpes, encharcavam de choradeira lenços e lenços de cambraia. E desarvorava o jovem, exausto de brincar com um melro a que fora cortada a trave, pelo atalho que levava ao cemitério, convicto de que dos finados lhe re-sultaria a decifração do enigma superior. Doía-se do afastamento do irmão, do qual não havia quem lhe prestasse contas, mas que afir-mavam ter endoidecido, e viver numa cisma de morte e redenção, a grandes braçadas nadando contra os redemoinhos funestos da Praia Nova. E reparando Vasco em dias claríssimos na verde silhueta da ilha do Pessegueiro, acreditava discernir Paulo, correndo como cor-ça desaustinada, fugindo ao chuço dos monteiros, pelo arvoredo de frutos de oiro de um bosque de inultrapassável maravilha. Como que para quebrar o encanto, enrolado nas cobertas que o protegiam dos nocturnos ventos que não cessavam de bramir, de si para si murmu-rava aquele nome Estêvão, circundado pela coroa de espinhos que cingira a fronte de Jesus Cristo. E era como se a chama da torcida se endireitasse na imobilidade, e desistissem os ratos de roer as traves do forro, e a própria tempestade amainasse lá fora. Vinha vigiá-lo a provecta Teresa, e se fingisse dormir, inscrevia-lhe ela uma cruz com o polegar sobre a testa, aconchegava-o no ninho, aspergia-lhe as têmporas com duas gotinhas de água de rosas.

Por mais séculos e séculos que lhe fossem cometidos, porque ad-mitia que lhe riscara a sorte destino diverso do das comuns criatu-ras, não esqueceria Vasco o vulto daquele amaldiçoado rei João II, estampando-se-lhe na parede da insónia como íncubo que assumisse a materialidade. Com o seu perfil de milhafre de bico contunden-