A lei é contra paz: a natureza proibicionista da política ... · O presente Trabalho de...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL
JOSIANE OLIVEIRA DE LIMA
"A lei é contra paz": a natureza proibicionista da política de drogas no Brasil
e a discussão sobre a legalização da maconha
NATAL/RN
2015
1
JOSIANE OLIVEIRA DE LIMA
"A lei é contra paz": a natureza proibicionista da política de drogas no Brasil e a
discussão sobre a legalização da maconha
Monografia apresentada ao curso de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Serviço Social.
Orientadora: Ms. Elizângela Cardoso de
Araújo.
NATAL/RN
2015
2
Seção de Informação e Referência
Catalogação da Publicação na Fonte. UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede
Lima, Josiane Oliveira de.
"A lei é contra paz": a natureza proibicionista da política de drogas
no Brasil e a discussão sobre a legalização da maconha / Josiane
Oliveira de Lima. – Natal, RN, 2015.
55 f.
Orientadora: Elizângela Cardoso de Araújo. Monografia (Graduação em Serviço Social) – Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas – Departamento de Serviço Social.
1. Problemas sociais - Monografia. 2. Maconha - Monografia. 3.
Criminalização da pobreza – Monografia. 4. Guerra às Drogas – Monografia. I. Araújo, Elizângela Cardoso de. II. Título.
RN/UF/BCZM CDU
364.6
3
JOSIANE OLIVEIRA DE LIMA
"A lei é contra paz": a natureza proibicionista da política de drogas no Brasil e a
discussão sobre a legalização da maconha
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora, como exigência
parcial para a obtenção de título de Bacharel em Serviço Social da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte.
Aprovado em: __/__/__
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________
Ms. Elizângela Cardoso de Araújo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
(Orientadora)
__________________________________________
Ms. Marta Simone Vital Barreto
Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN
__________________________________________
Maria de Fátima Couto do Vale Pereira
Assistente Social – CRESS/RN 633
4
À minha mãe, Josenira Batista, que nunca me
abandonou e sempre se fez apoio nessa
caminhada, me incentivando e me sustentando
com sua imensa paciência e compreensão.
Obrigada, Mainha, te amo sem limites!
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente ao Pai das luzes, que em seu infinito amor e
misericórdia esteve sempre ao meu lado me dando suporte nos momentos difíceis e
completando minha alegria nos momentos bons, com a certeza de que na sua
eterna sabedoria sempre habitou meu coração independente do meu modo de vida.
À minha amada Mãe que me sustenta com suas orações, sem sua força e
apoio nada que consegui até aqui teria sido possível, seu exemplo de fé me faz
levantar todos os dias para buscar meus objetivos.
Aos meus avós, Terezinha e José Batista, pela criação, educação e
conselhos dados até hoje, seu amor e cuidado foram e são fundamentais na minha
vida.
Ao meu Pai pelo suporte dado principalmente durante meu estágio curricular
obrigatório.
Ao médico que se fez amigo, Francisco Márcio, cuja ajuda foi imprescindível e
sem seu interesse e dedicação talvez hoje este agradecimento nem existisse.
Aos meus amigos, amigas e familiares por todo apoio quando necessário e
pelas palavras de incentivo quando pensei em desistir. Em especial ao Tio Juracir
pelo reconhecimento e crédito dado a minha pessoa quando muitos sequer
acreditavam no meu potencial, suas palavras sempre foram de grande valia.
Destaco o carinho e admiração da minha prima Izabela que mesmo de longe
mantém seu apoio me fazendo acreditar um pouco mais em mim.
Às assistentes sociais Fátima Alves e Fátima Couto por todo o ensinamento
transmitido durante o estágio, todo cuidado e apoio.
À toda comunidade acadêmica que contribuiu para a construção do
conhecimento contido neste trabalho, militantes de movimentos de esquerda e
movimentos pró-legalização da maconha que foram fundamentais no aprendizado
que levarei por toda a vida.
A todos os professores que transitaram nessa jornada deixando um pouco de
si, em especial à minha orientadora Elizângela Cardoso por aceitar esse desafio e
fazer essa corrida ao meu lado.
6
"Essa tribo é atrasada demais...
Eles querem acabar com a violência,
mas a paz é contra a lei e a lei é contra a
paz." (Gabriel O Pensador)
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RESUMO
O presente Trabalho de Conclusão de Curso analisa a política sobre drogas no
Brasil, de forma a apontar algumas das implicações dessa política para sociedade e
de forma específica, para o debate sobre a legalização da maconha. Este trabalho
tem como principal objetivo a análise dos traços contemporâneos da política voltada
à abordagem das drogas em nosso país, partindo do pressuposto da tendência
proibicionista presente na normatização e na operacionalização dos serviços.
Reconhecendo a escassez de pesquisas em Serviço Social sobre o tema, nos
propomos a incitar a discussão acerca da proibição das drogas, em especial da
Cannabis Sativa, a popular maconha. Aqui buscamos demonstrar e esclarecer um
pouco da cultura canábica, fazendo um resgate do uso e da proibição dessa droga
no Brasil, bem como demonstrar como tal proibição gera consequências para a
sociedade e fomenta o agravamento das expressões da questão social, com
destaque para o massacre de jovens pobres e negros em decorrência do combate
ao tráfico, no que chamamos de “Guerra às Drogas”. Na busca de compreender a
política proibicionista que promove a guerra às drogas, entendemos que na
realidade o que acontece no cotidiano é uma “guerra à pobreza e aos pobres”,
legitimada por uma normatização que dá margens a erros de julgamento tornando a
criminalização da pobreza evidente e alarmante. Considerando que a proibição da
maconha é desproporcional aos seus riscos à vida, nos prestamos a discutir sobre a
sua legalização como alternativa de abordagem da temática, percebendo que a
proibição não é a melhor alternativa de tratamento dessa problemática. Nosso
trabalho está estruturado em dois capítulos que abordam respectivamente a
contextualização do uso de cannabis sativa e os aspectos normativos que circundam
esse consumo.
Palavras-chave: Problemas sociais. Maconha. Criminalização da pobreza. Guerra
às Drogas.
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ABSTRACT
This Final Paper analyzes the drug policy in Brazil in order to point out some
of the implications of this policy in society. Recognizing the lack of research in Social
Work on the subject, this paper aims to encourage the discussion of drug prohibition,
in particular the prohibition of Cannabis Sativa, the popular marijuana. Here we
demonstrate and clarify some of the cannabis culture, making a ransom of the use
and prohibition of this drug in Brazil, as well as we demonstrate that prohibition
generates consequences for society and fosters the aggravation of expressions of
the social issues, especially the massacre of poor and black youths as a result of
trafficking, in what we call "War on Drugs". In the pursuit to understand the
prohibitionist policy that promotes the drug war, we understand that in fact what
happens in everyday life is a "war against poor," legitimized by a regulation which
gives space to errors in judgment making the criminalization of poverty evident and
alarming. Whereas marijuana prohibition is disproportionate to the risks to life, we
discuss its legalization as the alternative to the approach of the thematic.
Key-words: Social problems. Marijuana. Criminalization of poverty. War on Drugs.
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LISTA DE SIGLAS
ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária
CBD – Canabidiol
CFESS – Conselho Federal de Serviço Social
CONAD – Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas
ONU – Organização das Nações Unidas
SENAD – Secretaria Nacional Antidrogas
SIM – Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde
STF – Supremo Tribunal Federal
THC – Delta-9-Tetrahidrocanabinol
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Propaganda do Cigarros Indios .................................................................. 38
Figura 2: Cigarros Indios ........................................................................................... 38
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 12
2 ASPECTOS CULTURAIS E CONTEXTUALIZAÇÃO DO USO DE CANNABIS SATIVA
NO SISTEMA SOCIAL VIGENTE ................................................................................................... 16
2.1 Santa Kaya: a vivência espiritual e a condenação social da “erva santa” ............ 19
2.2 Capitalismo, judicialização das expressões da questão social e a relação com o
consumo de drogas ........................................................................................................................ 24
3 NORMATIZAÇÃO, PROIBIÇÃO E ENFRENTAMENTO ......................................................... 29
3.1 Estado penal punitivo e a criminalização das expressões das desigualdades
sociais ............................................................................................................................................. 30
3.2 “A paz é contra a lei e a lei é contra a paz”: quadro normativo no contexto
contemporâneo ............................................................................................................................. 32
3.3 Proibição da maconha e o debate sobre a legalização ............................................... 40
5 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................... 51
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1 INTRODUÇÃO
Uma das pautas mais polêmicas e divisoras de opiniões em nossa sociedade
é o debate sobre a legalização das drogas ilícitas. Considerando a classificação das
drogas em legais e ilegais há quem seja a favor de tornar legais drogas que hoje são
ilegais. Identificamos diferentes grupos e posicionamentos: aqueles contrários ou
favoráveis. Há quem seja ferrenhamente contra qualquer tipo de uso de algumas
drogas; há quem veja essa problemática como um problema social ou de saúde
pública; há quem seja a favor da descriminalização, mas contra a legalização; este
assunto está longe de ser consenso na sociedade.
Apesar das mais diversas opiniões sobre o assunto, os grupos que o debatem
são basicamente divididos em dois pólos: proibicionistas e antiproibicionistas. Como
os termos sugerem, os proibicionistas são aqueles que são a favor de que se
mantenha a proibição das drogas ilegais, são contra a legalização ou
descriminalização das mesmas, acreditam que a droga deve ser combatida e o
tráfico fortemente reprimido, são apoiadores do que chamamos de “Guerra às
drogas”. Baseados em discursos moralizadores, que podem ou não se fundamentar
na religião, os proibicionistas “demonizam” as drogas ilícitas, destacando-as como
fator principal que fomenta os mais diversos males presentes na sociedade. Os
antiproibicionistas acreditam que a política de Guerra às Drogas fracassou,
defendem a legalização e/ou a descriminalização, por acreditar que esse assunto
deve ser abordado de outras formas que não a proibição, entendendo que a política
de proibição de drogas é nociva para a sociedade ao passo que agrava a violência,
bem como o conflito entre os atores do comércio ilegal e as forças que o reprimem,
se tornando um instrumento de controle social e criminalização da pobreza.
O uso de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas é comum em todas as
sociedades, desde as civilizações mais antigas há indícios do consumo de
substâncias que alteram o funcionamento do cérebro. Esse uso é feito de forma
recreativa, social, cultural, medicamentosa e até religiosa, sem necessariamente
levar ao uso abusivo, que é uma das principais preocupações atualmente. As
consequências do uso abusivo de substâncias entorpecentes podem deixar
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sequelas sociais, psicológicas, físicas e até custar a vida do usuário. Tendo isso em
vista, são desenvolvidos programas e políticas que objetivam a erradicação do uso
de drogas, se valendo de todos os malefícios que elas podem causar para tentar
coibir o seu uso.
Como principal recorte deste trabalho destacamos uma das drogas ilícitas
mais conhecidas socialmente, a Cannabis Sativa, popularmente chamada de
maconha. A referida planta consta na lista de plantas proscritas que podem originar
substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária e um de seus princípios ativos e substância psicoativa da planta, o
Tetrahidrocannabinol, consta na lista de substâncias de uso proscrito no Brasil como
substância entorpecente. Nossa abordagem se refere à análise dos fatores
históricos, sociais, culturais e econômicos que fomentam a proibição do uso desta
planta, bem como a análise das consequências dessa proibição no tocante ao
agravamento da questão social, tendo por objetivo geral analisar os traços
contemporâneos da política voltada à abordagem das drogas no Brasil, partindo do
pressuposto da tendência proibicionista presente na normatização e na
operacionalização dos serviços. Dessa forma, as questões norteadoras deste estudo
revelam-se nas seguintes indagações: a) como a ilegalidade da maconha e a política
proibicionista de drogas agrava as expressões da questão social? b) como o serviço
social tem se posicionado a respeito desta problemática? c) quais as alternativas
ideopolíticas de abordagem para esta questão?
O consumo de drogas é comumente associado a grupos que estão à margem
da sociedade, estereotipados pelo senso comum, a exemplo de jovens, moradores
de periferia, pobres e negros; porém tal consumo não é exclusividade desses
grupos. Além de serem associados ao consumo, alguns estratos da sociedade
sofrem com a lógica da criminalização, como fala Brisola (2012), o tráfico de drogas
é geralmente associado às favelas e seus habitantes. Nessa lógica que deriva do
sistema neoliberal, jovens pobres, negros, a população de rua e os movimentos
sociais são os principais alvos, vistos como ameaça à ordem.
Contemporaneamente, a criminalização e o estigma assumem contornos raciais e étnicos, na medida em que jovens pobres e negros e a população de rua são tidos como perigosos para a
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sociedade, considerados ameaça para a propriedade privada e para a reprodução do capital, (BRISOLA, p. 136, 2012).
Dessa forma, existe uma espécie de “licença geral” que permite a
criminalização dos jovens pobres e negros e como um dos principais “delitos” que
viabilizam essa criminalização é o tráfico de drogas. Assim, a questão da ilegalidade
se torna algo que vai muito além do cunho moral, passando a ser uma questão
pública.
Cercado na maioria das vezes por preconceito, o consumo de substâncias
entorpecentes é estigmatizado, julgado de forma iníqua e hipócrita por parte dos
setores mais conservadores. Iníqua porque se comparado à Cannabis (maconha), o
álcool, que é legalizado e socialmente aceito, acarreta danos muito maiores à saúde
de quem usa e riscos a terceiros, como acidentes de trânsito; hipócrita porque
muitos que descriminam drogas ilícitas são usuários de drogas que mesmo lícitas
continuam sendo drogas, pois alteram o funcionamento do nosso organismo, como
diz a definição de droga segundo a Organização Mundial da Saúde.
Levando em consideração que existem algumas drogas proibidas e outras
não, é pertinente questionar o que leva a essa diferenciação. O mais lógico a se
pensar é que as drogas lícitas assim o são por serem menos danosas à saúde,
todavia, existem diversos estudos que comprovam que este não é o principal motivo
da ilicitude de certas drogas, mas sim fatores sociais, históricos, econômicos e
políticos, se apresentando diversas vezes como forma de perseguir grupos
específicos.
Alguns autores abordam a política de Guerra às Drogas como uma guerra aos
pobres disfarçada, pois como afirma o sociólogo e vereador Renato Cinco (2013),
apesar da democratização do uso de drogas, a repressão continua segmentada.
Mesmo com pessoas de todas as classes sociais usando e/ou traficando drogas, a
repressão só cai sobre os pobres. Considerando essa realidade, entendemos que
existem diversos danos sofridos pela sociedade que tem como fonte a política de
drogas vigente em nosso país. Neste trabalho, analisamos alguns desses danos
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partindo do pressuposto de que a proibição da maconha, o tráfico de drogas e suas
consequências fazem parte do que chamamos de Questão Social.
Para melhor atender a demanda do nosso objetivo geral, definimos como
objetivos específicos: entender quais grupos da sociedade mais sofrem com a
proibição da Cannabis Sativa e de que forma são notados socialmente os danos
dessa proibição.
Entender a problemática que envolve as drogas é fundamental para
compreender outros fenômenos sociais que interferem a qualidade de vida da
sociedade como um todo, como a violência por exemplo. Para isso, estudos que
despertem e aprofundem o debate nesta área são indispensáveis no campo das
ciências sociais aplicadas, no nosso caso, o Serviço Social. A bandeira da defesa da
liberdade individual e autonomia dos indivíduos, bem como, a defesa intransigente
dos direitos humanos levantada pelo Serviço Social nos leva a crer que é necessária
a discussão e articulação sobre o tema tanto no âmbito da academia quanto no
campo de atuação profissional, despindo discursos conservadores e renovando o
pensamento sobre o problema. Diante de uma possível deficiência na produção de
conhecimento sob o olhar do serviço social acerca desse assunto, se faz necessário
o uso da interdisciplinaridade para colher informações a respeito do tema.
Nossa estratégia metodológica de pesquisa se dá a partir da metodologia
qualitativa com análise documental e de bibliografias sobre o tema abordado e
consultas de dados já existentes, buscando apreender os aspectos culturais,
históricos, sociais e econômicos que envolvem a maconha e sua proibição. Bem
como o breve levantamento de dados acerca da produção acadêmica e profissional
do serviço social a respeito do tema. Também as movimentações a respeito das
propostas de abordagens alternativas às políticas hoje utilizadas para tratar dessa
problemática.
Este trabalho está dividido em dois capítulos, o primeiro trata dos aspectos
culturais e contextualização do uso da Cannabis Sativa e o segundo trata da
abordagem política tanto do Estado como definidor normativo, como do serviço
social como defensor da liberdade individual e dos direitos humanos, bem como
possíveis alternativas às normas vigentes.
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2 ASPECTOS CULTURAIS E CONTEXTUALIZAÇÃO DO USO DE CANNABIS
SATIVA NO SISTEMA SOCIAL VIGENTE
Ao nos debruçarmos em pesquisa no campo do debate sobre o uso de drogas
podemos constatar que o consumo de substâncias psicoativas é algo muito antigo e
comum a muitos grupos de diferentes culturas e épocas. Todavia, normalmente
algumas drogas são qualificadas como algo muito ruim sendo colocadas à margem
da sociedade, não somente elas, mas também quem as utiliza.
A falta de discussão e consequentemente a falta de conhecimento a respeito
desse tema, é um dos principais fatores que levam esse assunto a continuar um
tabu na sociedade, fomentando ainda mais o preconceito, a ignorância e a censura
social. Concomitantemente, a mídia dominante e seu serviço negativo quase sempre
associando o uso de drogas à violência e à criminalidade contribui para a falta de
avanço neste debate.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, o termo droga “abrange qualquer
substância não produzida pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um
ou mais de seus sistemas produzindo alterações em seu funcionamento” (OBID,
2007).
Classificadas amplamente em duas categorias, lícitas ou ilícitas, as drogas
lícitas são aquelas que podem ser utilizadas e comercializadas legalmente, tais
como álcool, tabaco, café, estimulantes naturais como chá mate e outros. As drogas
ilícitas são as que tem seu uso e comércio proibidos por lei e são definidas
juridicamente como entorpecentes. No tocante a essa distinção, percebemos que,
como afirma Bergeron (2012), a classificação das drogas entre lícitas e ilícitas
depende mais de uma convenção social e cultural do que de uma necessidade
medicinal, seja psicopatológica ou farmacológica.
Isso que dizer que o conceito “droga” e a diversidade de substâncias que ele compreende em seu perímetro devem ser considerados o produto, por natureza provisório, de lutas simbólicas e científicas, tanto quanto políticas e
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sociais: a fronteira que separa a classe das drogas ilícitas e a classe dos produtos psicoativos lícitos é bastante permeável, como nos ensina a história (BERGERON, p. 9, 2012).
Ao serem classificadas juridicamente como entorpecentes, as drogas ilícitas
carregam o peso negativo do termo “droga”, ainda que outras substâncias lícitas
proporcionem mais riscos à vida do usuário e de terceiros. Dessa maneira, o que é
ou não considerado droga na sociedade fica a critério do que é definido nas
legislações, bem como nas convenções sociais e culturais.
Aqui, o sentido usado para o termo “droga” é o que diz respeito à mesma
como substância capaz de provocar alguma alteração no organismo e não o sentido
pejorativo ao qual é associado pelo senso comum.
Neste trabalho, o foco será para o consumo de uma droga psicotrópica1,
também conhecida como psicoativa, pois altera o estado mental.
O documentário Quebrando o Tabu (2011), nos dá uma panorama geral do
uso de substâncias psicoativas ao longo da história. Acredita-se que 40 milhões de
anos A.C. primatas faziam uso de algumas frutas fermentadas que continham certa
porcentagem de álcool, teoria chamada de Hipótese do Macaco Bêbado. Quanto ao
uso da Cannabis, planta herbácea da família das Canabiaceas (Cannabaceae) e
objeto central deste estudo, há indícios de seu uso na China em 2700 A.C., bem
como na Assíria por volta de 1300 A.C.. Suas propriedades medicinais são
conhecidas e geraram benefícios para antigas civilizações.
Substâncias que alteram o funcionamento do nosso organismo podem possuir
diferentes funções sociais e ter um significado diferente para cada grupo ou cultura.
As finalidades desse uso podem ser medicinais, religiosas, espirituais, artísticas,
1 As drogas utilizadas para alterar o funcionamento cerebral, causando modificações no estado
mental são chamadas drogas psicotrópicas. O termo psicotrópicas é formado por duas palavras: psico e trópico. Psico está relacionado ao psiquismo, que envolve as funções do sistema nervoso central; e trópico significa em direção a. Drogas psicotrópicas, portanto, são aquelas que atuam sobre o cérebro, alterando de alguma forma o psiquismo. Por essa razão, são também conhecidas como substâncias psicoativas. OBID - Observatório Brasileiro de Informações Sobre Drogas, Brasil, 2007. Disponível em: http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/conteudo/index.php?id_conteudo=11250&rastro=INFORMA%C3%87%C3%95ES+SOBRE+DROGAS/Defini%C3%A7%C3%A3o+e+hist%C3%B3rico.
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recreativas, dentre outras. A maconha (cannabis), de origem na Ásia Central,
exemplifica muito bem isso, visto que é uma droga que contempla as mais variadas
finalidades de uso e possui registros milenares. Nesta planta quase tudo se
aproveita, seja o óleo que se extrai das sementes, a fibra presente nos talos ou a
psicoatividade encontrada nas flores (SAAD, 2013), dessa forma além de abarcar
diversos objetivos de uso como entorpecente, a maconha possui outros campos de
atuação, por assim dizer.
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2.1 Santa Kaya: a vivência espiritual e a condenação social da “erva santa”
A descoberta da Cannabis está associada ao imperador e farmacêutico
chinês Shen Nieng, que a utilizava para o tratamento da apatia e do reumatismo e
também como sedativo (GOTIÈS; ARAÚJO, 2003). Os primeiros sinais de uso
religioso da maconha se deram na Índia, de forma que acreditava-se que a planta
proporcionava um desligamento das coisas do mundo e maior ligação a um ser
superior, sendo assim considerada uma planta sagrada.
A filosofia Rastafári, fortemente presente na Jamaica e difundida pelo mundo,
também entende a cannabis como uma erva sagrada. Segundo o estilo de vida
Rastafari a Santa Kaya ou Erva Santa, como é conhecida nesse meio, é capaz de
purificar corpo e alma e proporcionar uma ligação maior com um ser superior, além
de expandir a consciência e servir de cura física e espiritual. A cultura rastafári sofre
com o preconceito e discriminação, tanto devido às características da aparência dos
seus adeptos, quanto pela cultura canábica. Os sujeitos que seguem essa filosofia
destacam-se por não cortarem os cabelos, deixando formar naturalmente ou
produzindo os chamados “dreadlocks”, penteado que deixa o cabelo com a
aparência de várias cordas. Estigmatizados pelo senso comum como mais um
conjunto de “maconheiros”, este grupo sofre com o cerceamento de sua liberdade de
crença visto que a ilegalidade da maconha prejudica a expressão plena e livre de
sua cultura.
Contudo, nem sempre a relação mística com a maconha é restrita a uma
religião ou prática instituída e pré-estabelecida. Seu uso recreativo, aquele uso
esporádico que ainda não causa danos à vida do usuário, no qual a finalidade é a
diversão, relaxamento ou qualquer outro fim que não esteja ligado à dependência ou
com fins medicinais, ultrapassa delimitações de grupos, estilos e faixa etária. Dentre
os mais variados tipos de usuários, muitos mantém uma relação sagrada com a
cannabis, seguindo o mesmo sentido de que a erva purifica corpo, mente e espírito,
expande a consciência, promove crescimento e desenvolvimento interno, mas sem
estar diretamente ligados a uma religião. O respeito que muitos tem por essa droga
e todas as crenças místicas que a circundam, chega a gerar entre os usuários certo
20
descrédito de que essa planta com tantas propriedades medicinais e espirituais seja
realmente uma droga e que na verdade seja uma erva santa. Nesse contexto, vários
sujeitos se posicionam em defesa da referida planta e múltiplas motivações se unem
com o objetivo comum de descriminalizar o uso da cannabis sativa.
Cotidianamente podemos observar que ao contrário de outras substâncias, a
maconha é um elemento que promove de forma bastante expressiva a sociabilidade
de seus usuários, geralmente usada coletivamente e com baixo risco de danos por
uso coletivo, podemos notar que muitas pessoas se conheceram em alguma “roda”,
termo utilizado para denominar o local simbólico onde os usuários fumam maconha,
por geralmente se disporem em círculo ou forma semelhante a este de maneira que
o “baseado” 2, cigarro de maconha, passe por todos os usuários presentes. É
comum que pessoas que não se conheçam compartilhem a droga entre si apenas
pelo fato de terem ela como algo em comum, fazendo surgir daí novas amizades e o
sentimento de solidariedade entre os usuários. Esse fato desmistifica a crença de
que o uso de maconha gera violência ou leva o usuário a cometer crimes por falta de
dinheiro para consumir a droga, visto que geralmente um usuário conhece outro que
se solidariza e compartilha a substância sem objeção, o que vem a ser uma via de
mão dupla ao passo que aquele usuário que não possui a droga hoje, poderá tê-la
amanhã e compartilhar com quem não tenha no momento. Isso não quer dizer que
devido a isso há uma multiplicação de usuários, mas que existe de fato uma certa
união em torno da maconha que promove empatia, paz e solidariedade entre os
usuários.
A maconha é a droga ilícita mais consumida em todo o mundo, a Organização
das Nações Unidas estima que cerca de 180 milhões de pessoas no mundo fazem
uso dela diariamente, segundo o World Drug Report 2013. Um estudo divulgado pela
Universidade Federal de São Paulo no ano de 2012 revelou que cerca de 1,5
milhões de pessoas no Brasil usam maconha diariamente. Não obstante, o
documentário “4:20 Horário de Brasília” (2014) veicula o trecho de uma matéria de
jornal de grande circulação afirmando que pelo menos 10 milhões brasileiros fazem
uso da maconha regularmente. Ainda de acordo com o estudo divulgado pela
2 “Baseado” é o nome dado ao cigarro de maconha, uma das formas de consumo da droga. Além
deste termo, diversos outros designam o mesmo objeto tais como: beck, ret, fino.
21
Unifesp (2012), mais de 3 milhões de adultos, com idade entre 18 e 59 anos, fumaram
maconha no ano antecedente à pesquisa e cerca de 8 milhões de adultos (7% dessa
parcela da população brasileira) já experimentaram a droga alguma vez na vida. A
proporção do uso da droga por adolescentes, de acordo com essa pesquisa, é de 1,4
adolescente para cada adulto. Apesar de um número pequeno, uma pesquisa realizada
pelo governo americano veiculada no endereço virtual da Revista Veja em 2010 aponta
que menos 1% das pessoas com mais de 65 anos afirmam ter fumado maconha no ano
anterior à pesquisa. A partir dessas informações podemos ter um panorama de como o
uso de cannabis sativa tem caráter diversificado inclusive na questão etária, pois de
adolescentes a idosos compõem o leque de consumidores.
Todavia, a grande maioria dos usuários são jovens e estes são os que mais
sofrem com o estigma que carrega o uso de drogas. O uso da maconha em especial
muitas vezes é associado à ideia de que quem a usa é vagabundo, desocupado, que
não faz nada além de usar a droga. Normalmente carregando o sentido pejorativo do
termo “maconheiro”, o usuário é visto como um peso para a sociedade, sujeito
marginalizado que ameaça o bom funcionamento da mesma, de maneira que o termo
supracitado é utilizado muitas vezes para designar pessoas que sequer são usuários de
maconha mas possuem conduta ameaçadora ou que não esteja de acordo com as
normas socialmente vigentes. Criminalizado, o usuário sofre o cerceamento de sua
liberdade individual em favor de uma maioria desinformada, que se acomoda diante do
senso comum e não evolui, nem avança no debate sobre o uso de uma droga leve,
como a maconha.
Todo o preconceito que circunda esta planta prejudica não somente quem faz seu
uso recreativo. Já comprovada a sua eficiência em inúmeros tratamentos medicinais,
milhares de pacientes sofrem diariamente com a falta da legalização, bem como
pesquisas que poderiam promover o avanço nos estudos medicinais acabam sendo
impossibilitadas de se realizarem por conta da proibição.
O documentário “Ilegal” (2014), de Tarso Araújo e Raphael Erichsen, relata
um pouco da história de Katiele, uma brasileira cuja a filha Any Fischer (de 5 anos
de idade quando o filme foi produzido) é portadora de uma síndrome chamada
CDKL5, a Síndrome CDKL5 é um problema genético raro que causa uma epilepsia
22
grave e sem cura. A pequena Any tinha uma média de 60 convulsões por dia,
inconformada com a situação a família de Any buscou alternativas para tratar a
criança e conheceu os benefícios do Canabidiol, uma das substâncias presentes na
maconha. O canabidiol ou CBD não possui efeitos psicoativos, não “dá barato” e seu
efeito colateral principal é somente fazer com o que o paciente sinta sono. A partir
da administração do CBD e conforme desenvolvimento do tratamento, as crises
diárias de Any foram reduzidas a zero. "O que ela perdeu em quatro meses, o
canabidiol devolveu em nove semanas", relata Katiele Fischer, mãe de Any.
No Brasil a prescrição da maconha como medicamento ainda é proibida,
todavia, por reconhecerem seus benefícios muitos sujeitos se submetem ao uso
medicinal mesmo sem leis que regulamentem esse uso, como foi o caso de Katiele
Fischer que escolheu assumir o risco da importação ilegal de CBD para garantir a
qualidade de vida da sua filha. Isso posto, os pacientes que escolhem utilizar
maconha para fins medicinais sofrem não somente por se submeter à ilegalidade,
como também sofrem com o estigma e o descrédito de que a finalidade do uso
realmente seja essa.
Após anos de luta de militância antiproibicionista de movimentos como a
Marcha da Maconha e da repercussão do documentário “Ilegal”, em 2014 o
Conselho Federal de Medicina autorizou a prescrição de um derivado da cannabis, o
mesmo utilizado no tratamento de Any. A prescrição do CBD fica restrita à crianças e
adolescentes em casos de epilepsias refratárias, quando a doença não responde
mais ao uso de pelo menos dois medicamentos tradicionais, além de ser necessário
preencher outros requisitos para importar o medicamento reduzindo o alcance de
público e delimitando o acesso à substância. Em 2015 a ANVISA retirou o
Canabidiol da lista de substâncias psicotrópicas proibidas no país, passando a
integra-lo na lista de substâncias que requerem controle especial, podendo serem
prescritas pelo médico por meio de receita em duas vias. "Não há coerência em
manter o CBD proscrito, pois essa substância não causa os efeitos psicoativos do
THC, como amnésia e síndrome de abstinência", afirmou o diretor-presidente da
Anvisa, Jaime Oliveira no site UOL.
23
Um estudo publicado em outubro de 2014 na revista “Journal of
Psycopharmacology”, da Associação Britânica de Farmacologia, mostrou que o CBD
pode ser eficaz no tratamento de pacientes com mal de Parkinson. Um dos
coordenadores do estudo foi o professor José Alexandre Crippa, da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da Universidade de São Paulo (USP), segundo
Crippa o grupo que ingeriu cápsulas contendo canabidiol apresentou melhoras no
bem estar e na qualidade de vida.
A maconha medicinal pode ser administrada de várias formas, com destaque
para o hemp oil que é um óleo extraído da planta com alta concentração de
canabidiol e uma quantidade quase nula de delta-9-tetra-hidrocanabinol, o THC,
substância psicoativa responsável pelo “barato” ou “lombra” que a maconha dá. Não
obstante, conforme seja a necessidade do paciente, a erva pode ser ingerida em
mistura com alimentos produzidos de forma caseira ou industrializados em lugares
onde este tipo de produção é legal, ou até mesmo fumada ainda que a finalidade
seja medicinal. Nos Estados Unidos a semente de maconha como suplemento
alimentar é comercializada normalmente, demonstrando também seus benefícios à
saúde.
Em entrevista ao site O Globo (2015), Elisaldo Carlini, médico e professor da
Unifesp recorda que até o século XIX, início do século XX, a maconha era
considerada um medicamento muito importante contra dor, era inclusive
comercializada como medicamento e cultivada para fins industriais, pois a fibra
presente na planta é de excelente qualidade para a fabricação de cordas, roupas e
sandálias.
A maconha era muito importante economicamente, a tal ponto que no século XVIII o vice-rei de Portugal mandou ao governante da província de São Paulo 16 sacas de sementes de maconha de alta qualidade para serem plantadas na região de São Paulo. Até as velas das naus portuguesas eram feitas de fibras de maconha (CARLINI, 2015).
24
Carregada de estigmas, preconceito e historicamente julgada de forma
injusta, a maconha e consequentemente seus usuários sofrem com os resultados de
uma construção histórica baseada em parâmetros desacertados, o que gera prejuízo
não somente para esses sujeitos, mas para a sociedade como um todo.
2.2 Capitalismo, judicialização das expressões da questão social e a relação
com o consumo de drogas
O sistema econômico predominante no mundo, o capitalismo, gera diversas
consequências que implicam de maneira negativa na vida dos menos beneficiados
com esse sistema. As decisões tomadas pelo Estado, sofrem grande influência dos
interesses das classes dominantes e as demandas sociais, políticas de assistência e
serviços direcionados ao povo se tornam deficientes devido a interesses econômicos
que se contrapõem aos interesses e necessidades sociais.
[...] após as importantes conquistas trazidas pela Constituição de 1988 (também ela fruto de grandes embates sociais, como sabemos), instalou-se uma forte tendência neoliberal de desmonte e contrarreformas do Estado, fazendo com que as políticas não fossem capazes de atender às demandas societárias e aos quesitos de proteção de direitos sociais determinados pela Constituição. Tampouco o movimento social e os sindicatos, centrais sindicais e entidades representativas dos trabalhadores tiveram força suficiente para fazer valer esses direitos para amplas parcelas da população brasileira (BORGIANNI, p. 426, 2013).
Dessa forma, o Poder Judiciário tem recebido demandas que em sua
essência são de competência política. Demandas sociais dos grupos
subalternizados e mais fragilizados da sociedade tem sido direcionadas a este setor
sem que tais grupos possuam alternativas de reivindicar seus direitos fundamentais.
Neste segmento, o desenvolvimento do capital e as defesas dos interesses
econômicos e financeiros das elites se sobrepõem em detrimento da defesa dos
direitos constitucionais que deveriam ser socialmente garantidos.
25
Borgianni (2013) retrata a análise de alguns autores a respeito do que vem a
ser chamado de “judicialização dos conflitos sociais” ou “judicialização da política”,
em que ao passo que “houve a ampliação dos direitos positivados na Constituição
Federal de 1988, ocorreu sua negação em diferentes instâncias administrativas, o
que acabou por gerar esse fenômeno na esfera pública” (BORGIANNI, p. 426,
2013). Tal fenômeno caracteriza-se pela transmissão da responsabilidade de
promover o enfrentamento à questão social ao Poder Judiciário. No tocante à
efetivação dos direitos humanos, segundo Aguinsky e Huff de Alencastro (2006,
apud BORGIANNI, p. 426, 2013), perante o abandono do Estado em relação à
garantia dos direitos e proteção social, as camadas que necessitam desses direitos
acabam por recorrer ao Poder Judiciário ou o sistema de justiça como um todo para
ter seus direitos de cidadãos efetivados.
Alguns pesquisadores chegam a afirmar que o enfraquecimento da política e das esferas de resolução pública dos conflitos e das reivindicações sociais, e o fato de o próprio Poder Executivo muitas vezes se colocar como violador de direitos por seus atos ou omissões perante a ganância do capital, fez com que a sociedade passasse a incumbir o Judiciário da tarefa de possibilitar a efetivação dos direitos sociais (BORGIANNI, p. 427, 2013).
O que vemos então é uma tentativa do Estado de transferir uma
responsabilidade que integra a esfera política para uma esfera a qual não cabe a
responsabilidade de atender as demandas populares, as quais envolvem interesses
individuais, coletivos e estruturais que implicam inclusive no agravamento da
questão social, se contrapondo ao dever de garantir e efetivar direitos
constitucionais, contribuindo, assim, para a desresponsabilização do Estado com a
efetivação desses direitos através de políticas públicas. (AGUINSKY E HUFF DE
ALENCASTRO, 2006, apud BORGIANNI, p. 427, 2013).
Seguindo esse processo, é cada vez mais alarmante o número de
encarceramentos de pobres, em sua maioria jovens e negros, indivíduos mais
vulnerabilizados à marginalização. Como contribuinte deste procedimento, a mídia e
seu desserviço ao sensacionalizar delitos junto à tentativa de promover a
26
recrudescência das penalizações, gera na sociedade uma sensação de pânico
inclusive elevando a hipotética necessidade da redução da maioridade penal.
[...] o estigma é que negros e pobres aparecem na mídia como autores de atos criminosos que, apanhados de maneira imediatista e preconceituosa, são associados, em seu conjunto, às práticas de crimes. Isto é produzido e/ou apropriado pelos segmentos dominantes, na prática e ideologicamente, no sentido de obter a licença de “caçá-los e prendê-los”. Assim, eles aparecem como perigosos para a população em geral. De toda forma, cria-se uma “licença geral” para criminalizar todos os jovens pobre e negros. (BRISOLA, p.137, 2012).
Uma significativa parcela das violações de leis cometidas por jovens e
veiculadas na mídia são associadas ao consumo de drogas, incentivando assim a
ideia de que a droga seria o principal problema e fator determinante na questão da
criminalidade. Todo esse desacerto estrutural no processo de abordagem e
tratamento das expressões da questão social tem transformado os presídios
brasileiros em grandes depósitos de sujeitos pertencentes à classe trabalhadora,
sobretudo: jovens pobres e negros.
Em contraponto, pouco se ouve ou se vê nos canais midiáticos a quantidade
de jovens mortos pela própria polícia, instituição que em tese tem o dever de
proteger a sociedade, ou por policiais que integram “grupos de extermínio” ou
“milícias”. O propósito desses grupos é o “extermínio de indivíduos não funcionais à
sociedade do capital. [...] além das sobejamente conhecidas práticas discriminatórias
destes contra indivíduos e famílias” (BRISOLA, p. 138, 2012). A referida autora
explicita em artigo dados do Mapa da Violência de 2011, realizado pelo Instituto
Sangari em relação à juventude brasileira. Tais dados sobre homicídios de jovens se
baseiam em certidões de óbitos e notificações do Sistema de Informações de
Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM). Segundo o mapa citado por Brisola, o
número de vítimas de homicídio entre a população negra aumentou de 26.915, em
2002, para 32.349, em 2008, equivalendo a um crescimento de 20%.
A dimensão espacial também merece destaque no trato dessa abordagem,
visto que historicamente as camadas menos favorecidas da população são
27
“empurradas” para as periferias favorecendo mais uma vez a lógica do capital e
alimentando mais um estigma, dessa vez referente à moradia.
Em relação ao espaço e ao território, Harvey (2005) afirma que no capitalismo estes assumem funções estratégicas para a criação de condições de acumulação, ou seja, à apropriação do espaço e do território é funcional ao capital na medida em que este exerce o controle sobre o valor da terras, sobre os equipamentos disponibilizados, serviços e, sobretudo, sobre a população residente nesses espaços, contendo dessa forma, os conflitos entre as classes. (BRISOLA, p. 143, 2012)
Avançando nessa análise, entendemos que o enfrentamento do tráfico de
drogas nas favelas também é uma forma de expressar a criminalização da pobreza
e dos pobres, uma vez que ao tratar da questão com descaso o Estado e a
sociedade demonizam os envolvidos com o tráfico sem levar em consideração suas
condições precárias de sobrevivência e a desigualdade gritante que existe em nosso
país. A política de “Guerra às Drogas” se mostra na prática como uma “guerra aos
pobres” disfarçada de combate ao tráfico de drogas.
A partir do momento em que a droga deixou de ser apenas um produto
proveniente de processos naturais e/ou artesanais com significações particulares e
valor de uso peculiar, sendo ressignificada na sociedade burguesa, ela passou a ter
valor de troca e a ser droga-mercadoria (ROCHA, 2013). Acompanhando o processo
de desenvolvimento do capitalismo, a produção e a distribuição das drogas foram se
adaptando histórica, sócio e economicamente seguindo a lógica do capital. Não que
tenham deixado o seu valor de produto com significação e valor particularizado, mas
na sociedade burguesa as droga passou a ser tratada também como mercadoria e
como um negócio extremamente lucrativo. Sejam proibidas ou não, a ressignificação
recebida na sociedade capitalista altera todo o processo de produção e distribuição
dessas substâncias, atendendo e se submetendo à toda a lógica do capital. Se
antes a droga-produto possuía apenas valor de uso, na sociedade burguesa ela
ganha o status de droga-mercadoria “por ser um objeto suscetível à mercantilização,
que de uma maneira ou outra satisfaz necessidades de alguns sujeitos, ou seja,
aqueles capazes de pagar um preço por ela.” (ROCHA, p. 567, 2013)
28
Entender o valor de mercadoria das drogas é compreender que as mesmas
existem para atender necessidades humanas, Marx afirma que
A mercadoria é, antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia. Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana, se diretamente, como meio de subsistência, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção. (Marx, 1988, p. 42)
Analisando as drogas a partir desta ótica, podemos ver que por se tratar de
uma necessidade humana, visto que do contrário não teria se tornado mercadoria.
Independente de valores morais, religiosos ou ainda da legalidade ou ilegalidade, as
drogas continuarão sendo produzidas e consumidas, logo, a proibição não reduz o
consumo de drogas, torna a produção e distribuição um negócio ainda mais
lucrativo.
29
3 NORMATIZAÇÃO, PROIBIÇÃO E ENFRENTAMENTO
Segundo Dudouet (2003) (apud, BERGERON, 2012), o uso de drogas e seu
comércio se tornaram objetos de medidas legais no início do século XX, delimitando
a fronteira entre as atividades lícitas e ilícitas. Fundamentado na ausência do
controle cultural e social do consumo, surge um sistema colocado como
politicamente neutro, de regulação nacional, que se basearia na ciência e na
autoridade dos Estados, sendo administrado por leis específicas (BERGERON,
2012).
Em 1971, Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos no referido período,
declarou uma “Guerra às Drogas”. Nixon afirmou que os americanos se preocupam
principalmente com a lei e a ordem e convocou o envolvimento de todos nessa
guerra contra o que ele chamava de “inimigo número um dos Estados Unidos”.
Ronald Reagan, 1980, em campanha para a presidência dos EUA afirmou que a
maconha era provavelmente a droga mais perigosa dos EUA (Quebrando o Tabu,
2011). Esse modelo de política proibicionista, de caráter agressivo contra a
problemática que envolve as drogas se disseminou e serviu como modelo para
muitos outros países.
No Brasil, a principal forma de enfrentamento a essa questão também carrega
o status de guerra. O combate ao consumo e ao comércio de drogas envolve
investimentos gigantescos numa tentativa de coibir tais ações através da repressão
e consequentemente da violência.
Retomando a fala de Marx (1988, p. 42), e entendendo a droga como um
objeto externo que “satisfaz as necessidades humanas, seja qual for a natureza, a
origem delas, provenham do estômago ou da fantasia”, compreendemos que ainda
que sejam inseridos e legitimados na sociedade discursos dos mais diversos
fundamentos que favorecem o proibicionismo, o consumo de drogas não será
reduzido em decorrência desses discursos.
E se a necessidade do uso de drogas não pode ser satisfeita por meios legais, os homens buscarão novas maneiras de satisfazê-la.
30
Portanto, todo o discurso ideologizado que demoniza (grifo do autor) as drogas, bem como os fundamentos religiosos e as ações proibicionistas não fazem com que as substâncias psicoativas deixem de existir. Por isso a proibição de algumas drogas não garante diminuição ou fim do uso; ao contrário, a proibição tora o negócio muito mais lucrativo (ROCHA, 2013).
Dessa maneira, observamos que a legislação e todo o aparato normatizador
que regulariza o trato em relação às drogas no Brasil não apreendem de forma justa
a problemática, desconsiderando fatores fundamentais para a compreensão e
abordagem do real problema. Sob a ótica proibicionista, a droga é colocada como
principal causadora e agravadora das expressões da questão social que perpassam
por esta esfera, bem como é posta como alvo, um inimigo a ser combatido e
eliminado. Todavia, a “droga” em si não pode sofrer as consequências dessa guerra,
dessa forma os atingidos por tais consequências acabam sendo os sujeitos que de
alguma maneira tem envolvimento com o consumo ou comércio de drogas, bem
como os indivíduos que por alguma razão, seja ela social, cultural ou econômica,
estão próximos desse universo.
3.1 Estado penal e a criminalização das expressões das desigualdades sociais
Na sociedade capitalista, como bem sabemos, se fortalecem e prevalecem os
interesses das elites dominantes. A emergência do Estado penal se dá num
contexto neoliberal, onde ocorre um esvaziamento das ações de proteção social em
meio à crise contemporânea do capital.
Segundo Wacquant (2003), especificamente a partir dos anos de 1990, ocorreram nos Estados Unidos a retração da rede de segurança social, com cortes orçamentários nas políticas sociais, em particular na assistência, saúde, educação e habitação, e o deslocamento de recursos para a segurança pública, revelando o viés repressivo e punitivo da política governamental norte-americana. Implementaram-se, nesse sentido, políticas voltadas para o controle
31
da ordem, com o apoio do aparato policial e do Judiciário. (BRISOLA, p. 130, 2012)
Em decorrência da crise capitalista, para cessar as tensões surgidas a partir
do desemprego em massa, imposição do trabalho precário, redução da proteção
social e as demais expressões provenientes da crise, o Estado passa a utilizar
instrumentos de disciplinamento policial e jurídico (BRISOLA, 2012), de maneira que
as expressões das desigualdades sociais e as possíveis manifestações em resposta
a essas desigualdades são criminalizadas e vistas como rebeldia, comprometendo a
ordem dominante.
Os indícios do Estado penal são expressos de duas maneiras, no estigma e
na criminalização (CASTRO, 2010, apud BRISOLA, 2012). O estigma, normalmente
visto como algo ruim, segundo Goffman (1993, apud BRISOLA, 2012) pode ser
considerado como uma marca que destaque o indivíduo ou grupo em relação ao
restante da sociedade, representando uma ameaça à sociedade, uma identidade
danificada por uma ação social.
Referente à criminalização, compreendemos como “o ato de imputar crime ou
ato de tomar como crime a ação ou ações de determinados grupos sociais”
(FERREIRA, 1995 apud BRISOLA, 2012). Para Brisola (2012), no contexto
contemporâneo, os grupos que mais sofrem com o estigma e a criminalização são
os jovens pobres e negros e a população de rua, pois são vistos como ameaça à
sociedade, um perigo que compromete a propriedade privada e a reprodução do
capital.
Diante da “ressignificação” que as expressões das desigualdades sociais
recebem na sociedade capitalista, as lutas contra essas expressões também são
ressignificadas, ganhando status de crime pelos motivos já citados acima. Toda
forma de luta ou de resposta contra os problemas decorrentes do capital e suas
desigualdades são criminalizadas, a exemplo dos movimentos sociais.
32
Se as pautas forem temas tidos como “polêmicos” a repressão é ainda maior,
destacamos os movimentos sociais como vítimas da criminalização imputada na
sociedade, legitimada pela mídia burguesa que permanece na tentativa de diminuir e
deslegitimar as lutas pautadas pelos movimentos sociais.
Longo e Korol (2008, p. 46), analisando a situação dos movimentos populares na Argentina, explicam que a criminalização dos movimentos faz parte de um repertório mundial de ações e práticas de controle social, com as quais o poder organiza sua governabilidade a fim de continuar o processo de reprodução ampliada do capital. (BRISOLA, p. 146, 2012)
Vemos então a tentativa de submeter à lógica do capital grupos societários
que tanto sofrem com tal lógica, de maneira que a ordem dominante seja mantida
em detrimento das necessidades sociais constatadas e motivadoras das lutas.
A pauta pela legalização da maconha, bem como os movimentos sociais e
indivíduos envolvidos com esse tema sofrem diretamente com o contexto do Estado
penal, visto que além de só por se tratar de um grupo organizado que promove uma
luta já tem um status de “ameaçador”, além de tratar de um tema sempre abordado
sob a ótica punitiva e que promove muito perigo ao sistema instituído de comércio
ilegal que alimenta o aparato policial e jurídico fortalecedor do Estado penal.
3.2 “A paz é contra a lei e a lei é contra a paz”: quadro normativo no contexto
contemporâneo
33
A política de proibição de algumas substâncias psicoativas no Brasil é reflexo
das políticas proibitivas adotas nos EUA, ganhando força a partir do século XX tais
políticas serviram como modelo para o restante do mundo. Rita de Cássia Lima
(2009), citada por Rocha 2013,
[...] explica que na década de 1910 a imprensa brasileira passa a difundir medidas repressivas ao “risco” do uso lúdico e descontrolado das drogas. Segundo ela, as áreas da medicina (psiquiatria) e do direito penal, a partir de vertentes criminalizadoras às drogas, tornam-se os principais agentes para construção de legislações e políticas públicas proibicionistas. (ROCHA, p. 570, 2013)
Até então as drogas eram exclusividade das elites, a partir da disseminação
do uso de algumas substâncias psicoativas entre estratos marginalizados da
sociedade e sua associação a certos grupos já discriminados, a exemplo da
maconha vista como “droga de negros”, foi constituído um ambiente favorável ao
controle dessas substâncias (RODRIGUES, 2003, apud ROCHA, 2013).
A primeira lei antidrogas no Brasil é de 1921, tal lei criminaliza o vendedor
ilegal da droga e vitimiza o usuário que é considerado como doente que necessita
de restauração para continuar a vida social. O vendedor criminalizado era
considerado
em sua maioria, a “ralé” social e moral de então: cafetões, prostitutas, cafetinas, estrangeiros e profissionais da saúde “corrompidos pela cobiça”. Em uma palavra, estão isolados numa categoria controlável e identificável — segmentos cuja atividade lucrativa e influente era subversiva à ordem social vigente. Provindos de classes baixas e praticando atividades consideradas imorais por tal ordem, estes estratos são, pela lei de 1921, enquadrados num campo de ilegalidade que os vulnerabiliza ante um Estado que agora está dotado de recursos legais para reprimir não só o tráfico de drogas como também essas outras “ocupações degeneradas” a ele estritamente vinculadas. (RODRIGUES, 2003, p. 136, apud ROCHA, p. 571, 2013)
34
Podemos verificar que a lei de 1921 possuía um cunho moralizador, vemos
também que historicamente é colocada uma diferenciação entre o usuário e o
traficante materializando a diferenciação de classe social, pois “atribui-se aos jovens
pertencentes às classes socioeconômicas mais favorecidas o status de usuário e
aos jovens de classes socioeconômicas vulneráveis, o status de traficantes”
(ROCHA, p. 571, 2013).
Com o decorrer do tempo as leis sobre drogas no Brasil sofreram
modificações, mas mantiveram o fundamento da diferenciação entre usuário e
traficante, com uma essência de vitimizar o usuário e criminalizar o traficante.
Em 2002, a Lei n. 10.409 (Brasil, 2002) deixa clara essa diferenciação,
todavia há de se considerar as contradições que perpassam essa definição.
Vera Malaguti Batista (2003) já estava problematizando a questão da
lei de 2002, apontando que a questão de descriminalizar o usuário e
aumentar a criminalização do traficante é perversa, pois a
“descriminalização” é voltada para o usuário da classe média, que já
é “descriminalizado”. (ROCHA, p. 572, 2013)
A socióloga citada por Rocha levanta questionamentos a respeito da lei de
2002 no tocante à equidade da sua aplicação, visto que comumente os sujeitos que
sofrem com a criminalização são os de condição socioeconômica inferior a aqueles
que normalmente são beneficiados com a descriminalização do usuário, pois nos
setores onde o problema da ilegalidade causa mais prejuízos, as periferias, o ato de
“descriminalizar” não contempla a todos.
Por onde a questão das drogas sangra literalmente é no tráfico. Então, você tem isso de descriminalizar o usuário mas manter a criminalização do traficante.Que virou uma categoria fantasmática, o traficante é o demônio, ele não tem casa, não tem mãe; [...]. A descriminalização do usuário poderia ser o começo de uma legislação geral, mas como eles estão legislando para o Posto Nove, fica uma coisa perversa, porque quem já está descriminalizado será descriminalizado e onde está sangrando, que é na periferia, aumenta
‑se a hemorragia. (Batista, 2003, p. 30 apud ROCHA, p. 573, 2013)
35
Isso fortalece o pensamento de que a legislação criada e instaurada no Brasil
não contempla os tantos outros fatores que permeiam e implicam para que o tráfico
de drogas se alastre e o número de envolvidos aumente. Os fatores
socioeconômicos e étnicos só são considerados no sentido de beneficiar os que já
se encontram beneficiados por suas posições sociais, no momento de considerar
esses fatores para ponderar o julgamento de um indivíduo com condições adversas
de sobrevivências sejam elas quais forem, os fatores acima citados são deixados de
lado e quando levados em consideração é tão somente para agravar a
criminalização de sujeitos marginalizados.
A Lei n. 10.409 de 2002 foi revogada, dando lugar a Lei n. 11.343, de 23 de
agosto de 2006, tal lei institui o “Sistema Nacional de Políticas Púbicas sobre Drogas
– Sisnad; prescreve medidas para a prevenção do uso indevido, atenção e
reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para
repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e
dá outras providências” (BRASIL, 2006). Essa lei torna mais rígidas as penalidades
para os traficantes e abranda as sanções para usuários de drogas, mantendo a
lógica das leis anteriores. Todavia, a lei deixa a critério de cada juiz analisar e
definir, de acordo com a denúncia e as provas, se a quantidade de droga apreendida
vem a ser para consumo próprio ou para tráfico. Quando a lei não define a
quantidade específica referente a cada caso torna o julgamento bastante subjetivo,
colocando o usuário a mercê da interpretação do juiz. Vejamos a lei:
Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
36
§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.
§ 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
§ 7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado. (BRASIL, 2006)
Notemos que esse artigo se refere aos usuários de substâncias psicoativas,
de forma aparentemente branda. O artigo define a punição para que for apreendido
portando drogas, todavia como antes mencionado não define a quantidade para que
esse porte seja definido como uso pessoal e não tráfico, deixando a cargo do juiz a
análise de maneira que o mesmo observe o contexto da apreensão, os
antecedentes do portador e demais fatores necessários para a definição. A
subjetividade desse tratamento dá margem à má interpretação, tornando até
inseguro o fato de que o usuário será tratado realmente como usuário, visto que
37
cada juiz possui sua própria apreensão dos fatos vistos e analisados. Vejamos outro
artigo:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;
III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.
§ 2o Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga:
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa.
§ 3o Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de
700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo
das penas previstas no art. 28. (BRASIL, 2006)
Percebamos que agora o artigo se refere ao trato dos “traficantes”, que
segundo a lógica proibicionista merece mais severidade nas penas. Contudo, em
análise podemos enxergar uma “brecha” entre os dois artigos reforçando a ideia de
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que nada assegura de fato a diferenciação correta entre usuário e traficante. Pois,
como fala Rocha (p. 574, 2013) “se a quantidade não é a única prova que determina
a materialidade do crime de tráfico de drogas, supomos que o fator determinante da
materialidade é a condição subjetiva da apreensão.” Dessa forma, a descrição da
ocorrência e relato da apreensão e de todo o contexto do momento da abordagem
ficará por conta daqueles que terão o primeiro contato com o caso: policiais e
delegados, que nem sempre abordam com brandura cada caso.
Isso posto, alguns questionamentos são pertinentes, visto que serão
considerados em cada situação o contexto e tantos outros fatores aqui citados,
levando em consideração condições socioeconômicas, será que uma apreensão
realizada na periferia é tratada da mesma maneira que uma apreensão em um bairro
de classe média? Será que, ainda que usuário, o usuário da periferia será vitimizado
e considerado vulnerável da mesma forma que um usuário de classe média alta?
Concordamos com Rocha ao afirmar que
[...] de acordo com o compromisso ético dos componentes do Sistema de Segurança e Justiça, os elementos estereotipados não podem ser determinantes, mas infelizmente a Lei Antidrogas conta prioritariamente com o “olhar” dos agentes de segurança e com o “bom-senso” do juiz, e isso é demasiadamente subjetivo. (ROCHA, p. 574, 2013)
Atualmente está sendo posta em questão a constitucionalidade do artigo 28
da Lei n. 11.343, de 2006. Está para acontecer no Supremo Tribunal Federal (STF)
uma votação que pode descriminalizar o uso de drogas, o autor do processo é um
cidadão que foi condenado pelo artigo 28 da Lei Antidrogas a prestar dois meses de
serviços à comunidade por ter sido flagrado com três gramas de maconha. A
Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que auxilia o autor do processo, alega
que o artigo 28 da Lei n. 11.343 viola os princípios da intimidade e da vida privada
garantidos no artigo 5º, inciso X da Constituição Federal. Caso a votação seja
favorável à descriminalização, será um grande avanço no tocante à essa temática
no Brasil.
39
A ação do Estado sob a representatividade da força policial, bem como do
poder judiciário e até do poder legislativo, ao deixar estas brechas na lei, fortalecem
a “Guerra às drogas” e reafirmam-na como instrumento de controle social. Tal guerra
envolve sujeitos de todos os estratos da sociedade, mas comprovadamente um
determinado grupo sofre muito mais com esse entrave. Ao passo que esse combate
“controla” o estrato da sociedade considerado mais “perigoso”, também agride o
direito à liberdade individual, visto que cada sujeito deveria ter a liberdade de se
entorpecer se assim quiser.
O tratamento do Estado em relação a esse tema, principalmente no tocante
ao tratamento das classes menos abastadas, configura o que Žižek (2014) chama
de violência subjetiva, “a violência exercida por agentes sociais, indivíduos
maléficos, aparelhos repressivos disciplinados”. Essa violência causada pelo Estado
tanto contra os indivíduos quanto contra determinados grupos, tem como
consequência as expressões da “Guerra às Drogas”. Além da violência subjetiva, as
expressões da política proibicionista também se dão na forma de violência física e
direta, colocada por Žižek (2014) como “extermínio em massa”.
A exemplo disso, podemos citar o enfrentamento direto ao tráfico nas favelas,
a força policial entra em confronto com os representantes do tráfico, sob a intenção
de combate-lo, os representantes do tráfico respondem à violência do Estado a
resposta, numa guerra sem fim, pois enquanto o Estado ataca o sistema que ele
mesmo fomenta com a proibição, esse sistema responde em proporção igual ou
maior. Enquanto isso, o tráfico de drogas é colocado como o gerador da violência e
mais uma vez a droga como elemento do qual decorre todas essas consequências
sociais negativas, a força estatal por sua vez se prontifica a “acabar com a
violência”, sem que para isso forneça a proteção social suficiente e todo o aparato
para que promova a alteração das condições de vida dos que mais precisam. A
impressão que fica é que com a “desculpa” de acabar com a violência a verdadeira
intenção é “mudar de assunto (grifo do autor), passar do desesperado apelo [...]
humanitário para acabar com a violência à análise desse outro” (ŽIŽEK, p. 25, 2014).
As forças políticas que estão no poder acreditam na abstinência de drogas
como solução para todos os dados que perpassam tal tema, todavia a ausência de
40
drogas em qualquer sociedade é utopia, o máximo que se pode fazer a respeito do
uso de drogas é reduzir os danos através de métodos e estratégias que amenizem
as consequências e tornem o consumo de entorpecentes mais seguro. Porém, como
bem coloca Renato Cinco (2013, p.61), “a política proibicionista impede que políticas
públicas de redução de dados sejam implementadas em larga escala”.
3.3 Proibição da maconha e o debate sobre a legalização
Como a maioria das drogas, a maconha não foi sempre uma planta proibida e
vista como ameaça ou um mal para a humanidade. Em muitas sociedades o uso da
maconha como medicamento ou voltado à espiritualidade já foi legal e respeitado,
como na farmacopeia chinesa onde é classificada como planta medicinal desde
3000 a.C., bem como na Índia tradicional que enquanto algumas castas preferiam o
consumo de álcool outras preferiam unicamente o uso da maconha, que tinha a
prerrogativa de possibilitar o afastamento do mundo e proporcionar o retiro
contemplativo, comportamentos valorizados naquela sociedade (BERGERON,
2012).
No Brasil não foi diferente, tendo chegado no país trazida pelos escravos
negros, surgindo daí o nome “Fumo de Angola”, foi disseminada com rapidez entre
os negros escravizados e os índios nativos daqui que inclusive passaram a cultivá-
la. Com a popularização da erva entre intelectuais franceses e médicos ingleses, ela
passou a ser vista entre nós como um ótimo medicamento, indicado no tratamento
de muitos males (CARLINI, 2006).
Até as caravelas em que navegaram os portugueses para chegar até aqui
continham maconha, visto que as velas e o cordame das embarcações eram feitas
de fibra de cânhamo, mais um nome para essa planta. No século XVIII a Coroa
41
Portuguesa buscava incentivar o cultivo de cannabis sativa, de forma que o vice-rei
de Portugal enviou ao governante da província de São Paulo dezesseis sacas de
sementes de maconha de qualidade alta para serem plantadas na referida região
(CARLINI, 2015).
O uso não-médico da planta foi disseminado entre os negros escravizados e
os índios e enquanto o consumo se restringia a camadas socioeconômicas menos
favorecidas o seu uso não desenvolveu muita preocupação, não chamando tanto a
atenção da classe dominante branca, com exceção de que havia a alegação de que
enquanto viveu aqui, Carlota Joaquina, rainha e esposa do Rei D. João VI, apreciava
o chá de maconha. Quando chegaram no Brasil, na metade do século XIX, notícias
dos efeitos hedonísticos da cannabis esse quadro começou a mudar, embora o seu
uso médico tenha se destacado, vide Figura 1, onde se encontra cigarrilhas
indicadas para “asthma, catarrhos, insomnia” (CARLINI, 2006).
Figura 1: Propaganda dos Cigarros Indios
CARLINI, Elisaldo Araújo. A história da maconha no Brasil. p. 316, (2006)
42
Figura 2: Cigarros Indios
SAAD, Luísa Gonçalves. “Fumo de negro”: A criminalização da Maconha no Brasil. p. 70, (2013)
Fica claro na Figura 1 uma propaganda com a indicação da Cannabis Indica,
uma variação de maconha, para uma série de problemas em sua maioria
respiratórios, e segundo Carilini (2006) em 1905 tal propaganda ainda era veiculada
em nosso país.
Ainda segundo Carlini (2006), a repressão da maconha no Brasil ganhou
força em 1930, repressão essa que surgiu em partes devido ao posicionamento do
delegado brasileiro, Pernambuco Filho, na II Conferência Internacional do Ópio,
1924, que aconteceu em Genebra. Apesar do foco ser o ópio e a coca e de os
representantes de mais de 40 países não estarem preparados para discutir a
43
maconha, o representante brasileiro, juntamente ao delegado egípcio se esforçaram
para incluir a planta.
Essa participação do Brasil na condenação da maconha é confirmada em uma publicação científica brasileira (Lucena, 1934): “já dispomos de legislação federal referente aos contraventores, consumidores ou contrabandistas de tóxico. Aludimos à Lei Nº 4.296 de 06 de Julho de 1921 que menciona o haschich. No Congresso do Ópio da Liga das Nações Pernambuco Filho e Gotuzzo conseguiram a proibição da venda de maconha (grifo do autor). Partindo daí deve-se começar por dar cumprimento aos dispositivos do referido Decreto nos casos especiais dos fumadores e contrabandistas de maconha.” (CARLINI, p. 316, 2006)
Contudo, um documento oficial emitido pelo governo brasileiro, causa
estranheza na atitude tomada pelo delegado brasileiro na Conferência, visto que o
mesmo, Pernambuco Filho, juntamente a Heitor Peres entre outros acentuam que
diversas observações clínicas não há, desde 1915, nenhuma morte relacionada à
abstinência do uso de maconha, fator presente no tocantes a outras drogas e
indispensável para a classificação da OMS de uma “toxicomanógena”.
Essa postura de repressão permaneceu no Brasil durante muito tempo e teve
o apoio da Convenção Única de Entorpecentes, da ONU, em 1961 a qual teve o
Brasil como signatário. Essa convenção ainda considerava a cannabis uma droga
extremamente danosa ao indivíduo e à coletividade, chegando a compará-la à
horoína.
“A proibição total do plantio, cultura, colheita e exploração por particulares da maconha, em todo território nacional, ocorreu em 25/11/1938 pelo Decreto-Lei nº 891 do Governo Federal" (Fonseca, 1980). Deve-se notar que a maconha não é uma substância narcótica, e colocá-la nessa convenção de entorpecentes foi um erro. A Lei nº 6.368, de 1976, que legisla sobre o assunto, prevê pena de prisão para a pessoa que tenha em poder qualquer quantidade de maconha, mesmo que para uso pessoal (CARLINI, p. 316, 2006).
Não obstante, a historicidade que a maconha carrega com certeza foi um dos
motivos para tanto repúdio, visto que por estar associada aos negros o preconceito
44
acerca da mesma se desenvolveu da mesma maneira que o preconceitos
relacionado a outros elementos ligados à cultura africana. Era vista como coisa de
feitiçaria de negros por ser comum na África, de modo que em partes a cannabis foi
condenada por preconceito (CARLINI, 2015) ), bem como demais elementos da
cultura africana presentes no Brasil trazida e disseminada pelos negros
escravizados e seus descendentes, a exemplo do candomblé e da capoeira.
Saad (2013) apresenta uma discussão muito interessante a respeito da
criminalização da maconha no Brasil. Em dissertação, a autora apresenta a relação
da planta com as civilizações africanas e seu valor para alguns grupos.
A maconha teria chegado à África pelo Egito, por volta do século X, trazida pelos árabes que vinham da Índia, da Pérsia e/ou da Arábia Saudita. Ao passo que se espalhava pelo interior – dentro das possibilidades climáticas de cada região – chegava por outras áreas da costa através do contato com os negociantes vindos de fora. Embora nunca tenha sido parte significativa da economia africana, a planta sempre esteve dotada de grande poder e valor nos negócios entre diferentes comunidades, sendo usada como moeda de transações com ovelhas e vacas, por exemplo. Escavações arqueológicas encontraram, no Zimbábue, cachimbos com vestígios de cannabis datados do século XIV, mas os pesquisadores acreditam que o uso era ainda mais antigo. (SAAD, p. 94, 2013)
Segundo a autora, a área onde provavelmente o uso cultural da maconha é
mais extenso é o continente africano, onde se há os indícios mais antigos da
utilização da erva como parte de cerimônias religiosas e da vida dos nativos há
séculos antes das primeiras expedições europeias (SAAD, 2013).
Em 1932 se deu a criminalização da maconha no Brasil através do Decreto
20.930
responsável por coibir “o emprego e o comércio das substâncias tóxicas entorpecentes”. A planta então passou a integrar a lista de “substâncias tóxicas de natureza analgésica ou entorpecente [...] inclusive especialidades farmacêuticas correlatas”. A lei detalhava que se proibia “fabricar, importar, exportar, reexportar, vender, trocar, ceder, expor ou ter” maconha, e para seu eventual uso médico seria “indispensável licença especial da autoridade sanitária competente”.
45
A venda estaria restrita às farmácias devidamente autorizadas e as receitas aos médicos formalmente diplomados, restando ainda uma brecha para o comércio e consumo da planta, embora não haja indícios de que sua utilização medicinal tenha perdurado após a proibição. (SAAD, p. 91, 2013)
Aqui podemos verificar que em 1932 a lei em relação à maconha pode ser
considerada mais “avançada” que a lei atual, visto que conhecidos os seus
benefícios medicinais a prescrição como medicamento era autorizada.
Compreendemos também que nesse período o controle da medicina oficial sobre a
cura de doenças e o monopólio da indústria farmacêutica se fortaleciam cada vez
mais (SAAD, 2013).
Uma das maiores provas históricas de que a proibição por lei não coíbe o uso
de drogas, pelo contrário apenas agrava seus danos, é a Lei Seca de 1920 nos
Estados Unidos. Nesse período a produção, transporte e comércio de bebidas
alcoólicas foram proibidos no país, em decorrência disso surgiram diversos bares
clandestinos, conhecidos como “speakeasies”, e o consumo de bebidas falsificadas
aumentou bastante, bem como a corrupção com policiais e políticos que tinham
relação com as máfias que distribuíam a bebida ilegalmente, praticamente como
acontece hoje em dia em relação a outras drogas. Com a falta de regulação e
controle na produção os danos causados pelo consumo se tornaram ainda maiores,
sendo comuns relatos de cegueira por intoxicação ou problemas com manuseio de
garrafas mal produzidas e até mesmo morte.
Vamos trocar o “personagem” do relato acima e colocar a maconha no seu
lugar, o que vemos é basicamente o que ocorre hoje em dia no Brasil. De fato os
danos pelo consumo de álcool já são bastante superiores aos pelo uso de maconha,
porém fazendo uma analogia verificamos que assim como os danos pelo uso de
álcool foram maiores nos EUA por causa da proibição, os danos pelo uso de
cannabis são maiores porque ela é proibida. O tráfico de drogas nada mais é que
fruto da proibição de algumas drogas, pois constatamos durante todo o trabalho que
nem a proibição imposta pela lei, nem discursos ideologizados que demonizam-nas
irão de fato acabar com seu uso.
46
No Brasil existem pessoas e grupos que tem lutado incessantemente contra
essa guerra que massacra pobres e negros todos os dias. Os antiproibicionistas,
como se colocam, alegam que a descriminalização das drogas é a melhor alternativa
de abordagem para essa temática. Em relação ao nosso objeto central, a maconha,
a luta é para que além de descriminalizada, ela seja legalizada e regulamentada. O
grupo que se destaca nessa militância é o movimento Marcha da Maconha, [que] “é
um movimento social, cultural e político, cujo objetivo é levantar a proibição hoje
vigente em nosso país em relação ao plantio e consumo da cannabis, tanto para fins
medicinais como recreativos”3.
O movimento é importante para promover a discussão sobre a cannabis,
incitando o debate, na busca de ganhar a opinião pública, pressionando as
autoridades para que haja avanços na legislação a respeito das drogas. O
movimento se organiza para uma vez ao ano, todos os anos, saírem às ruas em
defesa da legalização da erva. Esse tipo de manifestação, bem como outras
manifestações políticas e culturas ligadas à maconha tem se tornado cada vez mais
populares, o que leva à ampliação do debate em relação ao proibicionismo (CINCO,
2013).
A maconha é a menos nociva e mais tolerada socialmente do que todas as outras drogas ilícitas, representa uma rica expressão cultural e corresponde a mais de 70% do mercado ilegal de drogas. Além de sua proibição ser central no debate sobre a guerra às drogas como política de criminalização da pobreza, ela fomenta uma diversidade de questões, como liberdade do próprio corpo, opressão de minorias, liberdade religiosa, uso medicinal e sustentabilidade. (CINCO, 2013)
Já provado o potencial medicinal e econômico da cannabis, bem como a
ausência de risco à vida humana, além da riqueza histórica e cultural por ela
carregada, entendemos que as questões que a perseguição contra essa planta é
totalmente desnecessária. Ao tomar o posicionamento em defesa da legalização da
maconha e do respeito ao uso recreativo, medicinal e ritualístico da erva a intenção
3 Carta de princípios da Marcha da Maconha Brasil. Disponível em: http://blog.marchadamaconha.org/carta-de-principios-da-marcha-da-maconha-brasil
47
não é fazer apologia ao seu uso, mas sim encarar de forma sensata os reais
problemas que envolvem o comércio ilegal de drogas. A história da proibição é cheia
de obscuridades e todos os interesses políticos e econômicos camuflados nessa
história prejudicam a vida de muitos sujeitos até hoje. Os argumentos que fomentam
a proibição são facilmente derrubados, principalmente quando se comprovam os
benefícios da legalização, a exemplo disso a notícia de que após a legalização da
maconha no Uruguai o número de mortes ligados ao tráfico da droga foi reduzido a
zero.4
Falácias não curtam, resultados perduram
Vejo mães chorarem aflitas porque solução procuram
Doenças incuráveis, sofrimentos intermináveis
A realidade está batendo em suas verdades abaláveis
Uns brigam e lutam pelo certo
Outros não fazem nada
Como Planet falou:
Eles um dia vão ver que a lei estava errada
[...]
Quantas pessoas poderiam ser ajudadas?
Quantas vidas difíceis não seriam melhoradas
A questão não é só chapar, curtir a brisa
É usar como remédio para quem precisa
Liberação já existe, vai atrás e procura
Eu clamo pra as autoridades:
Legalize a cura!5
4 Após regulação, mortes por tráfico de drogas chegam a zero no Uruguai. O Tempo, Belo Horizonte, 02 jun. 2014. Disponível em: <http://www.otempo.com.br/capa/pol%C3%ADtica/ap%C3%B3s-regula%C3%A7%C3%A3o-mortes-por-tr%C3%A1fico-de-drogas-chegam-a-zero-no-uruguai-1.856721>. Acesso em 03 jun. 2015.
5 Música “Legalize a cura”. Josiane Oliveira, 2014.
48
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão sobre as drogas e suas consequências na sociedade é um
debate polêmico que desperta opiniões variadas. O senso comum define-as como
um mal, esquecendo os benefícios que alguns tipos de droga podem trazer e
esquecendo também que muitas das drogas que não são “demonizadas” e são
legalizadas fazem mais mal que algumas drogas ilícitas. Existe uma névoa de
hipocrisia que paira sobre a sociedade e fomenta o preconceito contra as drogas
ilícitas e seus usuários, fazendo com que por ignorância ou desonestidade
intelectual as pessoas deixem de perceber que os parâmetros que definem a
ilegalidade de uma droga não são unicamente os riscos que ela causa à vida.
Podemos constatar ao decorrer do trabalho que referente à Cannabis Sativa, fatores
sociais, culturais, históricos e econômicos influenciaram sua proibição, muito mais
que os danos que causam à saúde de quem a usa, danos esses praticamente nulos
se o uso não for abusivo.
Já clara a essência da política proibicionista como expressão da
criminalização da pobreza, vale ressaltar que a mesma é decorrente do contexto de
mundialização do capital. Nesse contexto, a realização dos Direitos Humanos se
contrapunha à corrida do capital gerando várias consequências pontuadas por Maria
Lúcia Barroco. Criminalizar a pobreza consiste em culpabilizar os pobres pela sua
condição social, isso se atrela à ideia de que a pobreza é algo natural e que não terá
fim, juntamente à intolerância e segregação dos ditos “culpados”: negros,
homossexuais, imigrantes, usuários de droga, os considerados “diferentes”
(BARROCO, 2008). É nesse contexto também que se dissemina a distorção dos
Direitos Humanos com a ideia de que esse promove a defesa de bandidos, o que
gera a marginalização daqueles que defendem e prestam serviços a determinados
grupos socialmente segregados.
Quando nos dispomos a analisar esse tema percebemos que há uma certa
escassez de discussão no âmbito do Serviço Social, foi necessário se valer da
interdisciplinaridade pesquisando em outras áreas materiais sobre o assunto. Ante a
49
isso, qual o posicionamento do serviço social a respeito da problemática das
drogas?
O acervo de pesquisa em serviço social sobre as implicâncias da ilegalidade
da maconha e suas consequências sociais ainda é escasso, uma das autoras que
se presta a discutir a temática das drogas em sua forma geral é a assistente social e
pesquisadora Cristina Brites. Brites se destaca pelo posicionamento na defesa dos
Direitos Humanos e da autonomia dos indivíduos acreditando no antiproibicionismo
como melhor estratégia de tratamento dessa questão.
A ideia do proibicionismo é aquela de um mundo sem algumas drogas, o que resulta na proibição do uso de apenas algumas delas. Álcool e tabaco, por exemplo, são drogas responsáveis por inúmeros problemas de saúde pública, mas que não são proibidas. A vertente proibicionista não faz uma análise histórica sobre estes fatos. Já a abordagem da saúde coletiva coloca o uso de drogas no seu contexto histórico. Reconhece que a relação dos seres humanos com a droga é histórica, determinada socialmente e culturalmente, e que envolve questões inclusive ligadas ao capital. Reconhece que o uso de drogas é reflexo da ausência de políticas sociais, da incapacidade do Estado em garantir direitos da população como a saúde, o trabalho, a moradia etc. E esta abordagem desemboca numa ideia de antiproibicionismo, que tem uma perspectiva de totalidade do ponto de vista social. Esta mesma abordagem vai dizer que, quanto mais ampla for a oferta de respostas diante do uso e da dependência das drogas, mais chances eu tenho de enfrentar esta questão. (BRITES, 2013)
Brites representa o Conselho Federal de Serviço Social no Conselho Nacional
de Políticas Sobre Drogas (CONAD), a profissional defende que o serviço social tem
muito a contribuir neste debate, sem se deixar contaminar por questões
conservadoras e moralistas. A profissional chama o debate na categoria para a ótica
antiproibicionista, por conhecer de perto, de acordo com suas pesquisas e vivências,
os danos provocados pela ilegalidade.
Intervir na realidade não é tarefa fácil, e se posicionar contra as ideologias
dominantes em tempos de obscurantismo e ataques neoconservadores é ainda mais
50
trabalhoso, contudo se faz extremamente necessário não se omitir diante desse
debate.
Entendemos que como categoria que defende veementemente os Direitos
Humanos, a liberdade individual e a autonomia dos sujeitos é necessário que os
profissionais do Serviço Social se posicionem, a partir de um ponto de vista que
amenize o agravamento da questão social, desconsiderando valores conservadores.
É compreensível que como pessoas, sujeitos que possuem ideologias e
crenças pessoais, cada profissional tenha sua opinião individual a respeito de
substâncias psicoativas, todavia enquanto assistentes sociais o papel é analisar toda
a conjuntura na qual a problemática está inserida e reconhecer as alternativas
cabíveis, para que, dessa forma, se venha intervir na realidade coerentemente com
os princípios da profissão.
51
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