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A Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA) no contexto da produção de conhecimentos e da saúde pública no Amazonas (1970-2015) Cláudio de Oliveira Peixoto 1 Introdução Esta apresentação é parte da construção de minha dissertação de mestrado dentro do Programa Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia-PPGVIDA e do projeto mais abrangente denominado História das Leishmanioses (1903-2015): significados, enfrentamento e desafios de uma doença dos trópicos que se tornou risco global. Os integrantes desta iniciativa, coordenada por meu orientador, professor Jaime Larry Benchimol, propõem-se a analisar, num quadro geográfico e temporal mais amplo, os mais relevantes trabalhos sobre as leishmanioses, as controvérsias científicas que motivaram, as diferentes abordagens nos domínios da clínica, da terapêutica, da profilaxia e saúde pública em sucessivas conjunturas históricas. As leishmanioses representam no Amazonas um problema sanitário e científico relevante. Tal problemática não é refletida de maneira igualitária nas esferas da saúde pública e da produção do conhecimento. A história da doença é marcada por muitas controvérsias que abrangem interpretações conflitantes sobre a sua classificação, etiologia, transmissão e tratamento. Além de preencher lacunas na história regional, um estudo histórico sobre as leishmanioses, em especial a leishmaniose tegumentar americana, poderá trazer contribuição relevante para as ciências biomédicas e a saúde, pois ajudará a compreender como a doença veio a se tornar um dos maiores problemas de saúde pública na região. Conforme a Organização Mundial de Saúde (OMS), as leishmanioses são uma das mais importantes doenças infeciosas e um problema sanitário de importância global. Endêmicas em mais de 98 países do mundo, esse complexo de doenças infecciosas associadas à pobreza e a condições precárias de vida, saúde e desenvolvimento têm 1 Mestrando em Saúde Pública pelo Programa Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia.

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A Leishmaniose Tegumentar Americana (LTA) no contexto da produção de

conhecimentos e da saúde pública no Amazonas (1970-2015)

Cláudio de Oliveira Peixoto1

Introdução

Esta apresentação é parte da construção de minha dissertação de mestrado dentro

do Programa Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia-PPGVIDA e do

projeto mais abrangente denominado História das Leishmanioses (1903-2015):

significados, enfrentamento e desafios de uma doença dos trópicos que se tornou risco

global. Os integrantes desta iniciativa, coordenada por meu orientador, professor Jaime

Larry Benchimol, propõem-se a analisar, num quadro geográfico e temporal mais amplo,

os mais relevantes trabalhos sobre as leishmanioses, as controvérsias científicas que

motivaram, as diferentes abordagens nos domínios da clínica, da terapêutica, da profilaxia

e saúde pública em sucessivas conjunturas históricas.

As leishmanioses representam no Amazonas um problema sanitário e científico

relevante. Tal problemática não é refletida de maneira igualitária nas esferas da saúde

pública e da produção do conhecimento. A história da doença é marcada por muitas

controvérsias que abrangem interpretações conflitantes sobre a sua classificação,

etiologia, transmissão e tratamento. Além de preencher lacunas na história regional, um

estudo histórico sobre as leishmanioses, em especial a leishmaniose tegumentar

americana, poderá trazer contribuição relevante para as ciências biomédicas e a saúde,

pois ajudará a compreender como a doença veio a se tornar um dos maiores problemas de

saúde pública na região.

Conforme a Organização Mundial de Saúde (OMS), as leishmanioses são uma das

mais importantes doenças infeciosas e um problema sanitário de importância global.

Endêmicas em mais de 98 países do mundo, esse complexo de doenças infecciosas

associadas à pobreza e a condições precárias de vida, saúde e desenvolvimento têm

1 Mestrando em Saúde Pública pelo Programa Condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia.

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afetado a saúde de milhares de pessoas, especialmente na Índia, em Bangladesh, no Brasil

e Sudão. Nestes e em outros países há uma população vulnerável aos parasitos e condições

de fragilidade social e econômica propícias à sua disseminação em larga escala. O

problema ganha dimensões globais com a intensa circulação de pessoas entre países.

(ALVAR et al., 2012) As estimativas apontam para cerca de 350 milhões de pessoas

expostas à doença e 15 milhões infectadas. Classificada entre as doenças tropicais

negligenciadas (DTN),2 a sua expansão geográfica e crescente urbanização não têm sido

acompanhadas por programas de controle eficazes. (WHO, 2010)

O objetivo dessa pesquisa se constitui em analisar os processos econômicos,

socioambientais e políticos envolvidos na mudança do perfil de transmissão das

leishmanioses no Estado do Amazonas, em particular a Leishmaniose Tegumentar

Americana, assim como a dinâmica das redes formadas para a pesquisa da doença na

região, relacionando essa dinâmica às ações das instituições de saúde pública no período

de 1970 a 2015.

O marco inicial deste estudo tem como base a criação de um espaço específico para

diagnóstico, tratamento e pesquisa de doenças tropicais no Amazonas, na década de 1970,

que se materializou como Clínica de Doenças Tropicais3 no Hospital Getúlio Vargas, em

Manaus. Quatro anos depois, mudou-se para prédio próprio, passando a chamar-se

Hospital de Moléstias Tropicais, promovido em 1979 a Instituto de Medicina Tropical de

Manaus, e em 1998, a Fundação; por fim, em 2010, passou a incluir o nome de um dos

seus idealizadores. Hoje a Fundação de Medicina Tropical Heitor Vieira Dourado

(FMT/HVD) é o centro de referência no estado para tratamento e pesquisa de doenças

tropicais, dentre estas, as leishmanioses.

Esta pesquisa utiliza o método qualitativo de pesquisa social através da análise da

produção científica e da documentação produzida pela rede de instituições de pesquisa e

de saúde pública locais, assim como a fala de seus atores: pesquisadores especialistas,

administradores, sanitaristas, cientistas e clínicos e/ou profissionais da saúde que atuaram

2 As doenças tropicais negligenciadas são um grupo grande e diverso de doenças que afetam desproporcionalmente a saúde e a vida

da população pobre nos países em desenvolvimento e que normalmente não recebem atenção nem fundos para pesquisa e desenvolvimento. 3 De acordo com relatos foram o professor Heitor Vieira Dourado e o professor Carlos Borborema que criaram um núcleo dentro do

hospital composto por uma enfermaria com 12 leitos, 6 para o sexo masculino e 6 ao feminino por volta de 1970.

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na linha de frente dos estudos e ações sobre as leishmanioses. Os recursos metodológicos

são as técnicas próprias da Pesquisa Documental e da História Oral.

As leishmanioses e a Medicina Tropical

No final do século XIX e início do século XX, a instituição da microbiologia e da

medicina tropical foi determinante para os avanços nos conhecimentos sobre as doenças

classificadas como tropicais como malária, filariose, febre amarela, doença do sono e as

leishmanioses. Estas e outras doenças tornaram-se objetos de grande interesse científico,

buscando-se definir quais eram seus agentes etiológicos, seus modos de transmissão, seus

ciclos biológicos e quais eram, também, as formas de combatê-las ou preveni-las.

A medicina tropical surgiu como campo distinto do saber associado ao

imperialismo europeu. Na busca por soluções para os problemas médico-sanitários que

este enfrentava na Ásia, África e nas Américas, foram construídas escolas, laboratórios e

faculdades dedicadas ao estudo das doenças que afligiam não só as populações locais mas

também os europeus e norte-americanos deslocados para zonas de climas quentes. De

acordo com Kropf, (2009, p. 56) “as duas últimas décadas do século XIX, por

entronizarem o laboratório como espaço por excelência de produção das verdades

científicas, foram uma época de ruptura do pensamento e da prática da medicina

ocidental”.

Exemplo dessa ruptura são as técnicas propostas por Pasteur e Koch, as inovações

que estes cientistas e seus discípulos produziram no campo da microbiologia aliadas a

regras experimentais rigorosas e a descobertas sobre o papel dos insetos na transmissão

de doenças, terreno em que se destacaram Patrick Mason e Alphonse Laveran, assim

como o desenvolvimento do conceito de hospedeiro vivo4, passa a ser crucial como

4 Hospedeiro, segundo a Amer. Assoc. Publ. Health, é a pessoa ou animal vivo, inclusive aves e artrópodes, que, em circunstâncias naturais permitem a subsistência ou o alojamento de um agente infeccioso. O hospedeiro primário ou definitivo é aquele em que o

agente chega à maturidade ou passa por sua fase sexuada. O secundário ou intermediário é aquele que se encontra em fase larvária ou

assexuada.

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modelo de investigação para que fossem compreendidos os mecanismos de transmissão

de diversas doenças e as ações sanitárias mais adequadas para combatê-las.

(BENCHIMOL; SILVA, 2008)

O Instituto Pasteur de Paris (1889), a Liverpool School of Tropical Medicine, a

London School of Tropical Medicine (1898-1899), o Instituto Soroterápico de

Manguinhos (1899, Instituto Oswaldo Cruz a partir de 1908), o Instituto de Doenças

Marítimas e Tropicais de Hamburgo (1900) são alguns dos primeiros componentes de

uma rede que permitiria ampla disseminação mundial de conhecimentos sobre tais

patologias, influenciando a criação de outras instituições. As relações estabelecidas por

esta rede que incluía sociedades científicas como a Société de Pathologie Exotique e

periódicos especializados, como as Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, os Annales de

l’Institut Pasteur de Paris, foram importantes para a construção do conhecimento sobre

as leishmanioses.(JORGAS JR, 2014)

No Brasil, microbiologia e medicina tropical ganharam espaço com a criação de

instituições como o Instituto Bacteriológico de São Paulo e o Instituto Oswaldo Cruz e a

participação de seus médicos-cientistas - Adolpho Lutz, Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e

muitos outros - tanto no estudo das doenças como na implementação de ações sanitárias

contra elas. Esses personagens híbridos, que desempenhavam funções de médicos,

cientistas e sanitaristas – esferas que iriam se tornar cada vez mais especializadas ao longo

do século XX - tornaram-se “coparticipantes do desbravamento de fronteiras em vários

campos do saber” (BENCHIMOL; SILVA, 2008, p.775)

Estavam assim não somente em sintonia com os conhecimentos produzidos pela

microbiologia e medicina tropical europeias, como também foram responsáveis por

contribuições originais e decisivas ao avanço do saber nesses campos de conhecimento.

Os materiais biológicos e os dados sócio epidemiológicos utilizados na produção desses

conhecimentos originais – a descoberta da Doença de Chagas, por exemplo, em 1909 –

provieram, em parte, de missões e expedições ao interior do Brasil. Expedições que

revelaram um pais doente, ajudando a consolidar um pensamento nacionalista e ações

políticas que iam resultar nas primeiras medidas de saneamento dos sertões, no final dos

anos 1910 (KROPF, 2009; CÂNDIDO; SILVA, 1996; BENCHIMOL, 2008).

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Conforme escrevem Benchimol & Silva (2008, p.727), aqueles médicos-cientistas

Ao colocarem sua expertise a serviço de ferrovias e outros

empreendimentos, iriam deparar com problemas diferentes daqueles

vivenciados nos centros urbanos. Teriam oportunidade de estudar

patologias pouco ou nada conhecidas e de recolher materiais biológicos que

dariam grande amplitude à medicina tropical no Brasil.

Entre essas patologias “pouco conhecidas” sobressai a leishmaniose. Na Bahia,

como dissemos, Juliano Moreira observou a existência da forma cutânea da doença e

descreveu em 1895 o “Botão da Bahia”, relacionando-o ao “botão endêmico dos países

quentes” (PESSOA; BARRETO, 1944). Entretanto, a identificação do parasita se deu

apenas em 1909, durante uma epidemia entre trabalhadores da Estrada de Ferro Noroeste,

que era construída no interior do estado de São Paulo. O professor Adolfo Lindenberg

confirmou o fato e, em seguida, Carine e Paranhos também verificaram formas similares

às leishmanias do Velho Mundo em lesões cutâneas apresentadas por pacientes

acometidos pela doença conhecida na região como “úlcera de Bauru”. (PESSOA;

BARRETO, 1944)

Jorgas Jr (2014) analisa em sua dissertação de mestrado o debate científico

ocorrido nas primeiras décadas do século XX a respeito das “diferentes manifestações

patogênicas que passariam a ser agrupadas, em 1906, sob a denominação de

leishmanioses” (JORGAS JR, 2014,p.8). Tal processo se inicia com a difusão das práticas

da doutrina microbiana, a partir das quais vão sendo construídas novas formas de

compreensão relacionadas à natureza das doenças infecciosas. Os debates científicos que

envolveram muitos personagens, médicos, cientistas e os principais centros de pesquisa

europeus e sul-americanos tiveram como quadro geral as políticas econômicas

imperialistas europeias de colonização e exploração dos territórios onde as doenças de

clima quente dificultavam a fixação do homem europeu (JORGAS JR, 2014).

A leishmaniose como problema de Saúde Pública no Amazonas

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No começo do século XX a leishmaniose tegumentar começou a ser apontada

como problema sério de saúde na região e como obstáculo a seu desenvolvimento

econômico. Na época do apogeu e declínio da economia da borracha no Amazonas, a

“ferida brava” que afligia a população ribeirinha começou a ser estudada, juntamente com

a malária, a febre amarela, o beribéri e outras patologias, por médicos da região como

Alfredo da Matta, e por investigadores vindos do Sudeste do Brasil, como Oswaldo Cruz

e Carlos Chagas. A leishmaniose descrita na Amazônia era mais agressiva do que o “botão

do Oriente’ e outras formas cutâneas subsumidas em 1903 na patologia relacionada ao

protozoário Leishmania donovani: causava não apenas lesões dermatológicas com curso

mais grave e deformidades, mas também profundos transtornos sociais e econômicos

(CRUZ, 1972).

Em Manaus, a construção do espaço urbano foi marcada por relações de trabalho

com grande impacto na saúde e no ambiente, advindas da instalação do capitalismo

comercial, financeiro e industrial. Segundo Giatti (2015, p. 67), a dinâmica territorial do

espaço urbano de Manaus contribui para a permanência de um quadro crítico no qual “os

determinantes sociais se sobrepõem a diferentes cargas de fatores de risco de ordem

ambiental”. O resultado disso são prejuízos diretos para a saúde e qualidade de vida de

seus habitantes e a incapacidade de os serviços públicos essenciais acompanharem as

demandas, mantendo-se ou aumentando as precariedades do saneamento e da atenção à

saúde. (GIATTI et al., 2015, p. 67)

Desde o período áureo da borracha a ocupação do território se deu com a

degradação do meio ambiente, especialmente dos igarapés que cortam a cidade, e com

considerável carência de infraestrutura de saneamento básico, “transformando-o em

espaço agressivo às populações que ali residem”. (OLIVEIRA, 2003, p.85)

As intensas transformações urbanas e a explosão populacional foram alimentados

pelo fluxo imigratório atraído pelo mercado de trabalho formal e informal, sobretudo a

partir da criação da Zona Franca de Manaus na década de 60 (SOUZA; OLIVEIRA, 2003,

p.85). Essas transformações tiveram graves consequências para a saúde em toda a região

(ANDRADE, 1998).

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Leishmanioses: fatores econômicos, socioambientais e políticos no Amazonas

Com o declínio da época áurea da borracha a partir de 1912, o estado ingressa

numa fase de decadência econômica. À medida que avançamos no século XX, mais

visível é a lacuna de conhecimentos historiográficos sobre as leishmanioses no

Amazonas. Em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, foi criado o Serviço Especial

Saúde Pública (SESP), que funcionou até a década de 1990. Este serviço foi um marco

na política pública de saúde do Amazonas, “com destaque para estudos sobre malária,

leishmaniose e tripanossomíases” (SOUSA; SCHWEICKARDT, 2013,p.1647).

No contexto da Segunda Guerra Mundial, a tentativa de reerguer a economia da

região amazônica resultou em intensa migração de mão-de-obra de outras partes do país,

especialmente do Nordeste. Os chamados “soldados da borracha”5 foram trazidos para

trabalhar nos seringais na Amazônia. O aumento da produção atenderia ao interesse dos

Aliados na denominada Batalha da Borracha entre os anos de 1942 e 1945 (MIRANDA,

2013 p. 16 ).

Porém, com o fim da guerra e o fracasso do esforço para restaurar a economia

extrativista, o estado mergulhou em outro período de declínio econômico. A conjuntura

econômica que adveio com o declínio das atividades econômicas e a consequente

dispersão dos trabalhadores que haviam migrado para a região contribuíram para

disseminar a leishmaniose tegumentar em outras partes do Brasil onde já eram

identificados casos ou surtos desde o fins do século XIX, na Bahia, e no início do século

XX, em São Paulo. (VALE; FURTADO, 2005; ALTAMIRANO-ENCISO et al., 2003)

Após o golpe militar de 1964, o Amazonas passou por outro período de migração

intensa sob novas condições políticas e econômicas. Depois que o governo militar

implantou a Zona Franca de Manaus (ZFM), em 1967, o espaço urbano de Manaus sofreu

intensas transformações e chegou ao fim a experiência exótica e emblemática da cidade

sobre as águas, com mais de duas mil casas flutuantes onde viveram quase 12.000

moradores. (SOUZA, 2010). Seu fim foi justificado pela construção do “Novo

5 Nome dados aos brasileiros que entre 1943/1945 foram alistados e transportados para a Amazônia, com o objetivo de extrair borracha para os Estados Unidos da América na II Guerra Mundial. Foi prometido a eles que, após a guerra, retornariam à terra de origem. Na

prática, a maioria deles morreu de doenças como malária. Os sobreviventes ficaram na Amazônia por não terem dinheiro para pagar

a viagem de volta, ou porque estavam endividados com os seringalistas.

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Amazonas”, propagandeado pelo governo, cujo símbolo maior de progresso e de futuro

era a Zona Franca de Manaus.

Inicialmente, a Zona Franca tornou-se um vigoroso polo de empregos e atraiu

populações rurais do Amazonas e de estados vizinhos, provocando intensa expansão

urbana e demográfica em Manaus. Sua população de cerca de 300 mil habitantes em 1970

cresceu para 800 mil em 1985, e hoje ultrapassa 2 milhões de pessoas.

A explosão demográfica provocada por esse modelo de desenvolvimento trouxe,

porém, consequências desastrosas para a saúde no Estado e teve implicações diretas sobre

o aumento da transmissão da leishmaniose nas áreas periurbanas. A onda de ocupações

irregulares e a construção de conjuntos habitacionais para a classe trabalhadora, com

desmatamento da floresta primária, favoreceu a ocorrência de surtos epidêmicos em

áreas da cidade, especialmente a Zona Norte. (ANDRADE, 1998).

Concomitantemente, a Amazônia passou a representar área de “interesse

estratégico” para o Estado Nacional “no sentido da incorporação de fronteiras territoriais,

científicas e culturais” (FAULHABER, 2005). Ganharam forma na década de 1970

projetos de ocupação e integração das fronteiras em porções do território nacional

habitadas por índios, caboclos e ribeirinhos. O Plano de Integração Nacional (PIN),

instituído pelo Decreto-Lei 1.106, de junho de 1970, tinha como objetivo o financiamento

de rodovias e outras obras de infraestrutura e programas de colonização do território.

Sob o slogan nacionalista “integrar para não entregar”, estradas cortaram a

Amazônia de norte a sul, como a Cuiabá-Santarém (BR-163), e de leste a oeste: a

Transamazônica (BR-230). Foram também construídas a Manaus-Porto Velho (BR-319)

e a Manaus-Boa Vista (BR-174). Nunca foi concluída a Perimetral Norte (BR-210),

projetada no auge do desenvolvimentismo militar, e que deveria ligar os estados do

Amazonas, Roraima, Pará e Amapá

Djalma Batista6 na obra O complexo da Amazônia – Análise do processo de

desenvolvimento afirmou que “A abertura de estradas na Amazônia tem aumentado muito

o número de vítimas de leishmaniose, exatamente porque os mosquitos transmissores têm

nicho ecológico no aceiro das matas, figurando como reservatórios

6 Médico, escritor, membro da Academia Amazonense de Letras (AAL) e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, vice-

presidente do Conselho Estadual de Cultura de 1968 a 1972 e diretor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) de 1959

a 1968. Faleceu em 20 de agosto de 1979.

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naturais...”(BATISTA, D.,2007). As relações entre a abertura de rodovias e a incidência

da doença são apontadas, neste e em outros estudos.

A rodovia Manaus-Boa Vista (BR-174) foi construída para ser uma via atrelada à

exploração de minério em terras indígenas e para escoamento da produção da Zona Franca

de Manaus para os mercados do Norte, integrando os estados do Amazonas, Roraima e

Venezuela. Essa rodovia cortou por inteiro o território da etnia indígena Waimiri-Atroari,

num enredo que envolveu conflitos, massacres, antropofagia e doenças. Aldeias inteiras

foram dizimadas “pela ação de expedições militares ou matadores profissionais, porque

sua população era tida como empecilho à livre exploração das riquezas naturais existentes

nas terras que ocupavam” (RODRIGUES, 2013).

Analogamente, a construção da Usina Hidrelétrica de Balbina, inaugurada

parcialmente em 1988, inundou 2.360 km2 de floresta e causou um dos maiores desastres

ambientais do Brasil, além de desestruturar o modo de vida principalmente daquela etnia,

mas também das populações que ali habitavam (RODRIGUES, 2013). O cenário dessa

tragédia ecológica foi o Rio Uatumã, no meio da floresta amazônica.

Dentro da Reserva Indígena Waimiri-Atroari foi instalada a Vila Pitinga para

abrigar os trabalhadores recrutados para extrair vários minerais, como estanho, ferro,

nióbio, tântalo e cassiterita. Pertencia aquela área de exploração mineral à mineradora

Taboca do grupo Paranapanema, ligado à empresa Vale do Rio Doce. Nessa vila a

leishmaniose tegumentar foi um sério problema de saúde devido aos frequentes surtos

epidêmicos entre os trabalhadores e moradores.

A Fundação de Medicina Tropical (FMT/HVD) e outras instituições realizaram,

no período demarcado (1970-2015), importantes investigações entomológicas,

biológicas, médicas e epidemiológicas em áreas modificadas pelos empreendimentos

relacionados acima. Algumas investigações foram realizadas em assentamentos à

margem dos ramais da BR-174. Um exemplo é a comunidade São João, no Km 4 desta

rodovia, bairro periférico de ocupação recente, sem saneamento básico, sem redes de

esgotos e água, com residências construídas de modo precário próximas à floresta

primária, e que se tornou uma área endêmica para leishmaniose (GUERRA et al., 2006).

Os pesquisadores da FMT-HDV também realizaram estudos epidemiológicos e

clínicos no Km 21 da mesma rodovia, em lugar conhecido como Ramal do Pau Rosa,

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sub-ramal da Cooperativa. Estas áreas de assentamentos dentro da reserva de

desenvolvimento sustentável do Tarumã Mirim7 tornaram-se endêmicas para a

leishmaniose e hoje ainda têm casos constantes.

Essa afirmação vale para diversos assentamentos agrários instalados ao longo da

rodovia Manaus-Itacoatiara (AM 010) no município de Rio Preto da Eva. O INPA, em

parceria com secretarias de saúde municipal e estadual, investigou pacientes atendidos na

Unidade Básica de Saúde e no Hospital do Município entre os anos de 2005 e 2012.

Verificou que os casos eram originários e tinham sido infectados ao longo da rodovia e

de seus ramais, sabendo-se que “grande parte dos casos de LTA atendidos pela Fundação

de Medicina Tropical do Amazonas (FMT-AM), em Manaus, é oriunda das cercanias

desta área” (FIGUEIRA et al., 2014, p.177).

Investigações similares foram feitas na microrregião do Médio Solimões, na

província de Urucu8, no município de Coari, pólo da exploração de petróleo e gás natural

pela Petrobras. Este estudo demostrou que aí a LTA está associada à exposição dos

trabalhadores durante a execução de suas atividades para a indústria petrolífera. Ao

entrarem na mata fechada para realizar levantamentos geofísicos, diagnósticos

ambientais, geotécnicos, projetos sísmicos terrestres e sondagens diversas contraem a

doença (ALECRIM et al., 2014, p.77).

No sul do estado, as ocorrências de leishmaniose estão associadas a problemas

causados pela ocupação desordenada e exploração predatória do solo e subsolo em

municípios com grandes áreas desmatadas, como Lábrea, Humaitá, Boca do Acre e Apuí,

devido à forte expansão da fronteira agrícola e pecuária da região centro-oeste e à

descoberta de reservas de ouro em Novo Aripuanã, desde 2006.9 Nos municípios de Novo

Aripuanã e Apuí o intenso fluxo migratório, a exploração ilegal de ouro e as precárias

condições de trabalho dos garimpeiros provocaram, além do desmatamento e da

contaminação dos rios por mercúrio, o alastramento de doenças como malária, febre

7 PAD (Projeto de Assentamento Dirigido) Tarumã Mirim localizado entre as bacias hidrográficas do Tarumã Mirim e Tarumã Açu,

tendo acesso via ramal do pau rosa, km 21 da BR 174 e por via fluvial pelo igarapé Tarumã Mirim. O assentamento foi criado em 1992, mas a implantação e assentamento dos beneficiários iniciaram em 1997, em função do litígio envolvendo o governo do estado

e INCRA. Está dividido em 1.042 lotes e 3 reservas florestais. 8 O Gasoduto Urucu-Coari-Manaus, localizado na província petrolífera de Urucu, distante cerca de 650 km de Manaus foi construído com a finalidade de abastecer Manaus, segundo maior polo industrial do país e as usinas termelétricas de sete cidades amazonenses. 9 RODRIGUES, R. A. Vidas despedaçadas - Impactos Socioambientais da construção da Hidrelétrica de Balbina (AM)Amazônia

Central. [s.l.] UFAM, 2013.

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amarela, doenças sexualmente transmissíveis, alcoolismo e leishmaniose (GUERRA et

al., 2015).

As considerações feitas acima mostram que os surtos epidêmicos da doença estão

relacionados ao impacto socioambiental de grandes projetos e a outras atividades

realizadas no meio da selva, pois o contato entre trabalhadores, turistas, cientistas e

militares com os reservatórios naturais de leishmanias aumenta as chances de exposição

à infecção.(MACIEL, 2012)

Instituições de pesquisa e a saúde pública no Amazonas

Desde a Belle Époque, a malária domina a agenda de saúde pública no Amazonas.

Entretanto, a leishmaniose adquiriu lugar cada vez mais importante para grupos de

pesquisa interessados na fauna local de vetores e hospedeiros, na parasitologia, etiologia,

caracterização clínica e epidemiológica da doença, assim como em seu tratamento.

A partir de 1965 Ralph Lainson e Jeffrey Shaw, ingleses associados ao Instituto

Evandro Chagas,10 no Pará, produziram contribuições notáveis ao estudo das

leishmanioses e da Doença de Chagas na Amazônia. Lainson, um parasitologista com

grande reconhecimento internacional, falecido em 2015, deixou uma revisão dos mais

importantes eventos históricos que levaram à atual taxonomia das espécies neotropicais

de Leishmania.

Seus estudos sobre a “taxonomia e a ecoepidemiologia das Leishmania e

leishmanioses do Novo Mundo o projetaram definitivamente no cenário científico

mundial”(SILVEIRA, 2015). Igual prestígio têm os trabalhos de outra autoridade mundial

em parasitologia, Philipi Daves Marsden, inglês falecido em 1997 em Brasília, onde era

professor de medicina tropical.

O laboratório de Leishmaniose e Doença de Chagas do Instituto Nacional de

Pesquisas na Amazônia (INPA), criado em 197811, abriga linhas de pesquisa sobre a

distribuição geográfica da doença, dos vetores, dos protozoários, identificação e

10 Um dos principais centros produtores de conhecimentos sobre as leishmanioses no Brasil. 11 Em 1976, em editorial da revista Acta Amazônica, intitulado “Ciência, desenvolvimento e felicidade’ escrito por Warrick Estevam

Kerr, nos dá pistas de como o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA) começou a formar a linha de pesquisa que

possivelmente iria se transformar no atual Laboratório de Leishmaniose e Doença de Chagas.

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taxionomia de vetores, perfil epidemiológico, métodos diagnósticos e terapêuticos.

Significativa produção foi desenvolvida por pesquisadores como Jorge Arias, Roberto e

Maricleide Naiff e o entomologista Toby Barret, outro inglês que se fixou na Amazônia,

este contratado pelo INPA a atualmente Antonia Maria Franco. As publicações do grupo

constituem referências importantes para o estudo da história das leishmanioses na

Amazônia.

Outra equipe de pesquisadores que se destacou, teve sua atuação ligada a

Fundação de Medicina Tropical (FMT-HVD) e foi constituída por Marcus Luiz Barroso

Barros12, Marcilene Paes, Marcus Vinítius Guerra, Maria das Graças Vale Barbosa,

Sinésio Talhari, Jorge Augusto de Oliveira Guerra, entre outros. Esses profissionais

orientaram e desenvolveram importantes estudos sobre doenças infecciosas e parasitárias,

principalmente leishmaniose tegumentar americana, co-infecção HIV/Leishmaniose,

tratamento da leishmaniose com pentamidina e antimoniais e Doença de Chagas na

Amazônia. O início do trabalho da Fundação está ligado aos trabalhos pioneiros

realizados em dois bairros da periferia da cidade, São José Operário e Cidade Nova.

(GUERRA et al., 2015)

Ator importante nos estudos sobre leishmaniose foi o Instituto Oswaldo Cruz,

incorporado em 1970 à Fundação Oswaldo Cruz, e instituições que vieram a fazer parte

de suas unidades regionais, como o Instituto René Rachou, em Minas Gerais e o Instituto

Leônidas e Maria Deane. O laboratório de leishmanioses criado na instituição mineira em

1958 pelo Dr. Celso Afonso de Oliveira desenvolveu pesquisas sobre vários aspectos da

doença. Na década de 1960, pesquisadores do laboratório, em colaboração com o

professor Saul Adler13, da Universidade Hebraica de Jerusalém, realizaram trabalhos

pioneiros de infecção experimental de flebotomíneos por leishmanias. A unidade possui

o Centro de Referência em Leishmanioses que desenvolve atividades de atendimento

ambulatorial, diagnóstico e tratamento das leishmanioses desde 1989 e passou a integrar

12 Médico do Hospital Universitário Getúlio Vargas (AM), foi reitor da Universidade do Amazonas, de 1989 a 1993 e Diretor do INPA

(2002) e do IBAMA 13Adler Shaul Aaron, Pesquisador em parasitologia da Universidade hebraica de Jerusalém, departamento de Microbiologia, atuou como médico militar, oficial do exército britânico na Mesopotâmia, estudou na Escola de Medicina Tropical de Liverpool, foi

assistente do laboratório de pesquisa Sir Alfred Lewis Jones (Serra Leoa e foi Diretor do Departamento de Parasitologia da faculdade,

até outubro 1965 quando se aposentou. Faleceu em 1966. Fonte: http://bcrfj.revues.org/4512 Acesso em: 20/07/2016

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em 1998 a Rede Internacional de Estudos de Co-infecção Leishmania/HIV da

Organização Mundial da Saúde.

No Rio de Janeiro, a área da biologia molecular ganhou grande dinamismo na

década de 1970, tendo sobressaído o Laboratório de Doenças Parasitárias do

IOC/Fiocruz, onde atuam José Rodrigues Coura14 e seus colaboradores. Entraram, depois,

em cena o Laboratório de Leishmanioses, criado 1978, e outras unidades da Fiocruz que

estabeleceram parcerias com instituições do Amazonas, motivadas pelo interesse dos

cientistas do Rio de Janeiro pelas patologias da região. Esse interesse, juntamente com as

motivações de médicos e pesquisadores locais deu origem ao Escritório Técnico da

Amazônia (ETA) em 1994 que se transformou em Centro de Pesquisas Leônidas e Maria

Deane (CPqLMD) em 2002, cujo primeiro diretor foi Marcus Barros, médico e

pesquisador da Fundação de Medicina Tropical.

No campo da saúde pública, durante o governo de Álvaro Botelho Maia, foi criada

a Secretaria de Educação, Cultura e Saúde15, mas somente em 1955, durante o mandato

de Plinio Ramos Coelho, foi desmembrada, criando-se a Secretaria de Assistência e

Saúde16. A administração municipal, por sua vez, delegou em outubro de 1970, à

Secretaria de Desenvolvimento (SEDECO) as ações preventivas em geral e ás ações de

vigilância epidemiológica.

As transformações socioeconômicas, demográficas e urbanas decorrentes da Zona

Franca de Manaus levaram em 1975 à criação da Secretaria Municipal de Saúde de

Manaus-SEMSA,17 de cuja estrutura fazia parte a Divisão de Saúde Pública, incluindo a

Fiscalização Sanitária e a Direção de Socorro de Urgência. Sucessivas mudanças de

estrutura estabeleceram três outras divisões: a de Saúde Pública; a de Vigilância Sanitária

(que absorveu a Fiscalização Sanitária) e a Divisão Médico Hospitalar, que substituiu a

Divisão de Socorro de Urgência. Em 2006, na esfera estadual, foi instituída a Fundação

de Vigilância em Saúde (FVS/AM) vinculada à Secretaria de Estado da Saúde do

Amazonas (Susam), que passou atuar nas ações de vigilância epidemiológica, sanitária e

ambiental, no controle de doenças, assim como na educação, capacitação e pesquisa. O

14Professor, pesquisador titular emérito autor e de muitas publicações relevantes para este estudo; 15 (Lei nº12 de 09/05/1952) 16 (Lei nº 108 de 26/08/1955) 17 (Lei nº1240 de 20 de novembro de 1975)

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impacto dessas mudanças no tocante às ações e estudos concernentes à leishmaniose

ainda precisa ser avaliado.

Considerações finais

Encontram-se informações sobre as leishmanioses no Amazonas, no período de

1970 a 2015, em diversos artigos e relatórios técnicos ou científicos, mas apresentadas de

forma fragmentada e dispersa. Alguns trabalhos estabelecem interessantes relações entre

as leishmanioses, seus parasitas, vetores e/ou hospedeiros e os contextos socioeconômico

e ambiental, mas em áreas específicas do Amazonas, em sua maioria próximas à capital

do Estado. Muita informação relevante está na memória de cientistas e de outros atores

que estiveram ou ainda estão à frente de pesquisas e ações políticas ou médico-

terapêuticas relevantes.

O estudo da história das políticas e das redes de pesquisa relacionadas às

leishmanioses no Amazonas, no período 1970 a 2015 requer, assim, não apenas a pesquisa

com fontes primárias e secundárias ainda não analisadas pela historiografia, mas também

incursões pela história oral, a realização de entrevistas com atores que podem oferecer

valiosos testemunhos sobre os processos transcorridos no tempo presente.

A variação na ocorrência dos casos da doença parece estar relacionada sobretudo

à crescente urbanização e à ocupação de áreas florestais onde proliferam vetores e

reservatórios dos agentes da doença. A grande maioria dos casos diz respeito a habitantes

de áreas desmatadas na periferia de Manaus e em cinco principais municípios do interior

do estado, com concentração de notificações em: Rio Preto da Eva (AM-010), Presidente

Figueiredo (BR-174), Itacoatiara (AM-010), Humaitá (BR-319) e Coari - quase todos

ligados a Manaus por estradas (Coari é a exceção). Manaus concentra o maior número de

notificações, provavelmente por ser a localidade de referência para o diagnóstico e

tratamento de LTA no estado.

Ao observar o campo da saúde em termos de ações e serviços e o campo da

produção dos conhecimentos percebe-se um descompasso na abordagem de tais

problemas, com uma sinergia maior entre ciência e assistência médico-terapêutica a

pacientes humanos na rede pública de saúde e especialmente em instituições como a

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Fundação de Medicina Tropical, o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA)

e a Fundação Alfredo da Matta (FUAM).

A produção de conhecimento entre os grupos de pesquisa nas instituições do

Amazonas tem avançado no estudo dos vetores e mecanismos de transmissão das

leishmanioses, entretanto tais patologias ainda permanecem como um sério problema de

saúde pública no estado. Um dos exemplos relevantes para a compreensão da mudança

do perfil de transmissão da LTA acontece na década de 1970, no período militar, onde

foram implementadas ações desenvolvimentistas como a construção de rodovias,

hidrelétricas e da Zona Franca de Manaus, que causaram devastação ambiental, migração

populacional e influenciaram o aumento da transmissão da LTA nas áreas periurbanas.

Assim, percebe-se que há vários aspectos histórico-sociais envolvidos na mudança de

transmissibilidade dessa patologia.

Portanto, este estudo poderá trazer contribuições importantes para uma vertente

ainda pouco explorada pela historiografia na Amazônia: a relação entre doença, políticas

públicas, instituições de pesquisa e produção do conhecimento em saúde. Além do mais

a investigação em curso poderá contribuir para as ciências biomédicas e a saúde, pois

ajudará a compreender como a leishmaniose tegumentar americana veio a se tornar um

dos maiores problemas de saúde pública na região.

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