A Leitura Como Prática Dialógica

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    A LEITURA COMO PRTICA DIALGICA - REFLEXES SOBRE O FAZER DOCENTE

    Araceli Sobreira Benevides

    Resumo: O presente artigo analisa memoriais de leitura escritos por estudantes da disciplina "Leitura", do curso de Letras, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. As reflexes baseiam-se teoricamente na importncia de uma leitura reflexiva e nos estudos das histrias de vida, como dados para uma prtica pedaggica reflexiva. Para tanto, analisa-se a trajetria desses estudantes a partir do relato de suas experincias de leitura durante a formao docente. Palavras-chave: Anlise do Discurso, Formao de Professores, Prtica da Leitura, Linguagem.

    Abstract: The purpose of this paper is to discuss what students say about their reading practice by the discipline Leitura, of the course of Letters, of Rio Grande do Norte State University. These reflections are theoretically based on the importance of reflexive reading and on study of histories of life, providing material for reflection of pedagogical practice. The data analysis the reading trajectories of students from Letrass course who related their experiences during teachers formation. Key Words: Discourse analysis, teachers formation, Reading Practice, Language.

    Neste artigo, trataremos do que dito sobre a prtica da leitura na formao do curso de Letras, tema que tem estado em nossas reflexes e estudos h certo tempo (BENEVIDES, 2002; 2005). Embora tenhamos contribudo com nossas pesquisas na rea da Formao Docente, uma questo que tem instigado nossos estudos a que se refere, de fato, prtica pedaggica da leitura, principalmente no mbito da formao superior. Perguntamo-nos em nosso cotidiano como professora-formadora o que de fato podemos fazer para elaborarmos uma proposta de ensino que leve nossos estudantes a mergulhar no mundo da leitura? Na tentativa de encontrarmos uma resposta que indique um caminho metodolgico para as dificuldades na realizao de uma prtica efetiva, que estabelea um dilogo entre o que se pretende na formao e o que ela de fato faz, vamos procurar na palavra dos/as graduandos/as de Letras um pouco da historicidade e da complexidade que esto presentes na atividade de leitura.

    No discurso pedaggico existe uma idia que j faz parte do senso comum, relacionada falta/ausncia de uma prtica rotineira da atividade da leitura, principalmente na vida dos/as estudantes recm-sados do Ensino Mdio, principalmente se eles forem oriundos de escola pblica. Para complicar essa idia, h tambm um agravante: algumas prticas pedaggicas estabelecem como rotina de leitura a fragmentao de textos

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    (KRAMER, 2001), retirando pedaos de captulos, partes de obras, que so fotocopiadas e distribudas entre alunos/as de todos os perodos das centenas de faculdades que existem no pas.

    Nessa linha de pensamento, Matos (1997, p. 57) comenta que a prtica da leitura dinmica, que direcionada para os textos da mdia, no convm para a leitura de escritos literrios e cientficos; para essa autora, [...] a educao foi se impregnando com a demagogia da facilidade que banaliza a formao dita superior.

    Referindo-se a Adorno, a autora destaca o modo como a leitura realiza-se no mundo de hoje est de acordo com o modo como a cultura industrial percebe o leitor. Nesse mundo, as informaes so mnimas, evita-se o complexo, o que se tem so interpretaes literais, j no mais se [...] aprende com o espao e com o tempo, no reconhece diferenciaes (MATOS, 1997, p.60), o que h uniformidade, ou no dizer bakhtiniano (BAKHTIN, 2003), a viso de uma s conscincia, a monologia.

    Diante dessa imagem, representada pelo discurso de nossos alunos, como veremos mais adiante, iniciamos uma tarefa que nos impe assumir um posicionamento que compreende a leitura como uma atividade do mundo da vida, conforme a prope Bakhtin (1993).

    De acordo com a compreenso bakhtiniana, existem dois mundos que se confrontam: o mundo da vida e o mundo da teoria. O mundo da vida [...] o mundo da historicidade viva, o todo real da existncia de seres histricos nicos que realizam atos nicos e irrepetveis, j o mundo da teoria o [...] mundo do juzo terico [...] o mundo em que os atos concretos so objetificados na elaborao terica de carter filosfico, cientfico, tico e esttico (FARACO, 2003, p.19). Segundo Bakhtin, esses dois mundos [...] no tm absolutamente comunicao um com o outro (BAKHTIN, 1993, p.2). Um mundo o mundo da teoria ou o mundo da cultura [...] olha para a unidade objetiva de um domnio da cultura e o outro o mundo da vida olha [...] para a unicidade irrepetvel da vida realmente vivida e experimentada (Ibidem).

    Estabelecer um olhar crtico sobre a formao de professores, atravs da formao de leitores, corresponde analisar a prtica social da leitura como um complexo processo de compreenso do nosso mundo cultural e social. Esse novo fazer cientfico utiliza-se de uma

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    compreenso diferente dos papis que o sujeito, o tempo e a historicidade possuem na contemporaneidade.

    Alm disso, entendemos que [...] os lugares sociais de onde se produzem discursos e sentidos no so simtricos (AMORIM, 2003, p.13), ou seja, nessa perspectiva, utilizamos os conceitos bakhtinianos que concebem que o lugar da enunciao lugar de tenso, de conflitos porque os sujeitos envolvidos nessa enunciao no se enxergam do mesmo modo.

    Assim, reconhecemos a singularidade dos sujeitos que convivem no ambiente escolar. Essa individualidade marcada pelos estudos atuais que analisam a complexidade do sujeito aprendente, capaz de autonomia e de transformaes (CONTRERAS, 2002; JOSSO, 1988; 2004).

    Assumimos a educao como prtica social, percebendo os sujeitos envolvidos nessa concepo educador e educando, em sua totalidade e em sua singularidade, a partir de suas subjetividades e heterogeneidades.

    Com o objetivo de fazer os/as estudantes perceber as questes sociais que esto presentes na formao de leitores, principalmente quando tratamos da escola pblica brasileira e de torn-los falantes, leitores e escritores vivos de uma linguagem, conforme posto em Kramer e Jobim (1996, p. 14), lanamos-nos na tarefa de ouvir nosso Outro no universo da formao: os/as graduandos/as, atravs de seus relatos de leituras. A tarefa de relatar as memrias de leituras foi parte de uma srie de atividades que trouxe as questes tericas sobre a Leitura desde as pesquisas da dcada de 70/80 ao atual estudo sobre as prticas de letramento e de tericos como Bloome (1994) e Baynham (1995) que tm defendido o conceito de leitura como uma prtica social situada. Essa concepo pensa a atividade da leitura em termos de processo, observando os lugares e os contextos em que ela ocorre, o que conta como leitura, quem l e o que a leitura faz com quem l (os efeitos da leitura).

    Entender a leitura por esse ponto de vista significa perceber que os diferentes participantes dos eventos de leitura agem a partir de diferentes lugares de interpretao, produzindo, assim diferentes leituras. Significa trazer tona perguntas sobre o porqu das leituras ou a que propsitos os textos servem, de que lugar (posio) eles falam? Em nossa compreenso, a leitura enquanto prtica social situada precisa ser compreendida pelos

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    futuros professores na sua prpria vivncia, na sua prpria vida enquanto unidade singular para que possa ser trazida para a atividade pedaggica.

    Para ns, a conscincia dessa atividade pode emergir no discurso, atravs do ato de registrar as memrias sobre as leituras. Nesse sentido, resgatamos, neste artigo, os relatos ou memrias de leitura que alunos/as do curso de Letras da UERN escreveram no perodo de 2002.2, poca em que lecionamos a disciplina Leitura e realizamos, em sala de aula, uma pesquisa-ao com o intuito de se analisar a formao leitora em um curso de Licenciatura. Ao tratarmos da formao de leitores/as a partir desse enfoque, o ato de fazer o/a estudante de Letras perceber-se dentro das prticas leitoras existentes seria um modo de faz-lo/a compreender as prticas de seus futuros/as alunos/as.

    Para conseguirmos o envolvimento necessrio para essa reflexo, partiremos dos estudos sobre a formao de professores que tratam sobre o mtodo das histrias de vida (NVOA,1995; JOSSO, 1988; DOMINIC, 1988) para buscar, alm dos dados que constituem este artigo, um movimento de auto-reflexo a respeito da atividade leitora atravs da voz do sujeito aprendiz e das percepes que esse sujeito construiu a respeito de sua formao, percebida atravs do que se leu. Isso porque, ao produzir sua narrativa, atravs da rememorao e de atribuio de sentido ao que significativo nesse percurso, o sujeito que a produz, constri um duplo movimento de identificao/distanciamento que permite o surgimento da singularidade desse sujeito (JOSSO, 1988). Nesse sentido, a natureza desses dados comportaria valores, crenas, uma viso particular da realidade, do mundo da vida e de si-mesmo. De acordo com essa perspectiva, o autor das narrativas (auto)biogrficas, tambm chamadas biografias educativas, reinventa-se e reinventa os objetos de discurso que circulam no mundo da formao (JOSSO, 1988). A construo das narrativas exige um esforo reflexivo que implica momentos de ruptura, superao, deciso, adeso, resistncia que so vividas na formao. O refletir sobre si-mesmo e sobre a formao apela para [...]a reflexo e resulta de uma tomada de conscincia, d origem a um material de investigao que j o resultado de uma anlise (DOMINIC, 1988, p.55).

    Os dados constituidos serviram de base para a anlise a seguir. Registramos somente trechos de dois relatos, trazendo o discurso de Esther e Josu dois estudantes da turma que era composta por 10 alunos. Os nomes so fictcios para se preservar a

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    identidade deles, a escrita original dos relatos tambm foi preservada, no ocorrendo nenhuma avaliao na forma como foi produzida originalmente.

    O que dito sobre a prtica da leitura

    A estudante Esther, relembrando a evoluo da prtica da leitura em sua vida pessoal traz a referncia de um sujeito que se integra na experincia de ser leitora. No relato abaixo, destacamos as palavras que resgatam o plano da historicidade, do ser no evento nico, de modo a se inserir em uma atividade viva, concreta.

    Fui morar na cidade no incio de 1986 e, ao chegar na sala de alfabetizao, impressionei todo mundo porque j sabia ler e escrever. Fui motivo de discusso na escola, mas acharam por bem transferir-me da alfabetizao para a primeira srie. Houve uma poca em que no turno do dia em que eu no estudava, no havia ningum que pudesse estar em casa me fazendo companhia. Ento, uma de minhas irms me levava para o colgio onde ela lecionava matemtica. Ela me deixava na sala dos professores, mas antes, espalhava muitos infantis da coleo Sala de Leitura em cima da grande mesa dos professores. Carinhosamente chamava minha ateno para as capas e suas gravuras: Olha o patinho! Essa a histria da vaquinha... O objetivo era me manter ocupada pra que ela pudesse dar aula tranqila. Mas aqueles procedimentos estavam germinando em mim uma grande paixo pelos livros. Assim aconteceu durante muitos dias de modo que tive contato com aproximadamente cem livros infantis. Eu achava tudo uma festa e ficava ansiosa por aqueles instantes. Em qualquer escola aonde algum me levava eu perguntava pelos livros e acabava ficando horas com eles. Aos 08, 09 anos de idade, outra irm comeou a me entregar livros infanto-juvenis para que eu os lesse e depois recontasse por escrito e em poucas palavras o que havia lido. Nessa poca descobri a biblioteca do municpio e me embrenhei durante tardes e mais tardes naquelas leituras ora informativas, ora de grande entretenimento. Aos 10 ou 11 anos comecei a ensaiar escrever histrias. Criar o mundo que eu quisesse me parecia grandemente sedutor. Tornei-me caadora de livros. Em qualquer cidade onde me encontrasse, procurava uma biblioteca e aproveitava o mximo. A leitura tornou-se um hbito to forte que me acostumei a andar com um livro ou revista ou jornal para que em qualquer espacinho de tempo em que eu ficasse sozinha, tivesse a companhia das letras. Esse comportamento tornou-se singular a ponto de as pessoas perceberem. Quando viam ao longe algum, mesmo que a distncia

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    dificultasse a distino dos traos fsicos, todos sabiam: se tinha um livro mo, era eu. (Fragmento do relato de Esther)

    Com base em atividades que envolviam o conceito de leitura e letramento e a teoria sobre as prticas de leitura, uma noo bsica foi bem discutida em sala de aula: a leitura uma atividade social, est inserida na vida das pessoas de diversos modos e h sociedades que a valorizam mais e outras no, por motivos que abrangem aspectos sociais, histricos, econmicos, etc. A aluna, que se autodenomina caadora de livros, que se embrenha no mundo da leitura seria o tipo ideal de sujeito aprendiz para a realidade escolar; no entanto, infelizmente, a realidade que vislumbramos no cotidiano docente bem diversa. Podemos ver isso muito bem no discurso relatado de outro estudante:

    Nasci numa famlia pobre. Meu pai, pedreiro e analfabeto, no valorizava o estudo. Minha me, semi-analfabeta, sabe ler e escrever, mas ainda no processo de decodificao, sem muita crtica. Meus irmos, os mais velhos estudaram pouco, alegam no terem tido oportunidade porque tinham que trabalhar para ajudar em casa e os mais novos, da segunda gerao, achavam que o estudo significava o 2 Grau. Em casa, livros no existiam. Pouco em lembro de ter folheado algum ou mesmo ter presenciado algum de casa lendo mesmo uma folha de jornal. Livros... Ah, os didticos, quando tinha... Tal era o ambiente em que fui criado. Poderia ter sido pior se uma irm minha no tivesse se interessado pelos estudos e ter trazido vrias literaturas de cunho religioso para casa. (Fragmento do Relato de Josu)

    Essas realidades to diferentes, to contraditrias esto presentes na formao de professores/as e tambm no cotidiano da escola. Ao nos aproximarmos de imagens to opostas no podemos mais entender o contexto da aprendizagem do mesmo modo. O mundo da vida singular e nica (BAKHTIN, 1993), com sua trajetria pessoal e marcadamente diferente comunica aos professores-formadores e aos prprios estudantes de Letras as faces to dspares que a prtica da leitura assume no mundo da vida.

    Para Esther, h muito que dizer, rememorando sobre sua trajetria de leitora. Os detalhes, a escolha vocabular que constri a imagem de uma criana que l em seu dia-a-dia e que, mais ainda, estabelece um vnculo afetivo e social com essa prtica. O vnculo afetivo fica estabelecido pelo que Larrosa (2003) chama de a amizade de ler, que implicado na amizade de aprender com, no se en-con-trar do aprender (LARROSA, 2003, p.143). O vnculo social construdo sobre a imagem que a sociedade elegeu para

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    quem pode ser considerada caadora de livros: a de uma pessoa que, no ato singular da vida, possui um livro mo.

    Para Josu, ao se referir mesma poca, os livros j no so assim to fartos, a imagem construda tambm revela o vnculo da relao afetiva e da relao social estabelecidas com a atividade da leitura. Entretanto, as relaes ficam no campo da diferena, da ausncia, do no-simtrico.

    A seguir, selecionamos outros trechos das memrias de leituras dos dois estudantes que enunciam questes para a formao de professores e a prtica da leitura nesse mundo da formao:

    Ingressei na Faculdade de Letras em maro de 2000. Na primeira semana fiz o cadastro para obter a carteira da biblioteca e corri ansiosa ao acervo. Passei horas e horas observando as sesses e os ttulos, acabei levando um livro de Estilstica. Li sobre Educao Fsica, Gramtica da Lngua Portuguesa, Psicologia, Filosofia, Morfossntaxe, Literatura Portuguesa e Brasileira, alguns livros de fico. Aproveitei leituras em trabalhos pedidos por diversas disciplinas, pesquisei para lecionar e muito me diverti. Em 2001, li Introduo Filosofia de George Politzer. Este foi O LIVRO. Conseguiu ser completo porque me ofereceu conhecimento e lazer, embora esses elementos no estejam dissociados de todo em outros livros. [...]Minha grande dificuldade foi elaborar trabalhos de cunho cientfico por inexperincia e solido. Digo solido porque nesse campo no h o devido acompanhamento no curso em questo. [...]Percebi tambm que me tornei muito mais amadurecida no estudo da Literatura Brasileira. [...]Na rea de Lingstica li pouqussimo e por conta prpria. To pouco e to solitariamente que quase nada foi retido na memria. At mesmo as teorias de Ferdinand de Saussure no me so claras de todo. Achei muito superficial o estudo de Tpicos de Gramtica. No lembro de ter feito nenhuma leitura direcionada durante a prtica de tal disciplina. Tambm o estudo da Lngua Latina me pareceu insuficiente. Quase no me detive nessa parte, nada me arrebatou. Ainda o estudo de Morfossntaxe me pareceu deveras enfadonho. Fiz rpidas leituras de Ingedore, Carone e Perini. Apesar dos detalhes agora comentados, posso afirmar que me sinto outra depois de tanto caminho andado enquanto graduanda de Letras. Tem sido vlido cada instante de dedicao. (Fragmento do relato de Esther)

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    Finalmente fui convencido em 2000 a enfrentar uma concorrncia de 8,1/1. E deu certo, graas a Deus e s leituras que fiz. At ento meu contato com a leitura limitava-se a livros didticos e evanglicos e comeou mais uma fase muito importante para mim comeou o contato com livros tcnicos, estudos metalingsticos, conhecimentos das diversas teorias sobre textos. Enriquecedor, porque comecei a perceber minhas falhas tanto na produo (falo de uma certa forma preconceituosamente) quanto na compreenso de textos. O contato com a lingstica, com Bakhtin e a sociolingstica, com a filosofia da linguagem e outras disciplinas afins vieram preencher lacunas no meu entendimento de leitura e levantar n outros questionamentos. [...]Agora, com a disciplina Prticas de Leitura, esses questionamentos comeam a desaparecer. O contato com este processo de entendimento da leitura, como vem acontecendo, a viso dos autores, suas teorias e experincias parecem atiar meu passado e recobrar de mim as deficincias que tive no 1 e 2 Graus... Por exemplo: a falta de conhecimento prvio era tida como deficincia dos alunos e lembro que muitas vezes eu pensara que tinha nascido burro porque no sabia do que estava sendo exposto no texto (de livros produzidos no sul do pas...). O texto como campo de interao ou discusso, tantas vezes aprendi a no questionar o texto, pois havia sido escrito por uma autoridade literria...A diversidade de idias sobre o mesmo texto, os pontos de vista diferentes... Muitas, muitas arestas mesmo foram preenchidas atravs desta disciplina. Sei que h muito campo para percorrer, muitos outros textos para discutir, mas valeu ter chegado at aqui. Sei que meus futuros orientandos tero uma oportunidade diferente da que eu tive. Contaro com um novo conhecimento e tero uma viso diferente do texto.(Fragmento do relato de Josu)

    As situaes destacadas, acima, fizeram emergir em ns professora-formadora uma compreenso ampliada a respeito desse Outro, sujeito de nossa pesquisa, que tambm Outro como o prximo, que est em nossa relao como profissionais da educao os/as estudantes e a sua percepo sobre a formao. Segundo Bakhtin (2001, p.321), [...] ver pela primeira vez, tomar conscincia de algo pela primeira vez j significa entrar em relao com esse algo: ele j no existe mais em si nem para si mas para o outro (j so duas conscincias correlacionadas). Nessa perspectiva, a compreenso das palavras de Esther e Josu representa uma imagem de professor/a formador/a que enunciada para ns.

    Nesse processo de compreenso da palavra alheia, acreditamos tambm estarmos dialogando com os/a alunos/as e suas representaes. Sendo esse dilogo um movimento de vrias vozes representando o que h de bom e de negativo na formao, vamos enxergando como as dificuldades enfrentadas pelos estudantes podem tambm se tornar empecilhos para uma formao de qualidade.

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    Podemos interpretar que h um caminho trilhado por experincias ricas e interessantes para aqueles que possuem o gosto de ler j incorporado como uma prtica do dia-a-dia. Esse caminho apenas precisa ser revelado, ou no dizer bakhtiniano, preciso tirar o vu que esconde as marcas daquilo que construdo como uma simples experincia de ler romances e sair da ingenuidade que traduz essa prtica como deleite ou uma vivncia prazerosa somente. Os/as professores/as, aqueles que conduzem ao caminho do ler (LARROSA, 2003), podem fazer muito mais para que a aventura de trilhar por esse caminho, com todas as pedras e desvios, trilhas sinuosas e escorregadias que j fazem parte do percurso, seja uma experincia que no carea de lembranas, faanhas, medos e conflitos.

    Nesse debate, colocamo-nos em uma posio que reconhece e avalia o conflito como parte do processo de aprendizagem. Nenhum caminho de aprendizagem feito linearmente, mas trazemos, atravs dos enunciados dos dois estudantes algumas lembranas de cenas de um cotidiano que produzem mais incompreenses sobre o fazer educativo do que referncias significativas sobre o gesto de ensinar.

    Os percalos esto presentes em todos os caminhos da formao. Para aqueles que construram prticas de leitura de modo mais sistemtico, o contato com a complexidade dos conceitos sobre lngua, linguagem e literatura foi menos dolorido. Mas para aqueles que possuam prticas no rotineiras, esse contato foi mais problemtico.

    Entendemos que o lugar do conflito e das diferenas de onde os estudantes se posicionam evidencia insatisfaes e, s vezes, compreenses reduzidas sobre o fazer docente, pelo fato de terem resultado de experincias contrastantes e/ou desgastantes. No entanto, as vozes que se articulam desse lugar apresentam e representam vozes que assinalam uma compreenso de referncias exteriores que possibilitam a evocao de experincias formativas daquelas que apenas foram enclausurantes e redutoras (JOSSO, 2004). Ao avaliar, ao posicionar-se axiologicamente diante dessas experincias, no dizer bakhtiniano, a reflexo sobre as experincias, ultrapassa o nvel do narrar-se apenas e abre direcionamentos outros para um pensamento transformador. Para concluir, apresentamos as idias de Josso (2004) a respeito do que emerge das experincias fundadoras que esto presentes nos relatos biogrficos e que, na concepo dessa autora, no est ali por acaso.

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    A carga emocional, qualquer que seja a sua natureza (prazer, tristeza, vergonha, orgulho, sofrimento, clera, alegria, medo, deslumbramento, surpresa etc.), surge como a primeira componente de qualquer incio de experincia. Todos os episdios relatados nas narrativas entram nessa classificao porque contm uma carga emocional muito forte que deixou um trao (ou mesmo um traumatismo), com que a pessoa foi estimulada a a fazer qualquer coisa (JOSSO, 2004, p.183).

    Assim sendo, essas recordaes evocam a capacidade de explicitar e de se distanciar daquilo que foi experienciado para, a partir desse distanciamento, provocar a compreenso/leitura dos posicionamentos que desembocam nas atitudes assumidas pelos/as educadores e pela formao como um todo. Por isso, defendemos que essa experincia, transcorra pela compreenso do que de fato acontece no mundo da vida, porque dentro desse mundo que podemos encontrar uma abordagem do Ser nico e unitrio em sua realidade concreta (BAKHTIN, 1993, p. 28) e sair das questes que apenas teoreticizam a prtica da leitura no mundo atual, para chegarmos uma abordagem transformadora de fato.

    Referncias bibliogrficas

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