A Licenciatura e o Pibid Na Perspectiva Da Falta

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A LICENCIATURA E O PIBID NA PERSPECTIVA DA FALTA: IMPLICAÇÕES PARA O CAMPO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES Camila Itikawa Gimenes Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação pela FE-USP, pesquisadora do GEPEFE. Selma Garrido Pimenta Professora Titular Sênior da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, coordenadora do GEPEFE. Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Resumo Este trabalho tem como objetivo discutir a formação docente entendida a partir da categoria “perspectiva da falta”, compreendida com base na leitura que Charlot (2000) apresenta ao estudar o fracasso escolar, e suas implicações para o campo de formação de professores. Discutimos como esse modo de categorização do processo formativo constitui um discurso sobre a formação docente em que o professor que é constituído principalmente por lacunas e espaços vazios, atrelando diretamente a formação docente ao desempenho do estudante, sem levar em consideração as demais variáveis envolvidas nesse processo. Nesse contexto, o PIBID vem impactando os discursos do campo de formação docente. Sobre esse programa, destaca-se o tom de otimismo em que é discutido em publicações da área, que se relaciona com o seu deslocamento do contexto das Licenciaturas; o PIBID se constitui como aquilo que a Licenciatura não é, sem situá-lo a pertencimentos a campos de poder, estrutura, funcionamento e condições objetivas diferentes da Licenciatura. Essa leitura negativa da realidade impõe desafios para o campo de formação docente, em especial, na questão da delimitação do objeto de investigação, pois ela potencialmente veda o objeto de estudo em si mesmo, ao tomar um não ser questão fundadora da pesquisa. Em contrapartida, defendemos um processo de formação de professores em nível superior Licenciaturas - que aposta na tríade universidade escolas comunidade como lócus formativo, de modo que o currículo possa captar na prática social suas contradições e aí identificar a reprodução e a produção das relações sociais. E na importância de que a esse projeto de qualidade sejam destinados financiamentos específicos, como os que têm sido destinados ao Programa PIBID. Palavras chave: perspectiva da falta, licenciatura, PIBID. A proposta desse artigo é colocar em discussão a formação docente entendida a partir da categoria de análise que denominamos de “perspectiva da falta” e a problemática relacionada a essa forma de compreensão do processo formativo. O que significa discutir a formação de professores a partir de categorias que lhe são ausentes? Considerando que a formação inicial de professores se dá em cursos de licencituras ofertados por instituições de ensino superior, e que nos últimos anos o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), componente não curricular de formação docente, vem ocupando progressivmente maior espaço nos discursos no

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discute a relação entre PIBID e licenciatura

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A LICENCIATURA E O PIBID NA PERSPECTIVA DA FALTA:

IMPLICAÇÕES PARA O CAMPO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Camila Itikawa Gimenes

Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação pela FE-USP, pesquisadora do GEPEFE.

Selma Garrido Pimenta

Professora Titular Sênior da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, coordenadora do

GEPEFE.

Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

Resumo

Este trabalho tem como objetivo discutir a formação docente entendida a partir da

categoria “perspectiva da falta”, compreendida com base na leitura que Charlot (2000)

apresenta ao estudar o fracasso escolar, e suas implicações para o campo de formação

de professores. Discutimos como esse modo de categorização do processo formativo

constitui um discurso sobre a formação docente em que o professor que é constituído

principalmente por lacunas e espaços vazios, atrelando diretamente a formação docente

ao desempenho do estudante, sem levar em consideração as demais variáveis envolvidas

nesse processo. Nesse contexto, o PIBID vem impactando os discursos do campo de

formação docente. Sobre esse programa, destaca-se o tom de otimismo em que é

discutido em publicações da área, que se relaciona com o seu deslocamento do contexto

das Licenciaturas; o PIBID se constitui como aquilo que a Licenciatura não é, sem

situá-lo a pertencimentos a campos de poder, estrutura, funcionamento e condições

objetivas diferentes da Licenciatura. Essa leitura negativa da realidade impõe desafios

para o campo de formação docente, em especial, na questão da delimitação do objeto de

investigação, pois ela potencialmente veda o objeto de estudo em si mesmo, ao tomar

um não ser questão fundadora da pesquisa. Em contrapartida, defendemos um processo

de formação de professores em nível superior – Licenciaturas - que aposta na tríade

universidade – escolas – comunidade como lócus formativo, de modo que o currículo

possa captar na prática social suas contradições e aí identificar a reprodução e a

produção das relações sociais. E na importância de que a esse projeto de qualidade

sejam destinados financiamentos específicos, como os que têm sido destinados ao

Programa PIBID.

Palavras chave: perspectiva da falta, licenciatura, PIBID.

A proposta desse artigo é colocar em discussão a formação docente entendida a

partir da categoria de análise que denominamos de “perspectiva da falta” e a

problemática relacionada a essa forma de compreensão do processo formativo. O que

significa discutir a formação de professores a partir de categorias que lhe são ausentes?

Considerando que a formação inicial de professores se dá em cursos de licencituras

ofertados por instituições de ensino superior, e que nos últimos anos o Programa

Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), componente não curricular de

formação docente, vem ocupando progressivmente maior espaço nos discursos no

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campo de formação docente indaga-se: quais relações têm sido, ou não, estabelecidas

entre o PIBID e o processo formativo desenvolvido nas licenciaturas?

Na busca de responder essas questões, discutimos o modo como compreendemos

as licenciaturas no enfrentamento das atuais demandas decorrentes do processo de

diversificação do público por ela atendido e da diversificação do público com o qual

esses futuros professores trabalharão nas escolas públicas, numa perspectiva de

processos educativos formais como humanização do homem (FREIRE, 2011).

1. Crise da educação e licenciaturas em crise

Há um discurso em nível global difundido por agências multilaterais que

propaga a ideia de que os professores estão fracassando em ensinar seus alunos e, assim,

estes colocam limites na capacidade de seus alunos em contribuir futuramente para o

desenvolvimento econômico; essas agências globais pretendem lidar com o que

denominam de incompetência crônica dos professores (ROBERTSON, 2012).

King (2007) destaca algumas conferências importantes na construção da

dimensão educativa da agenda de desenvolvimento global durante o período de 1990 a

2006. Os marcos desse processo foram a Conferência Mundial sobre Educação para

Todos, realizada Jontien, 1990; o Relatório do Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento da

Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico Formando o Século

XXI, em 1996; o Fórum Mundial realizado em Dakar em Abril de 2000; e a Cúpula do

Milênio em setembro de 2000. Essas reuniões estabeleceram uma série de objetivos e

metas, inclusive para a educação, que foram determinados em seu alcance e com prazos

definidos. Os relatórios resultantes dessas reuniões tentam construir um consenso sobre

objetivos gerais para o desenvolvimento global, a fim de alcançar uma integração

econômica global.

Tais relatórios influenciaram e seguem influenciando políticas públicas e

propostas de reformas educacionais, disseminando referências a serem seguidas em

outros países ou de práticas de avaliação comparativa e generalização da agenda global.

Assim, as chamadas "melhores práticas" informam e moldam decisões de maneira geral

sobre os sistemas educacionais ao redor do mundo (COXON & MUNCE , 2008).

Correlacionado a esse discurso globalizante em educação está o discurso que

defende que “Os professores são os principais impulsionadores da qualidade da

educação em qualquer sistema de ensino” (Banco Mundial, 2014) e também que “a

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qualidade dos sistemas de ensino não pode exceder a qualidade de seus professores”

(BARBER E MOURSHER, 2007 apud ROBERTSON, 2012, p. 585).

A responsabilização dos professores é uma ideia central nos recentes relatórios

para a educação das agências globais, associada à idéia de uma crise na profissão

docente. Nesse contexto, a educação é entendida como o processo de obtenção de alta

pontuação pelo aluno na competição global, onde o PISA (Programme for International

Student Assessment) tem um papel central. Qualidade tornou-se a palavra central

desses discursos, bem como a necessidade de se elevar os padrões de educação, uma

prioridade para todos os governos. E neles a atuação docente é vista como a solução

para a competitividade no cenário global.

Entende-se que os professores não receberam preparação ou o tipo certo de

preparação na fase pré-serviço ou na formação contínua. Em seus Relatórios essas

organizações criam um discurso "global" sobre o ensino e a aprendizagem dos

professores, gerando um pressuposto inquestionável de que a melhoria da educação

requer a melhoria dos professores (PANG & ZEICHNER, 2012).

A importância dos professores na agenda global é correlacionada à dificuldade

presente na maioria dos países de recrutar, formar e reter professores. Com pesquisa

realizada no âmbito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Aranha e Souza

(2013), constatam a diminuição da procura pelos cursos de licenciatura no vestibular

dessa universidade, assim como a alta taxa de desistência nesses cursos e, ainda que,

dos que se formam, muitos optam por ocupações mais vantajosas economicamente; fato

esse que pode ser generalizado para todo o país.

Gatti (2013, p. 64) ressalta a ausência de solução à questão dos currículos e das

formas institucionais quanto à formação inicial de professores como o cerne dessa

discussão.

[...] uma verdadeira revolução nas estruturas formativas e nos currículos se

faz necessária. As emendas feitas nesses cursos por normas parciais já são

muitas. A fragmentação formativa é clara, as generalidades observadas nos

conteúdos curriculares também, o encurtamento temporal dos cursos é

constatável nas suas práticas. É preciso integrar essa formação em propostas

curriculares articuladas e voltadas a seu objetivo precípuo, com uma

dinâmica nas instituições de ensino superior mais proativa e unificada.

Nesse contexto complexo de licenciaturas em crise, qual o papel da pesquisa

sobre formação de professores? Quais as contribuições do campo de formação de

professores para o enfrentameto dos desafios reais da educação brasileira? Quais

caminhos possíveis elas apontam?

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2. A Perspectiva da falta e a formação docente

Na perspectiva da falta, a formação é explicada em termos de carência, do que

não é, do que não se tem. Define-se a formação através daquilo que não está presente no

processo formativo, explica-se esse processo através do que não existe, de um ideal

formativo.

Charlot (2000) denomina essa forma de analisar um evento de “leitura negativa

da realidade social”. Para o autor, “quando se fala em termos de carência,

epistemologicamente não se produz nenhum sentido”, pois a falta (um não ser) não

pode ser a causa de alguma coisa (um ser) (CHARLOT, 2000, p. 21). Charlot entende a

leitura negativa como modo de reificar as relações para torná-la coisas, “aniquila essas

coisas transformando-as em coisas ausentes, ‘explica’ o mundo por deslocamento das

faltas, postula uma causalidade da falta” (p. 30).

O autor francês discute o fracasso escolar frente à leitura negativa da realidade

como um objeto de pesquisa inencontrável. Aqui, fazemos um paralelo entre essa forma

de leitura da realidade social e a formação de professores.

Se na década de 60 e 70, como aborda Charlot (2000), torna-se comum a

abordagem negativa do fracasso escolar, hoje presenciamos a construção do fracasso do

professor e, consequentemente, a construção do discurso do fracasso da formação

docente. Assim como o fracasso escolar, o fracasso da formação de professores remete a

práticas ou situações que supostamente explicitam o “vivido” e a “experiência”. Essa

forma de responsabilizar os professores e sua formação é uma certa maneira de

verbalizar a experiência, a vivência e a prática; “e por essa razão, uma certa maneira de

recortar, interpretar e categorizar o mundo social. Quanto mais ampla a categoria assim

construída, mais polissêmica e ambígua ela é” (CHARLOT, 2000, p. 13).

O fracasso da formação docente vai sendo constituído como categoria imediata

de percepção da realidade social, como chave interpretativa para os baixos resultados

dos estudantes brasileiros nos testes de larga escala. Esse objeto de discurso adquire

essa proporção no meio social e midiático porque é portador de múltiplos desafios

profissionais, identitários, econômicos, sociopolíticos; encontra-se na encruzilhada de

múltiplas relações sociais.

No meio midiático, cresce a hostilização aos professores. Por exemplo, Gustavo

Ioschpe escreve em matéria para Revista Veja de 14 de maio de 2014, p. 112 “Caros

professores: vocês se meteram em uma enrascada. Há décadas, as lideranças de vocês

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vêm construindo um discurso de vitimização. A imagem que vocês vendem não é a de

profissionais competentes, mas a de coitadinhos, estropiados, maltratados”. Contribui

ainda para a construção da imagem do professor como incompetentes os baixos

resultados do Brasil no PISA, que são comumente traduzidos pela mídia em notícias

como “Pisa: desempenho do Brasil piora em leitura e 'empaca' em ciências”, “Brasil

evolui, mas segue nas últimas posições em ranking de educação”1, veiculados por

grandes sites de notícias nacionais.

Cabe ao pesquisador duvidar dessas categorias evidentes de percepção de mundo

que tendem a impor-se a ele.

Para que não lhe imponham objetos “sociomediáticos” como objetos de

pesquisa, ele deve circunscrever o máximo possível os fenômenos, mas

também manter-se a distância e sempre voltar aos fundamentos: descrever e

escutar, mas também conceitualizar e teorizar. A construção do objeto de

pesquisa procede desse duplo movimento de imersão no objeto e

distnciamento teórico. Sem o primeiro, a teoria não sabe do que está falando.

Sem o segundo, o pesquisador ignora qual a linguagem que está utilizando

(CHARLOT, 2000, p. 16).

A construção do fracasso da formação de professore foi intensificada com as

reformas curriculares posteriores a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional de 1996, que vinculam toda e qualquer mudança na qualidade da

educação a uma mudança da formação docente, responsabilizando, dessa maneira, o

professor individualmente pela qualidade da educação. Nessa concepção, a relação entre

o desempenho do professor e o de seus alunos é vista de forma determinista, levando a

um quadro de desvalorização do magistério e à ilusão de uma justificativa para explicar

o fracasso de muitas escolas brasileiras (DIAS & LOPES, 2003).

Esses discursos acentuam o papel dos professores em relação à prática

pedagógica, atribuindo uma responsabilidade aumentada tanto em relação a essa prática

como em relação à qualidade de ensino. Dessa forma, tem-se um sistema escolar

centrado na figura do professor como condutor visível dos processos institucionalizados

de educação (SILVA, 2009). Como muitas vezes o professor não corresponde com toda

a expectativa que é gerada sobre a sua figura, tem-se um docente marcado pela falta,

pois não satisfaz todas as responsabilidades que lhe são atribuídas.

O discurso de responsabilização do professor pela qualidade da educação

desconsidera que esse sujeito encontra-se inserido em um contexto social mais amplo

no qual se insere a ação educativa, individualizando a sua prática da prática social

concreta. Esquece-se que os professores “são também produto de uma formação

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desqualificada historicamente, via de regra, através de um ensino superior,

quantitativamente amplificado nos anos 70, em universidades-empresas” (PIMENTA,

2010a, p. 41). Além de ignorar suas reais condições de trabalho, com sempre baixos

salários.

3. Leitura negativa da licenciatura

A perspectiva da falta foi uma das categorias de análise em trabalho de Gimenes

(2011) para a compreensão do modo em que muitas pesquisas se reportam ou tomam

como objeto a formação de professores de ciências naturais. A autora realizou uma

pesquisa bibliográfica em três importantes periódicos na área de pesquisa em ensino de

Ciências: Revista Ciência & Educação, Revista Ensaio e Revista Brasileira de Pesquisa

em Ensino em Ciências no período entre 2005 e julho de 2010. A autora da pesquisa

analisou 55 artigos ao todo.

Desses, 20 trabalhos (36%) pensam a formação docente através da perspectiva

da falta. Dos demais, 11 artigos (20%) fundamentam a formação docente na

epistemologia da prática; 11 artigos (20%) embasam a formação docente na

epistemologia da práxis e 13 artigos (24%) abordam a formação docente num aspecto

específico, sem apresentar uma epistemologia que fundamente o pensar sobre essa

formação.

Dentre as publicações analisadas, percebemos que muitos artigos investigam a

formação docente a partir de um conhecimento teórico que se espera que o futuro

professor domine, concluindo sempre que não há esse domínio, apontando para a

inadequação dos cursos de formação inicial e identificando o professor com a falta

desse conhecimento.

Por um lado esses trabalhos que pensam o professor através das suas faltas têm

um importante papel de denúncia do que está insatisfatório no modelo de formação

adotado atualmente no programa brasileiro. Por outro lado, a presença dominante da

lógica de uma formação inicial insuficiente, aponta para a apropriação do discurso

destacado por Dias e Lopes (2003), que atrelam diretamente a formação docente ao

desempenho do estudante, sem levar em consideração as demais variáveis envolvidas

nesse processo. Como aponta Charlot (2000), o discurso da falta pode justificar o

fracasso do processo educativo, porém não explica os casos de êxitos.

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Partindo da perspectiva positiva defendida por Charlot (2000), observa-se que a

formação docente compreendida a partir da perspectiva da falta silencia aquilo que, bem

ou mal, é trabalhado ao longo dos cursos de formação inicial, mostrando que um

professor é constituído principalmente por lacunas e espaços vazios, pois sua formação

é marcada pela ausência.

Esse discurso da falta é produzido e reproduzido por licenciandos. Na mesma

pesquisa de Gimenes (2011), a autora entrevistou 10 formandos de um curso de

licenciatura em Ciências Biológicas, que apresentam opiniões bastante severas quanto

ao curso. Dentre os entrevistados, nove entendem que as disciplinas denominadas “da

licenciatura”2 não dão conta da formação docente. Segundo eles, são disciplinas muito

teóricas, com muitos textos que não são compreensíveis devido ao vocabulário

específico da área; os professores não são acessíveis aos alunos, que não entendem a

metodologia dessas aulas, além das reclamações sobre a baixa assiduidade de muitos

desses professores e da falta de vontade deles para com as aulas. A seguir, alguns

fragmentos das entrevistas com formandos que ilustram algumas dessas reclamações em

relação às disciplinas pedagógicas.

Eu acho que as disciplinas da licenciatura podiam retratar mais a realidade.

Elas enfocam só como deveria ser; não mostram o que é nem como lidar com

a realidade. (Lic5)

(...) tentar fazer o aluno aprender através de artigos dificílimos que só o cara

entende e você fica ‘viajando’, ou então mandar o cara fazer seminário e eu

entendo meu seminário, mas ninguém que eu estou apresentando está

entendendo e vice-versa. (...) Deixar de lado essa coisa de passar artigo,

artigo, artigo e seminário, seminário e achar que a gente vai aprender alguma

coisa dessa maneira. (Lic8)

Algumas matérias não foram proveitosas, principalmente da licenciatura (...) .

No sentido de você ir para a aula e não ter aula, ficar lendo texto, você só tem

que ficar lendo, ou ir para a aula para discutir o texto que não faz sentido

nenhum para ninguém, talvez só para o professor. Esse tipo de matéria para

mim é perda de tempo. (Lic10)

Através dos discursos desses licenciandos, tem-se um curso que não forma, pois

não produz sentido formativo para esses sujeitos.

Os elementos aqui apresentados da política, dos meios midiáticos, das pesquisas

e dos sujeitos estudantes evidenciam um cenário bastante complexo da problemática em

que a licenciatura se insere e, ao mesmo tempo, mostram a necessidade de uma

reestruturação profunda nesse curso para atender as atuais demandas para um ensino de

qualidade na sociedade brasileira.

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4. O Program Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e sua

relação com a licenciatura.

O PIBID, financiado pelo Governo Federal e coordenado pela Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), tem seu primeiro edital

publicado em 2007; seu objetivo é colaborar na formação de profissionais do magistério

para atuar na educação básica. Atualmente, disponibiliza mais de 40.000 bolsas para

estudantes de graduação, nas mais diversas áreas do conhecimento, envolvendo 195

instituições de ensino superior no país.

O programa atinge, pois, parcelas significativas de estudantes de licenciatura de

universidades públicas por meio de bolsas vinculadas a projetos com escolas públicas,

contemplando com bolsa também os coordenadores - na universidade - e os

supervisores - professores da escola - responsáveis pelas ações projetadas e selecionadas

pela Capes. Tem crescido o número de instituições que submetem suas propostas,

conforme os editais da Capes, o que revela entusiasmo por essa política, dado que as

exigências são relativamente grandes (GATTI, 2013).

Na busca por compreender como o PIBID vem sendo estruturado no campo de

formação docente, as publicações sobre o PIBID no Encontro Nacional de Didática e

Práticas de Ensino (ENDIPE) foram analisadas por Gimenes e Pimenta (2013). A

seleção desses trabalhos (simpósios, painéis e pôsteres) se deu pela presença, no título,

de um dos descritores: PIBID ou Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à

Docência. Ao todo, as autoras identificaram 64 trabalhos no período de 2008 a 2012,

que compreendem os encontros: XIV ENDIPE, Porto Alegre, 2008; XV ENDIPE, Belo

Horizonte, 2010; XVI ENDIPE, Campinas, 2012.

Em 81% dos trabalhos, as autoras evidenciam o tom de otimismo em relação à

novidade que é o PIBID. Dentre os aspectos positivos que são destacados, a articulação

entre universidade e escola e a articulação entre teoria e prática são os principais

motivos para o otimismo em relação a esse programa. Ou seja, percebe-se um interesse

positivo com a inserção do licenciando na realidade escolar, para além dos muros da

universidade. Há, ainda, outros aspectos positivos citados nos artigos: espaço e estímulo

à reflexão; valorização da profissão docente para a educação básica; integração entre

formação inicial e continuada; planejamento de atividades; melhoria da qualidade de

ensino da educação básica; identificação de dificuldades enfrentadas por alunos e

professores no processo ensino-aprendizagem; desenvolvimento de espírito de

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liderança; melhoria das relações interpessoais/trabalhar em equipe; maior domínio do

conteúdo específico e pedagógico; melhoria da autoconfiança; mudança de concepção

dos futuros professores; propiciar primeiros contatos com a sala de aula; aprendizado de

novas metodologias; interesse de professores supervisores e licenciandos bolsistas em

fazer mestrado na área de Educação ou Ensino de disciplinas específicas.

No entanto, em nosso entendimento, a maioria, senão todas as características

positivas apontadas por essas pesquisas deveriam ser garantidas a todos os futuros

professores. O tom de otimismo desses trabalhos em relação à novidade de que o

Programa se reveste ofusca a discussão no contexto das licenciaturas em crise,

silenciam a licenciatura, pois o sucesso do PIBID apontado por essas publicações se dá

em função do fracasso das licenciaturas. Entretanto, o PIBID é um programa que atinge

menos de 3% dos futuros professores, de modo que nessa perspectiva elitista em que ele

vem sendo implantado e considerado um fim em si mesmo, vai sendo delineado um

programa que propõe uma mudança na formação inicial docente com o objetivo de que

nada mude (Gimenes e Pimenta, 2013).

As pesquisas sobre o PIBID, ao desconectá-lo do contexto mais amplo de

formação inicial docente, que são as licencituras, implicitamente constituem as

licenciaturas enquanto falta daquilo que o PIBID pode oferecer, porém sem situar

PIBID e estágio curricular, mesmo que aparentemente semelhantes, a pertencimentos a

campos de poder, estrutura, funcionamento e condições objetivas diferentes (LIMA,

2012).

O nosso esforço, como pesquisadores com o compromisso com uma sociedade

mais justa e igualitária, deve ir em direção à oferta do programa de iniciação à docência

para todos os alunos licenciandos. As novidades do PIBID – bolsa para licenciandos,

coordenadores na universidade e coordenadores nas escolas públicas – deveria ser

estendido para a totalidade dos cursos de formação de professores. Nesse sentido,

deveria se tornar componente curricular obrigatório, ou mesmo, reforçar o componente

curricular obrigatório que existe desde os primórdios dos cursos de formação de

professores em todos os países, que é o estágio curricular obrigatório. Os Estágios

realizados com bolsas e com verdadeira colaboração entre escola e universidade,

envolvendo os sistemas municipais e estaduais de ensino como co-formadores do futuro

professor, e ainda em colaboração com a comunidade em que essa escola se insere,

certamente faria toda a diferença nos atuais cursos de licenciatura

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5. Leitura positiva da licenciatura: possilidades de relação teoria e prática e

parceria universidade, escola e comunidade

A leitura negativa da realidade impõe desafios para o campo de formação

docente, em especial, na questão metodológica. Nas análises realizadas, destacamos a

questão da delimitação do objeto de investigação. Existem algumas justificativas

comumente utilizadas que vedam o objeto de estudo em si mesmo, impedindo que se

possa alcançá-lo para estudá-lo. Na perspectiva da falta um não ser torna-se a questão

fundadora de diversas pesquisas, que buscam através do discurso das carências

constituir um professor. Nessa perspectiva, a formação inicial é marcada pelo “não

formar”, “não desenvolver”, “não ser”. Quanto ao método, como se pode estudar algo

que não existe?

Todo discurso sobre qualidade será limitado se não considerados os contextos

cultural, histórico, econômico e político mais amplos, se as necessidades reais e

tangíveis das diversas populações de alunos de áreas urbanas não são reconhecidas

(MURRELL, 2001). A leitura positiva busca compreender como se constrói a situção de

fracasso no processo formtivo e, não, “o que falta” para ser uma situação de formação

bem-sucedida.

O modelo predominante atual das licenciaturas reitera a dicotomia entre teoria e

prática, entre disciplinas de conhecimento específico e de conhecimento pedagógico, em

que a universidade é detentora do conhecimento a ser transmitido para os futuros

professores e a escola é o local de aplicação desse conhecimento. Esse modelo dá claros

sinais de esgotamento. Entretanto, não se trata de negar a licenciatura enquanto local

privilegiado para formação inicial, ou dizer que a universidade não sabe formar

professores. Pelo contrário, o suceso do PIBID – em que cada projeto é coordenado por

professores universitários – mostra que as universidades sabem formar professores,

porém precisam de condições concretas para tanto e, entre essas condições, destaca-se a

relação de colaboração com a escola de educação básica como coformadora dos futuros

professores.

Nessa direção, Zeichner (2010) entende que a formação de professores não

deveria se dar nem na universidade, nem na escola. Todavia, ela deveria ser baseada em

uma cultura híbrida, em que a responsabilidade pela formação de professores é

democraticamente compartilhada entre elas, de forma a superar o isolamento dessas

instituições entre si e entre elas e a comunidade em que se inserem. De modo que o

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currículo do curso no seu todo (disciplinas e atividades) possa captar na práxis os

conflitos, os avanços, os retrocessos, enfim, as contradições nela presentes e aí

identificar a reprodução e a produção das relações sociais (PIMENTA, 2010b). Nesse

sentido, o estágio ocupa lugar estruturante no curso e deve fazer parte de todas as

disciplinas, percorrendo o processo formativo desde o início precisamente pela relação

que estabelece com a realidade e tem como finalidade integrar o processo de formação

do futuro professor, de modo a considerar o campo de atuação como objeto de análise,

de investigação e de interpretação crítica, a partir dos nexos com as disciplinas do curso

(PIMENTA & LIMA, 2004).

Neste breve ensaio procuramos mostrar as possibilidades de uma formação de

professores em nível superior – Licenciaturas - que aposta na tríade universidade –

licenciandos – escolas. E na importância de que a esse projeto de qualidade sejam

destinados financiamentos específicos, como os que têm sido destinados ao Programa

PIBID. E que o conjunto das disciplinas do currículo, dentre as quais a Didática que

ocupa um papel articulador porque é multidimensional, tenha no estágio o eixo

articulador dessa formação, pesquisando, compreendendo, analisando, interpretando,

propondo possibilidades de superação aos problemas existentes nas escolas e nos

sistemas públicos. E que assim proceda desde o início do curso.

NOTAS 1 Manchetes extraídas, respectivamente, dos seguintes sites e acessadas em 15 de maio de 2014:

http://educacao.uol.com.br/noticias/2013/12/03/pisa-desempenho-do-brasil-piora-em-leitura-e-

empaca-em-ciencias.htm

http://g1.globo.com/educacao/noticia/2013/12/brasil-evolui-mas-segue-nas-ultimas-posicoes-

em-ranking-de-educacao.html

2 Disciplinas ofertadas pelo Setor de Educação da universidade em que esse curso é ofertado, em oposição

às disciplinas ofertadas pelo Setor de Ciências Biológicas – ditas disciplinas do bacharelado.

3 As análises apresentadas nessa seção são parte da pesquisa de doutoramente em andamento intitulada

“O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) e a formação de professores das

ciências naturais: possibilidade da práxis como princípio formativo?”. Programa de Pós Graduação em

Eucação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

REFERÊNCIAS

ARANHA, A. V. S.; SOUZA, J. V. A. de. As licenciaturas na atualidade: nova crise?

Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 50, p. 69-86, out./dez. 2013.

CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Trad. Bruno

Magne. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.

COXON, E.; MUNCE, K. The global education agenda and the delivery of aid to

Pacific education, Comparative Education, 44:2, 147-165. 2008.

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DIAS, R. E.; LOPES, A. C. Competências na formação de professores no Brasil: o que

(não) há de novo. Educação e Sociedade, Campinas, vol. 24, n. 85, p. 1155-1177,

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