A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino...

13
A maré humana

Transcript of A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino...

Page 1: A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips

A maré humana

Page 2: A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips

Tradução:Maria Luiza X. de A. Borges

Paul Morland

A maré humanaA fantástica história das mudanças demográficas e migrações que fizeram e desfizeram nações, continentes e impérios

Page 3: A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips

Título original:The Human Tide(How Population Shaped the Modern World)

Tradução autorizada da primeira edição inglesa, publicada em 209 por John Murray Publishers, uma divisão de Hachette, de Londres, Inglaterra

Copyright © 209, Paul Morland

Copyright da edição brasileira © 209: Jorge Zahar Editor Ltda.rua Marquês de S. Vicente 99 ‒ o | 2245-04 Rio de Janeiro, rjtel (2) 2529-4750 | fax (2) [email protected] | www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados.A reprodução não autorizada desta publicação, no todoou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.60/98)

Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

A editora não se responsabiliza por links ou sites aqui indicados, nem pode garantir que eles continuarão ativos e/ou adequados, salvo os que forem propriedade da Zahar.

Preparação: Angela Ramalho Vianna | Revisão: Eduardo Monteiro, Édio PulligCapa: Estúdio Insólito | Imagem de capa: © Samere Fahim Photography/Getty Images

cip-Brasil. Catalogação na publicaçãoSindicato Nacional dos Editores de Livros, rj

Morland, PaulM853m A maré humana: a fantástica história das mudanças demográficas e migrações

que fizeram e desfizeram nações, continentes e impérios/Paul Morland; tradu-ção Maria Luiza X. de A. Borges. – .ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 209.

Tradução de: The human tideInclui bibliografia e índiceisbn 978-85-378-854-

. População – Aspectos sociais. 2. População – Aspectos econômicos. 3. Popula-ção – Aspectos políticos. i. Borges, Maria Luiza X. de A. ii. Título.

cdd: 304.69-59466 cdu: 34.

Leandra Felix da Cruz – Bibliotecária – crb-7/635

Para meus filhos, Sonia, Juliet e Adam

Page 4: A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips

parte i

População e história

Page 5: A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips

9

Introdução

Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips e com gonorreia, foi abandonada por ele e, sem nenhum lugar para onde ir, foi admitida num asilo de pobres. Quando uma oportuni-dade de trabalho apareceu, ela foi enviada a Brompton, nas proximidades, deixando o filho, John Jr., no asilo, onde ele morreu dois anos depois.1 Essa história corriqueira de desespero, abandono e morte de um bebê hoje escandalizaria a maior parte das sociedades do mundo desenvolvido, desencadeando exames de consciência e acusações da parte dos serviços sociais e da imprensa. Na Inglaterra do século XVIII, e em praticamente qualquer outro lugar na época, era completamente normal. Havia sido assim desde a aurora da história humana. Podem-se contar casos similares de centenas de milhares de moças em toda a Europa e milhões em todo o mundo naquele período ou antes. A vida era vivida num cenário de pri-vação material em que, para a maioria das pessoas, cada dia era uma luta contra fome, doença ou alguma outra forma de catástrofe.

Em termos históricos, a vida era ruim, brutal e curta ainda ontem. Quase qualquer relato sobre os aspectos da existência do indivíduo comum na sociedade pré-industrial ou no início da sociedade industrial – seja sua dieta ou habitação, padrões de nascimento e morte, ignorância, falta de higiene ou falta de saúde – pode facilmente chocar o leitor de hoje. Para os camponeses espanhóis nas regiões produtoras de vinho, por exemplo, todos os braços eram demandados nas estações críticas do ciclo anual, incluindo mães de crianças pequenas, que deixavam sua prole “sozinha, chorando e faminta em fraldas pútridas”; abandonadas, as crianças podiam

Page 6: A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips

10 População e história

acabar com os olhos bicados por aves domésticas livres para entrar e sair de suas casas, ou ter as mãos mastigadas por porcos, ou podiam “cair no fogo, ou … se afogar em baldes e tinas de lavar roupa deixados descuidada-mente nas soleiras”.2 Não admira que entre ¼ e ⅓ dos bebês que nasciam na Espanha do século XVIII estivesse morto antes do primeiro aniversário.

A vida do outro lado dos Pireneus, para o camponês francês comum – a grande maioria da população –, era pouco melhor. Hoje o departamento de Lozère é uma região encantadora, conhecida pela canoagem e pesca da truta, mas no século XVIII a maior parte de seus habitantes se vestia com trapos e vivia em cabanas miseráveis, “cercados por estrume” que exalava um fedor horrível; as choças raramente tinham janelas, e os pisos eram cobertos com pedaços de lona e lã que serviam como camas “sobre as quais o homem velho, decrépito, e a criança recém-nascida, … o saudável, o doente, o moribundo” e com frequência os recém-mortos deitavam-se lado a lado.3 Descrições semelhantes de imundície e miséria se aplicavam à maioria dos lugares no globo em quase qualquer momento desde que a humanidade desenvolveu a agricultura, por volta de 0 mil anos atrás.

Não é preciso dizer mais nada sobre o idílio da vida rural nos tem-pos antigos, um mito possível apenas numa sociedade urbanizada há tanto tempo que perdeu a lembrança de como era realmente viver na zona rural pré-industrial. Isso era o que toda heroína pobretona de Jane Austen, em busca de um herdeiro rico, tentava evitar, quando não para si mesma, muito possivelmente para os filhos ou netos, num mundo implacável de constante mobilidade econômica e social descendente e nenhum bem-estar social.

A vida rural na maior parte do globo hoje é muito diferente daquela do habitante do campo na Espanha ou na França no século XVIII. A vida urbana também melhorou incomensuravelmente em relação às normas miseráveis comuns até o século XIX, no que era então a parte mais desenvolvida do mundo. Isso é bem captado nas memórias de Leonard Woolf, marido da renomada Virginia. Woolf, que nasceu em 880, mor-reu em 969 e testemunhou uma transformação das condições de vida no sudeste da Inglaterra, onde, exceto por uma década como administrador

Page 7: A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips

Introdução 11

colonial no Ceilão (hoje Sri Lanka), passou toda a vida. Ele escreveu já próximo da morte que se impressionava com a “imensa mudança do bar-barismo social para a civilização social” em Londres e, de fato, na maior parte da Grã-Bretanha durante seu período de vida, considerando-a

“um dos milagres da economia e da educação”: bairros miseráveis, com seus “produtos aterrorizantes”, não existiam mais, e em meados do sé-culo XX, pensava Woolf, seria difícil para aqueles que não tinham ex-perimentado a Londres dos anos 880 imaginar a condição dos pobres naqueles dias, morando “em seus covis, com pobreza, sujeira, embria-guez e brutalidade”.4

Essas mudanças não se restringiram à Grã-Bretanha. Stefan Zweig, me-morialista como Leonard Woolf e nascido apenas um ano depois dele, em Viena, observou uma acentuada melhora nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, com a chegada da luz elétrica iluminando intensamente ruas antes sombrias, lojas mais claras e abastecidas, exibindo um “novo brilho sedutor”, a conveniência do telefone e a difusão de confortos e luxos antes reservados às classes altas, mas que então chegavam à classe média. A água não precisava mais ser tirada de poços e o fogo não precisava mais ser

“trabalhosamente aceso na lareira”. A higiene estava avançando, a sujeira batia em retirada e os padrões de vida básicos melhoravam ano a ano, de modo que “até aquele problema supremo, a pobreza das massas, não mais parecia insuperável”.5

Cenas de miséria e privação material ainda podem ser vistas nos bair-ros mais miseráveis do mundo em desenvolvimento ou nos últimos re-dutos da pobreza rural. Mas, para a maioria das pessoas do planeta, essas cenas seriam recordadas, se tanto, como algo do passado – um passado mais distante para quem vive em alguns lugares, menos distante para quem vive em outros.

Os grandes progressos em condições materiais, nutrição, habitação, saúde e educação que se espalharam pela maior parte do globo desde o iní-cio do século XIX foram claramente econômicos, mas também demográficos. Isto é, disseram respeito não apenas à maneira como as pessoas produzem e consomem, mas também ao número de pessoas nascidas, sua taxa de so-

Page 8: A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips

12 População e história

brevivência até a idade adulta, o número de filhos que elas têm, a idade em que morrem e a probabilidade de que mudem de região, país ou continente. As melhoras se refletem nos dados sobre a população e especificamente sobre os nascimentos e mortes.

Em resumo, os tipos de sociedade em que a maioria das pessoas vive agora, em contraposição àquele em que Joan Rumbold viveu e seu desa-fortunado filho nasceu, em 757, caracterizam-se por mortalidade infantil drasticamente mais baixa, com menos bebês ou criancinhas morrendo e quase todos os que nascem chegando pelo menos à idade adulta. Eles se caracterizam também por expectativa de vida em geral mais longa, em parte resultado de menor mortalidade de bebês e crianças, mas também de menos óbitos na meia-idade e de pessoas que vivem até idades avançadas e mesmo idades de que mal se ouvia falar cerca de duzentos anos atrás. As mulheres, instruídas e dotadas dos instrumentos de escolha, têm muito menos filhos em nossas sociedades. Muitas não têm nenhum filho, e muito poucas têm os seis ou mais comuns na Grã-Bretanha até meados do século XIX. Tendo passado da demografia da era de Joan Rumbold para a de nossa própria era, a população cresceu enormemente. No século XVIII não ha-via bilhão de pessoas na Terra. Hoje há mais de 7 bilhões. Assim como a política, a economia e a sociologia das sociedades atuais são radicalmente diferentes daquelas do passado, assim também é a demografia.

Esse processo, que começou nas Ilhas Britânicas e entre povos irmãos nos Estados Unidos e no Império Britânico por volta do ano 800, espalhou- se primeiro pela Europa e depois pelo mundo todo. Grande parcela da África ainda não completou a transição, mas a maior parte dela está bem encaminhada. Fora da África subsaariana mal chega a haver meia dúzia de países onde as mulheres têm em média mais de quatro filhos, norma global ainda nos anos 970. Não há hoje nenhum território fora da África com uma expectativa de vida abaixo dos sessenta anos, de novo aproxima-damente a norma global nos anos 970 e perto da norma europeia ainda nos anos 950. A façanha dos melhores em meados do século XX tornou-se a média global algumas décadas mais tarde. A média global de algumas décadas atrás tornou-se o mínimo dos mínimos para a maior parte do

Page 9: A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips

Introdução 13

mundo atual. Isso foi alcançado por uma combinação dos meios mais bási-cos com os mais complexos: o aumento de frequência da lavagem de mãos, o melhor fornecimento de água, muitas vezes intervenções rudimentares mas decisivas na gravidez e no parto, melhor assistência médica geral e melhor dieta. Nenhuma dessas coisas teria sido possível numa escala global sem educação, novamente com frequência rudimentar, mas radi-calmente melhor que nada, em particular das mulheres, permitindo que práticas preservadoras da vida se disseminassem e fossem adotadas. Elas também demandaram conquistas da ciência e da tecnologia, da agronomia ao transporte.

Há muito os filósofos da história debatem os fatores fundamentais que moldam os eventos históricos. Alguns sugerem que vastas forças ma-teriais são o mais importante, determinando as linhas gerais, se não os detalhes sutis da trajetória humana. Outros veem a história essencialmente como a narrativa do jogo das ideias. Outros, ainda, afirmam que acidente e acaso estão no controle, que é inútil procurar causas de grande escala por trás do desenrolar dos acontecimentos. Alguns estudiosos também já conceberam a história como a criação de “grandes homens”. Nenhuma dessas abordagens é inteiramente satisfatória nem tampouco pode explicar de modo cabal a história como um todo. A interação dos seres humanos através do tempo e do espaço é simplesmente vasta e complexa demais para que qualquer teoria a encerre. Forças materiais, ideias, acaso e até grandes indivíduos e sua interação devem ser englobados caso se queira compreender o passado.

Houve uma revolução populacional no curso dos últimos duzentos anos, aproximadamente, e essa revolução mudou o mundo. Essa é a his-tória da ascensão e queda de Estados e de grandes mudanças no poder e na economia, mas também uma história sobre o modo como as vidas individuais foram transformadas; de mulheres britânicas que, no prazo de uma geração, pararam de esperar que a maioria de seus filhos morresse antes da idade adulta; de idosos japoneses sem filhos morrendo sozinhos em seus apartamentos; de crianças africanas atravessando o Mediterrâneo à procura de oportunidades.

Page 10: A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips

14 População e história

Alguns desses fenômenos, como a queda da mortalidade infantil a partir de níveis elevados no Reino Unido, são históricos. Outros, como o número de japoneses que morrem sem filhos, sozinhos, e as crianças africanas ru-mando para a Europa, ainda estão muito presentes, e é provável que se in-tensifiquem. O turbilhão demográfico – o ritmo cada vez mais acelerado da mudança na população – alastrou-se pelo mundo de uma região para outra, despedaçando velhas formas de vida e substituindo-as por novas. Essa é a história da maré humana, o grande fluxo da humanidade, crescendo aqui, refluindo ali, e de como isso deu uma contribuição vasta e, com demasiada frequência, despercebida ou subestimada para o curso da história.

O fato de que a vida ficou imensuravelmente melhor para bilhões – e de que o mundo deveria conseguir sustentar 7 bilhões de pessoas e mais – não deveria eclipsar o lado escuro dessa história. O Ocidente, inventor das condições que permitiram que tantas pessoas sobrevivessem a seus primeiros anos e florescessem materialmente, tem muito do que se or-gulhar. Muitos de seus críticos não estariam vivos hoje, e certamente não gozariam de vidas ricas, instruídas, se não fosse pelos avanços científicos e técnicos, desde fármacos e fertilizantes a sabão e sistemas de esgoto. Con-tudo, essa façanha impressionante não deveria nos levar a desconsiderar a marginalização e o genocídio perpetrados contra povos não europeus, a dizimação de populações indígenas das Américas à Tasmânia e o tráfico de escravos em escala industrial no Atlântico, que tratou os negros como mercadorias descartáveis.

O aumento da expectativa de vida na Grã-Bretanha no século XIX foi uma grande façanha, mas a fome irlandesa não deve ser esquecida. A queda da mortalidade infantil em toda a Europa nas primeiras décadas do século XX deve ser celebrada, mas não compensa a barbaridade de duas guerras mundiais e do Holocausto. A mortalidade infantil caiu em todo o Oriente Médio, mas isso contribuiu para a instabilidade e juventude de muitas sociedades, nas quais uma massa de jovens, incapaz de se integrar ao mercado de trabalho, recorre ao fundamentalismo e à violência. Co-memoramos o alongamento da expectativa de vida em grandes faixas da África subsaariana nos últimos anos, mas não devemos esquecer o geno-

Page 11: A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips

Introdução 15

cídio ruandês de 994, nem a terrível perda de vidas nas guerras no Zaire/Congo poucos anos depois. Também é preciso levar em conta o dano ambiental verdadeiro ou potencial representado por populações crescentes. A história da maré humana não deveria ser uma narrativa whiggish, isto é, uma que pinte um quadro alegre de interminável progresso em direção à luz, com a história se movendo sempre para a frente, rumo a perspecti-vas mais elevadas e brilhantes. Não é de surpreender que tal visão fosse comum entre grande parte da elite britânica no século XIX, quando os ingleses se viram como o povo mais rico e poderoso do mundo; essa não é uma visão que possa se sustentar hoje.

Mas, a despeito de todas as advertências, deve-se reconhecer adequa-damente a grande conquista que é a vasta multiplicação dos números humanos e a oferta, para bilhões de pessoas, de um padrão de vida com assistência médica e educação que os mais ricos de séculos anteriores te-riam invejado. A história da maré humana deveria ser contada com todas as suas imperfeições, mas também pelo que é: nada menos que um triunfo da humanidade. Os navios negreiros e as câmaras de gás não devem ser esquecidos, mas seus horrores não podem nos cegar para o fato de que hoje inúmeros pais em situação semelhante à de Joan Rumbold podem ter mais confiança em relação à saúde de seus filhos e de que bilhões, da Patagônia à Mongólia, podem ter a expectativa de desfrutar vidas que, de uma perspectiva histórica relativamente recente, são impressionantes por sua riqueza e longevidade. Essa multiplicidade de vidas aumentou o esto-que de criatividade e engenhosidade humanas, contribuindo, por sua vez, para conquistas que vão de vacinas à viagem do homem à Lua e à difusão – embora incompleta – da democracia e dos direitos humanos.

Do que trata este livro – e por que ele é importante

A maré humana trata do papel da população na história. O livro não argu-menta que as grandes tendências populacionais – elevação e queda das taxas de nascimento e morte, aumento e diminuição da população, sur-

Page 12: A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips

16 População e história

tos de migração – determinam toda a história. A demografia é parte do destino, mas não todo ele. Não se defende aqui uma visão da história simplista, monocausal ou determinista. Nem se afirma que a demografia é em algum sentido uma causa primária, o motor principal, um fenômeno independente ou externo com ramificações na história, mas sem causas que a precedam. Ao contrário, a demografia é um fator impulsionado ele próprio por outros fatores, numerosos e complexos, alguns materiais, al-guns ideológicos e outros acidentais. Seus efeitos são variados, duradouros e profundos, mas suas causas também o são.

A demografia está profundamente enraizada na vida. Num certo sen-tido, ela é vida – seu começo e seu fim. A população deve ser compreendida ao lado de outros fatores causais como inovação tecnológica, progresso econômico, crenças e ideologias cambiantes, mas a população explica de fato muita coisa. Tome por exemplo a ideologia e a perspectiva do femi-nismo. É impossível dizer se o movimento feminista prefigurou a mudança demográfica e a conduziu, ou ao contrário, resultou dela, mas podemos traçar como os dois trabalharam juntos. Hoje as ideias feministas per-meiam quase todos os aspectos da sociedade (ainda desequilibrada) e da economia, desde a aceitabilidade do sexo pré-marital até a participação da mulher na força de trabalho. No entanto, a revolução nas atitudes sociais em relação a sexo e gênero poderia não ter ocorrido nessas linhas, não fosse a invenção da pílula anticoncepcional e as escolhas de fecundidade que ela permitiu. Contudo, a pílula, por sua vez, foi produto não apenas do gênio e da determinação de uma série de mulheres e homens, mas de uma mudança nas atitudes em relação a sexo, sexualidade e gênero que tornou a pesquisa sobre ela aceitável na academia e financiável por inte-resses tanto corporativos quanto filantrópicos. A ideologia do feminismo, a tecnologia da pílula e as mudanças nas atitudes sociais em relação a sexo e gravidez tiveram, todas, influência na redução das taxas de fecundidade (isto é, o número de filhos que uma mulher pode presumir ter em sua vida), e estas por sua vez causaram um impacto profundo sobre a sociedade, a economia, a política e o curso da história. Perguntar o que veio primeiro – a vontade social ou a pílula – é uma espécie de problema do ovo e da

Page 13: A maré humana...9 Introdução Joan Rumbold tinha dezenove anos em 754 e morava no bairro lon-drino de Chelsea quando conheceu John Phillips. Três anos depois, grávida de Phillips

Introdução 17

galinha; a história da interação entre essas forças pode ser contada, mas é inútil tentar promover uma delas a causa supostamente “original” ou

“principal”, rebaixando as demais a meros efeitos.Do mesmo modo seria errado substituir uma visão pseudomarxista

da história por uma visão demográfica, trocando “classe” por “população” como fator oculto que explica toda a história mundial. Deixar a demografia de fora, no entanto, é perder o que pode ser o fator explicativo mais impor-tante na história do mundo nos últimos duzentos anos. Durante milênios foi possível contar a mesma história desoladora sobre o progresso cons-tante da população sendo revertido por peste, fome e guerra. Desde 800, aproximadamente, no entanto, a humanidade conseguiu cada vez mais assumir o controle de seus próprios números, e com um efeito assombroso. A demografia deixou de ser a disciplina que mudava mais lentamente para tornar-se a de transformação mais célere. Tendências populacionais não se movem mais a passo de lesma, com ocasionais interrupções chocantes, como a peste negra. Fecundidade e mortalidade caem com crescente rapi-dez, e transições que outrora levavam gerações agora ocorrem em décadas.