À margem da rua - o novo espaço público

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    palavras-chave:espao pblico;museus de arte

    contempornea;Richard Serra.

    keywords:public space;museums of

    contemporary art;Richard Serra

    Richard Serra.Tilted Arc, 1981. Federal Plaza, Nova Yorque, 1981-89; removido em 1989.

    Marco Giannotti

    margem da rua: o novo espao pblico*

    Este artigo aborda as transormaes ocorridas no espao pblico em razo

    do papel que os museus de arte contempornea passaram a desempenhar

    atualmente nas cidades.

    This article deals with the transormations occurred in the public space due tothe new role o the Museums o Contemporary art in the cities nowadays.

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    A Arte no poltica pelas mensagens e pelos sentimentos quetransmite sobre a ordem do mundo. Nem poltica pela maneira comorepresenta as estruturas da sociedade, os conitos ou as identidadesdos grupos sociais. poltica pela divergncia que ela toma em relaoa essas unes e pelo modo como recorta e povoa este espao.

    Jacques Rancire. Malaise dans Esthetique

    Curioso o ato de que uma das mais conhecidas obras de artecontempornea planejada para um espao pblico tenha se tornado clebreno por sua instalao, mas pela sua retirada: refro-me obra Tilted Arc,de Richard Serra, que permaneceu por nove anos, entre 1981 e 1989, napraa do centro Jacob Javits, em Nova Iorque. Num amplo debate jurdico,

    venceram aqueles que acusaram a obra de impedir a livre circulao napraa e torn-la propcia para o grafte. Em 1984, tive a oportunidade depresenciar o que as obras de Richard Serra causavam no espao pblico:Clara-Clara tinha tambm sido retirada do lugar planejado para a Tulherias,em Paris, e oi transerida para uma pequena praa, onde vrias trepadeirasoram plantadas ao longo das duas lminas de ao a fm de encobri-lasintegralmente. Num impulso romntico, Carlito Carvalhosa e eu retiramostodas as trepadeiras apressadamente para que a polcia no nos abordasse. Apartir de Tilted Arc,creio que Serra voltou-se cada vez mais para o espaointerno dos museus, ao invs de continuar a instalar suas obras na rua. Aslminas oram se curvando, de modo que as obras mais atuais tendem aormar um interior, como em uma espcie de caracol.

    Concomitante a esse processo, deve-se risar a enorme

    evoluo que ocorreu nos museus de arte contempornea em vriasregies do mundo, na medida em que passaram a ser considerados umempreendimento altamente rentvel, como plos tursticos. O prpriomuseu concebido como uma obra de arte em que muitas vezes clebresarquitetos relutam em abrigar outras obras, a no ser a que eles mesmosprojetaram. A esse respeito, vale lembrar a polmica entre Serra e FrankGehry, no museu Guggenheim, em Bilbao.

    Os museus passaram a desempenhar um papel poltico, sociale econmico cada vez maior, transormando muitas vezes por completo

    o cenrio urbano, como no caso de Bilbao, onde uma cidade porturiadecadente renasce graas a nova Meca das artes. Essa poltica no sed por uma aproximao do museu com a rua; muito pelo contrrio, o espao dierenciado do museu, lugar extra-cotidiano, que acaba portransormar seu entorno, ruas e vielas das cidades prximas. Atualmente,podemos acompanhar as enormes transormaes urbansticas que estoocorrendo ao redor de Inhotim, a 60 quilmetros de Belo Horizonte.

    * Este texto foi feito parauma palestra sobre Arte

    na Rua, a convite deHenrique Oliveira e da

    fundao Bienal, em7 de Outubro de 2007.

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    inegvel que a Bienal de So Paulo desempenha um papelsemelhante em So Paulo: trata-se de um acontecimento social, polticoe econmico sempre aguardado e estejado. Nesse sentido, muito mealegra o ato de presenciar neste momento seu processo de reconstruo,a partir do vazio institucional que culminou na 28 Bienal. Sua presenatambm se mantm graas alta qualidade do projeto arquitetnico de

    Oscar Niemeyer e de seu lugar privilegiado no Parque do Ibirapuera. Aescala deste projeto chega at mesmo a intimidar as esculturas situadasno jardim de esculturas. Paradoxalmente, a obra com maior presena

    visual no parque justamente aquela que est resguardada no interiordo museu: a aranha de Louise Bourgeois, presente no pequeno palciode cristal do Museu de Arte Moderna de So Paulo.

    Creio que o tema arte e poltica, fo condutor tanto destaBienal quanto das duas edies anteriores, entra em voga a partir daDocumenta de Kassel, de 1997, com a curadoria de Catherine David.

    Lembro-me bem que em sua palestra no Pao das Artes era possvelnotar uma rgil presena esttica das obras rente a um discurso ortementeideolgico ( justamente neste momento que Rancire, seu interlocutor deento, passava a se tornar uma reerncia obrigatria no mundo das artes).

    O ato que a imagem recorrente daquela documenta oi oretrato da curadora, ao contrrio das documentas anteriores, em que aobra de Beuys era sempre uma reerncia.

    Nesta Bienal, me pergunto se no so justamente os artistas queesto margem (estar margem no signifca estar ora do debate) aqueles

    que mais se destacam, justamente por no se alinharem a nenhumamensagem poltica. As obras de Tatiane Trouv, Sara Ramos, Francis Aylis,Jos Spaniol e Rodrigo Andrade tm ora justamente pela suapotica.Soobras que fcam na nossa memria, transcendem o tempo e o espao daBienal e oerecem uma experincia extra-cotidiana. Inelizmente, essasobras no tm sido ruto de um debate propriamente esttico.

    As obras que suscitam debate na mdia aparecem muito maispelo seu aspecto extra-artstico: na polmica de se saber se devemosou no retirar os urubus da obra de Nuno Ramos, se devemos aceitarimagens de personalidades prestes a serem assassinadas ou se imagensda Dilma e do Serra podem ser veiculadas desse modo em perodoeleitoral. Ou seja, temas que parecem escapar do mundo da arte, que seadequam pereitamente cultura do espetculo e que parecem nos levarpara a rua. Nesse caso, no caberia perguntar se essa recusa estticano transorma essas obras em alegoria? Alis, um problema recorrentenesse tipo de exposio a questo da escala, pois, se o trabalho noor monumental, ele se perde nos gabinetes de curiosidade. Pintores

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    brasileiros consagrados paradoxalmente recusam o silncio da pinturae azem grandes intervenes sonoras e arquitetnicas. Artistas degrande talento, como Henrique Oliveira, ormado pelo Departamentode Artes Plsticas da USP, conhecido agora pelos seus Tapumes, acabamrecorrendo a fguras alegricas, neste caso, a imagem da origem domundo, clebre pintura de Courbet, realizada em 1866. Huizinga, em

    seu clebre livro OOutono da idade mdia, az uma reexo sobre aalegoria, muito pertinente nesse contexto: a representao alegricalevara a antasia a um impasse. A alegoria acorrentou reciprocamente aimagem e o pensamento. A imagem no pode ser criada livremente porqueprecisa circunscrever por completo o pensamento, e o pensamento limitado em seu vo pela imagem1.

    Entretanto, basta percorrer o interior labirntico dessa instalaopara esquecermos da entrada em orma de vulva: no interior dessescorredores rupestres que viajamos no tempo.

    Por outro lado, obras de grande valor histrico, como asgravuras de Goeldi, os desenhos de Flavio de Carvalho, as obras dogrupo Rex e as obras polticas das dcadas de 1960-1970 fcam perdidasno espao e mereceriam uma exposio museogrfca mais cuidadosa,principalmente por sua dimenso histrica: elas se perdem no meio damultido que celebra o eterno presente.

    Nesse sentido, a fm de resumir minha ala de maneiraprojetiva, creio que vale a pena discutir se a Bienal de So Paulo nodeveria ter um ncleo histrico rico e consistente, pois, ao contrrio das

    bienais europias, no convivemos sempre com obras paradigmticascontemporneas e no basta dizer que esse deveria ser o papel dosmuseus, pois eles vivem sob a presso de obter patrocnio para realizarsuas exposies, algo que a Bienal, pelo seu poder institucional, podeobter com um pouco mais de acilidade, justamente por se tratar de umevento que ocorre a cada dois anos.

    Muitas vezes mencionamos uma bienal no pela sua edio,mas pelos artistas ou obras que estiveram ali presentes: houve a Bienal daGuernica, da Pop, do Philipp Guston, do Beuys, do Kieer, do Anish Kapoor,do Sean Scully, do Waltercio Caldas, do Cildo Meireles, do Tunga etc. Mepergunto qual sero mesmo as obras que fcaro em nossa memria quandoas cortinas se echarem. lamentvel que o debate sobre a retirada dosurubus tenha se sobreposto instalao de Numo Ramos.

    A Bienal poderia ter menos artistas, mas cada um deles comum conjunto maior de obras, para que pudssemos eetivamente entrarna potica de cada um, ao invs de nos perdermos em um labirintode obras dissonantes. A curadoria poderia ser eita em parceria com

    1. HUIZINGA. O Outonoda Idade Media.

    Cosac & Naify: SoPaulo, 2010, p. 544.

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    os artistas, e as obras poderiam ser escolhidas de orma a privilegiar,ao invs de grandes temas determinantes, os conceitos que pudessemsurgir no meio do processo. Paul Valry afrma, em seu discurso sobrea esttica, que, ao contrrio dos flsoos que buscam o discurso comoum fm, devemos nos concentrar na obra de arte. Em um flme recentesobre seu trabalho, Cildo Meireles (que gosta de fcar margem) nos diz

    que a obra bem resolvida aquela que no permite muitas elucubraes,pois tudo j est na prpria obra. Temos que apreender com esta lio.Espero que estas observaes no sejam interpretadas de maneiraunilateral o espao poltico democrtico, tanto naplis como em umterreiro como este em que agora estamos, deve criar condies para oaprimoramento de nossas instituies.

    Marco Giannotti artista plstico e proessor do Depto. de Artes Visuais da ECA - USP.