a máscara digital
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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
DEBORA SERRETIELLO DE ARRUDA CAMARGO
A MÁSCARA DIGITAL O Trabalho do Ator Virtualizado no Cinema Contemporâneo
SÃO PAULO 2013
DEBORA SERRETIELLO DE ARRUDA CAMARGO
A MÁSCARA DIGITAL O Trabalho do Ator Virtualizado no Cinema Contemporâneo
Dissertação de Mestrado apresentado à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr.
Gelson Santana.
SÃO PAULO 2013
FICHA CATALOGRÁFICA
C176m Camargo, Debora Serretiello de Arruda
A máscara digital: o trabalho do ator virtualizado no
cinema contemporâneo. – 2013.
201f.: il.; 30 cm.
Orientador: Prof. Dr. Gelson Santana.
Dissertação (Mestrado em Comunicação) -
Universidade Anhembi Morumbi, São Paulo, 2013.
Bibliografia: f.197-200.
1. Cinema. 2. Teatro. 3. Máscara Digital. 4. MoCap.
I. Título.
CDD 791.43
DEBORA SERRETIELLO DE ARRUDA CAMARGO
A MÁSCARA DIGITAL O Trabalho do Ator Virtualizado no Cinema Contemporâneo
Dissertação de Mestrado apresentado à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr.
Gelson Santana.
Aprovado em 03/10/2013
Prof. Dr. Gelson Santana
Prof. Dra. Priscila Ferreira Perazzo
Prof. Dr. Vicente Gosciola
Ao meu amado companheiro, Eduardo Fleury por sempre me ajudar a construir.
Á minha filha que muito me ajudou na pesquisa.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais e mães pela prontidão e pelo carinho: Durval e Marly, Elisabeth e Régis;
À minha querida irmã, Roberta,
pelo carinho e apoio incondicional.
AGRADECIMENTOS
À Universidade Anhembi Morumbi.
Ao meu Orientador, por sua clareza e disponibilidade, Gelson Santana.
Ao Coordenador do Curso Superior de Teatro, Acácio Ribeiro Vallim.
Ao Coordenador do Curso de Mestrado em Comunicação, Rogério Ferraraz.
A todos os professores do Mestrado em Comunicação: Bernadette Lyra, Maria Ignês
Carlos Magno, Vicente Gosciola, Laura Loguercio Cánepa, Luiz Vadico, Renato Luiz
Pucci Junior, Sheila Schvarzman.
À banca examinadora, por sua valiosa contribuição, que permitiu a continuidade da
pesquisa.
Ao Prof.º Claudio Yutaka, pela entrevista concedida, compartilhando seus estudos.
À amiga Patricia Dinely que dividiu seus conhecimentos de atriz.
Aos diretores, atores e atrizes que generosamente doam suas criações para o
mundo do cinema.
Ao Teatro de Máscaras, minha grande paixão.
A Deus, pela oportunidade.
8
RESUMO
O objetivo desta pesquisa é refletir sobre a condição do ator de cinema
contemporâneo diante de um novo artefato de construção de representação na
imagem, o Motion Capture (MoCap) ou a Performance Capture. Esta forma de
produção de representação exige do ator técnicas apuradas na medida que
transforma o resultado final em algo híbrido entre a realidade presencial e a
animação. E é justamente essa transformação que parece por em cheque o
símbolo maior da arte cênica clássica: a máscara. Diante desta constatação, este
estudo procura pensar as mudanças que a máscara teatral sofreu desde sua
origem no teatro grego passando por seu ressurgimento no Renascimento, com a
Commedia dell’arte, até desembocar, no início do século XX, na progressiva
adaptação ao cinema. Desse modo, este trabalho descreve o percurso das
composições de máscara ao longo do século XX para desembocar no paradigma
do ator do século XXI com o cinema digital e suas várias estratégias de
fragmentação em camadas da atuação. Por fim, esta pesquisa compara a forma
expressiva e concreta que a máscara exige do ator clássico com a atual máscara
digital que emerge com o advento de uma teatralidade virtual. E, afinal, constatar
que a captura digital de interpretação é por certo a atual fronteira da máscara
teatral.
Palavras-chave: Ator, Máscara, Máscara Digital, Motion Capture (MoCap), Cinema Contemporâneo, Teatralidade.
9
ABSTRACT
The objective of this research is to reflect on the condition of contemporary film
actor facing a new artifact construction to represent the image, Motion Capture
(MoCap) or Performance Capture. This form of production requires the
representation techniques actor cleared the extent that the final result turns into
something hybrid between reality and face animation. And it is precisely this
transformation that seems to hold in check the greatest symbol of classical
performing art: the mask. Given this finding, this study tries to think the
changes that theatrical mask has undergone since its origin in the Greek theater
through its revival in the Renaissance with the Commedia dell'arte, until ending in
the early twentieth century , the gradual adaptation to film . Thus, this paper
describes the route of the compositions of masks throughout the twentieth century
and flows into the paradigm of the actor of the XXI century with digital cinema and
its various strategies fragmentation layered performance. Finally, this research
compares the expressive form and concrete requires that the mask of the classic
actor with the current digital mask that emerges with the advent of virtual
theatricality. And finally, note that the digital capture of interpretation is
certainly the current frontier of theatrical mask.
Keywords: Actor, Mask, Digital Mask, Motion Capture (MoCap), Contemporary
Cinema , Theatricality .
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................13
1. A MÁSCARA E A PERFORMANCE TEATRO/CINEMA
1.1 Origens e Tradições................................................................................19
1.2 A Corporeidade da Máscara...................................................................33
1.3 Retomada da Teatralidade nos Séculos XIX e XX.................................38
1.4 Teatralidade Cinema/Teatro...................................................................49
1.5 Interações com a Tecnologia..................................................................65
2. MÁSCARAS NO CINEMA..................................................................... .....76
2.1 Comicidade........................................................................... ......83
2.2 Cinema Sonoro...................................................................... ......87
2.2.1 A Máscara do Efeito Compositivo para o Efeito Narrativo................111
2.3.1 Antecedentes da Captura de Movimento (MoCap)............................132
3. A MÁSCARA DO ATOR DIGITALIZADA.... .............................................141
3.1 A Máscara em Camadas......................................................................142
3.2 MoCap – A Desmaterialização da Máscara.........................................149
3.3 Exemplo de Transição do Efeito Compositivo para o Efeito Narrativo.158
3.4 Virtual Real...........................................................................................172
3.5 Ator Virtual............................................................................................176
3.6 Autoria Personagem Compositivo Personagem Narrativo...................183
3.7 Preparação Intensa..............................................................................189
Conclusão.............................................................................................................193
Bibliografia............................................................................................................197
11
Lista de Figuras
1. Foto de Máscaras de Tragédia Grega que ficaram expostas no MASP/ 2012.............................21
2. Cena do filme A Viagem do capitão Tornado de Ettore Scola.......................................26 3. Desenhos de Máscaras de Arlecchino do grupo Moitará..............................................31 4. Gravura do grupo de teatro Moitará baseadas em animais e humanos........................34 5. Ettienne Decroux, Sport. (1948) Photograph by Etienne Bertrand Weill.......................41 6. Foto divulgação da peça Júlia, de Christiane Jatahy. (2004)........................................56 7. Foto de divulgação do filme Segredos e Mentiras (1996).............................................60 8. Atriz Franka Potente do filme Corra Lola Corra (1998).................................................62 9. A Viagem a Lua (Le voyage dans la Lune, 1902)……………………………...…….…...78 10. A atriz Musidora (Jeanne Roques) no filme Os vampiros (1915)............................. ....79 11. A atriz Stacia Napierkowska dançando no filme Os vampiros........................... ..........79 12. O ator Friedrich Feher O Gabinete do Dr. Caligari (1920).............................................80 13. O ator Max Schreck em Nosferatu: Uma Sinfonia de Horror (1922)............................ 81 14. A atriz Brigitte Helm no filme Metrópolis, direção: Fritz Lang, 1927............................. 82 15. A atriz Brigitte Helm no filme Metrópolis, se transforma em robô................................. 82 16. O ator Lon Chaney em O fantasma da Ópera (1925)...................................................83 17. No telefone está o ator Ford Steling Os Gangsters, 1913............................................84 18. Buster Keaton é Sherlock Jr (1924)………………………………………….……….…….84 19. Ator e comediante Harold Lloyd em Safety Last (1923)…………………...………….….85 20. Charlie Chaplin em O Garoto (1921).............................................................................86 21. Stan Laurell e Oliver Hardy ...........................................................................................87 22. O ator Al Jolson em O cantor de Jazz (1927)................................................................88 23. Boris Karloff em Frankenstein, direção: James Whale, 1931…………………..........….89 24. Bert Lahr, Ray Bolger, Judy garland e Jack haley em Mágico de Oz (1939)................89 25. Greta Garbo ..................................................................................................................90 26. Marilyn Monroe..............................................................................................................90 27. Cary Grant ……………………………………………………………………………........….91 28. Clark Gable…………………………………………………………………………….......….91 29. Lamberto Maggiorani e o menino Enzo Staiola Ladrão de bicicletas (1948).................92 30. O ator James Dean em Juventude Transviada (1955)..................................................93 31. O ator Jacques Tatit em Meu Tio (1958)......................................................................94 32. A atriz Fiona Florence em Roma de Felini.....................................................................95 33. As atrizes Bibbi Andersson e Liv Ullmann em Persona.................................................95 34. Cenas de Persona (1966)..............................................................................................95 35. A atriz Anna Karina em Viver a Vida (1962)..................................................................96 36. O ator Marlon Brando em O Poderoso Chefão..............................................................97 37. O ator Marlon Brando em Uma Rua Chamada Pecado................................................97 38. O ator Marlon Brando em Apocalipse............................................................................97 39. O ator Jerry Lewis em O Professor Aloprado...............................................................98 40. O ator Keir Dullea em 2001 Uma Odisséia no espaço..................................................98 41. Cena de 2001 Uma Odisséia no espaço.......................................................................98 42. O ator Yul Brunner.........................................................................................................99 43. O ator Peter Fonda........................................................................................................99
44. Cena de Tron (1982)..........................................................................................100
45. O ator Bob Hoskins e Jessica Rabbit..........................................................................100 46. O ator Christopher Lloyd..............................................................................................100 47. Cena de O segredo do Abismo (1989)........................................................................101 48. Cena de O Exterminador do Futuro 2..........................................................................102 49. A atriz Merryl Streep em A Morte Lhe Cai Bem...........................................................103 50. O ator Jim Carrey em O Maskara................................................................................104 51. Cartaz de divulgação de Matrix...................................................................................105 52. O ator Tom hanks e a captação de interpretação.......................................................106 53. O ator Andy Serkis e a captação de interpretação......................................................108
12
54. MoCap e os atores de Piratas do caribe: O Baú da Morte .........................................109
55. A atriz Zoe Saldana e a personagem em MoCap...............................................110
56. O ator/diretor George Méliès.......................................................................................113 57. O ator Charles Ogle.....................................................................................................114 58. A atriz Musidora...........................................................................................................115 59. Os atores Werner Krauss, Conrad Veidt, Lil Dagover.................................................116 60. O ator Max Schreck em Nosferatu...............................................................................117 61. O ator Lon Chaney em London After Midnight, 1927…………………………………....118 62. O ator Lon Chaney em O corcunda de Notre Dame, 1923..........................................118 63. O maquiador Jack Pierce e o ator Boris Karloff...........................................................119 64. O animador Willis H. O‟Brien.......................................................................................119 65. O ator Groucho Marx...................................................................................................120 66. Os irmãos Marx............................................................................................................120 67. Os atores Jean Marais (a fera) e Josette Day (a bela)................................................121 68. Cena de O Dia Em Que a Terra Parou........................................................................122 69. O ator Ben Chapman...................................................................................................122 70. O maquiador Stuart Freeborn com os bailarinos.........................................................123 71. Malcolm McDowell em Laranja Mecânica....................................................................124 72. Jack Nicholson em O Iluminado..................................................................................124 73. A cantora Lírica Maria Callas.......................................................................................125 74. A atriz Falconetti em Paixão de Joana D‟Arc .................... ........................................126 75. A atriz Florence Delay em Joana D´Arc.......................................................................126 76. O maquiador Stuart Freeborn…………………………………………………………… 126 77. O maquiador Stuart Freeborn…………………………………………………………… 126 78. O maquiador Stuart Freeborn e o ator Christopher Reeve…………………………... 126 79. O ator O ator Kevin Baker............................................................................................127 80. O ator O ator Kevin Baker............................................................................................127 81. O ator Heath Ledger em O cavaleiro das trevas....................................................... 128 82. O ator Lawrence Olivier...............................................................................................129 83. O ator Ralph Fiennes em Harry potter........................................................................129 84. O personagem de MoCap Gollum...............................................................................130 85. O ator Andy Serkis.......................................................................................................130 86. Atores com roupas de MoCap.....................................................................................131 87. O galpão onde foi gravado Avatar...............................................................................131 88. A atriz Zoe Saldanha e sua máscara Neytiri................................................................132 89. Seqüência de movimentos de Muybridge....................................................................134 90. Traje com marcações de captura de Marey................................................................135 91. Atores fazem exercícios de Biomecânica do Russo Meierhold...................................136 92. Atores como modelo de movimento............................................................................137 93. Gene Kelly e o rato Jerry.............................................................................................138 94. Cena de Jasão e o Velocino de Ouro..........................................................................139 95. Cartaz de Star Wars.....................................................................................................139 96. Cena de A canção Sul.................................................................................................146 97. O ator Bob Hoskins e Roger rabbit..............................................................................147 98. James Cameron e os Monitores em Avatar................................................................148 99. Molde de confecção da máscara de látex...................................................................161 100. Cartazes do Planeta dos Macacos de 1968 a 2001..............................................168 101. Montagem da máscara do ator Paul Giamatti.......................................................170 102. Os atores Tim Roth e Michael Duncan..................................................................171 103. Andy Serkis e sua roupa de MoCap......................................................................174 104. As Camadas virtuais que montam a máscara digital.............................................175 105. Painel de comparação da filmagem e Mocap........................................................177 106. O ator Andy Serkis em captura de movimento........................................ .............182 107. O ator John Hurt e a máscara de John Merrick.....................................................185 108. O mímico Dan Richter como macaco....................................................................189
13
Introdução
O presente estudo é fruto de uma constatação, o antes estável campo de
atuação do ator no cinema (e em outras mídias) vem se tornando gradativamente
instável na atualidade. Esse espanto inicial compôs a finalidade da pesquisa que
foi desenvolvida na medida em que procurou refletir como os atores estão
dialogando com os caminhos que surgiram graças às novas tecnologias. E, assim,
procurou também investigar de que maneira vem sendo aplicada a tradicional
técnica de máscaras diante do desafio da expansão do espaço de interpretação
com a emergência da experiência virtual.
O tema nasceu à luz da minha vivência pessoal com o trabalho de
interpretação com máscaras. Uma vez que meu trabalho de atriz, preparadora de
atores, e professora trouxe o contato com atores, estudantes de teatro, cinema e
RTV através de oficinas e pesquisas das técnicas de preparação para atores. Por
esse motivo tenho notado muitas mudanças devido às recentes experiências de
interpretação com tecnologias. Essas mudanças geraram inquietações e foram
responsáveis pela investigação desses novos paradigmas que os atores tem
enfrentado nos últimos tempos.
A abordagem tem como ponto de partida as características da máscara no
teatro e depois no cinema e de que maneira essas duas artes realizaram suas
trocas efetivas. O objetivo é mapear algumas relações que a evolução da máscara
teatral possa ter com o cinema e suas tecnologias e pesquisar de que modo
ocorreram influências de uma sobre a outra. Objetivamente, os textos que aqui
desenvolvem essa ideia partem de esforços para conceituar preocupações
14
recentes acerca da interpretação mediada pela captação de Interpretação, o
chamado Motion Capture (MoCap).
O ponto inicial deste estudo são as questões relativas à construção
tradicional da máscara pelos atores e a sua conceituação. Não há uma
preocupação em refazer ou reconstituir todos os períodos em que a máscara foi
utilizada no teatro e muito menos como era feita a chamada comédia de máscaras
ou Commedia dell’Arte nos moldes do século XVI, até porque nem temos condição
de saber exatamente como era a genialidade dos atores da época, já que o
fenômeno teatral é etéreo. O interesse da pesquisa pelo jogo da Commedia e pela
técnica de interpretação com máscaras expressivas aparece quando se percebe
uma relação entre a trajetória das técnicas de construção de personagens ao
longo da história que permite ao ator contemporâneo se adequar ao uso da
tecnologia adaptando seu trabalho ou recriando-o em parceria com esses
recursos.
A pesquisa inicia-se com a busca do sentido da máscara teatral,
símbolo maior da arte cênica, criada como objeto expressivo a partir da origem do
teatro Grego. A seguir, o trabalho olha mais de perto a técnica da Commedia
dell´arte, relacionando-a ao trabalho expressivo do ator. O próximo passo é notar
que maneira essa máscara representa o mundo no campo simbólico.
O segundo momento da dissertação gira em torno da transição da
máscara de composição concreta das personagens e da transformação dessas
composições tanto para a imagem cinematográfica quanto para a imagem virtual
digitalizada. Sendo assim, procura-se esboçar o percurso da máscara
15
cinematográfica, e a maneira como foi utilizada ao longo do século XX, além de
mostrar sua transição para o campo icônico.
Já faz parte do senso comum dizer que o cinema sempre teve uma
relação, embora ambígua, com o teatro. Mas apesar da teatralidade manter-se
uma forma “não ambígua” nesta relação entre o cinema e o teatro, relação essa
que foi se depurando ao longo do século XX, não podemos deixar de perguntar
como ela se apresenta hoje? O que vem a ser a teatralidade na
contemporaneidade e como ela se configura na representação simbólica do ator e
do público? Não podemos deixar de observar que a teatralidade é um conceito
que não está diretamente ligada só ao teatro e posteriormente ao cinema. Por isso
podemos ampliar nossa indagação e perguntar como ela está presente na nova
sociedade globalizada?
Devo observar que esse mapeamento teve como foco a intenção de
entender o uso da máscara expressiva hoje no cinema diante da intensa
fragmentação da imagem. Bem como compreender a nova apropriação dessas
técnicas de interpretação pelo cinema e pela tecnologia digital expandindo assim
os recursos usados pelo ator.
Sabemos que a teatralidade é inerente ao homem. Bem como a vontade de
representar as coisas do mundo, dando a elas outra dimensão no tempo e no
espaço, sempre fez parte da necessidade humana de se tornar visível. Por isso, o
princípio e o fim da teatralidade sempre foi transformar o homem e o mundo em
outra coisa que aparentasse ser o espelho dele mesmo. Diante da afirmação de
Aristóteles, na Poética, de que “desde a infância os homens têm, inscrita em sua
natureza, ao mesmo tempo uma tendência a representar – e o homem se
16
diferencia dos outros animais, porque está particularmente inclinado a representar
e recorre à representação em seus primeiros passos de aprendizagem – e uma
tendência a encontrar prazer nas representações”1, percebe-se que a teatralidade
está presente nas mais diferentes manifestações de interação simbólica que
pressupõem ator e público e que evolui num conjunto significativo.
No entanto, a teatralidade tem se modificado nos últimos tempos. Na vida
prática do fazer teatral, podemos notar seu deslocamento: o teatro vem se
afastando da teatralidade ao “negar” a representação; enquanto o cinema vem se
distanciando da inscrição de realidade que a imagem trazia como princípio motor
ao “priorizar” a representação. Desse modo, estamos diante de um confronto e, ao
mesmo tempo, diante do resultado de um certo “isolamento” da teatralidade nas
novas mídias. Esse movimento que ao mesmo tempo desintegra e integra as
representações acaba por modificar nossa relação com a noção de presença,
identificação e ilusão.
A ponto que, num terceiro momento desta dissertação, diante das
transformações em curso, descrevemos situações nas quais o ator
contemporâneo e sua técnica se vê mergulhado nas realidades que compõe o
paradigma das novas tecnologias da imagem que emergem e que permitem
pensar em algo como “máscara digital”. O que vem a ser a máscara digital? De
que maneira ela modifica a construção dramática a ponto de misturar a realidade
da representação com o efeito virtual da composição?
No rastro das perguntas levantadas acima, podemos dizer que o objetivo
deste estudo é entender qual a relação que o Teatro e o Cinema estabeleceram
1 Ch 4, 48b4, tradução de Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot.
17
(ou estabelecem) com a teatralidade levando em conta as intensas mudanças
ocorridas no último século no ato de representar, o que acaba por modificar a
relação do ator com suas máscaras. E ainda, qual relação existe entre a
tradicional máscara teatral e a máscara digital na medida em que hoje milhões de
pessoas assistem a filmes nos quais o espaço entre realidade e representação,
vista aqui do ponto de vista de uma construção dramática, aumenta cada vez
mais.
Nosso objetivo é fazer uma reflexão sobre o que vem sendo desenvolvido
em produções cinematográficas que utilizam a tecnologia Motion Capture (MoCap)
moldando o que vamos denominar como máscaras virtuais. Consequentemente,
esses novos formas de molde nos leva a perguntar se a captação de interpretação
é atuação? O que nos leva também a estabelecer uma relação entre a máscara
(feita por composição) e a máscara virtual (feita por captação) – significando aqui
a tecnologia digital usada para registrar a expressão (facial, corporal) dos atores
no cinema.
O estudo pretende observar o trabalho expressivo e concreto que a
máscara exigiu do ator de cinema no início do século XX e, ao mesmo tempo,
fazer um paralelo com o ator do início do século XXI. A máscara como artesanato
base do ator transforma-se em digital a partir dos processos de desmaterialização
que as atuais tecnologias de Captura de Interpretação ou MoCap ou, ainda,
performance capture modelam. E como esta tecnologia exige todo o trabalho
performático do ator (corpo/voz), mas transforma o resultado em algo híbrido entre
a realidade e a animação. O trabalho do ator hoje se transmuta em máscara
digital criando uma espécie de corpo virtual; então, uma primeira indagação a
18
fazer seria quais as consequências desta nova imagem? Uma segunda indagação
pensa o que acontece com o corpo do ator e da sua performance diante da
fragmentação da imagem? Uma terceira indagação reflete sobre o modo como o
ator utiliza a metodologia da criação da máscara na construção do MoCap?
No Brasil não tem ainda muito material escrito especificamente sobre atuação
e captura de interpretação (MoCap), o que pode conferir a esta pesquisa um
caráter inédito. No entanto, a bibliografia que trata das questões técnicas de
computação gráfica e animação é abundante, além das informações tecnológicas
que nos põe a par dos mais recentes artefatos surgidos. Constatamos que não há
bibliografia, nem textos ou discussões sobre a parte expressiva da interpretação
virtual, muito menos dos processos de fragmentação da imagem do ator. Por isso,
em um primeiro momento, esta foi a maior dificuldade enfrentada para embasar a
pesquisa. Isto nos levou a utilizar como referência sites de tecnologia, entrevistas
com atores, com os criadores dos filmes e mais uns poucos artigos que trataram
do assunto; essa pequena literatura tornou-se a bússola que norteou nossa
investigação.
Muito do que se segue é somente o início de um diálogo que não tem
respostas definitivas para dar na medida que é quase impossível oferecer uma
história abrangente do percurso do ator (e nem é esse nosso objetivo). Muito do
fizemos foi sublinhar algumas mudanças que a máscara veio sofrendo no cinema
ao longo do século XX até resultar, mais recentemente, no paradigma das
tecnologias de captura. Afinal, o que observamos é que na atualidade a máscara
emerge para o ator cada vez mais moldada no caráter virtual da imagem.
19
CAPÍTULO 1
A MÁSCARA E A PERFORMANCE TEATRO/CINEMA
1.1 Origens e Tradições
Os conceitos aplicados neste estudo estão todos relacionados à ideia da
máscara como símbolo de representação. A máscara que tem origem na história
humana acontece junto a outro fenômeno que é o do transvestimento. Ela tem sua
origem em rituais muito antigos que são sempre representados por uma figura
humana transvestida de animal ou por alguma figura mítica. Nas pinturas
rupestres, “um dos mais antigos testemunhos do uso da máscara data do período
terciário, e na pintura mostra um caçador transvestido e disfarçado de cabra” (FO,
1998, p. 30). O uso do objeto máscara está sempre relacionado a um ato mágico
e místico representando as divindades e ao mesmo tempo também a outro mais
prático e direto que é o de aproximar o homem da sua caça ou da sobrevivência
através do disfarce. O transvestimento aparece quando o homem tem de se fazer
passar pela figura representada pela máscara (um animal, um elemento da
natureza) e consequentemente essa transformação obriga ao exagero de
movimentos para poder imitar o outro. A partir desse princípio, a máscara também
origina os rituais carnavalescos, nos quais por alguns dias o homem pode ser
quem ou o que ele quiser.
20
Observamos que em todos esses casos, a máscara criada sempre
dependia da expressividade corporal de quem a usava para tornar o objeto um
representante verdadeiro de qualquer cerimônia. O “zoomorfismo exasperado, a
ação de transformar-se em animal exige evidentemente uma certa habilidade”(FO,
1998, p. 32). e é sobre essa habilidade e sua evolução para a teatralidade que a
presente dissertação se baseia para desenvolver o caminho da representação dos
atores e suas construções de personagens a partir das técnicas de máscaras
teatrais até as máscaras digitais do cinema.
As máscaras primevas eram utilizadas em rituais que quase sempre
estavam ligados a comer o deus (ou entidade), devorando simbolicamente e
bebendo o sangue simbolizado pelo vinho. Em geral essas máscaras misturavam
fisionomias animais (pelos, dentes, garras) a humanas, resultando em
cruzamentos paradoxais. A máscara podia cobrir o rosto todo, mas quando a parte
de baixo do queixo da máscara era móvel permitia que quem a usasse pudesse
mover a boca ou falar.
Na Grécia antiga, inicialmente, a máscara esteve presente nas
representações ritualísticas pagãs que, de forma coletiva, realizavam cerimônias
em que dançarinos e cantores se confundiam entre ser público e cerimônia. Em
determinado momento começa a separação entre um corpo coletivo chamado
coro2 e um protagonista, a partir daí se forma o diálogo e nasce o teatro.
Nos teatros grego e romano a máscara está presente em todas as
representações para criar uma outra face mais expressiva e grotesca, exagerada
2 Do grego Khoros e do latim Chorus, grupo de dançarinos e cantores, festa religiosa. Em: PAVIS,
1999, p. 73.
21
e não realista. O seu formato tem inúmeras funções, tais como a de ampliar o
tamanho dos atores que podem ser vistos por toda a plateia, aumentando a figura
cênica (pois seus figurinos/coturnos eram exagerados) e também tem a função de
ampliar o som, tornando a fala dos textos interpretados mais audíveis. Há um
recurso na boca da máscara, que em conjunção à arquitetura do teatro de arena,
aumenta a acústica do som, tornando-o capaz de ser ouvido por toda a plateia.
Como nos diz Dario Fo: “a voz é projetada e amplificada devido à forma de funil da
boca escancarada” (1998, p. 44).
fig. 1 Máscaras de tragédia Grega3
3 Disponível em: <http://cyrodelnero.fashionbubbles.com/tag/grecia/>
22
As máscaras eram um signo teatral importante na configuração visual da
personagem e permitiam que o mesmo ator interpretasse mais de um papel, o que
era essencial, pois havia poucos atores em cena. Além disso, nesse período só
homens podiam participar dos espetáculos. Afora a máscara, a composição da
vestimenta também trazia signos que em conjunto contribuíam para a
caracterização de idade, sexo, classe social da personagem.
As máscaras gregas representavam tipos de personagens fixos: o velho, os
servos e escravos, o soldado, os jovens. Nas tragédias, as máscaras auxiliavam
na configuração da classe social, da idade e do estado emocional das
personagens, mas não tinham só esse aspecto prático. O público grego se
relacionava com a vivência teatral como participante de uma experiência estética
em que havia a imitação4 e não, uma transposição do real. Por isso a máscara era
um recurso essencial para criar a ilusão através do jogo, da ficção, estilizando as
formas e traduzindo-as como signos.
O ator compunha a personagem integrando a forma grotesca da máscara, a
sua habilidade vocal (fala recitativa e canto) e os gestos compositivos. Esse
conjunto expressivo fazia com que o público “se esquecesse” das máscaras e se
envolvesse totalmente para aderir ao pacto ficcional proposto pela performance
cênica. Por isso a máscara surgiu como uma tradução da realidade que
transforma o espaço e o tempo.
4 Para Aristóteles, “a Arte imita a natureza. Assim, em lugar de associar a imitação ao falso e
enganoso, a imitação da natureza por parte da Arte não é um retratar, realizar uma simples cópia do real, mas um fazer como, produzir à maneira de (imitar um processo). Imitação como produção.” Em: LEMOS, 2009.
23
No teatro romano a máscara também vai ser utilizada e teremos os mesmo
tipos fixos com mais ênfase ao cômico e ao circense. Os tipos grosseiros são mais
comuns e há maior utilização de acrobacias e danças popularescas. Como nos diz
Barni, “em Roma, quando um ator não interpretava bem o papel que lhe era
atribuído, era obrigado a tirar a máscara para expor o próprio rosto aos insultos do
público” (2003).
Do século XII até o início do Teatro Renascentista não há uso do objeto
máscara. Historicamente o uso da máscara na linha do tempo sempre teve
períodos de alternância. Ora aparece intensamente e alcança reconhecimento
popular, ora desaparece e dá lugar à representação sem máscaras. Mas em todas
as épocas em que o objeto aparece seu resgate está ligado à arte do ator como
elemento central da representação.
O retorno da máscara se dá na inicialmente na chamada Commedia all
Improviso, de Maschere, Commedia a Soggetto, Commedia di Zanni, que só foi
chamada Commedia dell’Arte a partir do século XVIII. Segundo Roberto Tessari :
A “certidão de nascimento” desse teatro é muito humilde. É um contrato estipulado entre oito pessoas diante do escrivão. Os oito em 1545, Pádua, declaram o seguinte: “Nós nos pomos de acordo para circular de lugar em lugar, de cidade em cidade, de país em país, encenando comédias”. Listam depois todos os códigos fundamentais para sua pequena sociedade. (TESSARI et BORNHEIM, 2004, p. 78)
A Commedia dell’Arte foi o início do Teatro Moderno. A partir do
momento em que se criou a primeira companhia registrada em cartório (1545 em
Pádua, Itália) começa a surgir o teatro como mercadoria cultural: artistas que
andam de cidade em cidade comercializando espetáculos e sobrevivendo desse
24
trabalho. Era estabelecida, assim, uma organização nova com atores
especializados e que treinavam para o seu ofício, por isso o nome dell’ arte.
Esse é um momento muito importante para o desenvolvimento do teatro,
que gera uma necessidade de aprimoramento artístico: o ator cria um interesse
que conquista o público, que quer ver sempre algo surpreendente e isso gera um
ciclo de mercado de trabalho. Esse “mercado” vai apostar no ator como peça
central da Commedia dell’Arte, já que, até então, o teatro da Corte era baseado na
dramaturgia e no cenário, como nos esclarece, mais uma vez, Roberto Tessari :
O teatro de Ludovico Ariosto, por mais genial que fosse, era um teatro em que não tinha o peso e a energia representativa dos atores. De fato, quem o encenava eram valorosos amadores. As técnicas de atuação que possuíam eram técnicas de oratória, relativas à dicção do texto, e não técnicas de movimento do corpo no espaço.5 Os atores de Arte apostam, ao contrário, todas as suas cartas na energia do ator, posto no centro da manifestação. Na Comédia de Corte, o ator não é protagonista do evento cênico. Os dois grandes protagonistas são o texto e a cenografia. Na assim chamada Commedia dell´arte – por motivos óbvios, pelo tipo de público a quem se dirige, que deve ser cultivado – o que deve constituir a linguagem do teatro é um conjunto de signos energéticos, claros, fortes capazes de causar impacto sobre o imaginário dos espectadores com o máximo de força. Estamos falando aqui da invenção da profissão do ator. Da passagem do ator à posição de verdadeiro epicentro do sistema da cena” (2004, p. 81).
A Commedia dell’arte foi o gênero de teatro popular mais famoso do
Ocidente. Originalmente nascida na Itália, se espalhou pela Europa. Foi o primeiro
teatro que rompeu fronteiras e fez tournées internacionais devido ao enorme
5 Grifo meu.
25
sucesso alcançado na época. E alcançou notoriedade quando os franceses
passaram a reverenciar as companhias italianas de teatro.
Esse teatro se caracterizava por uma dramaturgia criada pelos atores.
Sem texto definido, tudo era feito seguindo um roteiro guia que se transformava a
cada apresentação. Os personagens masculinos eram criados a partir de tipos
fixos e com o uso de máscaras. Não se sabe ao certo porque a máscara foi
introduzida nas apresentações das companhias de teatro italianas. Além de serem
originárias do teatro grego e da comédia latina especula-se a possibilidade de as
máscaras terem ressurgido por acidente para ajudar na leitura da ação em cena.
Como as companhias faziam sua apresentação no final da tarde, o lusco fusco
não realçava as expressões dos atores, então, as máscaras podem ter sido uma
solução prática para aumentar a figura dos personagens e melhorar a
comunicação com a plateia. E como nos diz Dario Fo, “os elementos mais
importantes, aliás fundamentais, comuns à atividade de todos os tipos de cômicos
são a improvisação e o incidente” (FO, 1998, p. 117) E no caso da Commedia, as
casualidades deram o caminho para a formação de um dos períodos mais férteis
do teatro.
No filme A viagem do Capitão Tornado6, o diretor Ettore Scola também
sugere que a máscara poderia ter surgido para ocultar a identidade de atores que,
por pertencerem a famílias nobres, não queriam ser reconhecidos. Em uma
sequência em que o personagem Barão de Sigognac (Vicent Perez) tem que
entrar em cena substituindo um ator enfermo, a máscara do Capitão é colocada
6A Viagem do Capitão Tornado. Diretor: Ettore Scola, 1990. O roteiro é baseado no romance de
Théophile Gautier, Il Viaggio di Capitan Fracassa.
26
para tampar o seu rosto e, como ele não enxerga nada, o incidente torna a cena
cômica.
Fig. 02 O Barão de Sigognac entra com a máscara do Capitão substituindo um ator.
Nesse filme, Scola presta uma homenagem cinematográfica ao teatro
narrando metaforicamente a viagem de uma trupe de atores que atravessa a Itália
em direção à França, caminho de fato percorrido historicamente pelos
comediantes. Para mostrar que os atores acabavam sendo confundidos com seus
personagens, o roteiro não deixa claro onde começa o ator e onde termina a
máscara. As estórias se misturam como, aliás, era comum: atores que
representavam bem determinadas máscaras são eternizados por meio da
incorporação dos nomes de seus personagens aos seus próprios. Exemplo disso
são os atores Tristanno Martinelli, chamado de Tristanno Arlecchino; Francesco
27
Andreini, Francesco Capitano; Isabella Andreini, que criou a primeira enamorada
da Commedia, personagem que foi eternizada com esse mesmo nome, Isabela e
foi também a responsável pela introdução da figura da “primeira atriz” (BARNI,
2003, p. 36).
A Commedia dell’Arte era caracterizada por ser um teatro feito nas ruas;
os temas dos comediantes eram os mais distintos imagináveis, sendo os
preferidos as histórias de amor, folhetins de amor impossível, mas havia também
as batalhas, as histórias fantásticas, a política, enfim, era deveras diverso o
repertório das narrativas. Eles se inspiravam também em mitologia, lendas, fatos
históricos, tradições populares, que muitas vezes eram transmitidas oralmente.
Faziam paródias de clássicos da literatura, de tragédia grega, ou de algum
acontecimento histórico. Não havia compromisso com a realidade, por isso o
universo fantástico, com figuras mitológicas, morte e renascimento de
personagens, ou, por exemplo, um personagem que viaja para lua (Arlequim na
lua) era bastante comum.
Os atores guiavam-se por um roteiro, que em geral não era escrito, mas
transmitido oralmente. É claro que com o passar do tempo e o treino que os atores
criavam com seus personagens e as situações, esstas cenas “improvisadas” (que
eram testadas e bem recebidas pelo público) foram-se tornando um repertório
para os espetáculos. Tais cenas eram chamadas de Lazzi7, geralmente utilizadas
quando os atores queriam manter o público atento (ou seja, sempre).
7 Do italiano, Lazzi, brincadeiras, jogos de cena, bouffons. Elemento mímico ou improvisado pelo
ator que serve para caracterizar comicamente a personagem. Comportamentos burlescos e clownescos, contorções, caretas intermináveis, jogos de cena são seus ingredientes básicos. Em: PAVIS,1999, p. 226.
28
As máscaras inicialmente representavam arquétipos coletivos, os
velhos, os servos, os enamorados, os soldados como no caso das máscaras
gregas e romanas. Mas com a especialização dos atores elas foram se
individualizando surgindo assim os mesmo tipos das classes sociais, só que
diferenciados. Surgiram os Arlecchinos, Pantalones e Dottores que ganharam
fama e resistem até nossos dias. Esses tipos populares são ainda encontrados no
carnaval, no circo ou nas novelas como Arlequim, Colombina, Polichinelo,
Pantaleão.
Originalmente os servos eram chamados todos de Zanni que derivam do
nome Giovanni (camponeses que vinham trabalhar em Veneza) e são da
categoria dos empregados. Os tipos mais cômicos e populares da Commedia
dell’Arte eram esses. Dividiam-se em duas categorias de servos: o primeiro Zanni,
esperto, que com suas intrigas movimentava para frente as ações; e o segundo
Zanni, rude e simplório, que com suas atrapalhadas brincadeiras interrompia as
ações e desencadeava a comicidade. Os Zannis invariavelmente tinham fome e
usavam uma roupa rústica feita de saco de farinha branca. Quando o ator Tristano
Martinelli começou a fazer um Zanni logo sua performance foi originando o
primeiro Arlecchino. Encarnava uma mistura de esperteza com ingenuidade,
estando sempre no centro das intrigas. Usava inicialmente uma roupa branca e
um cinturão, onde carregava um bastonete de madeira, o batóquio, espada que
com seus dois fios de madeira causa efeito cômico por fazer barulho ao bater no
outro. Como ele é um pobre coitado, sempre roto e rasgado, supõe-se que com o
tempo essa roupa tenha ganhado remendos coloridos e dispersos, de onde
provém a estilização de sua roupa, que ficou cheia de losangos coloridos.
29
Sua máscara é baseada nos traços do gato, macaco e porco. É a
máscara mais rápida e acrobática da Commedia dell’Arte. A maioria das máscaras
nesse período é de cor preta e feita de couro natural. Observe este relato do
artista plástico Erhard Stiefel:
Na commedia dell'arte, a visão do personagem era
traduzida, sobretudo, através do figurino, mais do que pelo rosto. Os olhos eram muito pouco visíveis através da máscara. As máscaras do Arlequim eram todas pretas. Alguns dizem que isso era porque ele era um servidor vindo da África. Eu me questionei durante muito tempo a respeito dessa cor, pois ela não é cênica. Fabriquei máscaras de Arlequins vermelhas e também marrons e pretas. Em sua origem, as máscaras do Polichinelo e Pantalone também eram pretas. Seria uma maneira de apagar o rosto? Acredito que as máscaras da commedia não eram muito "trabalhadas". Imagino que elas eram feitas por sapateiros ou pelos atores, e não por artistas ou artesãos, como é a tradição nos países da Ásia. Na época, me parece que as pessoas que fabricavam as máscaras não podiam dedicar todo o seu tempo a isso.8
Inicialmente, de fato, os próprios atores fabricavam suas máscaras e a
movimentação corporal era o aspecto mais importante que, somado ao jogo
cênico improvisado, foi sendo afinada com a prática. Isso criou entre os atores a
sua “especialização” e o domínio da máscara e da sua própria personagem. Cada
ator era responsável pelos gestos, os ritmos, os tons que com simplicidade
contribuíam para que em qualquer idioma desconhecido a comunicação
acontecesse, pois havia uma aquisição infinita de noções de linguagem e
comunicação.
8 Entrevista realizada por Béatrice Picon-Vallin no Théâtre du Soleil, em 29 de fevereiro de 2004,
em Revista Sala Preta, 2012.
30
Observamos até agora que vários aspectos contribuíram para que os
comediantes criassem estratégia de mercado causando interesse cada vez maior
por onde passavam. Cada ator desenvolveu sua própria máscara que
representava arquétipos (o patrão, o empregado, os enamorados, o doutor) e que
eram fáceis de serem identificados, criaram repertórios variados que poderiam ser
adaptados de acordo com o público e, por fim, cada máscara usava os diferentes
dialetos que correspondiam a sua região. Tudo isso para fidelizar o público.
Na gravura abaixo percebemos a evolução da caracterização do
personagem e consequentemente do figurino.
31
3
O personagem Arlequim e suas modificações: dos remendos primitivos ao conceito de losango.
32
Como exemplo de personagem que faz um percurso nas mais diversas
épocas, temos o velho representado como “o avarento –, que atravessa a história
do teatro desde Plauto (com o Euclião, da Aulularia), passando por Molière (com o
Harpagon, de O avarento) e chegando até o brasileiríssimo Ariano Suassuna (com
o Euricão de O santo e a porca)” (VENDRAMINI, 2001) e se pensarmos nas
novelas (que utilizam toda estrutura popular tal qual os roteiro da Commedia),
temos o avarento Nonô Correia, personagem famoso do contemporâneo ator Ary
Fontoura9.
A Commedia dell’arte teve seu auge no Renascimento e seu
“desaparecimento” no fim do século XVIII. No século XIX não há Commedia de
Máscara e sua tradição é transferida para os bonequeiros-titereiros que
reproduzem os tipos cômicos e suas histórias através do teatro de marionetes,
mas ela enquanto encenação some das praças e ruas e também do cenário
teatral. Quando suas histórias deixam de ser improvisadas por atores e passam a
ser escritas por grandes autores, deixa de ser teatro popular de rua e se
transforma em teatro de sala, em texto dramatúrgico. Nesse período o melodrama,
uma espécie de opereta popular, passa a ser um novo gênero de alcance popular.
9 Novela de Ivani Ribeiro dirigida por Atílio Riccó, Jayme Moinjardim, Gonzaga Blota exibida em
1984. Fonte: site <www.globo.com.br>, blog de Paulo Senna, 2010.
33
1.2 A CORPOREIDADE DA MÁSCARA
O uso da máscara por um ator envolve uma adaptação, um
transvestimento (como falamos) uma ampliação dos gestos. Ela surge para
agigantar e sintetizar a personagem e isso automaticamente modifica os gestos e
a voz. Não se pode usar uma máscara em cena e ter os mesmos gestos
cotidianos. Ela é um objeto fixo, em repouso ou um objeto morto, mas cria vida ao
ser utilizada por um ator.
E para que ela crie vida, o corpo do ator funciona como uma espécie de
moldura à máscara, pois seus movimentos vão transformar essa fixidez e, em
determinados momentos, o espectador precisa ter a nítida sensação de que a
máscara também tem mobilidade.
Assim como na Grécia ou Roma, os atores da Commedia Italiana eram
acrobatas, dançarinos, mas também dominavam a corda bamba e equilíbrio de
copos e pratos, tocavam instrumentos e cantavam além, é claro, de improvisarem,
já que tinham tantas ferramentas a sua disposição.
O ator de commedia dell'arte devia ser capaz de fazer contorções, piruetas, cambalhotas, saltos mortais. (Um ator incapaz dessas artes estaria praticamente impossibilitado de representar o Arlequim servidor de dois amos, de Goldoni.) Silvio D'Amico nos informa, em Storia del Teatro Drammatico, que o Scaramuccia Fiorilli, com 83 anos, ainda distribuía chutes aos interlocutores com a planta do pé. Ainda nesse aspecto – as acrobacias –, há referências que remetem imediatamente aos números circenses (o que evidencia o filão popular a que pertencem tanto a commedia dell'arte quanto a arte do circo): era comum, na commedia dell'arte, um ator dar uma cambalhota no ar com uma garrafa cheia de vinho na mão sem derramar uma só gota. Eletrizada, a plateiaplateia com certeza devia ficar profundamente gratificada por tanta diversão (VENDRAMINI, 2001).
34
A relação ator-plateia se dava diretamente sem nenhum ilusionismo
privilegiando mais as ações físicas do que a dramaturgia. Atuavam olhando
diretamente para a plateia e em muitos casos conversavam com o público. Essas
informações nos chegaram através de relatos e ilustrações da época e foram
pesquisadas na grande maioria por artistas/pesquisadores do início do século XX.
As máscaras eram feitas de couro molhado e eram fixas num molde
que em geral era esculpido na madeira. As linhas podiam ser inspiradas por algum
traço de animais relacionado a uma característica física.
Por exemplo, a agilidade de um gato ou a fome de um porco podia ser
incorporada ao seu jeito de andar e falar, por isso o ator tinha que explorar outras
movimentações e explorar “outras vozes”.
4
Gravura de pesquisa do grupo de teatro Moitará comparando máscaras baseadas em animais e humanos. 10
No caso da Commedia, os tipos criados representam os arquétipos, a
máscara de um velho traz todos os velhos; a do empregado, todos os serviçais; a
dos enamorados, todos os que estão apaixonados; os doutores, a sua erudição.
10
Fonte: < http://www.grupomoitara.com.br/d200_por.php>
35
As máscaras se tornam a representação do coletivo e, por isso, em várias partes
do mundo de diferentes épocas encontramos as mesmas características de
determinados tipos e hierarquia social.
Encontramos, ainda, no teatro oriental muita semelhança das máscaras
e seus tipos, como nos diz Dario Fo:
[...] as máscaras da Commedia dell’Arte descendem, parcialmente dos mesmos tipos encontrados no teatro greco-romano. Por sua vez se sabe, o teatro grego possui suas raízes no teatro oriental. Existe uma máscara balinesa muito semelhante à máscara do Pantalon de Bisognosi: a imitação de um velho, com a mesma carranca, igual risada de escárnio, os olhos encovados, sobrancelhas e saliências frontais que criam um tipo bastante particular. Além disso, há uma máscara simiesca proveniente da Índia, de conotações antropomórficas: assemelha-se à máscara mais arcaica do Arlecchino. A partir dessas analogias, podemos compreender a trajetória das migrações culturais, desde o Oriente até o Mediterrâneo, do mundo antigo ao da Commedia dell’Arte (FO, 1998, p.40)
Quando o ator coloca uma máscara pela primeira vez, percebe que não
é possível fazer uma cena de forma natural, não pode ignorar esse objeto que tem
uma forma definida e que modifica o seu rosto. E por ter uma forma fixa, a
máscara deve criar movimento quando for utilizada pelo ator, sua linha vai ser
transformada pelo desenho corporal de acordo com as indicações que ela vai
sugerir ao ator. O primeiro passo é tatear e sentir os relevos que foram criados
pelo artista que a moldou, depois ela vai ser colocada no rosto e, a partir daí, cria-
se um primeiro contato.
O trabalho de conhecimento e reconhecimento da máscara é
importante, pois vai criar uma intimidade entre ela e quem vai usá-la. É necessário
36
que esses primeiros momentos sejam percebidos com delicadeza para que as
sensações permaneçam no trabalho que vai se desenvolver, pois ela em geral já
contém significados que a própria máscara traz para o personagem.
A máscara é feita a partir de um molde do rosto do ator e depois
esculpida com a forma do significado do personagem. Na Commedia, os traços,
as linhas e reentrâncias são baseados em rostos de animais, tornando-se uma
forma exagerada e até absurda. Mas na verdade este exagero será compensado
pela movimentação do ator, que vai projetar seu corpo para criar vida à máscara.
Como nos diz na entrevista a diretora paulista Cristiane Paoli-Quito:
Essa relação da oportunidade de você criar uma personagem através do seu conteúdo físico - quando eu digo físico estou falando da máscara incorporada - na hora que você veste aquilo, ela tem um peso... a ponta do nariz indica o desenho gráfico que seu corpo constrói no espaço e isso é código. Então o espectador, na hora que ele vai te ver, vai ter as leituras, se aquele nariz está recuado pode denotar medo, quando ligeiramente levantado pode te indicar certa arrogância (ou falsa arrogância). Esses pequenos desenhos de angulações que a máscara traz são leituras muito claras da interpretação, do que eu tenho enquanto espectador na leitura daquele desenho. 11
O estudo do movimento dos animais é um material riquíssimo para os
atores e bailarinos, e a máscara permite essa pesquisa, pois ela confere um status
mágico a quem a utiliza. Isso acontece porque ela lida com uma relação de
igualdade na relação animalesca que somos, não trabalha necessariamente com a
inteligência, trabalha com o primitivo, com nosso instinto, que na evolução o
homem foi cada vez mais renegando.
11
Entrevista com Cristiane Paoli-Quito, diretora da Escola de Arte Dramática/ USP e diretora artística do Grupo Nova Dança 4, Abril de 2006, apud monografia de Deborah Serretiello de A. Camargo para o curso de pós-graduação Arte integrativa, p. 51.
37
Os enredos da Commedia de máscaras eram de fácil compreensão,
pois o perfil das personagens era prontamente reconhecível pela plateia, uma vez
que se repetiam de peça em peça, variando somente o roteiro. Seus temas tinham
estrutura precursora ao melodrama e giravam sempre em torno do amor de
jovens, aliás, os tipos chamados enamorados eram os únicos personagens sem
máscaras e cativavam o público por representar o amor ingênuo.
Todos os recursos que estivessem disponíveis poderiam ser colocados
em cena para atrair o público. Por isso havia um incentivo às habilidades de cada
componente da companhia. O ator-mímico, por exemplo, dominava os lazzi,
pequenas cenas de ação rápida e cômica com o objetivo de provocar gargalhadas
levantando a energia da cena ou que tinham a função de “fazer hora” para dar
tempo dos demais atores descansarem ou realizarem trocas de roupas. Contudo,
ainda mais importante é o fato de que toda a representação costumava ser
improvisada durante a apresentação, por isso não existem “textos” de Commedia
dell’Arte.
Por isso essa manifestação de teatro ancestral deu origem e foi
referência de um tipo de teatro moderno. Como nos diz Vendramini:
Guardadas as profundas diferenças que caracterizam cada um deles, pode-se pensar que a commedia dell'arte antecipou, na prática, o que só muito tempo depois viria a ser teorizado (e praticado, no caso do diretor russo) por Meierhold e Artaud, que preconizavam um teatro que nascesse do próprio palco, independentemente da dramaturgia (2001).
38
1.3. Retomada da Teatralidade nos Séculos XIX e XX
O século XIX ficou conhecido como o tempo da sociedade do
espetáculo12. Historicamente esse é o período da grande indústria, da
urbanização, do desenvolvimento do progresso e da democracia. Com a expansão
das cidades havia uma necessidade de distrações e entretenimento. Nas
principais cidades europeias havia uma gama enorme de categorias sociais. Por
isso o divertimento coletivo começa a se desenvolver e o teatro consegue alcançar
grandes plateias, para cada tipo de plateia se criam gêneros diferentes. Como nos
diz Christophe Charle:
Entre as décadas de 1860 e 1890 florescem, assim, os novos gêneros mistos de cultura média (operetas, revistas, variedades); pouco depois surge o que hoje chamamos de “a vanguarda” e realizam-se diversas tentativas de um “teatro popular”, procurando afastar as classes populares de distrações fáceis, em pleno desenvolvimento (2012).
Se por um lado temos um teatro de texto naturalista13 dentro de prédios
tradicionais que apresentam peças de grandes autores, sobrecarregados de
cenários vistosos, de maquinários e jogos de luzes (pois nesse período estamos
em pleno desenvolvimento de recursos técnicos); por outro lado temos a
proliferação de casas com divertimento mais barato como cafés, concertos,
cabarés, circos, feiras e parques de diversões que tinham performances de rua
para atrair público popular.
12
CHARLE, 2012, p.19. 13
A representação naturalista se dá como sendo a própria realidade, e não como uma transposição artística no palco (nasce por volta de 1880-1890). Em PAVIS, 2011, p. 261.
39
As grandes companhias eram empresas que empregavam muitos
artistas (músicos, atores, técnicos) e promoviam as “estrelas”, os grandes
protagonistas, os chamados “primeiros atores (atrizes)” das companhias, criando a
ideia de elenco composta ainda por coadjuvantes, figurantes e orquestra. O
mercado teatral tem grande expansão e já conta com estratégias para atrair
público de classes sociais mais ricas.
Nas atrações de cunho popular havia os parques de diversões
(carrosséis, balanços, rodas gigantes), o teatro de bichos (domadores de ursos,
leões, combates de animais), teatro mágico (prestidigitadores, desaparecimento
de objetos, hipnotizadores, autômatos, exibidores de monstros), o teatro mecânico
(panoramas, dioramas), demonstradores de força humana (ginastas, funâmbulos,
malabaristas), teatro dramático de marionetes (VALLIN, 2008, p. 2). Essas
manifestações vão inspirar o teatro de pesquisa e vanguarda do início do século
XX e contaminar o primeiro cinema.
Devido a esse panorama, quando os renovadores do teatro no início do
século XX buscam um novo ator, muitos recorrem ao treinamento da máscara
como um caminho para criação de uma nova presença cênica. O ator verborrágico
do teatro de texto não tinha o corpo expressivo necessário ao novo momento do
começo desse século, que prometia grandes transformações. E para reformular
esse novo momento artístico era preciso redescobrir técnicas do ator, do
movimento, da máscara resgatando momentos históricos em que o ator era o
principal elemento da cena. Em busca da teatralidade perdida então há um
resgate das técnicas da atuação da Commedia dell’arte, principalmente do ponto
40
de vista do treinamento físico, da volta da improvisação e do jogo dos atores em
cena.
Inspirado no retorno à máscara da Commedia dell’Arte, Jacques
Copeau, pesquisador francês, iniciou o estudo de expressão corporal com várias
outras máscaras. Uma delas surgiu do isolamento do rosto, o chamado véu, que
consistia em um pano que cobria a cabeça e dava mais ênfase ao resto do corpo.
Ele cria, com isso, a L´École do Vieux Colombier 14, uma escola de formação de
atores que teve vida curta, mas suficiente para influenciar muita gente. Na escola,
durante cinco horas por dia, eram realizados, pelos atores, treinamento físico,
estudos de textos, leituras em voz alta ao ar livre, discussões teóricas. Ela foi uma
atitude pioneira e surgiu inspirada por outros pesquisadores da mesma época, tais
como Meyerhold, Stanislavski e Danchenko, na Rússia; Max Reinhardt, Littmann,
Fuchs e Erler, na Alemanha; Gordon Craig e Granville Barker, na Inglaterra. Todos
os artistas citados estavam em busca de um retorno às origens do teatro como
forma de descoberta de seus valores essenciais e da utilização da máscara como
meio de se expressar pelo corpo. Não só a meia máscara expressiva da
Commedia foi estudada, mas a técnica de máscara das mais variadas formas:
meia-máscara expressiva, a menor máscara do mundo que é o nariz de palhaço
(clown), a máscara neutra (que surgiu do véu) e também máscaras sugeridas
como acento de personagem, ou seja, apliques que modificam o rosto (nariz
exagerado, queixo proeminente).
14
Écola du Vieux-Colombier – (1913-14, França): Escola criada por Jacques Copeau, colaborou para diversas reformulações da cena francesa do início do século XX. Copeau formou diversos artistas reconhecidos pela crítica da época e subsequente. Tais como: Louis Jouvet, Charles Dullin, Suzanne Bing, Etienne Decroux, Jean-louis Barrault, Marcel Marceau.
41
5
Etienne Decroux aluno da escola Vieux Colombier e seu estudo de expressões com véu.
Vejamos como Patrice Pavis (2011, p. 234) define a volta do uso da
máscara e os motivos para que isso tenha se dado:
O teatro contemporâneo ocidental reencontra o uso da máscara. Esta redescoberta (se se pensar no teatro antigo ou Commedia dell’Arte) acompanha a reteatralização do teatro e a promoção da expressão corporal. Além das motivações antropológicas do emprego da máscara, (...) a máscara é usada no teatro em função de várias considerações, principalmente para observar os outros estando o próprio observador ao abrigo dos olhares15. A festa mascarada libera identidades e as proibições de classe ou de sexo. Escondendo-se o rosto, renuncia-se voluntariamente à expressão psicológica, a qual em geral fornece a maior massa de informações, muitas vezes bastante precisa, ao espectador. O ator é obrigado a compensar esta perda de sentido e esta falta de identificação por um dispêndio corporal considerável. O corpo
15
Grifo meu.
42
traduz a interioridade da personagem de maneira muito amplificada, exagerando cada gesto: a teatralidade e a espacialização do corpo saem daí consideravelmente reforçadas. A oposição entre um rosto neutralizado e um corpo em perpétuo movimento é uma das conseqüências estéticas essenciais do porte da máscara. A máscara, aliás, não tem que representar um rosto: assim, a máscara neutra e a meia máscara bastam para imobilizar a mímica e para concentrar a atenção do corpo do ator.
A máscara desrealiza a personagem16 ao introduzir um corpo estranho na relação de identificação do espectador com o ator. Ela será, portanto frequentemente utilizada quando da encenação buscar evitar uma transferência afetiva e distanciar o caráter.
A máscara deforma propositalmente a fisionomia humana, desenha uma caricatura e refunde totalmente o semblante. Expressão grotesca ou estilização, cópia reduzida ou enfatização, tudo se torna possível com os materiais modernos com formas e mobilidade surpreendentes.
Então, pode-se dizer que diante da revolução científico-tecnológica que
o mundo passa a viver principalmente no final do século XIX, a técnica de
interpretação com máscaras vai influenciar as performances no teatro como
preparação para o ator e no cinema mudo como forma de representar gestos sem
fala.
O cinema vai conquistar massas maiores do que o teatro e logo artistas
oriundos do teatro ou das artes burlescas percebem o potencial inovador e
passam a fazer experimentações aplicando técnicas de interpretação baseadas
no exagero da máscara. Esses artistas inicialmente vão aproveitar os esquetes
ou pequenas gags de números encenados nos próprios teatros de vaudevilles,
nos circos, encenações burlescas, números de mágica e ilusionismo. Nesse
sentido esses primeiros filmes eram muito próximos ao que se supõe que era feito
16
Grifo meu.
43
na Commedia dell’arte organizados frontalmente, de forma não realista, com
cenários feitos de painéis misturando objetos reais com elementos pintados. E
principalmente outra característica importante desse período do cinema de
variedades é o que se chama de “sistema colaborativo”17, uma forma de trabalho
regido pela parceria. Nessa fase as artes teatrais são a base do cinema. É claro
que neste início a convivência entre os dois tipos de representação estava só
começando e a transposição não poderia ser imediata.
Se pensarmos no cinema mudo logo podemos fazer relações com a
Commedia e suas características “na década de 10, todas as formas de perigo
físico – explosões, colisões, lutas elaboradas, perseguições e resgates no último
minuto – estavam aperfeiçoadas” (ALMEIDA, 2007)
Esse gênero contextualiza o mundo urbano e mecânico que se inicia no
século XX e é denominado na década de 20 de cinema burlesco. Vejamos o
significado do Burlesco:
O burlesco é uma forma de cômico exagerado que emprega
expressões triviais para falar de realidades nobres ou elevadas,
mascarando assim um gênero sério por meio de um pastiche
grotesco ou vulgar: é a explicitação das coisas mais sérias por
expressões totalmente cômicas. Hoje é no cinema que o burlesco
se exprime melhor: nas comédias de Buster Keaton, dos Irmãos
Marx ou Mack Sennett, as gags visuais correspondem ao desvio
estilístico praticado pelo burlesco clássico. Neste sentido, o
princípio textual do burlesco se transforma em princípio lúdico e
visual: opõe, então, uma maneira séria de se comportar e sua
17
O processo colaborativo acontece quando todos os criadores colocam experiência, conhecimento e talento a
serviço da construção da cena de tal forma que se tornam imprecisos os limites e o alcance da atuação de
cada um deles. Foi muito praticado na Commedia Dell´ Arte e era muito utilizado no inicio do cinema.
44
desconstrução cômica por um desarranjo inesperado (PAVIS,
2011).
Esse “cômico exagerado” de que diz o texto está relacionado à “principal
figura de linguagem utilizada em um trabalho cômico que é a hipérbole. Isto é,
quando se muda a dimensão de objetos, pessoas ou ideias, temos uma
imensa possibilidade de fazer rir. Um palhaço utilizando-se, por exemplo, de
uma bengala, cuja utilidade real é dar apoio, deve mudar-lhe o sentido. Se
usarmos a hipérbole - aumentando ou diminuindo esta bengala - ela perderá
sua função real de apoio, passando a ter uma função cômica e quando
utilizada não servirá para apoiar, provocando tombos e tropeções, mostrando o
erro. Aí está aquilo que pode servir de base a qualquer trabalho cômico, não só
de palhaço, que é: "Errar é humano" (POSSOLO, 2002).
O aumento grotesco das ações fica muito claro quando destacamos
algumas características do gênero burlesco e comparamos aos conceitos
vistos da Commedia dell’arte. Tais como:
Os personagens preferidos inicialmente são os tipos comuns inadequados, os bêbados, os vagabundos, os inaptos, os fracos, os excluídos. No final das histórias em geral acabam sendo acolhidos e aceitos. E esses personagens são as figuras mais importantes da ação com o seu corpo que é “móvel, maleável, transferível como o meio real de todas as aventuras do filme. E nestes tão pobres argumentos, o corpo é o primeiro objeto da ação... É sistemático que as aventuras burlescas tenham pouco a ver com o desenvolvimento da história, mas sim, primeiramente com a figura dos personagens (SCHEFER, 1980, p. 61).
45
Cenários e maquiagens também são exagerados: os cenários eram
criados para que as movimentações pudessem ser realizadas e criassem a
sensação de que tudo aconteceu por acaso. Os ambientes internos explorados
eram escadas, portas, mesas que giram, tapetes e os mais variados tipos de
novidades da modernidade como camas que saem da parede, chuveiros do último
tipo, telefones de formas variadas. Os ambientes urbanos eram exaustivamente
explorados como ruas, construções, carros, trens mostrando a transformação que
a nova vida nas metrópoles trazia para o homem moderno.
A maquiagem, que parecia uma máscara, ressaltava olhos e bocas,
aumentava bigodes, cabelos reforçando as expressões e ainda muito próximo ao
exagero teatral. Muitos bigodes, sobrancelhas, costeletas eram feitas a lápis
exageradamente sem nenhuma preocupação com o real. Podemos observar que
para compor a sua máscara o ator Groucho Marx no início pintava seu grosso
bigode e as sobrancelhas e só muito tempo depois passa a ter um bigode real.
O ritmo das cenas nos remete a Commedia dell’arte. Sempre de
personagens saltitantes e acelerados que davam a sensação de urgência sem
perda de tempo. Isso, é claro, já demonstra um recurso cômico que foge do
realismo e faz com que o espectador não pense e seja levado somente pela ação
física. Percebemos que os atores que se destacaram no burlesco tinham uma
forma física ágil e acrobática. Possivelmente devido ao permanente risco a que se
submetiam, eles deram origem aos primeiros doublés no cinema, pois eles
mesmos executavam corajosamente todas as cenas perigosas. Um dos filmes
mais intrigantes nesse sentido é o de Harold Lloyd, Safety Last, de 1923. Nessa
narrativa, o personagem de Harold sobe um edifício inteiro pelo lado externo e
46
ainda fica pendurado por um dos ponteiros do relógio onde tenta chegar a salvo
no topo do prédio.
E esse ritmo intenso era desenvolvido por meio da repetição e do
aumento das ações até o insuportável. Em um curta de 1916, One AM, Charlie
Chaplin faz um personagem playboy bêbado que tenta entrar em casa. Realiza
uma série de ações repetidamente e a cada repetição acontecem mais
dificuldades. Explorando com maestria o uso do trabalho acrobático, Chaplin vai
até o limite de cada ação: todas as possibilidades de um bêbado sair do carro,
todas as possibilidades de ele entrar em casa sem chave, todas as possibilidades
de ele subir as duas escadas que vão dar na porta do quarto, todas as
possibilidades de ele deitar-se na cama, de tomar banho ainda vestido até que,
por fim, exausto dorme de roupa na banheira.
Outra característica que foi emprestada da Commedia dell’arte é a de
inclusão do espectador cada vez que o personagem (ou o ator) quer destacar o
que está acontecendo ele para de se movimentar e dirige seu olhar para a
câmera. Olhar para plateia é muito utilizado em shows de variedades, circos e
espetáculos de rua e causa uma quebra na ilusão da história destruindo o
realismo da cena.
A queda de objetos, tapas, empurrões, tropeços são ações físicas que
têm sua raiz originalmente nos cômicos dell’arte e que são repetidas até hoje nas
técnicas da palhaçaria do circo, chamadas de claques18, presentes em quase
18
As claques, que em francês quer dizer palmas, são todos os tipos de tapas e bofetões que o palhaço leva ou dá e que saem fortes como o som das palmas feitas na hora, por próprios palhaços, para simular o barulho das pancadas. As cascatas que são os tombos e quedas variados, sempre cheios de recursos acrobáticos. POSSOLO, 2002.
47
todas as cenas e que determinam a sua comicidade. As perseguições também
eram marca registrada nos primórdios. Como exemplo clássico, temos Keystone
Cops19, que faziam perseguições tresloucadas em grupos enormes. Eles dão
origem à clássica perseguição dos “guardas atrás dos inadequados sociais”
repetida ideia nas encenações cômicas de que sempre há um guarda tentando pôr
ordem na situação.
Quanto à construção narrativa, podemos ainda observar que não há
nelas continuidade predefinida, as histórias mais parecem “colagens” em que
quase sempre as situações
se passam nas ruas, tratam de conceitos banais do dia-a-dia, cenas da vida cotidiana vão se desenrolando no tempo, e vão desvendando uma incrível quantidade de coisas imperceptíveis que vão surgindo da imagem em movimento. De repente um detalhe inesperado dentro da normalidade provoca um transtorno e desestrutura a ordem normal dos acontecimentos. É a gag (LYRA, 2003, p. 187).
Temos, então, mais um elemento da Commedia dell’arte que é a gag,
ou seja, uma reapropriação dos lazzis. O burlesco tradicionalmente surge dessas
pequenas sequências de situações que levam ao riso por exagerarem
acontecimentos do dia-a-dia de forma grotesca. A gag nasce
do inglês norte-americano gag: efeito burlesco. A palavra é empregada em Francês e nasce (como foi dito) na década de 20. A gag é no cinema um efeito ou esquete cômico que o ator parece improvisar e que é produzido visualmente, a partir de objetos, de situações inusitadas: é, na gíria dos estúdios, um achado
irresistível que revigora e multiplica o riso num filme cômico20.
19
Em português: Guardas Keystone Os filmes eram produzidos pelo célebre Mack Sennett para a sua companhia, a Keystone Studios entre 1912 e1917. 20
Blaise. Cendrars em L`Homme Foudroyé
48
Cada artista acabava desenvolvendo o seu repertório de gags que se
repetia e formava sua marca registrada. Temos como exemplo: Buster Keaton e
seu rosto impassível em oposição a sua agilidade corporal, Oliver Hardy e Stan
Laurel (O Gordo e o Magro) e suas atrapalhadas movimentações, todas as
sequências dos três irmãos Marx, em que cada um criava seu tipo cômico com
sua mania.
E ainda segundo Lyra, “a gag é indispensável para deflagrar o burlesco”.
Ela surge em situações variadas, das quais algumas se tornaram clássicas:
Polícia correndo atrás de bandido, cachorro acossando
um vagabundo, comerciante perseguindo um ladrão, mulher à
procura do marido... para correr melhor as senhoras levantam as
saias, os tornozelos à mostra é uma atração nos filmes de
perseguição... o filme de perseguição nasceu na Inglaterra e foi
rapidamente adotado nos EUA (TOULET, 2000, pp.118-119, apud
LYRA)
Esse contexto de retomada dos modelos de mascaramento da
Commedia dell’arte vai, entre outras coisas, criar a valorização da improvisação
influenciando os grupos de vanguarda não só do início do século, mas dos grupos
pós-modernos com seus happenings, criações coletivas e performances do final
do século XX.
49
1.4. Teatralidade Cinema/Teatro
Vamos tratar agora de outro elemento que é a teatralidade e está
implicitamente relacionada à ideia de máscara. A teatralidade é um termo muito
utilizado no mundo contemporâneo e ao mesmo tempo se encontra em crise de
identidade em quase todas as artes, principalmente no teatro e cinema, onde as
fronteiras se misturam. Patrice Pavis (2011, pp. 371-2) a define assim:
A teatralidade seria aquilo que, na representação ou no texto dramático, é especificamente teatral (ou cênico). A teatralidade pode se opor ao texto dramático lido ou concebido sem a representação mental de uma encenação. Em vez a de achatar o texto dramático por uma leitura, a espacialização, isto é a visualização dos enunciadores, permite fazer ressaltar a potencialidade visual e auditiva do texto, apreender sua teatralidade. Que é teatralidade? Teatro menos o texto, é uma espessura de signos e de sensações, gestos, tons, distâncias, substâncias que submerge o texto sob toda a plenitude de sua linguagem exterior.
a) Teatral quer dizer muito simplesmente: espacial, visual, expressivo, no sentido de que se fala de uma cena muito espetacular e impressionante. Este emprego variável de teatralidade é muito frequente hoje... mas em suma, banal e pouco pertinente.
b) Teatral quer dizer a maneira especifica da enunciação teatral, a circulação da fala, o desdobramento visual da enunciação (personagem/ator) e de seus enunciados, a artificialidade da representação.
Nessa definição percebemos que a teatralidade está relacionada à ação
física ou à realização de movimento em um espaço que pode ser definido como
cênico. Entende-se por espaço cênico um palco ou qualquer lugar que se tenha
intenção de criar uma cena. O autor observa também que a palavra teatral pode
50
ser empregada de forma pejorativa no cotidiano quando se quer dizer que algo é
muito exagerado.
A pesquisadora teatral, Josette Feral trata assim a noção de teatralidade:
A teatralidade pressupõe o sujeito que olha (espectador) e só tem sentido em relação a ele. Veremos que o papel desse sujeito é fundamental no funcionamento da teatralidade. (...) A noção de teatralidade surgiu em meados do séc. XX. Evreinoff 21 é o primeiro a mencionar a palavra em Russo (teatralnost) em 1922. A palavra será esquecida durante algumas décadas antes de ressurgir nos discursos há uns vinte anos [....] Na verdade, os textos datam no máximo, dos últimos vinte anos o que mostra que os esforços para conceituar a noção de teatralidade fazem surgir preocupações recentes e estão ligados a diversos intentos de pensar os fundamentos de uma teoria do teatro.
O primeiro uso do termo teatralidade qualifica como teatral uma ação de representação (que não está tomada necessariamente dentro de um marco teatral) muitas vezes excessiva, artificial, exagerada. Se falará assim de uma entrada teatral, de uma voz teatral, de um gesto teatral. Implicitamente se trata de um juízo de valor acerca da cena observada. É a acepção mais difundida – e a mais superficial _ da “doxa” que muitas vezes associa ali um juízo de valor para demonstrar a artificialidade da cópia. No domínio de uma teatralidade imitativa fundada na mimese concebida como imitação, estando a imitação observada, o espectador teria a imagem desse original e reconhece na cópia o parecido com essa imagem. Reconhecer: processo de reconhecimento do espectador, alusão a uma certa visão do teatro (que está fechada – parodicamente, o teatro que evoca não se faz mais -) e a afirmação de que “o ator” (o que atua) está na ordem da falsa aparência, do parecer (FERAL, 2003, pp. 33-4)
Feral vai distinguir quando a teatralidade é aplicada a cena ou quando é
utilizada como significado de artificialidade, de afetação. Ela define também que a
teatralidade está diretamente ligada ao espectador ao ato de representar, ou seja,
uma forma de jogo, lúdico. E continua: “O prazer da teatralidade não se baseia no
21
Nicolas Evreinoff:importante diretor teatral e dramaturgo russo do início do século XX, associado ao simbolismo russo e à Revolução Russa de 1917. Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
51
reconhecimento, mas provém do prazer de ver o outro jogar com as aparências. É
então o prazer do deslocamento de signos, o jogo de construção-desconstrução
que se entrega ao espectador (p. 34). “Para a teatralidade se instalar, o espaço
determinado para a representação é transformado a partir do instante que se
supõe que ali haverá uma encenação. Imediatamente esse local estabelecido
sofre uma mudança de significados e sua atmosfera já não faz parte da dimensão
do real”. Completando essa ideia, a dramaturga Silvia Fernandes diz que “a
teatralidade não é um dado empírico ou uma qualidade, mas uma operação
cognitiva ou ato performativo daquele que olha (o espectador) e/ou daquele que
faz (o ator). Tanto ópsis quanto práxis, é um vir a ser que resulta dessa dupla
polaridade” (FERNANDES, 2011).
Em o Espaço Vazio, o diretor Peter Brook (2008) define que para criar a
teatralidade basta estabelecer um determinado espaço (no caso um tapete) entre
o ator diante do público que imediatamente se abre uma brecha entre o real e o
teatral, entre realidade e ficção. São os agentes da ação (atores), usando o gesto,
o olhar e o sentido que as palavras desenham que criam os significados. Mas
também é a expectativa do espectador que desenvolveu sua atenção e começou a
ver de forma diferente aquele espaço. No entanto, aqui ainda contamos com a
intencionalidade de que haveria uma representação (local da apresentação, um
tapete ou cenário preparado para a cena ou qualquer indício de que vai haver uma
cena). E, então, a teatralidade já é esperada.
E quando não há nenhum indício de que o que aconteceu foi uma
representação? A teatralidade é estabelecida?
52
Nos anos 70, Augusto Boal cria dentro do Teatro do Oprimido um exercício
chamado Teatro Invisível. A ideia é desenvolver um tema que se quer discutir e
um grupo de atores sai por diversos locais reais para fazer uma representação da
situação. Contudo, ninguém avisa ao público que se trata de uma encenação. O
intuito final é não avisar nem ao término que se trata de uma cena de teatro. Claro
que isso tem suas consequências:
O Teatro invisível esbarra quase sempre num problema importante: a segurança. O Teatro invisível oferece cenas de ficção, mas sem os atenuantes ritualísticos do teatro convencional, essa ficção torna-se realidade. O Teatro invisível não é realismo: é realidade. É nessa realidade que tudo se passa. Uma jovem assedia um rapaz no metrô de Paris, uma mulher que sente dores do parto em um ferry-boat em Estocolmo, uma mulher negra que é expulsa do seu lugar, um grego que disputa com um marido sueco a companhia de sua mulher, uma família que toma chá no meio da rua – tudo isso é realidade, mesmo que tudo tenha sido ensaiado. Realidade e ficção se interpenetram, mas nós sabemos que a ficção é sempre uma das múltiplas formas que a realidade assume, tão real como qualquer outra. Tudo é real: a única ficção que existe é a palavra ficção, porque designa uma coisa que não existe (BOAL, 2000, pp. 23-4).
Quando Boal insiste em afirmar que tudo isso “é realidade” é porque o
espectador desconhece a teatralidade, e a ação passa a ser simplesmente uma
cena cotidiana não se estabelecendo a atmosfera teatral. Contudo, em alguns
casos, acontecem imprevistos como com a cena da jovem do metrô, em que a
polícia foi acionada e o teatro revelado22. Nesse caso a discussão se modifica e
passa a ter uma leitura da teatralidade que só apareceu quando o espectador
22
Situação relatada por Augusto Boal em: BOAL, Augusto. O Arco-Iris do Desejo: Método Boal de Teatro e Terapia. Rio de Janeiro, 2002.
53
soube que ali havia uma representação. De repente esse saber lhe permitiu ver a
coisa de modo diferente, transformar um acontecimento em representação, em
signo, o que o retirou da banalidade cotidiana. Quando o Teatro invisível não é
revelado, somente o grupo de atores pode descobrir qual foi o resultado dessa
experiência sociológica/estética e, nesse caso, a ilusão é um êxito. A simulação foi
perfeita. No caso do Teatro invisível temos uma ideia, um objetivo do seu criador
que é estimular o espectador a discutir certas situações da realidade social em
que vive Sendo assim, a questão da teatralidade tem uma condição sine qua non
que é saber que ali houve teatro. E ela tem pouco a ver com o espaço onde é
realizada. Ela pertence ao espectador, sem ele a teatralidade não faz sentido.
Para entendermos o que tem acontecido com a teatralidade na sociedade
hipermoderna é preciso pensar sobre a questão de um novo conceito de teatro
contemporâneo: o "pós-dramático".
Formulado pelo crítico e professor de teatro alemão Hans-Thies Lehmann
em sua obra Postdramatiches Theater , publicada em 1999, na Alemanha. Nesse
texto, Lehmann afirma que totalidade, ilusão e reprodução do mundo constituem
termos do teatro dramático23. E, nesse sentido, a realidade do novo teatro começa
exatamente com o desaparecimento do triângulo: drama, ação, imitação, o que
acontece em escala considerável apenas nas décadas finais do séc. XX.
O drama, para ele,
23
“Teatro dramático é o da dramaturgia clássica, do realismo e do naturalismo, ele se tornou a forma canônica do teatro ocidental desde a celebre definição de tragédia pela poética de Aristóteles: “Imitação de caráter elevado e completo, de uma certa extensão [...], imitação que é feita pelas personagens em ação e não através de um relato, e que, provocando piedade e terror, opera a purgação própria de tais emoções.” PAVIS, 2011, p.110.
54
pressupõe a relação estabelecida entre duas pessoas (...) e está intrinsecamente relacionado com a noção de dialética, conflito. O teatro se constituiu a partir dessa série de elementos que são: pessoas, espaço e tempo. O que aconteceu com a modernidade foi que essa forma tradicional de teatro, ou todos os elementos
relacionados, explodiu (2013, p. 10).
Quando esses elementos explodiram, viraram o próprio tema da peça. Por
isso muitas peças pós-dramáticas são extremamente lentas, porque o tempo, por
exemplo, passa a ser o objeto. O autor afirma ainda que a forma como as histórias
são contadas no teatro não podem mais ser as mesmas. E que o teatro poderia
ser um “cinema tridimensional” 24. Essa noção é construída por Lehmann, a partir
de uma noção de Gertrude Stein, a qual escreveu as “peças-paisagens”, nas duas
primeiras décadas do século XX, nas quais se sugere uma produção de presença
dos atores em cena, em lugar da representação e os segmentos textuais de suas
obras funcionam como molduras de quadros. Essa autora é a fonte inspiradora do
diretor Robert Wilson, apontado pode Lehmann como um importante
representante do pós-dramático.
As disposições no ato teatral mudaram a utilização dos significantes do
teatro, tornando-o mais manifestação que significação, mais impulso de energia
que informação. No que interessa ao estudo da teatralidade, Lehmann descreve
como novo procedimento aquilo que ele chama de teatro cinematográfico. Embora
o autor trabalhe com muitos outros procedimentos a fim de definir esse novo fazer
teatral, que é o “pós-dramático”, tais como: os poemas cênicos, as
24
Relato aqui o que ouvi numa palestra, no Teatro GEO em SP, em março de 2012, após a peça “Vermelho”, protagonizada pelo ator Antonio Fagundes (e Bruno Fagundes) após o espetáculo, foi perguntado “o que ele achava dessa moda do cinema 3D?” Ao que o ator respondeu, afirmando que o cinema 3D é o Teatro.
55
interdisciplinaridades, os ensaios teóricos encenados, o hipernaturalismo,
interessa a esta pesquisa a relação com o cinema. O destaque fica a cargo de um
interessante conceito, por ele elaborado, em torno da presença e não presença.
Por exemplo, em 2009, um espetáculo chileno - "Sin Sangre"25 -, que
encerrou o 18º Festival de Curitiba e esteve recentemente no Teatro Sérgio
Cardoso, o diretor Juan Carlos Zagal definiu a montagem como "thriller dramático
cine-teatral" ou, simplesmente, "teatro de ação". Já a Cia. Teatrocinema, como diz
o nome, tem tentado, em sua concepção teatral, a fusão das duas linguagens.
Assim, um carro estacionado no palco ganha "movimento" graças à estrada
projetada no telão alguns centímetros atrás; da mesma maneira, um chute no ar
de um ator "de carne e osso" abre uma porta imaterial. Nesse caso o resultado da
encenação é muito inusitado como pesquisa de linguagem, mesmo com a
quantidade enorme de aparato tecnológico e técnico (são ao todo cinco toneladas
de equipamento). O teatro parecia teatro ilusionista e tinha atmosfera de filme noir,
gângster, advindo dos anos 40. Como diz o ator Rodrigo Bazáes em uma
entrevista, os atores do grupo não sabiam como seria o resultado e sentiam que
essa pesquisa era a ponta de um iceberg de possibilidades a mistura entre cinema
e teatro. Para sustentar a teatralidade, o ator tem que manter uma atenção em
toda a manipulação da maquinaria necessária e, ao mesmo tempo, não perder a
concentração emocional da cena.
Christiane Jatahy é diretora e nos seus espetáculos teatrais incorpora
elementos da gramática cinematográfica. Em dois espetáculo teatrais recentes,
25
NEVES, Lucas. “Fim de Festival tem „Cine-teatro‟ de grupo Chileno”, 29/03/2009, em Folha de S. Paulo.
56
como “Conjugado” (2004) e “Júlia” (Adaptação do texto "Senhorita Julia", de
August Strindberg), a diretora tem ido na direção da incorporação do cinema. No
primeiro, um monólogo, Malu Galli interpreta a vida de uma mulher solitária que
ganha representação por meio da combinação de performance, projeção de
documentário e instalação26.
A segunda peça utiliza telões por todo o palco, mostrando cenas que são
filmadas ao vivo e ampliadas em close, misturadas com cenas pré-gravadas como
se houvesse outros cômodos na casa. Esse dois exemplos causam
estranhamento no espectador que fica dividido entre todas as imagens que são
colocadas no palco e as cenas que acontecem ao vivo exigindo dele
transposições o tempo todo.
6
Cena de Júlia, de Christiane Jatahy. A cena ao vivo está na tela da esquerda, a pré-filmada
na da direita. O câmera fica no palco e interage com os atores.
26
Esta peça fez temporada no SESC Belenzinho/São Paulo em Setembro de 2012.
57
Talvez seja essa a intenção: os fragmentos não se definem e ficam para o
público que vai definir o encaixe das imagens e o esforço de passar de uma
linguagem à outra. O desafio é como equacionar o uso dessas intersecções.
Por isso o ator também não atua mais da mesma forma, pois as imagens
atraem bem mais o olhar do espectador do que a presença do ator. Evidencia-se,
com isso, que um novo campo de pesquisa abriu-se, o qual vai nos ajudar a
entender como ator e espectador estão mudando sua relação com a teatralidade.
E um dos desafios da experimentação da teatralidade são os “modos de
presença”27 que precisam estar conscientes no trabalho do ator contemporâneo.
No teatro o desafio do ator é alternar a presença real com a imagem
projetada. E, de acordo com Vallin, “graças as técnicas de filmagem
cinematográficas, videográficas, videoconferências, o ator pode estar presente em
cena sem ter uma presença corporal, ele pode estar „presente –ausente‟”
(VALLIN, 2008, p. 8). No cinema hoje estamos mais além desse conceito porque o
ator virtualizado pode estar ausente também da cena cinematográfica, pois a
imagem do ator não aparece e sim as camadas de sobreposição de imagens que
nascem a partir da sua movimentação. Originalmente o cinema é influenciado de
várias maneiras pelo teatro, num relacionamento em que ora essas artes se
aproximam, ora elas se afastam. O espectador contemporâneo também mudou
influenciado por todas as mídias. Além do cinema, o rádio, a televisão e a internet
são fontes de alteração do teatro, que já não é mais o mesmo do século XX.
27
Proposta de designação de Batrice Picon-Vallin, em: VALLIN, 2011, p.8.
58
Quando no primeiro cinema a câmera fica mais próxima, os espaços podem
ser de fato filmados no local da ação, a síntese teatral não é necessária no áudio-
visual. Assim, quando D.W. Griffith criou as bases para o cinema narrativo
clássico e deixou de manter a câmera fixa, a interpretação frontal, o exagero não
tinham mais sentido, pois a câmera já entrava na cena como personagem e as
expressões eram mais naturalistas. Cria-se, assim, um novo ponto de vista, a
linguagem cinematográfica.
Neste trecho, a seguir, de ensaio escrito por José Antonio Pérez
Bowie, o autor mapeia o caminho da teatralidade nos filmes ao longo das
décadas:
os vestígios da teatralidade continuaram presentes na tela até a chegada do som; a interpretação baseada nos excessos gestuais, que são herança evidente de gêneros como o melodrama ou a pantomima, era recurso imprescindível para suprir a falta de som (...) em determinados filmes desse período nos encontramos com uma teatralidade intencional e que não se limita ao campo da interpretação; é o caso da cinematografia expressionista alemã, onde a teatralidade dos cenários e ambientes contribuem para tensionar a dimensão irreal das histórias, ao mesmo tempo em que uma interpretação grande eloquente caracterizava seus atormentados personagens.
[..] Com a introdução do som e o novo tipo de filmagem de tomadas longas, motivado pela mobilidade da câmera e das lentes grande angulares determinaram um renovado interesse pelo teatro; seus textos podiam agora ser levados a tela de uma maneira mais “natural”. (...) Já nos anos 40 encontramos um conjunto de filmes que permitem falar de um novo modo de confrontar a teatralidade e com o qual o filme parece se aproximar sem complexo dos textos se libertando da fixidez e artificialidade que caracterizam as adaptações teatrais.
[...] O processo de teatralização experimentado pelo cinema a partir da aquisição da palavra é significativo nos anos 50 e tanto por razões técnicas quanto sociais. Os insuperados traumas do pós-guerra e os conflitos psicológicos por quem participou das batalhas aflora em muitos filmes da época.(...) tais filmes são em muitos casos adaptações de textos teatrais contemporâneos mas em outros são
59
roteiros originais a partir dos quais os realizadores elaboram um discurso fílmico que se afasta da narrativa clássica e assume muitas estratégias da encenação teatral.
[...] Cinema teatralizado se situa num espaço intermediário entre o cinema narrativo e o cinema poético e que é um trecho de narrativa, embora a base é não haver necessariamente texto teatral (BOWIE, 2010, pp. 40-2).
Destaco particularmente o trecho abaixo no qual Bowie fala sobre a
oposição que vivem o teatro e o cinema. O teatro hoje nega seus princípios
teatrais através de temas como o “não-lugar”, a não construção de personagem e
o cinema, nos últimos anos, tem recorrido aos elementos teatrais para uma maior
teatralização extremamente exagerada ou estilizada:
É evidente que em nossos dias estamos assistindo a uma nova fase das relações entre os todos os meios, perceptíveis em alguns cineastas (Peter Greenaway poderia ser o caso mais paradigmático) de uma premeditada e sistemática teatralidade. Trata-se agora de uma ênfase consciente e deliberada das marcas que definem o teatral: artificialidade da cenografia e da iluminação, interpretação desmesurada dos atores, explicitação do processo e do ato de enunciação etc. Oscar Cornago, tem observado o fenômeno e chama a atenção sobre esta tendência de se produzir exatamente no momento em que a Arte Cênica parece ter renunciado às estratégias de recuperação e ênfase de seus elementos específicos para cultivar a via pós-dramática, destacando os aspectos performativos e de perceptivos capazes de proporcionar a transparência e autenticidade como meio mais eficaz de expressar as utopias e angustias do homem contemporâneo. Baseando-se nas teorias de Lyotard sobre o fenômeno da teatralidade pós-moderna, Cornago salienta como um filme contemporâneo utiliza a teatralidade para superar a crise de credibilidade sofrida pela retórica hollywoodiana e a enxurrada de imagens que padece a sociedade atual: “através do espaço aberto pela teatralidade mediante a demonstração da mídia, dos cenários ou dos processos de filmagem tenta-se recuperar a condição de realidade perdida no meio cinematográfico, a debilitada credibilidade das imagens de uma sociedade das imagens (BOWIE, 2010, p. 43).
60
Para melhor percebermos a teatralidade cinematográfica, vale a pena
compararmos dois filmes, ambos da década de 90, do século passado. Filmes em
que a teatralidade se manifesta de modos diferentes, apesar de serem realizados
no mesmo período. Respectivamente, um nos remete à teatralidade clássica e o
outro à teatralidade já dentro do contexto midiatizado. O primeiro é Segredos e
Mentiras (Secrets & Lies, 1996), dirigido por Mike Leigh e produzido entre
a França e o Reino Unido.
Fig. 7 As atrizes Brenda Blethyn e Marianne Jean-baptiste
Segredos e Mentiras se caracteriza por ser muito realista, suas
personagens são tão minuciosamente construídas que quase nos fazem crer que
o diretor a qualquer momento vai nos revelar que a história é um documentário e
que suas personagens são reais. A ideia do filme de Mike Leigh é evidenciada
logo pelo título: segredos e mentiras, daquele tipo que guardamos e vivemos sem
falar deles e, mais cedo ou mais tarde, explodem nas horas mais inadequadas.
A teatralidade neste caso está presente e transpira com as
personagens, esquecemos totalmente que vemos ali atores, mas ao mesmo
tempo admiramos a realização dos detalhes das interpretações. Como é possível
61
captar os momentos com tanta naturalidade e ao mesmo tempo dramaticidade
intensa? Ao assistir ao making of ou às entrevistas dos atores, tudo se revela. O
processo de preparação dos atores define o resultado. Não existe roteiro, tudo é
improvisado pelos atores. Eles trabalham na construção das personagens criando
e desenvolvendo cada trecho da história durante pelo menos seis meses. Então,
quando as cenas são gravadas, tudo já está no corpo do ator, cada movimento,
cada gesto que é “improvisado” (mas já foi feito na preparação muitas vezes).
Integração entre cinema e teatro, com muitas cenas frontais, espaços
vazios e foco nas personagens. O filme quase sem trilha sonora cria densidade
nas cenas, em poucos momentos o som extradiegético28 dá atmosfera no início e
no final.
Não há outras pessoas nas cenas, como se a vida dessas personagens
se destacassem de todas as outras ou fossem todas as nossas vidas. A ação se
concentra no conflito principal que gera tensão em todas as outras personagens
não menos intensas. Todos os envolvidos vão sofrer transformações ao longo dos
acontecimentos e terminam tomando chá no quintal e dizendo: “É a vida, não é?”.
Sensação de continuidade.
O segundo é Corra Lola Corra (Lola Rennt, 1998), dirigido por Tom
Tyckwer, na Alemanha.
28
“Por definição, a música extradiegética não indica aquilo que vê um personagem porque ela se situa fora de sua história. Ela é, ao contrário, um índice da voz narrativa”. Em VANOYE,et GOLIOT-LÉTÉ, 2008. p.147.
62
8 A atriz Franca Potente
Antes de começar propriamente a história, vemos imagens de muitas
pessoas num campo de futebol e uma narração que diz que vai começar um jogo
que tem duração de 90 minutos. A história vai ser repetida três vezes e terá
consequentemente três desfechos diferentes.
O filme Corra Lola Corra cria uma teatralidade baseada na sucessão de
imagens e se caracteriza principalmente pela repetição dando a ideia de uma
narrativa com muitas possibilidades. Isso vem reforçar o conceito de velocidade
que está presente na história inteira e onde de fato a velocidade é a verdadeira
protagonista (aqui nos lembramos do pós-dramático em que explodem os
elementos da teatralidade e eles se tornam personagens). A música também é
protagonista e se sobrepõe às personagens. É curioso ver o que foi escrito no
período de lançamento do filme, vejamos o release:
O visual inovador e a narrativa, sempre corrente, são o grande diferencial da obra. Segundo Tykwer, suas histórias são sempre construídas em cima de uma imagem. No caso, era a imagem de uma mulher correndo. "Um filme dinâmico é a necessidade primária de qualquer cineasta", afirma. Corra Lola, Corra é um único filme, mas poderia ser vários. O diretor avança em diversos suportes, além do cinema, como vídeo,
63
música, fotografia e animação. Além das diferentes mídias utilizadas pelo diretor, a pluralidade de estilos faz com que a obra seja imbatível. Misto de ação e romance moderno,Corra Lola, Corra é uma produção imperdível. Corra ao cinema para vê-la29.
A noção de espetacularização está presente. Não há mais espaço interno, pois
a sucessão de imagens, a corrida e o som da música eletrônica não nos deixam
respirar. A sugestão de um videogame é também muito explorada mostrando curto
espaço de tempo que Lola tem para cumprir a sua tarefa.
A ideia de Tykwer nasce de um curta-metragem de Win Wenders (Same Player
Shoots Again, 1968)30. Nele, Wenders repetia uma cena cinco vezes, alguns
movimentos que vão acontecendo em looping com versões diferentes. A trilha cria
a atmosfera do andar sempre em suspense. Aparece também uma cabine
telefônica. Como nas histórias em quadrinhos, o diretor usa no final o recurso de
uma onomatopeia para representar a ação do tiro, escrito em um cartaz “TLIP!”. A
ideia de história em quadrinho que nesse curta fica sugerida em Corra Lola Corra
é bem mais explícita quando no início da corrida um desenho animado representa
parte da corrida da personagem.
É interessante notar como as duas fotos (anteriormente reproduzidas) de
divulgação dos filmes indicam o que afirmamos. Sobre Segredos e Mentiras,
temos duas pessoas se relacionando frente a frente numa foto de convívio social
(motivação de dentro para fora). Enquanto em Corra Lola Corra, a personagem
29
Release escrito por Luciana Rocha disponível em: <http://www.terra.com.br/cinema/acao/lola.htm.> 30
Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=6n9PUoeFhyI>
64
está de frente olhando para o público quase quebrando a ilusão, correndo num
quadro pictórico com cabelo vermelho e em um fundo circular (motivada de fora
para dentro).
Dois tratamentos de teatralidades diferentes que resultam outras
possibilidades de lidar com a emoção, em que onde um representa a vida e o
outro a espetaculariza.
Quando o cinema foi criado, ele permitiu que víssemos o mundo e as coisas
de outro modo, de uma maneira nova e agora parece estarmos numa fase
diferente: uma nova realidade se instalou na relação do homem com o mundo. O
campo simbólico está dando lugar ao campo das imagens. Estamos vivendo a era
da imagem em que o conceito de velocidade, de impermanência, de grande
quantidade de informação transformam nossa capacidade de percepção e mudam
hábitos ligados à emoção, ao sentir. Por isso a teatralidade novamente está em
plena ebulição e, de fato, não pode mais permanecer como era. Ela tem de
dialogar com esse contemporâneo e, nesse sentido, há muita experimentação
sendo feita. E é nesse contexto que o ator desenvolve a nova máscara no cinema,
desmaterializando a sua atuação para criar a máscara digital.
65
1.5 INTERAÇÕES COM A TECNOLOGIA
“Um novo cenário se vai instalando lentamente” 31
E se fossemos até a Lua? Como seria a Lua ou os seus habitantes,
caso eles existissem? Do que seria capaz a humanidade que inicia o século no
ano de 1900? Essa é uma maneira poética de imaginar o pensamento do homem
no início do século XX com uma alegria incalculável em um dos mais
entusiasmados dos séculos, o século elétrico, o século da velocidade, o século da
imagem.
A despeito de todas as expectativas que deram início ao século XX, hoje
sabemos o que foi que realmente aconteceu durante esse período. O entusiasmo
e os ideais foram dando lugar a “uma vaga melancolia” (p. 104). Hoje, no século
XXI, o momento é bem parecido, nossa percepção do mundo e da sociedade
também é outra, pois, embora tenhamos um progresso tecnológico como nunca
antes vivêramos, ainda há muita desigualdade, disputas e guerras. Com toda
evolução técnica alcançada, ainda existe a dificuldade “aos meios de sentir, de
compreender e de fazer muito complexos, que excedem o que a humanidade
procura” (p. 104).
Hoje a tecnologia faz parte das nossas vidas de tal maneira que não
seria possível simplesmente retirar os recursos tecnológicos que temos
31 LYOTARD, 1993, p.104.
66
disponíveis no dia-a-dia sem que se provocasse um colapso global. A sensação é
a de que sempre todos os recursos de que hoje dispomos, estiveram ao alcance
de nossas mãos. Como consequência da evolução das artes, observemos parte
das mudanças progressivas que aconteceram na evolução da tecnologia dos
equipamentos que envolvem a representação tanto teatral quanto cinematográfica.
E o que isso trouxe para a cena, para a interpretação dos atores que se
expressam pelo teatro ou pelo cinema.
Desde os tempos dos gregos as máquinas teatrais foram desenvolvidas
para criar atmosferas simbólicas que pudessem narrar da melhor maneira as
histórias encenadas. Mas quando as artes cênicas se profissionalizam, as áreas
técnicas têm vários saltos evolutivos. Os artistas foram se organizando e criaram
maiores possibilidade de interagir com o público. Há uma mudança na
interpretação dos atores e na criação de roteiros, os atores começam a se
especializar nos personagens que eles mesmos vão criando, sempre tendo como
interesse a manifestação do público que eram os moradores dos pequenos
vilarejos. No filme já citado, A Viagem do Capitão Tornado, o destaque é para o
avanço das máquinas teatrais impulsionado pela necessidade de sobrevivência
que é evidenciada na história.
Há uma cena em particular que mostra a chegada da trupe de teatro em
cortejo, divulgando o espetáculo que será realizado no fim da tarde. Em seguida,
um Cannovaccio32 é apresentado ao público. Nesse momento vemos como tudo
era feito: dobraduras criando adereços, iluminação feita com tochas e tecidos
coloridos para dar cor à cena, a carroça-cenário com mecanismos para que se
32
Cannovaccio eram os roteiros de ações das estórias que eram improvisados pelos atores.
67
abram alçapões e mudem os painéis de fundo, fogos de artifício dão a ideia de
batalhas. E ainda tochas para ressaltar o rosto (pois ninguém conseguiria ver o
ator no fim da tarde) e tudo isso criando uma atmosfera que não imita o real, mas
cria o poético.
A Commedia Dell´arte, acima de tudo, gera um fenômeno completamente
novo. Além de modificar todo o sistema expressivo da atuação e relação com o
público, necessita para criar impacto, muitos aparatos técnicos que são criados
para gerar surpresa e interesse. É nesse período que se inicia um grande
aperfeiçoamento do uso do cenário, da luz, dos figurinos, fogos de artifício, efeitos
em geral. É também nesse período que as companhias têm uma ideia inovadora
ao colocar mulheres em cena com o intuito de atrair o público. Esse público
interessado começa a pedir que os grupos venham encenar nas suas cidades,
gerando o início do mercado consumidor do entretenimento. O imaginário criado
pelo profissional do teatro faz nascer um interesse explosivo pelo teatro e que vai
se alastrando por toda Europa.
Profissionalizar significa ter técnica e utilizar tecnologia para criar
atmosferas que se comuniquem com a plateia. E foi nesse período que houve o
desenvolvimento inicial das “carretilhas, contrapesos, cordas, cunha, entelado,
esticadores, escoras, gornes, lastro, lona, malaguetas, manobras, nós, orelhas,
passarela, patamar, polia, porão, roldana, talha, tarugo, terça, trambolho, varas,
varanda e velário” (NERO, 2009, p. 193). Todos esses elementos cênicos têm
origem nas maquinarias navais:
68
As cordas herdadas dos navios, dos oceanos, e dos séculos, e que no teatro são chamadas manobras, corriam para cima e para baixo, contrapesadas – umas curtas, outras longas, passando nos eixos dos gornes e das roldanas mestras, levando carga artística que cantava a glória dos deuses, reis e potestades (NERO, 2009, p. 201).
A partir desses acessórios, que compõem as caixas teatrais, os atores
desenvolveram suas técnicas de interpretação sempre sendo enriquecidos pelos
aparatos técnicos que sofreram muitas modificações de tempos em tempos, mas
nada comparado ao que ocorre no início do século XX. Com tantas
transformações e inovações tecnológicas em tão pouco tempo, nunca se viu uma
época tão impetuosa, tão cheia de progressos técnicos. É natural que nesses
tempos se tenha vontade de mudar tudo.
Com a “industrialização, urbanização e crescimento populacional rápidos:
proliferação de novas tecnologias e meios de transporte... a modernidade
inaugurou um comércio de choques sensoriais... Essas concentrações de
sensação visual e cinética resumiram uma intensidade distintamente moderna do
estímulo fabricado” (CHARNEY et SCHARTZ, 2004, p. 112). E surgiu um interesse
maior pelo Vaudeville, Melodrama, Pantomima, shows extravagantes “atrações
curtas, fortes e saturadas de emoção” (p. 112) que foram exploradas intensamente
pelos primeiros artistas de cinema mudo antes de ser criada uma linguagem
cinematográfica. A partir de 1880 começa na Europa a eletrificação dos teatros.
Com a eletricidade a iluminação teatral que era feita a gás e com telões pintados
passou a ser pensada com a ideia de tridimensionalidade, a luz fazia aparecer ou
desaparecer de cena. Não havia mais sentido um cenário pintado e, a partir desse
69
momento, a luz faria o papel do pintor que daria forma para que os atores se
expressassem em cena. De acordo com a diretora teatral Cibele Forjaz, “a
linguagem da luz é responsável, na encenação moderna, por conduzir o percurso
da narrativa, juntando pedaços, encadeando cenas, criando signos, que tornaram
inteligíveis aos olhos dos espectadores essas viagens no espaço e no tempo”
(FORJAZ, 2010, p. 154).
Dois pesquisadores foram fundamentais neste processo de repensar a luz e
o cenário teatral: Adolphe Appia e Gordon Craig. Ambos defenderam a
transformação da cena e a necessidade de mudanças reais nos cenários criando
os espaços com formas geométricas e não realistas. A profundidade começa a ser
explorada e os cenários são concebidos de forma não realista. E com a mudança
do conceito estético novas teorias sobre a expressividade do ator passam a se
disseminar na área artística.
Como já foi dito, um novo paradigma se colocava para o ator do início do
século XX. Com as invenções e a imagem animada não era possível manter a
representação cênica da mesma maneira, pois o público, as cidades, o mundo
estavam em plena ebulição diante das mudanças de comportamento. O corpo do
ator ainda retratava o homem do século XIX e era urgente que ele se preparasse
para interagir com a vida moderna. Nesse momento surgem pesquisadores como
Constantin Stanislavski, Jacques Copeau, Etienne Decroux, Antonin Artaud,
Vsevolod Meyerhold 33, entre outros. E nessa busca pela expressividade do ator
muitas técnicas foram retomadas ou criadas. É o caso do retorno ao estudo da
33
Todos os nomes citados são de atores, diretores ou pesquisadores do início do séc. XX que exploraram as possibilidades de transformação da nova cena que se opunha ao naturalismo/realismo do séc. XIX.
70
Commedia Dell´arte que, como vimos, foi o período da arte de representar que
mais impulsionou as artes cênicas. Outro exemplo é a criação do método
Stanislavski, o sistema de interpretação mais utilizado no cinema até o final do
século XX. Nesse período muitos atores já fazem experiências com a mediação da
máquina do cinema. Aqui já se inicia uma fissão34 entre o cinema e teatro e a
busca por pesquisas que modifiquem o processo de interpretar estão só
começando, a atuação com interpretação de máscaras vai ser fundamental neste
inicio.
Inicialmente a interpretação teatral era a base para as primeiras
experiências do cinema, a cena era realizada como se fosse feita num palco
filmado. O cinema se apropria do teatro para iniciar suas experimentações e logo
vai percebendo que os recursos podem ser diferentes. A câmera pode ficar mais
próxima, os espaços podem ser de fato filmados no local da ação, a síntese teatral
não é necessária no áudio-visual.
Aqui vemos que as telas, cinema e televisão influenciam também as
artes do palco, que não pode deixar de se adaptar aos aparatos tecnológicos.
Paralelamente o teatro vai aperfeiçoando a cenografia, explorando
outros espaços e aperfeiçoando as máquinas teatrais. Como destaque o
cenógrafo Josef Svoboda, que “nasceu na República Tcheca foi revelado na Expo
1958, em Bruxelas, quando representou sistemas inovadores na apropriação de
imagens e espelhos: a „lanterna mágica‟ (sistemas de articulação de atores e
34
“A fissão é a divergência gradual de um novo objeto em relação ao objeto modelo. Sempre que um novo sistema de signos recebe o atrito do sistema anterior, o novo sistema se autonomiza e começa a perder o caráter de réplica perfeita.” VILCHES 2001, p. 235.
71
projeções) e o „poliécran‟ (representação audiovisual com colagem de imagens
projetadas em múltiplas telas). Em colaboração com Alfred Radok, artista tcheco
decisivo em sua formação, buscou outra forma dramática na simbiose com telas,
filmes, intérpretes” (SANTOS, 2005). Svoboda instala uma relação entre as Artes
Cênicas e a Tecnologia.
E simultaneamente a interpretação cinematográfica vai achando seu
espaço de maneira mais “natural” se libertando da “artificialidade” que o teatro ao
vivo necessita. Com a chegada do som no cinema e outros aparatos técnicos
acontece um renovado interesse pelo teatro só que agora de maneira diferente, os
temas de conflitos psicológicos crescem nos anos 50, mas os textos já adquirem
mobilidade, pois a movimentação da câmera dá maior dinamismo para as cenas.
Jean-Claude Carriére diz:
A falta de microfone ou alto-falantes, o teatro do século XIX estava condenado à declamação. Os filmes falados nos trouxeram o sussurro, a intimidade das relações verdadeiramente reservadas, até mesmo o arquejo, a pulsação. Utilizaram o olhar humano com infinita sensibilidade e dominaram a arte do silêncio. E, dos estranhos sentimentos dos quais vive a raça humana, extraíram significados cheios de nuances, que o teatro tradicional jamais poderia expressar e que a ficção literária abordou de forma diferente, através do eco percebido (ou não percebido) de determinadas palavras e determinadas frases (CARRIÈRE, 2006).
Durante a 2ª metade do século XX até quase o final do milênio, o
cinema apresentou várias etapas de relacionamento com o teatro. Muitos diretores
tiveram o teatro como uma referência importante. Os profissionais transitavam de
uma linguagem a outra fazendo experimentações. Diretores teatrais também
dirigiam no cinema e vice-versa. “Desde Eisenstein a Bergman, desde Dreyer a
72
Manoel de Oliveira ou desde Lubitsch a Jacques Rivette temos muitos nomes de
diretores para quem o teatro foi uma referência importante” (BOWIE, 2010). A
televisão também cria uma mudança de hábito socializando o naturalismo e a
encenação do comportamento humano dentro dos lares de todo o mundo.
Se imaginarmos que no período em que no século XVI a Commedia
Dell´arte dá início a uma mercadoria cultural, a mudança do teatro de luxo da corte
para o teatro de rua como mercadoria aberta é uma realização efetiva dos atores
profissionais desse período. E com a criação de todos os meios audiovisuais os
atores e suas “máquinas” de representação têm que renovar o seu mecanismo de
ilusão, adaptando seu método de ator para cada tipo de veículo. O que não é fácil.
Como se comunicar com a plateia no cinema? Como interpretar personagens na
televisão? Como atrair o público ainda para um espetáculo que é feito ao vivo? E
agora no século XXI como usar a representação em todas as telas?
Paulo Autran certa vez afirmou que “O Teatro é do ator, o cinema é do
diretor e a TV é do patrocinador.” Talvez hoje pudéssemos dizer que o Youtube é
do usuário.
Se as invenções do século XX causam a revolução dos sentidos, das
transformações do tempo e do espaço na virada do século XXI, começamos a
perceber que não tínhamos ideia de que estávamos somente no começo de uma
revolução ainda maior. Se pensávamos que a velocidade das inovações eram
intensas, quando olhamos historicamente o século XX e suas décadas, o que
podemos dizer dos últimos dez anos quando temos em nossas mãos aparelhos
que conectam instantaneamente com qualquer parte do planeta?
73
Essa velocidade não começa por acaso, ela vai progressivamente se
apoderando da nossa sociedade. Em um dos capítulos do livro de Jean-Claude
Carriére, A Linguagem Secreta do Cinema, ele descreve a conversa que teve com
um montador de filmes aposentado em 1972:
Esse homem havia trabalhado em Hollywood desde os anos 20, desde os últimos tempos do cinema mudo. Tinha estado intimamente envolvido com toda a evolução da montagem, com o ritmo interno do cinema – e com o fluxo da narrativa, que ele acreditava estar se movendo sempre com maior rapidez, como se o tempo se acelerasse junto com o século, como se o cinema, cada vez mais sem fôlego, estivesse acometido de um crescente e inexplicável senso de urgência. Como os carros e os aviões – ele me disse – eles têm que ficar cada vez mais rápidos. Contudo, nosso coração e nossa maneira de respirar não mudaram, nem nossa digestão. Nem o ritmo dos dias e das noites, das marés, das estações. Por que os filmes se movem cada vez mais rápidos? (CARRIÈRE, 2006, p. 95)
Talvez não sejamos mais os espectadores do século XX. Somos outros,
estamos muito diferentes. Adquirimos em nosso comportamento a velocidade
que foi se processando no passar dos anos e, aos poucos, absorvermos uma
quantidade de imagens e informações que modificam cotidianamente nosso
comportamento e nossa relação com o mundo.
A contemporaneidade trouxe a fragmentação dos elementos que
constituem a arte de representar: pessoas, espaço, tempo. E como nos
encontramos na cena? No espaço de comunicação com as plateias?
No teatro surge como movimento cênico da modernidade em contraposição ao teatro Dramático35 o teatro Pós-Dramático. Esse
35
Totalidade, ilusão e reprodução do mundo constituem o modelo dramático. FERNANDES, 2010, p.13.
74
tipo de escritura cênica é um modo novo de utilização dos significantes no teatro, que exige mais presença que representação, mais experiência partilhada que transmitida, mais processo que resultado, mais manifestação que significação, mais impulso de energia que informação. (...) Para resistir ao bombardeio de informações do cotidiano, o teatro Pós-dramático adota uma estratégia de recusa. (...) cria elipses a serem preenchidas pelo espectador, de quem exige uma postura produtiva (FERNANDES, 2010, p. 13).
No teatro a tecnologia começa a funcionar como elemento importante para
criar a recusa da representação como imitação. “Ex: um pin Bin (pequeno foco
móvel) ilumina de perto um solilóquio, e estamos dentro da cabeça de Hamlet:
de repente as luzes de serviço do teatro acendem, todos os presentes se
olham e temos um ator diante de uma plateia: nesse momento, todos no teatro
podem ser ou não ser Hamlet. Se a realidade da ficção se quebra, a nossa
realidade também pode ter o mesmo fim (FERNANDES, 2010, p. 154).” O
teatro deve pensar na presença e nas mutações que as tecnologias implicam.
A pesquisadora Béatrice Picon-Vallin observa:
Diz-se frequentemente que as novas mídias vão permitir nos abstermos do ator, que haverá avatares em cena, robôs (já existe no Japão um autor-encenador36 que escreve peças para robôs!); bem, e por que não? Falava agora a pouco de teatros, e esse teatro de robôs será, sem dúvida, uma forma possível de teatro. Mas isso não impede, porém, que o teatro se defina inicialmente pela relação que nasce entre um ator e um espectador, dificilmente ele poderá abster-se da presença do ator. Em contrapartida, a noção de presença está se diversificando, ficando cada vez mais complexa e se aprofundando, e o trabalho sobre a presença, que é essencial ao jogo do ator, é crucial. O grande ator é aquele que está presente em cena; todavia, estar presente em cena não quer dizer somente estar no presente, mas saber conjugar os tempos (passado, presente, futuro). Para mim, a cena é verdadeiramente o lugar onde todos esses tempos se conjugam, se entrecruzam,
36
Referência a Oriza Hirata (1962) e sua peça Moi, le travailleur (Hataraku Watashi), encenada na Universidade de Okawa, em 2008.
75
nessa presença absoluta do ator. Mas hoje, graças à imagem e ao som, graças às técnicas de filmagem cinematográficas, videográficas, vídeoconferências, o ator pode estar presente em cena sem ter uma presença corporal, ele pode estar “presente-ausente”. Há toda uma problemática em torno disso que chamo de os diferentes “modos de presença”. Penso que se trata aí de um novo desafio para o ator e que é algo que deve ser experimentado. (PICON-VALLIN, 2011)
Os “diferentes modos de presença” de que Vallin fala são a base para se
pensar na máscara criada digitalmente pelo ator. No cinema a atuação do ator
passa a ser um elemento como qualquer outro, pois a montagem, edição de
imagens e pós-produção é que vão definir cada vez mais o resultado da
interpretação que o roteiro exige. Claro que o ator ainda é importante, mas o
seu trabalho já está se misturando às novas tecnologias e se adaptando à
“interpretação digital”. No filme Avatar, de James Cameron, a pergunta do
diretor foi: “Podemos criar um personagem digital convincente? Como uma foto
realista?” E então muitos equipamentos, câmeras e efeitos especiais foram
desenvolvidos para dar vida a esse universo. Os atores “base” eram dirigidos
do mesmo modo como quando manipulamos bonecos em espetáculos de
títeres.
Mas como o ator evoluiu até a máscara digital?
76
CAPÍTULO 2
1. MÁSCARAS NO CINEMA
Este capítulo aborda a trajetória da ideia de mascaramento no cinema.
Para o melhor entendimento da evolução da máscara cinematográfica separamos
alguns exemplos em três momentos: 1) máscaras que pontuam a adaptação do
ator à linguagem cinematográfica; 2) formas de composição da construção da
máscara no cinema (efeito compositivo e efeito narrativo) e 3) caminhos da
tecnologia. Essa separação serviu apenas para que os vários aspectos da
máscara fossem abordados, pois todos esses movimentos foram acontecendo de
maneira simultânea.
O cinema se espalhou rapidamente assim que foi divulgado em 1895 e logo
passou a ser visto por grandes plateias e muitas produções começaram a surgir
por diversos países nos continentes mais variados. “No início do século havia a
defesa das virtudes da arte muda em contraposição à arte teatral que era
entendida na época como um mundo da palavra” (XAVIER, 1996, p. 247). Os
filmes mudos foram responsáveis pela rápida identificação do público com a
imagem na tela, pois por não terem som não havia nenhuma barreira linguística
para essa nova modalidade de diversão. No início, a filmagem limitava-se a
apontar a câmera por tudo que cercava os cineastas, só depois começou se fazer
pequenas esquetes e experimentações iniciais.
77
Com os primeiros atores também foi assim: ficar diante de uma câmera
e fazer o que se fazia no teatro. No entanto, ao se interpretar com o
cinematógrafo, a divulgação era muito mais rápida que no teatro, pois ela poderia
ser reproduzida. A notoriedade dos atores tornou-se maior e ainda eles podiam
ver seus trabalhos sob outro ponto de vista, o da câmera. Para ter-se ideia dessa
velocidade de divulgação, basta pensar que “Charlie Chaplin postou-se diante de
uma câmera pela primeira vez em janeiro de 1914, como um jovem artista inglês
do teatro de variedades e, ao fim daquele ano, já havia se tornado a pessoa mais
reconhecida no mundo inteiro” (KEMP, 2011, p.8).
A passagem do trabalho do ator de teatro para a tela começa a
desenvolver a questão da não presença do ator. Se, por um lado, essa forma pode
dar ao ator maior notoriedade e público; por outro, seu trabalho mediado pelo
cinematógrafo não pertence totalmente a ele. Nesse começo o ator ainda tem
domínio das esquetes que cria, pois não existiam ainda divisões de funções, tais
como direção, roteiro etc. Mas ao longo da evolução da história da indústria do
cinema o trabalho do ator passa a ser mais um elemento e não o centro da cena e
isso é um importante fator que diferencia o cinema do trabalho do espetáculo ao
vivo.
Mas o que acontece com a criação de máscaras no cinema?
Para ter-se um panorama das máscaras cinematográficas vamos ver
alguns exemplos a respeito das tipologias e adequação da teatralidade no cinema.
Esse painel nos ajuda a perceber a capacidade do ator em expressar as mais
amplas ou sutis expressões com a composição de suas máscaras.
78
É importante notar que a concepção de máscara está ligada à ideia de
um “corpo-máscara”, isto é, não só o rosto, mas todo o corpo, no qual ressoam
todas as intenções, ações e reações criadas pela imaginação do ator e do diretor,
está envolvido no processo. Por isso a máscara não está restrita só à modificação
facial ou à maquiagem, apliques, perucas, figurino, mas ao estado cênico criado
pelo ator.
Em Viagem à Lua, de 1902, do visionário Georges Méliès, os atores
são absolutamente teatrais e, a fim de criar a ideia de uma ficção cientifica (Méliès
é o grande precursor deste gênero), os tipos criados são misturas de animais,
cenários gigantescos, cientistas de cartola, todos feitos por convenções bastante
teatrais. A Lua com a nave enfiada no olho é imagem imitada até hoje.
9
Le voyage dans la Lune, 1902
79
Em outro exemplo, Os vampiros, de 1915, a particularidade da máscara
se faz no desenho da personagem Vep (a atriz Musidora). Ela parece indicar
apenas o desenho de uma jovem comum, mas logo se percebe que a personagem
não é a mocinha da história e sim, uma contra máscara, ou seja, uma máscara
que se opõe a ela mesma. Isso fica evidente na maquiagem combinada a sua
voluptuosa interpretação.
10
11
A atriz Musidora (Jeanne Roques) no papel de Irma Vep, a cantora e Stacia Napierkowska dançarina
80
A máscara do Expressionismo Alemão da década de 20 teve bastante
expressão no teatro e também influenciou o cinema, onde encontrou terreno fértil
aproveitando a luz cinematográfica do preto e branco. O exagero dos gestos e da
estética das personagens resulta em interpretação intensa.
12
O Gabinete do Dr. Caligari, direção Robert Wiene,1920.
Já em Nosferatu, vê-se a representação de uma composição completa
em relação à construção de uma máscara compositiva no cinema, pois a
personagem mistura o grotesco e a fixidez da forma, a que o movimento do ator
dá vida, dialogando com a luz e sombra da estética da cena.
81
13
Nosferatu: Uma Sinfonia de Horror, direção F.W Murnau, 1922
No filme Metrópolis, de 1927, o silêncio não limitava a capacidade de
comunicação. Muito pelo contrário, ele tornava o gesto ou as expressões faciais
intensas e sutis ao mesmo tempo. Visionário, o filme tem imagens que simbolizam
expressões opostas e significativas. O rosto dividido entre o bem e o mal, o
humano e a máquina, o ser híbrido. O tema da relação do homem com a
inteligência artificial será retratado em vários filmes ao longo do século e a
imagem da personagem Maria/robô é bastante representativa desse imaginário37.
Isso fica bem claro na cena em que a personalidade de Maria vai sendo
transferida para o robô.
37 Sua representatividade se mostra na proliferação de personagens da mesma espécie, ao longo
da história do cinema de ficção: Robôs no cinema: Metropolis (1927); 2001: Uma Odisseia no espaço (1968); Blade Runner (1982); O Exterminador do Futuro (1984); Matrix (1999); O Homem Bicentenário (1999); Inteligência Artificial (2001); Eu, Robô (2004). Em: AXT, Bárbara. “Robôs com Ética”, disponível em <http://super.abril.com.br/tecnologia/robos-etica-444624.shtml>
82
14
15
Metrópolis, direção: Fritz Lang, 1927
O cinema de horror tem uma extensa lista de filmes que muito
contribuíram para a evolução dos efeitos de maquiagem e cenografia criando uma
estética própria baseados nos temas góticos. O ator Lon Chaney foi um dos
maiores representantes deste gênero.
83
16
O fantasma da Ópera, Direção: Rupert Julian, 1925
2.1. COMICIDADE
“Os estúdios Keystones de Mack Sennett que desenvolveram as
características que definiriam a comédia muda e começaram a produzir filmes
desse tipo em escala industrial” (KEMP, 2011, p. 62), em 1912. Os típicos
“guardas atrapalhados” que vão ser referência para quase todas as histórias
cômicas.
84
17 The Gangsters, 1913
A comédia muda criou máscaras de grande sucesso, atores cômicos que
viraram ícones culturais e que certamente se baseavam nas tradicionais técnicas
teatrais relacionadas no capítulo I deste trabalho. Buster Keaton, por exemplo,
criou o homem que nunca ri com sua máscara sempre igual, mas o resto do corpo
cheio de ação.
18 Sherlock Jr, direção: Buster Keaton, 1924
85
Harold Lloyd tentou por diversas vezes criar uma máscara que se
identificasse com o público e que fosse um tipo bem urbano. James Mônaco diz
que
Os personagens inventados por Chaplin, Keaton e Lloyd estão entre as criações mais significativas na história do cinema‟ e ressalta ainda que „os grandes atores cômicos dos 19 aos vinte e tantos anos adicionaram uma dimensão ética e política que elevou de nível o filme pastelão por sua competência técnica repleta de metáfora e significado (MÔNACO, 1981).
19
Safety Last, direção: Fred C. Newmeyer, 1923
Com uma máscara de modelo arlequinesco, Carlitos, de Charlie
Chaplin, representa o marginal social e inábil, porém, com grande empatia com a
plateia. Ele trabalha com as oposições: suas roupas são rotas, mas imitam um
homem nobre, o seu ar é angelical, mas parece bem “endiabrado”. Quando vai
86
realizar seus planos nunca segue um caminho reto, mas sempre curvo, via pela
qual a comicidade acontece. As tentativas é que são a cena e não seu desfecho.
O exagero das suas expressões forma uma máscara que com seu figurino e andar
compõem seu todo “mascarado” (se pensarmos que a máscara abrange o ser
inteiro).
20
O Garoto, direção: Charles Chaplin, 1921
A dupla “o Gordo e o Magro” (Stan Laurell e Oliver Hardy), que se
tornou conhecida durante as décadas de 1920 e 1930, é outro exemplo que
lembra os servos da Commedia. Compõem o inteligente e o estúpido, mas não
sempre na mesma ordem. Suas gags já são previsíveis, mas sempre esperadas
pelo público e o fato de olharem diretamente para a câmera, deixando claro a todo
o momento que estamos assistindo uma cena de cinema, remete-nos ao teatro ao
vivo. Essa quebra da quarta parede (como é chamada no teatro) é feita por quase
todos os atores no primeiro cinema do início do século XX.
87
21
Stan Laurell e Oliver Hardy
2. 2. CINEMA SONORO
Com a chegada do som temos o filme O Cantor de Jazz, de 1927. O
primeiro filme falado da história do cinema representaria um importante divisor de
águas na indústria cinematográfica. Neste roteiro metaforicamente a máscara
criada pelo ator Al Jolson revela um jogo entre o que é falso e o que é real (cor da
pele, etnias diferentes). Assim além da novidade do som há uma transição entre o
exagero da máscara e a sutileza da interpretação, entre o homem real e o
espetáculo.
88
22
O ator Al Jolson no primeiro filme a trazer falas e números cantados.
Quando o cinema começou a descobrir diferenças de linguagens entre o
espetáculo (mais pertinente ao teatro) e a narração (montagem cinematográfica) a
representação do ator foi experimentando a aproximação do real e
consequentemente a máscara foi diminuindo a forma externa. Desse modo, a
composição exagerada para se adequarem à tela, foram se deslocando mais para
as produções de filmes de terror, histórias fantásticas ou fábulas infantis. Nesses
gêneros era permitido manter as composições sem a perda do sentido.
89
23
Frankenstein, direção: James Whale, 1931
24
O Mágico de Oz, direção:Victor Fleminng, 1939.
90
A teatralidade, quando ajustada à linguagem cinematográfica, teve seu
sentido absorvido nas emoções internas e nos pequenos gestos e olhares.
Surgiram, então, as grandes estrelas do cinema. As divas das telas foram
importantes para trazer grandes bilheterias à indústria do cinema, tal como na
Commedia dell’arte a figura da enamorada foi introduzida na cena para atrair
público. Greta Garbo, Bette Davis, Vivien Leigh, Marilyn Monroe, Ingrid Bergman
são exemplos de atrizes com status de divindades e que tiveram seus rostos
transformados na máscara da perfeição e da beleza enigmática.
25 26
Greta Garbo e Marilyn Monroe
91
O correspondente masculino era o homem que simbolizava a perfeição
por meio da elegância, com o cigarro na mão, viril e charmoso com seu olhar
também misterioso.
27
28
Cary Grant e Clark Gable, galãs de Hollywood
92
Já no neorrealismo italiano, o rosto realista do não-ator aparece como
forma de revelar o homem no seu cotidiano sem maquiagem, sem artifícios com
duras marcas.
29
Ladrão de bicicletas, direção:Vittorio de Sica, 1948
Em outro tipo de narrativa, os filmes de juventude rebelde lançaram
alguns personagens que refletiam a imagem do adolescente descontente.
Marlon Brando, Montgomery Clift, Elvis Presley e James Dean romperam a
imagem clássica do bom moço, principalmente despenteando o cabelo, compondo
o tipo com roupas amassadas e barba por fazer.
93
30
Juventude Transviada, direção: Nicholas Ray, 1955
O ator e diretor francês Jacques Tatit cria uma máscara que discute com
a ideia de tecnologia. O filme Meu Tio, de 1958, ele retoma a ideia que Chaplin
iniciou com o contraste entre um homem inadequado diante de uma sociedade
robotizada. É como se o ator com seu personagem, Monsieur Hulot, criasse uma
máscara que olha para a tecnologia e se sente desconfortável diante do
“progresso” que ela impõe.
94
31
O personagem Monsieur Hulot
Há vários períodos em que muitos diretores são mais próximos da arte
teatral e desenvolvem máscaras que marcam um estilo, acentuando formas com
maquiagem e cabelos estranhos, como é o caso de Frederico Fellini e seu tipos
marcadamente grotescos.
95
32
Roma, direção: Frederico Fellini, 1972.
No caso do diretor Ingmar Bergman, o trabalho se dá por meio de outra
forma de expressão da teatralidade usando, por exemplo, o close para revelar o
interior das personagens, tornando a face grande na tela, projetada e,
consequentemente, inversa à lógica: não são os traços da máscara que
aumentam o movimento, é a câmera que, de tão próxima, revela as minúcias da
personagem.
33 34
Persona, direção: Ingmar Bergman, 1966.
96
Os movimentos no cinema muitas vezes se contrapõem ao exagero da
máscara, afastando-se dos artifícios teatrais e optando pela quase não máscara.
Muitas vezes, para se chegar a um resultado de “limpeza da cena”, a exaustão
torna-se um caminho da direção. O diretor Jean-Luc Godard afirmava que não
tinha grande capacidade de dirigir atores e, sendo assim, exigia que o ator
repetisse muitas vezes a cena até ela ficar pronta: “É preciso fazer com que um
ator trabalhe muito (mesmo que alguns não gostem)” (TIRARD, 2009, p. 249).
35
Viver a Vida, direção: Jean-Luc Godard, 1962.
Muitos atores criam máscaras marcantes, como Marlon Brando que
apesar de trabalhar a sua interpretação partindo de emoções internas, usa
estímulos externos para criar suas personas como, por exemplo, o algodão na
boca que usou para compor o mafioso Dom Corleone.
97
36 37
38
Exemplos de composições marcantes de Marlon Brando
Nas comédias, Jerry Lewis criou presença cênica com personagens de
grande exagero. Seu rosto se transforma em máscara teatral. Ele dirige, escreve e
atua influenciando muitos atores como, por exemplo, Jim Carrey.
98
39
Professor Aloprado, 1963, baseado no clássico da literatura o médico e o monstro.
Com 2001: uma Odisseia no espaço, de 1968, o diretor Stanley Kubrick
abre a sequência de máscaras tecnológicas que serão usadas no século XXI.
Fig. 40 e 41 2001, de Kubrick e Star Wars, direção de George Lucas, 1977
A ideia de máscara digital começa a surgir em Onde ninguém tem Alma,
dirigido por Michael Crichton, em 1973. Esse foi o primeiro filme a usar, em uma
99
de suas cenas, imagens digitalizadas através de computadores (BARBOSA
JUNIOR, 2001, p. 324) e a fazer referência à mistura de robô com ser humano, “a
animação só foi usada para mostrar como se enxergava através dos olhos de um
robô”. E é repetida na continuação Ano 2003: Operação Terra, de 1976. Nesse
período não havia “um cineasta que dirigisse o uso da tecnologia integrada à
estrutura artística da obra” (p. 324).
42 43
Yul Brunner e Peter Fonda
Foi na década de 80 que as máscaras tecnológicas começaram a se
virtualizar. Na sequência o filme Tron, uma odisseia eletrônica, dirigido por Steve
Lisberger, em 1982, foi um trabalho de alta qualidade visual para a época e de
grande interesse do espectador pelo uso da computação gráfica, contudo não
havia muita expressão na atuação dos atores.
100
44
Cena de Tron, 1982
Mas foi em Uma cilada para Rogger Rabbit, com direção de Robert
Zemeckis, em 1988, que se deu credibilidade na integração atores/tecnologia,
abrindo caminhos que persistem até hoje. A mistura de atores e personagens de
desenho animado criava a necessidade de um novo código de interpretação
estilizado e exagerado de tipos entre o mundo real e o universo do cartum.
Fig.45 e 46 Os atores Bob Hoskins e Christopher Lloyd
101
Com O segredo do Abismo, de James Cameron, lançado em 1989,
começam a surgir máscaras digitais a partir de expressões dos próprios atores.
São outras camadas de imagens que se sobrepõe ao rosto ou corpo dos atores
reais. Isso abre caminho para que a captura de movimento inicie a possibilidade
de gerar expressão com máscaras tecnológicas. É bom ressalvar que quando a
máscara de efeitos especiais começa a surgir com mais intensidade (a partir a
década de 80) o processo de construção e autonomia da máscara sofre
modificações. O mascaramento da personagem, ou seja, uma personagem criada
a partir de um desenho ou animação dá lugar ao mascaramento da imagem. Ou
seja, a imagem real passa a ser desconstruída dentro da própria narrativa.
Fig. 47 O Segredo do Abismo
102
Em O Exterminador do Futuro 2 – O julgamento Final, de 1991,
novamente a elaboração da máscara de James Cameron surpreende, criando
com mais realismo a sensação da máscara líquida, a partir do molde do rosto do
ator, como se vê na imagem abaixo:
101
O Robo liquido de O Exterminador do Futuro 2
Em A Morte Lhe Cai bem (1992) Robert Zemeckis, apoiado em novos
efeitos, que estavam sendo aprimorados, mostra que já é possível tornar o
absurdo mais realista. E nesse momento percebemos a oposição imagem real e
desconstrução da imagem.
103
49
Meryl Streep em A Morte lhe cai bem.
Em 1994, com O Máskara, o ator Jim Carrey, dirigido por Chuck Russell,
utiliza elementos corporais exagerados e histriônicos para compor a mistura entre
história em quadrinho e desenho animado por meio dos efeitos especiais que
eram possíveis na época. O roteiro brinca com a máscara como objeto mágico e
transformador da personagem central que de tímido e inexpressivo passa a ser
extrovertido e ousado. Temos então claramente um conflito entre imagem real e
animação que brinca com o hibridismo das formas.
104
50
Jim Carrey
No entanto é com Matrix, de Andy Wachowski (1999) que a ideia da
máscara por computação gráfica se estabelece, criando um caminho divisor de
águas que mistura a noção de mundos real e virtual. Em sua dissertação “Um
Mundo paralelo Virtual no cinema”, Geraldo de Lima explica acerca de Matrix:
Outro ponto importante foi o experimentalismo de efeitos especiais com foco na criação por computador. O efeito “Bullet-time” ou “tempo de bala” usa uma união entre a técnica corporal dos atores, somada à técnica de produção de imagens em Computação Gráfica, efeitos especiais com miniaturas, animação tradicional e cenários grandiosos, reais e virtuais, tudo isto unificado à ideia básica de ver uma ação em diversos ângulos. [...] Além de criar este ambiente virtual e inserir nele o mundo real, os criadores da arte visual estão dando um salto maior ainda. Eles usam dois efeitos de captura da imagem dos atores para dar maior realismo às cenas de ação. São chamadas de Motion Capture e Universal capture. O Motion Capture se trata da captura dos movimentos dos atores para dar maior realismo à animação digital (LIMA, 2009).
105
O ator diante desse novo “espaço cibernético” no cinema foi-se
adequando à descoberta das novas máscaras virtuais.
Novo conceito que o filme Matrix introduz é a instantaneidade, a ideia de
que não precisamos construir o conhecimento parte por parte e sim “instalar” em
segundos a informação no ser. Isso se reflete em como construir a máscara sem
olhos, movimentos corporais robóticos, sem emotividade quase como se todos
fossem uma “base” para carregar as informações. O conflito entre animação e
mundo real quase não existe e então entramos na era do ator virtualizado.
51
Óculos pretos criam a imagem de máscaras tecnológicas
106
Para dar maior realismo nos desenhos animados, os cineastas
passaram a recorrer aos atores para compor personagens em filmes de animação
com suas expressões capturadas e transformadas em moldes para personagens
inteiros. Como no caso do ator Tom Hanks em Expresso Polar (direção de Robert
Zemeckis, 2004). O ator é rapidamente identificado no produto final do filme mas
não há conflito entre imagem real e animação. O mascaramento da imagem é
totalmente integrado.
52
O Expresso Polar e a captação de interpretação do ator Tom Hanks
107
Em 2002, por sugestão do próprio ator Andy Serkis, surge a primeira
máscara totalmente “criada por Computação Gráfica a aparecer no cinema de
grande circuito” (KEMP, 2011, p. 484) sem ser em desenho animado, e sim na
tecnologia chamada Motion Capture (MoCap). Captação de Interpretação é o
termo usado para designar a interpretação do ator que é utilizada para criar bases
de cenas animadas por computador. Toda movimentação e expressão facial que
são criadas pelos atores são emprestadas e transformadas em personagens.38 A
personagem se chama Smeagol/Gollum e é um alterego do personagem principal,
Frodo. Mas a máscara virtual já não é projeção real da face do ator e sim, uma
imagem que resulta da soma da colaboração do ator e dos criadores de efeitos
especiais.
38
Fonte: Blu-Ray do filme TinTin, de Steven Spielberg.
108
53
O ator Andy Serkis como Gollum
Quase todos os personagens de Mocaps são ainda feitos
individualmente, mas em Piratas do caribe: O Baú da Morte, de 2006, o processo
de captura de interpretação foi feito coletivamente com os captadores colocados
em ao mesmo tempo por todos os atores/piratas do barco, e cada personagem
caracterizado individualmente.
109
54
Foto com atores sendo capturados por MoCap e imagem virtual finalizada
E em 2009, em Avatar, James Cameron cria a primeira prova concreta de
que uma revolução com a máscara virtual estava para começar. As máscaras
digitais são criações artisticas (de interpretações) de seres humanos digitais. Com
esse sistema a tecnologia está integrada ao filme de tal maneira que a certa altura
nos esquecemos que não são atores que naquele momento fazendo a cena e sim
uma projeção da interpretação com outra roupagem. É como se camadas de
movimentos ou expressões realizadas por atores estivessem por baixo de todo o
trabalho final.
110
55
O livro do making of de Avatar
Podemos notar que houve um avanço no mascaramento da imagem
pois as máscaras que funcionavam com o grande público estavam aliadas a um
domínio da tecnologia somada a uma preocupação artística. Em cada período de
revolução tecnológica os atores tentaram enfrentar o desafio de integrar as suas
ferramentas de interpretação às novas tecnologias que se apresentavam na cena.
Como nos fala Alberto Lucena, “a técnica viabiliza a arte, mas por mais sofisticada
que seja, não é capaz de substituí-la. Simplesmente porque a arte é uma coisa
dinâmica, orgânica viva. (BARBOSA JUNIOR, 2001, p. 121)”.
111
2.2.1 A MÁSCARA DO EFEITO COMPOSITIVO PARA O EFEITO NARRATIVO
Pensemos no efeito compositivo e narrativo a partir da premissa de
Aristóteles (Poética, 1448a) onde a Mimese (imitação ou representação) quando é
“direta” é imitação pelo teatro e quando “indireta” é imitação pela narrativa (PAVIS,
2011, p. 242). Essa segunda forma de imitação, a indireta, pode ser relacionada à
representação cinematográfica.
Como vimos na teatralidade, quando tomamos por real ou verdadeiro o que
não passa de ficção (p. 202), então, temos a ilusão teatral. O efeito de ilusão se dá
no espectador quando ele vê a personagem a sua frente (ou na tela) e se
identifica com ele. Para que isso aconteça não há muitos mistérios, como diz
Pavis: “a ilusão se baseia numa série de convenções artísticas. E a ilusão e a
mimese não são mais que o resultado de convenções teatrais que é tudo aquilo
sobre o que plateia e cena devem estar de acordo para que a ficção e o prazer do
jogo ator/plateia se produzam” (p. 71).
A imitação não é passiva ela obedece a um conjunto de códigos:
De um modo geral, cada época inventa suas próprias receitas de ilusionismo. [...] a pintura, como o teatro, como as outras artes, é ilusionismo, e seus, meios, tanto quanto seus fins, estão ligados a um certo estado de sociedade e, mais ainda a um certo estado de seus conhecimentos teóricos e técnicos, até mesmo à medida das reações que um modo de vida, deduzido de uma certa compreensão do universo impõe a uma coletividade (apud FRANCASTEL, 1965, p. 224)
112
Há um conjunto dos significantes cênicos que estão a serviço de efeitos de
ampliação, de simplificação, de abstração e de legibilidade da obra. Eles fazem
parte da materialidade cênica: cenário, adereços, iluminação, música. Esses
recursos cênicos são somados aos recursos lúdicos: atuação, corporalidade e
gestualidade, que formam a encenação.
Para poder conceituar as atuais máscaras dividimos e nomeamos a partir
da nossa observação como se segue:
A máscara concreta parte da mimese que “caricatura” a realidade através
do exagero e do grotesco e é feita a partir de um efeito compositivo, ou seja, é
construída a partir de um objeto real e concreto que modifica ao ser colocado na
frente do rosto. Pode partir de um acessório feito em couro, papel, espuma ou da
junção de outros elementos (papel, metal etc.). A maquiagem também é máscara,
se for usada para codificar o rosto do ator. As caretas que o ator produz causando
a mobilidade do rosto formam máscara também. Seu significado pode ser
completado com figurino, adereços, cenário, iluminação. O efeito compositivo
então é tudo que compõe concretamente a realização de uma cena, seja a cena
feita direta ou indiretamente.
A Máscara virtual parte da mimese do ator, sem nenhum elemento cênico
real, nem mesmo um cenário, pois ela vai ser construída a partir de elementos
sobrepostos virtualmente a posteriori. O material da performance do ator se
transforma em fragmentos que serão montados de acordo com os efeitos
computadorizados. Ela nasce da atuação dos atores dos seus movimentos que
capturados se tornam matéria-prima para construção da imagem virtual. Como
113
não há composição direta e sim imagens sobrepostas ela é um efeito narrativo
porque é composto imaterialmente, virtualmente.
A partir dessa conceituação façamos uma relação de alguns filmes que
acompanham as evoluções técnicas relacionadas à maquiagem e à
caracterização de máscaras passando do concreto ao virtual.
Nos filmes do francês Georges Méliès, a máscara teatral está muito
presente e demarcada nos seus atores. Como vimos Méliès combinava “os
truques de teatro com as infinitas possibilidades da mídia cinematográfica”
(SCHNEIDER, 2008, p. 20). O filme Le Rois Du Maquillage é visionário e sintetiza,
já em 1904, imagens de como o efeito compositivo seria utilizado no cinema com o
próprio Méliès como ator, modificando seus rostos magicamente.
56
George Méliès atuava como ator
114
Em 1910, a Edison Manufacturing Co. fez a primeira adaptação
cinematográfica de Frankenstein: uma estória de Mary Shelley, dirigido e
produzido por J. Searle Dawley. O interessante dessa versão pioneira é que o
momento mágico de transformação (ou surgimento) do monstro lembra
embrionariamente as cenas de monstros feitos por computadores. E toda a
caracterização da personagem foi feita graças a maquiagens e apliques teatrais
grotescos, lembrando o que seria no futuro o Corcunda de Notre Dame.
56
O ator Charles Ogle
115
Os Vampiros (Lês Vampires), de Louis Feauillade, de 1915, apresenta uma
interpretação quase realista, mas ao mesmo tempo misteriosa com o auxílio da
maquiagem e da movimentação quase coreográfica39. Foi esse o filme que iniciou
o desenvolvimento do gênero thriller.
58
A atirz Musidora
Em O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Weine, do ano de 1919, os
efeitos estilizados, mágicos e teatrais que exageram a realidade dão o tom da
interpretação expressionista. Os atores que caracterizam os tipos chegam a criar
personagens/máscaras que se distanciam muito do real lembrando sempre ao
espectador que ele está assistindo a uma história fantástica. Ele é precursor dos
filmes de terror.
39
É nesse filme que temos a personagem Irma Vep, antes citada, a qual será referência para o espetáculo Irma Vap , enorme sucesso em São Paulo, estreou em 1991 com Marco Nanini e Ney Latorraca e direção de Marília Pêra.
116
59
Cena de O Gabinete do Dr. Caligari
Todavia, em 1922, Nosferatu: Uma Sinfonia do horror, de F.W. Murnau,
cria o mais impressionante filme de terror e suspense de todos os tempos,
principalmente por causa dos efeitos compositivos utilizados. Primeira adaptação
de Drácula de Bram Stocker, o filme se destaca principalmente devido à
interpretação do ator Max Schreck (SCHNEIDER, 2008, p. 40). Aliás, Schreck
significa “medo” em alemão e, talvez por coincidência, esse ator tenha criado uma
máscara de gestos e expressões impressionantes que parecem se basear em
algo muito primitivo e grotesco40. Toda a caracterização da maquiagem e
apliques41 foi aproveitada pelo ator que deu vida a essa criatura que tem poucos
movimentos, causando uma sensação de outra dimensão para quem assiste ao
40
Não há nenhuma ligação direta, mas possivelmente o nome da animação Shrek seja uma homenagem ao ator. 41
São formas que modificam o corpo/rosto dando as características necessárias para a maquiagem. Podem alongar uma parte do corpo, como é o caso do vampiro, em que suas mãos e unhas ficam bem longas.
117
filme. Esses efeitos são todos alcançados só com a movimentação e o tempo
ritmo da personagem que causam uma atmosfera de verdadeiro terror.
60
O ator Max Schreck
É claro que não poderíamos enumerar aqui os filmes que utilizam os
aparatos teatrais para construção de personagens, porém, podemos deduzir que
inicialmente tudo era desenhado a partir de estilização de figurino, cenários e
interpretações que exageravam ou caricaturizavam a realidade. Ou as histórias
eram baseadas em elementos fantásticos, filmes que causam terror com situações
extracotidianas.
Outro bom exemplo é o do ator Lon Chaney, que criava suas próprias
maquiagens, transformando seu rosto e corpo em grandes efeitos compositivos se
118
especializando em filmes de terror. Foi um dos artistas que valorizou a maquiagem
na composição de máscaras.
61 62
London After Midnight, 1927 e O corcunda de Notre Dame, 1923.
Jack Pierce trabalhava com Lon Chaney e foi um dos maquiadores de
maior destaque na composição de máscaras com materiais diversos. Suas
criações viraram referência e influenciaram outros artistas até hoje. Compôs com
o ator Boris Karloff a famosa máscara de Frankenstein, filme de 1931. Foi ele que
deu forma ao Frankenstein que conhecemos: “criou a cabeça chata, os plugues no
pescoço, as pálpebras caídas e mãos cheias de cicatrizes (KEMP, 2011, p. 88). A
realização da maquiagem levava muitas horas, em geral desconfortáveis, muitas
vezes, inclusive, os atores sofriam devido à toxicidade dos produtos.
119
64
Jack Pierce e Boris Karloff
Em 1933 surge pela primeira vez a máscara do gorila King Kong,
(Direção de Merian C. Cooper e Ernest B) criada por Willis H. O‟Brien, especialista
em reconstituições científicas que conseguiu idealizar as trucagens necessárias
para a mobilidade do macaco através de animação Stop-motion. Esse filme se
tornou um clássico dentro do cinema-fantástico e deu origem a outras versões
posteriores (de John Guillermin, em 1976 e Peter Jackson, em 2005).
64
Willis H. O’Brien e o boneco de King Kong
120
Os irmãos Marx – Groucho, Harpo, Chico e Zeppo – são representantes
da comédia que se rende ao som e que usam de todos os recursos para se
adaptar às novas possibilidades. Utilizando muitas habilidades físicas que vinham
do vaudeville, somavam seus talentos à criação de tipos bem definidos e
peculiares.
Cada um tem a sua caracterização somada às gags físicas: Harpo não
tinha fala e sua comunicação era feita por instrumentos musicais, usava peruca
loira e uma cartola surrada. Chico usava um chapéu, tocava piano e era bem
histriônico. Zeppo era o galã, o enamorado do grupo. Groucho, o mais anárquico
de todos, usava a máscara do bigode, nariz adunco, óculos e charuto. O curioso é
que seu famoso bigode e sobrancelha (que até hoje é encontrado nas lojas de
carnaval da Rua 25 de março) eram feitos com maquiagem preta e não com
aplique.
65 66
Observe que o bigode e sobracelhas de Groucho Marx é pintado, ao lado os três irmãos Marx.
121
A Bela e a Fera, dirigido por Jean Cocteau, em 1946, traz composições
com o uso de muita caracterização e maquiagem que já vai se deslocando para
adaptações de teatro para cinema. Ou para filmes de ficção científica.
67
Jean Marais (a fera) e Josette Day (a bela)
A tendência, que dominou a sétima arte na década de 50, era retratar
mutantes, discos voadores e invasões alienígenas. O monstro do lago era uma
criatura anfíbia, uma espécie aterrorizante de elo perdido entre seres marinhos e
terrestres. O Monstro da Lagoa Negra (1954), no auge do horror atômico no
cinema, as máscaras surgem como metáforas, quando os maiores medos se
voltavam à Guerra Fria e à ameaça de uma catástrofe nuclear.
122
Os atores mascarados criam muitas vezes figuras marcantes, mas em
geral passam despercebidos pelo público, pois ninguém os reconhece.
68
O Dia Em Que a Terra Parou
69
Ben Chapman, o ator que interpretou a criatura O Monstro da Lagoa Negra
123
Na década de 60 a ficção científica, incentivada pela pesquisa espacial,
trouxe avanços dos efeitos compositivos, principalmente nos filmes O Planeta dos
Macacos e 2001: uma Odisseia no Espaço, ambos de 1968 (ambos serão
analisados no próximo capítulo). No filme 2001: uma Odisseia no Espaço, o diretor
Stanley Kubrick narra uma história futurista e cria uma nova espécie de filme de
ficção repleta de significados simbólicos.
O maquiador Stuart Freeborn, considerado avô da maquiagem
cinematográfica moderna, foi quem criou os seres humanos/macacos para a
sequência Aurora da humanidade no filme. Visionário, mistura estética tecnológica
e primitiva numa incrível sequência feita por bailarinos que representam macacos
e que foram tão bem caracterizados (figurino e movimento corporal), a ponto de
todos acreditarem que fossem imagens reais.
70
Stuart Freeborn com os bailarinos
124
Aliás, Kubrick é responsável por uma série de máscaras icônicas e
interpretações marcantes. A atmosfera da violência é criada com a expressividade
facial e não era composta por quase nenhum aplique, só pequenos detalhes como
um cílios postiço no olho, “sobre o olhar friamente malévolo de sua vítima herói,
Kubrick ao mesmo tempo estabelece o contato olho-a-olho com Alex que ele
incessantemente mantém durante todo o filme” (WALKER, 1999).
Figs. 71 e 72 Malcolm McDowell em Laranja Mecânica e Jack Nicholson em O Iluminado
A máscara trágica de Pier Paolo Pasolini em Medea se apoia na origem
do teatro para redescobrir a máscara trágica no cinema. Ela é composta por
maquiagem e acessórios que, junto com os gestos, compõem signos que retratam
o período da tragédia grega.
125
73
Medea com Maria Callas
Duas composições de máscaras com o mesmo tema: Joana D‟Arc. A
Paixão de Joana D’Arc, direção de Carl T. Dreyer, de 1928, se forma a partir de
amplas expressões dramáticas. Já a Joana D’Arc, de 1962, parece que procura
uma não máscara. O diretor Robert Bresson cria uma estética mais limpa e um
estilo minimalista.
126
Figs. 74 e 75 Joana D‟Arc feita pelas atrizes Falconetti e Florence Delay
Depois de 2001: Uma Odisseia No Espaço, o maquiador Stuart
Freeborn ficou ainda mais reconhecido por seu trabalho na trilogia original Star
Wars, 1977, foi ele o criador da máscara do famoso personagem alienígena
Mestre Yoda. Fez também Superman, 1978.
Figs. 76, 77 e 78 Personagens de Star Wars e o ator Christopher Reeve
O efeito compositivo é feito de maneira artesanal, ou seja, não dispõe
de nenhuma tecnologia que modifique o corpo dos atores. Quando Star Wars foi
feito, os robôs eram “vestidos” por atores, ou seja, a imagem era futurista, mas a
realização ainda era bem concreta e exigia dos atores/manipuladores muito
127
sacrifício e paciência na composição. Como exemplo o ator /anão Kevin Baker que
manipulou o robô R2D2 em todas as versões da saga.
Figs.79 e 80 O ator Kevin Baker
Em Tron, 1982, Lucena nos diz “podemos verificar uma fraude
tecnológica, em nome da expressão, na “modelagem” dos guerreiros de vídeo
game – atores reais tiveram seus corpos envolvidos por malhas de fios
fosforescentes vermelhos adicionados através de método óptico tradicional – não
havia ainda tecnologia e a animação exigiria demais em termos de
processamentos.” Então a ilusão era feita “teatralmente”.
O Coringa, do ator Heath Ledger, em Batman – O cavaleiro das trevas
(direção de Christopher Nolan) é um bom exemplo de transformação do ator com
efeito compositivo. Mesmo sendo feito em 2008, quando já era possível criar
máscara com efeitos narrativos.
128
81
Heath Ledger interpreta o Coringa em O cavaleiro das trevas, de 2008
Para exemplificar essa diferença de efeito compositivo/narrativo temos
dois atores de épocas distintas, que vêm, contudo, da mesma tradição de
formação do teatro inglês, mas desenvolvem metodologias diferentes para a
construção de máscara. O ator Lawrence Olivier desenvolveu personagens nos
anos 50 a partir de efeitos compositivos. Dizia que o primeiro passo para a
caracterização de qualquer personagem era visualizar a aparência física. Então
adicionava uma peruca, um nariz falso ou outra composição elaborada mesmo
quando não havia necessidade, dizia que precisava dos acessórios para dar
verdade ao personagem.
129
82 Lawrence Olivier em Ricardo III, 1955.
O outro ator é Ralph Fiennes, que interpreta a personagem Voldemort
na série de filmes Harry Potter (2001- 2011) e que tem a sua transformação quase
toda feita por computação gráfica. Sua personagem tem um aspecto monstruoso
como se estive em formação embrionária e essa imagem é dada principalmente
devido à ausência do nariz no rosto. A remoção do nariz da personagem só
acontece no tratamento final da imagem. Essa máscara é quase toda feita de
efeito narrativo aplicado na pós-produção. Por isso o trabalho do ator é imaginar
esse rosto e desenhar a movimentação a partir dessa sugestão.
83
Captadores vão gerar o efeito para criar a máscara de Voldemort sem nariz.
130
Então entramos na era das criações artísticas de seres humanos digitais. O
efeito narrativo se estabelece quando muitos detalhes da máscara passam a ser
aplicados após a captura da atuação do ator. Esse sistema de Captação de
Interpretação cria definitivamente o efeito narrativo da máscara. Toda
movimentação e expressão facial que são criadas pelos atores são emprestadas e
transformadas em personagens. A partir dessa técnica, os movimentos de um ator
e expressões são eletronicamente controlados e traduzidos em imagens geradas
por computador (CGI) para trazer um personagem de filme para a vida.
Como já vimos, Gollum, do filme O senhor dos Anéis, foi o primeiro
personagem todo capturado em Motion capture (MoCap) dando origem à máscara
virtual pelo ator britânico Andy Serkis. Na época de lançamento do filme quase
ninguém sabia quem era o ator que delineou a personagem e só nos últimos anos
com a divulgação desta técnica que o público conheceu seu criador.
84 85
Gollum e o ator Andy Serkis
131
Do filme Beowulf, direção de Robert Zemeckis (2007) para Avatar, de
James Cameron, em 2009, a tecnologia de captura de movimento percorre um
longo caminho. Num ambiente de galpões sem cenários e com formas que
“marcam” os objetos reais assim são criados os personagens e a atmosfera de
Avatar. Esse ambiente de filmagem é chamado de “Teatro Virtual” pelos técnicos
de efeitos visuais. Para construção das cenas o galpão fica semelhante ao local
de ensaio de teatro - o figurino e máscaras todos são imaginados pelos atores.
Figs. 86 e 87 Atores de AVATAR e suas roupas de MoCap gravando no Galpão
132
88
A atriz Zoe Saldanha e sua máscara Neytiri, a princesa do mundo Na'vi
2.3.1 Antecedentes da Captura de Movimento (MoCap)
Os fatos significativos que levaram a animação e a tecnologia Motion
Capture a transformar a performance do ator em matéria prima para modelo de
máscaras tridimensionais criadas no computador tem início no estudo do
movimento dos antigos gregos que foram os primeiros a deixaram um registro de
investigação sobre a análise do movimento humano.
Aristóteles (384-322 a C) pode ser considerado o primeiro biomecânico. Ele
escreveu o livro chamado "De Motu Animalium” sobre o movimento dos animais.
Ele não observou apenas corpos de animais, como os sistemas mecânicos, mas
pensou questões como a diferença fisiológica entre imaginar, realizar uma ação e
realmente fazê-lo.
133
Escultores como Michelangelo (1475-1574) e Leonardo da Vinci (1452-
1519) pensaram em sistemas biomecânicos e os aplicaram a seus trabalhos
estéticos. Galileu Galilei (1564-1643), cem anos mais tarde, fez as primeiras
tentativas de analisar matematicamente a função fisiológica. Com base no
trabalho de Galilei, Borelli (1608-1679) descobriu as forças necessárias para o
equilíbrio em várias articulações do corpo humano bem antes de Newton publicar
as leis do movimento. O trabalho precoce desses pioneiros da biomecânica foi
seguido por Newton (1642-1727), Bernoulli (1700-1782), Euler (1707-1783),
Poiseuille (1799-1869), Young (1773-1829), e outros de fama igual42. Os estudos
de movimento eram realizados não só para fins científicos, mas também com
finalidade estética na pintura, escultura, na arte de espetáculos (teatro, dança,
circo).
Mas foi na mudança para o século XX, com a invenção da fotografia que o
registro da imagem capturada trouxe base para o aperfeiçoamento científico e o
início da performance virtual. Muybridge (1830-1904) foi o primeiro fotógrafo a
dissecar o movimento humano e animal.
42
The fascination MoCap, disponível no site: <http://www.xsens.com/en/company-pages/company/human-mocap>.
134
89
Sequência colocar a cadeira, sentar e ler.
Essa técnica influenciou o fisiologista Ettiene Jules Marey (1830-1904),
que em 1882 desenvolveu um método que ele chamou de chrono or time
photography e assim foi pioneiro na análise do movimento e inspirou muitos
artistas ao longo do século. Ele criou um macacão com marcadores que gerava
informações muito semelhantes ao da captura de movimentos atuais.
135
90 Traje com marcações de captura desenvolvido por Marey em 1884.
No início do século XX houve uma transferência da tecnologia dos
pesquisadores científicos para os artistas de cinema, teatro, artes plásticas.
Muitos pesquisadores estiveram envolvidos no estudo do movimento biomecânico
e aplicavam esses estudos em suas respectivas áreas procurando entender o
movimento do homem. August Rodin (1840-1917) escultor que buscava o
movimento, Marcel Duchamp (1882-1968) evoca a dinâmica do movimento numa
sequência de posições de um personagem descendo a escada. No teatro Jacques
Copeau (1879-1949) funda uma escola de atores inovadora que buscava a
expressão do ator pelo estudo do movimento, o ator Meierhold desenvolve um
estudo chamado de Biomecânica que decupava as ações físicas, Gordon Craig
(1872-1966) desenvolve a teoria do ator-marionete, como um boneco a serviço da
arte.
A efervescência das mudanças tecnológicas ao longo do século XX
mostra que a ideia de manipular o corpo aplicada à performance sempre existiu.
136
91
Exercícios de Biomecânica do Russo Meierhold
Então observamos que o uso de captura de movimentos para animação de
computador ou aplicativos de realidade virtual (RV) é relativamente novo. Mas a
ideia de copiar o movimento humano, para caracteres animados naturalmente,
não é nova e, como vimos, havia um interesse nesse sentido por várias áreas
distintas.
Para obter movimento convincente para os personagens humanos em
Branca de Neve (1936), Peter Pan, Cinderela, os estúdios Disney criaram
animações sobre filmagens de atores ao vivo “performando” o movimento das
cenas.
137
92
Atores em ação como modelos de movimento
Esse método, chamado Rotoscopia (rotoscoping), foi muito utilizado
para os caracteres humanos na animação. As “imagens são utilizadas como
referência para os animadores para ajudá-los a visualizar as cenas, posturas e
movimentos para desenhar” 43.
Em 1945, no filme Marujos do Amor44,o ator Gene Kelly entrou para a
história do cinema como a primeira dança com um personagem animado, o rato
Jerry.
43
Consulta feita no site: On The Trendy Road, disponível em: <http://onthetrendyroad.com/2013/04/page/2/> 44
Diretor George Sidney
138
93
Unidos animação e dança no cinema com o ator Gene Kelly
Outro efeito especial, que vem antes do advento de qualquer efeito por
computador, foi a animação dimensional que começa com Georges Méliès. Em
1896, ele descobriu, completamente por acaso, quando ele estava filmando uma
cena de rua para seu filme Place de l'Opera, que se a câmera parou enquanto
pessoas e veículos foram passando, uma coisa poderia substituir a outra. Seu
nome para o 'truque' foi 'Stop-ação ", que agora é chamado de Stop-motion45.
Ray Harryhausen e Willis O‟Brien trabalharam na década de 1950, 60 e
70, como pioneiros na animação dimensional e descobriram como poderiam criar
ilusão permitindo que um modelo fosse inserido diretamente na ação e parecesse
interagir com os atores.
45
Informações do site de Ray Harryhausen, disponível em: < http://www.rayharryhausen.com/pre-dynamation.php>
139
94
Jasão e o Velocino de Ouro, direção de Don Chaffey, 1963
Até então os efeitos especiais eram construídos paulatinamente com
muito trabalho braçal utilizando massinha, recortes quadro a quadro de maneira
bem manual exatamente como a composição dos atores e suas máscaras. Mas foi
depois de Star Wars, 1977, que houve a grande mudança ”os profissionais de
feitos especiais se tornaram homens sentados à mesa, trabalhando em
computadores, manipulando pixels e não massinhas”(KEMP, 2011, p. 484).
95
Cartaz de Star Wars
140
Então os truques feitos com maquiagem e bonecos passaram a ser
feitos por computadores. Mas é somente nos anos 80 que a indústria de imagens
geradas por computador (CGI - do inglês computer-generated imagery) descobre
como criar uma robô computadorizada com mais realismo, num filme comercial
chamado Brilliance.
Veremos com mais detalhes, no próximo capítulo, os desdobramentos
desse novo momento.
141
CAPÍTULO 3 - A MÁSCARA DO ATOR DIGITALIZADA
Esse início do século XXI lembra um pouco o início do século XX quando
houve um anúncio sobre o fim do teatro por causa do aparecimento do cinema.
Hoje também é recorrente outro anúncio: o da morte do ator no cinema. O teatro,
no entanto, sobreviveu entre as discussões dos modernos e dos antigos que
falavam da divisão entre cinema e teatro - “Não há possibilidade de união entre
teatro e cinematógrafo sem o extermínio de ambos” (BRESSON, 2005, p. 15). No
entanto a história do século XX mostra que as relações entre cinema e teatro
foram inúmeras: repulsão, interação, trocas efetivas e hibridismo sem que com
isso ambos sucumbissem. Pelo contrário, se o teatro trouxe a teatralidade que
evoluiu com seus signos e sensações, o cinema melhorou o olhar do público,
refinando os progressos da iluminação, das tecnologias, do som da imagem e,
apesar de serem concorrentes, cada um sempre teve o seu público.
Contudo hoje, no século XXI, o ator de cinema (e sua perfomance) se
encontra num paradigma onde a representação se vê diante das trucagens
audiovisuais de seus clones, num século que se inicia em “crise na relação da
imagem com a verdade” (VALLIN, 2008, p. 156).
De que maneira se dá a perfomance do ator em relação às tecnologias que
se tornaram realidades? Uma nova cultura que modifica a fronteira entre o filme
analógico e o filme digitalizado surge: a criação de atores em modelo virtual. A
captura de movimento (MoCap) é uma tecnologia que vem evoluindo desde os
primeiros dias na animação de personagens, mas hoje ocupa um espaço cada vez
142
maior, envolve uma grande equipe e todo o tempo na pós-produção do filme muito
mais do que o tempo da própria filmagem.
Os recentes avanços na tecnologia têm levado ao desenvolvimento de
muitas personagens virtuais concebidos para o cinema e jogos de vídeo. Assim,
os filmes atuais tendem a ocorrer em um ambiente que sugere algo muito realista,
mas na verdade tudo foi criado virtualmente.
As novas ferramentas digitais permitem a representação de tal modo
realista que ajudam a criar a ilusão cinematográfica totalmente virtual. Como ficam
as atuações dos atores, os movimentos e as ações capturadas por Motion
Capture? São creditados ao ator mesmo não aparecendo sua imagem real? Como
passamos a entender sua atuação se não corresponde à imagem do produto final
dos filmes? Em que lugar fica a sua perfomance com relação à projeção do seu
movimento no MoCap? Como avaliar a perfomance/máscara que foi criada por ele
e está representada na primeira camada da montagem do filme?
3.1. A MÁSCARA46 EM CAMADAS
Como vimos, desde a invenção do cinema os atores contracenam muitas
vezes com objetos ou personagens que não existem. Aliás, a criação da ilusão
sempre foi a matéria principal da atuação de um ator. Ele constrói a atmosfera
simbólica a partir da imaginação criativa e no jogo da cena ele imprime a verdade
46
Lembrando que o conceito de Máscara não está limitado apenas ao rosto, está relacionado, sobretudo, à aparência global, ao conjunto de expressão corporal (corpo e voz) do ator.
143
cênica47. Principalmente no teatro o ator cria jogos lúdicos que não necessitam de
objetos ou cenários para o espectador entender a ação dramática. O ator é
compositor desses códigos e muitas vezes são “fisicalizados” e entendidos pelo
público. Como no jogo dramático infantil, a criança entra em vários mundos
imaginários e volta à realidade sem nada para fazer a transição, fazendo uso
somente de sua fé inabalável. Simplesmente é sereia e está no mar e, logo em
seguida, está de volta a sua casa para almoçar. Entrar e sair do jogo lúdico esta é
a matéria do ator.
Ocorre que no cinema isso se dá de maneira diferente, a perfomance do
ator se transforma em imagem e é essa imagem é a narrativa.
A peculiaridade do ofício do ator no cinema é que na filmagem o fio
condutor das personagens não se dá de maneira contínua, linear. A construção da
personagem para o ator é feita como uma colcha de retalhos, um patchwork. É na
montagem e na pós-produção que toda a perfomance vai ter continuidade
narrativa. Essa fragmentação modifica totalmente a metodologia de trabalho do
ator, pois não é ele quem determina a sequência das imagens e
consequentemente da perfomance. Os atores que trabalham na experiência
cinematográfica têm que adaptar a sua metodologia de construção de
personagem, ou seja, desenvolver uma capacidade sensorial e técnica para criar
um sentido interno de ação continua da própria perfomance. Ele tem que criar a
47
O termo “verdade cênica” foi introduzido pelo diretor russo Konstantin Stanislavski no vocabulário teatral e, desta maneira, influenciou e polemizou toda uma série de pesquisas em busca dessa qualidade. O ator tem que se transformar na personagem e fazer com que o público acredite nessa verdade.
144
sua máscara a partir de estímulos que foram dados pelo roteiro, diretor e equipe
entregando o material da sua atuação nas mãos da pós-produção.
E não há como controlar o trabalho da filmagem e muito menos o da
imagem construída pelo ator, pois essa imagem vai ser retrabalhada em várias
instâncias. Por isso a perfomance criada indiretamente para o público vai ser
intermediada por muitas máquinas além da câmera. O material registrado do ator
é transformado na narrativa.
Inicialmente no cinema a caracterização da personagem pertencia ao
roteirista, diretor, ator e uma equipe de figurinistas, maquiador, dublês que
discutiam sua aparência, seu figurino, sua movimentação e a composição de
acordo com o tema da obra e era feita na maior parte ainda num ambiente
concreto. O diretor e seus assistentes estavam nos locais da locação, nos sets de
filmagens e acompanhavam a montagem da criação das personagens orientando
os atores. Até as últimas décadas do século XX havia certa fragmentação do
trabalho do ator, mas as sequências das cenas que não eram “editadas”
permaneciam com sua consistência dramática quase intacta.
Com a utilização cada vez maior da computação gráfica a fragmentação
das imagens começa a aumentar e por consequência a representação dos atores
perde importância porque a sua teatralidade não é aproveitada integralmente, mas
em pedaços. A perfomance do ator passa por um processo de diluição em relação
aos outros elementos cinematográficos. Sua cena cada vez mais tem a mesma
importância que a luz, a música, a montagem etc. A decupagem da imagem dilui a
importância do ator, ele já não é mais o centro das atenções e sim um elemento
como qualquer outro.
145
Com o uso da tecnologia da captura de interpretação hoje, a fragmentação
não está só na edição das cenas, mas na própria teatralidade da cena. Ocorre
uma inversão e tudo que era feito concretamente é manipulado digitalmente por
meio de ferramentas de sofisticados softwares. Cada vez mais os diretores não
acompanham os atores ao vivo e sim por meio de monitores fora do ambiente da
locação.
Desde Georges Méliès, pai do cinema de efeito48 (trickfilms) que os atores
se veem envolvidos com a necessidade de criar a partir do nada, contracenar com
o vazio. Com a criação do chroma key que é a combinação de dois fragmentos de
imagem com origens distintas, os atores tiveram que desenvolver métodos
próprios para contracenar com elementos que na hora da cena não estão, mas
vão ser inseridos a posteriori na montagem. Os filmes em live-action49 também
foram evoluindo com o tempo. O primeiro filme a ter atores reais contracenando
com desenhos animados foi Alô Amigos50, da Disney que teve sua première em
1942, no Rio de janeiro. E em seguida, em 1945, o filme Marujos do Amor51 que,
como vimos, misturava na tela Gene Kelly e o rato da série animada Tom e Jerry
e, mais uma vez em 1953, Esther Williams faz parceria com mesmo Tom e Jerry
em Salve a Campeã. Os estúdios da Disney produziram A Canção do Sul 52(1946)
e Mary Poppins (1964).
48
BARBOSA JUNIOR, 2001 p. 83. 49
Filme em live-action /animação é um filme que apresenta uma combinação de atores reais e elementos criados por meio de animação, interagindo normalmente. Fonte: Wikipédia. 50
Saludos Amigos 51
Anchors Aweight, 1945. 52
Song of the South, EUA, 1946.
146
96
Canção do Sul
Uma Cilada para Roger Rabbit, de 1988, foi o filme de interação de atores
reais com desenhos animados que deu “um passo a frente e trouxe a interação
entre humanos e desenhos que, embora não tenha sido novidade, subiu o nível
das produções e expectativas do público: os desenhos foram coloridos de forma
mais dark para torná-los mais tridimensionais, e os humanos tiveram suas
imagens mais saturadas, e ficaram mais bidimensionais. Assim, a linha que
separa os dois mundos ficou menos óbvia, e suas interações mais realistas”53.
53
Disponível em: <http://criticosbotequim.wordpress.com/2010/11/11/uma-cilada-para-roger-rabbit/>
147
97
Uma Cilada para Roger Rabbit dirigido por Robert Zemeckis
A questão é: como trabalharam esses atores? Quais as dificuldades de
atuar quase sempre sem réplica real? Os atores ao longo dos anos foram
percebendo a nova realidade sobre os verdadeiros astros dos filmes, os quais não
eram eles próprios, mas outros elementos, tais como a edição e sequência
escolhida pelo diretor, os efeitos especiais, a animação com elementos
sobrepostos. Do mesmo modo a postura dos diretores foi se modificando, já que a
direção sempre fora próxima ao ator, indicando as marcações e atmosfera da
cena dadas diretamente no set de filmagem. Hoje, contudo, os diretores quase
sempre dirigem de frente para o monitor e muitas vezes não encontram o ator,
criando uma distância sem ter contato direto com a perfomance física da atuação.
Com o aumento da quantidade de imagens, a fragmentação das cenas é enorme:
o que o diretor vê vai sendo modificada pela equipe de efeitos especiais e o
148
número de monitores também aumenta na medida em que se sobrepõem outras
camadas de máscaras.
98
James Cameron e os Monitores em Avatar, 2009.
Certamente, podemos compreender que, em todos esses filmes que
utilizam composições por computador ou a técnica de Movimento Capturado
(MoCap) e que desenvolvem a relação ator real e imagem desenhada, a postura
dos atores precisa ser de experimentação. A construção do ator é ajustada aos
equipamentos, de maneira empírica, ele, portanto, precisa se adaptar à situação,
confiando na ideia dos diretores e da equipe, pois não há ainda uma metodologia
que direcione a atuação ao resultado da máscara virtual.
149
3.2. MoCap - A Desmaterialização da Máscara
A captura de movimento (MoCap), assim como a computação gráfica, foi muito
impulsionada pela indústria cinematográfica norte-americana que consegue forçar
o limite tecnológico ao máximo em prol das suas produções de cinema. Como diz
Lucena:
os norte-americanos já detinham a supremacia do entretenimento, eram o maior mercado consumidor e comandavam o desenvolvimento da tecnologia digital. Como os estúdios de animação não davam conta de ocupar o campo do cinema de fantasia, cineastas de filme ao vivo, como Steven Spielberg e George Lucas (professadamente amantes da animação que se dizem influenciados por esse meio), passam a dominar essa vertente cinematográfica, com exigência crescente por efeitos especiais convincentes (BARBOSA JUNIOR, 2001, p.323)
Apesar da técnica de Movimento Capturado ser desenvolvida inicialmente para
aplicações em medicina e estudos de ortopedia, ela se tornou atraente para a
indústria cinematográfica e, nos anos 80, George Lucas (ILM54) já possuía uma
técnica de captura que fazia o básico abrir e fechar de mãos.
Em Enigma da Pirâmide (1985) foi criada uma história para contextualizar a
tecnologia que eles queriam experimentar na tela. Em O Exterminador do Futuro 2
(1991), o androide, com sua forma líquida, representou um avanço um tanto maior
para a época no que diz respeito à textura: embora a pele humana perfeita ainda
não fosse produzida por meios artificiais, a sensação visual do líquido já era
54
Industrial Light & Magic.
150
possível. No entanto, no ano seguinte já foi possível uma boa cópia da pele por
computador no filme A Morte Lhe Cai Bem, e conseguir uma boa sensação de
textura de pêlo foi alcançado pouco tempo depois com o filme Jumanji (1995).
A marca dos anos 80/90, na indústria cinematográfica norte-americana recaiu
sobre a busca de movimentos realistas e texturas. Assim, um outro marco dessa
pesquisa foi Jurassic Park (1993), que conseguiu texturas mais reais para os
dinossauros.
As divisões das etapas de avanços tecnológicos não são muito claras, elas se
misturam nas muitas produções simultâneas do período. Por isso criamos uma
tipologia para facilitar um histórico do avanço tecnológico dividindo a captura de
movimentos em várias fases possíveis de distinção:
1. A leitura do movimento: buscar uma leitura precisa do movimento
que criasse uma ideia de realismo, aplicando as leis da gravidade e da
física.
2. Passar o objeto realista para um objeto tridimensional era o
desafio. Como anexar o movimento criado no computador junto com o
movimento realista? Por exemplo, reproduzir a mão de uma pessoa
tridimensional por Stop Motion55 ou uma leitura de uma mão real. A questão
era que a mão real não se movia simetricamente: um dedo desce e depois
puxa o outro e todos se movem por assimetria (movimentos biomecânicos).
55
Stop Motion (que poderia ser traduzido como “movimento parado”) é uma técnica que utiliza a disposição sequencial de fotografias diferentes de um mesmo objeto inanimado para simular o seu movimento. Fonte: Site <www.tecmundo.com.br>
151
O 3D já podia simular isso quadro a quadro, mas o grande desafio era
como colocar os pontos da mão equivalentes no computador. Quais eram
os pontos que equivaleriam na maquete 3D? Essas questões acontecem
nos anos 80/90.
3. Depois veio o desenvolvimento da textura que buscava a mesma
sensação ótica de ver pêlos, tecidos, elementos da natureza e, finalmente,
pele. E como tornar isso real.
4. A busca da Aplicação com precisão do movimento real.
O 3D caminha junto com o Motion Capture quanto à evolução de
textura, de mobilidade, de realismo. E quando surge o interesse em detalhar o
rosto humano e suas expressões, percebeu-se que a face em 3D tinha várias
falhas. Os olhos não tinham vida e a boca não tinha profundidade (sua aparência
era quase a de uma dentadura), ou seja, faltava-lhe elasticidade. No final dos anos
90, os técnicos tinham um paradigma de como fazer uma boca realista. A
perspectiva na época era que demorariam 10 anos para que houvesse melhoras
nessa tecnologia, mas a realidade é que em três anos, depois de 2000, a questão
da expressão da boca já fora resolvida. Os olhos, contudo, foram mais difíceis que
a boca, isso porque um dos elementos de maior realismo, que revela emoção é,
principalmente, o olhar. O olhar é de difícil tradução, dado que a expressão dos
olhos pode dizer muito. Em uma máscara real a única parte não fixa do ator são
os olhos. Porque não é só o olho físico que gera expressão, é o “olhar” que
compreende sensações internas e, como diz o ditado, “o olho revela a alma”,
muitas vezes.
152
A questão do olhar só foi resolvida recentemente a partir do filme Avatar,
filme que se configura com o divisor de águas nesse cinema, porque traz pela
primeira vez “um equipamento especial na cabeça, semelhante a um capacete de
futebol americano, no qual era afixada uma minúscula câmera. O aparelho ficava
voltado para o rosto do ator, e a câmera filmava as expressões faciais e os
movimentos dos músculos num nível que jamais havia sido possível. E o mais
importante é que a câmera filmava o movimento dos olhos, o que não ocorria nos
sistemas anteriores”56.
A partir desse filme os ajustes foram evoluindo rapidamente e se
sofisticaram a cada nova produção como o Planeta dos Macacos – a Origem (Rise
of the Planet of the Apes) (2011), Tintin (2012), Hobbit (2012).
A partir do momento em que a tecnologia consegue desenvolver o
movimento da boca bem próximo do real e reproduzir o olhar humano de forma
convincente o modelo virtual começa a se tornar competitivo em relação à
interpretação real. Aqui começamos a ter a separação do corpo real do ator e a
sua máscara para um movimento doado para o espaço virtual.
Durante esta pesquisa observamos que isso é só a “ponta do iceberg”.
Percebemos que a partir do momento em que o ator se transforma em modelo
virtual já é possível, por exemplo, ver artistas que faleceram, sendo reconstruídos
virtualmente, pois os modelos virtuais podem automatizar características das
56
Extraído de <http://pipocamoderna.com.br/conheca-a-tecnologia-inovadora-de-avatar/11089>
153
pessoas reais criando um “banco de dados” de movimentação e os dados serem
aplicados para uma “reconstrução” da imagem57.
Atualmente quando falamos em modelo real e virtual no esquema de Motion
Capture, o modelo virtual é mérito da perfomance do ator, pois temos uma
fidelidade da expressão e dos movimentos que são capturados e que recebem
interferência em camadas do programador. Em geral, a captura de movimentos é
utilizada para isso: captura a interpretação, o olhar, a mecânica do movimento, e
cria texturas, uma semelhança de real que é projetada no boneco virtual. Não é
mais um humanóide formado pelo computador. Mas ainda não está claro se com
um grande banco de dados será possível no futuro prescindir do ator.
O trabalho do ator é avaliado quando falamos da interpretação da
personagem feita por MoCap, como por exemplo, no caso do filme Planeta dos
Macacos – a Origem, em que o macaco foi totalmente criado através de MoCap
pelo ator Andy Serkis (voltaremos a esse assunto mais adiante), que já tinha
interpretado um gorila com captura de interpretação no filme King Kong no ano de
2005. Então o ator, apesar de não ter a sua imagem real na tela, pode receber os
créditos pela perfomance captada. Essa perfomance virtual, de certa forma,
mantém a sua primeira “camada” de realidade. De tal modo que transparece o
trabalho do ator.
Mas e quando houver um grande armazenamento e sistematização
catalogados das perfomances dos atores? Quando for possível programar a
representação por composição digital?
57
O rapper norte-americano Tupac Shakur, morto em 1996, apareceu em um show de outro rapper Snoop Dogg em forma de holograma “muito realista”. A apresentação ocorreu em 15/04/2012. Fonte: site <www.tecmundo.com.br.>
154
Se fizermos um paralelo com a voz, hoje já existem programas de fala58 que a
processam de tal maneira que se aplicam a ela outras texturas sonoras, tornando-
a uma voz diferente da original. Sabemos que existem cantores que não têm uma
grande voz, mas é possível “melhorá-la” no estúdio de gravação. O mesmo
fenômeno pode ser uma tendência da interpretação virtual: suponhamos que um
ator, cuja perfomance não seja tão convincente, fale um texto qualquer sem muita
expressão. O modelo 3D incorpora as características do ator e coloca, por
exemplo, o ator Marlon Brando falando esse mesmo texto. “É possível
transformar um impulso simples em um impulso mais elaborado. No computador
quando se faz um desenho, uma linha um pouco torta num programa como flash
ou corel draw59, o programa tem a capacidade de corrigir a linha, ele pode fazer
uma linha mais suave, a pessoa não sabe fazer a linha reta e suave, mas o
computador pode melhorar o desenho. Essa é uma característica possível de ser
colocada em softwares, isso poderá acontecer também com a interpretação a
partir do momento em que ela se torna programável?” 60
Estamos numa fase de captura de interpretação que é totalmente
dependente do ator. Se o ator não criar a cena, não teremos uma imagem tão
próxima ao realismo. Seu olhar, sua movimentação, sua relação com a câmera
não será captada e desenvolvida para o filme. Mas qual será o futuro do MoCap?
Talvez criar um modelo de ator virtual que tenha características próprias e que
58
<http://alice.pandorabots.com/> - (chatbot de chat, conversa, e bot, robô), um programa de inteligência artificial criado para simular uma conversa em linguagem natural. 59
Programas que possibilitam a criação e a manipulação de vários produtos como, por exemplo: desenhos artísticos, publicitários, logotipos, capas de revistas, livros, CDs, imagens de objetos para aplicação nas páginas de Internet (botões, ícones, animações gráficas etc.) confecção de cartazes, etc. Fonte: Wikipédia. 60
Questões feitas a partir do depoimento do Prof. Claudio Yutaka do Curso de RTV da Universidade Anhembi Morumbi, 2013.
155
possa ser aplicado a qualquer pessoa. Podemos aplicar uma interpretação
qualquer, talvez inexpressiva em um modelo tridimensional com as características
já captadas de um ator virtual? Aqui teremos um paradigma da interpretação essa
mistura pode ser considerada ou não uma interpretação?
Não parece ainda possível que a computação consiga conter o lado
invisível da interpretação humana que não é programável, não é elaborada a partir
de fórmulas cartesianas. O ator elabora seu personagem com muita pesquisa,
observação da vida, método de interpretação, mas também com o imponderável e
com a criação a partir do caos criativo da desconstrução/construção.
Nota-se nos making of das filmagens que os atores que interpretam em
MoCap criam seus personagens através de pesquisas de observação, técnicas de
interpretação, construção de máscaras e “insights performáticos, ou seja, impulsos
de movimentação inesperados que surpreendem a quem assiste e até ao próprio
ator”61. Quando usamos a palavra criação do papel está implícito que o ator vai
compor seu personagem somando todos esses elementos. Mesmo com grande
tecnologia é muito difícil conseguir simular todas as características da
interpretação de um ator.
Qual é a origem de uma emoção? A interpretação não é só voz, olhar
expressão corporal, são todos esses componentes juntos. E a computação não
consegue simular a experiência do ator, suas referências e a emoção com todo o
seu significado e colocar num modelo 3D; o computador copia as coisas,
memoriza, mas não cria perfomance. Talvez os personagens que atuam como
61
Fala da atriz Glenn Close apud WESTON1996, p.86.
156
figuração, personagens flat62 ou complemento de cenas possam ser substituídos
totalmente, como já acontecem em inúmeras produções63. O computador não
consegue construir personagens, ele pode fazer o que está programado. Existe
grande diferença entre o que é interpretação do ator e o que seria uma simulação
da interpretação por computador.
Mas qual seria a vantagem do homem em querer virtualizar a
perfomance totalmente? Por que virtualizar tanto a ponto de querer que a
computação construa as personagens ou perfomances dos filmes sem
interferência da ação física? E entramos na questão da necessidade da arte e da
ilusão para o homem. No livro The Making of Avatar, Cameron comenta: “Os
atores me perguntaram se estávamos tentando substituí-los. Ao contrário,
estamos tentando dar a eles mais poderes, novos métodos de expressão para
criar personagens, sem limitações. Não quero substituir atores, adoro trabalhar
com eles. Isso é o que eu faço como diretor. O que estamos tentando é substituir
as cinco horas na cadeira de maquiagem, que é como se criam personagens
como extraterrestres, lobisomens, bruxas, demônios etc. Agora você pode ser
quem ou o quê quiser, ter qualquer idade, até mudar de sexo, sem o tempo e o
desconforto da maquiagem complicada”64 (DUNCAN, 2010, p. 140).
Hoje ainda não compensa, para as produções cinematográficas, a
realização de toda a interpretação virtualmente, o ator real tem um custo menor e
62
Personagem plana (flat character) Segundo E. M. Forster, a personagem plana é construída em torno de uma única ideia ou qualidade. Sem profundidade psicológica. FORSTER, E. M 1927. 63
Em várias séries de TV já existem os personagens reais e os personagens 3D, como no caso de Walking Dead, cujos zumbis são feitos por computador com padrão de movimento realista. Estão em segundo plano e não conduzem a estória, seu padrão vocal é programado. 64
DUNCAN, Jody.The Making of Avatar. New York : Abrams, 2010, p.140.
157
é mais prático. Sendo assim, o MoCap é utilizado em situações especificas como
no caso de personagens fantásticos, de grande número de personagens
figurantes ou na filmagem de personagens animais. Mas e quando o MoCap for
aplicado em personagens que vivem em universos cotidianos contracenado com
atores reais? Será que o conceito deste personagem aplicado ao trabalho do ator
tem a mesma intenção na representação?
158
3.3. EXEMPLO DE TRANSIÇÃO DO EFEITO COMPOSITIVO PARA O EFEITO
NARRATIVO
O objeto escolhido para a observação de refilmagem com transição
tecnológica do trabalho de composição dos atores, em que o efeito compositivo foi
sendo substituído pelo efeito narrativo será aqui visto na trajetória da máscara dos
atores na saga Planeta dos Macacos. Este filme e suas continuações representam
o exemplo completo de transposição do concreto ao virtual. Principalmente porque
o último filme lançado em 2011 cria o primeiro protagonista macaco feito
totalmente em MoCap e sua narrativa se passa em uma situação cotidiana, numa
cidade comum, com pessoas comuns e não num ambiente fantástico.
A primeira versão desse filme foi realizada em 1968 e se seguiu por várias
décadas chegando até 2011 e, até o final dessa dissertação, estará ainda em
andamento uma próxima filmagem, com estreia prevista para 2014, quando
provavelmente os avanços tecnológicos já terão superado os de hoje.
Aqui nosso olhar se refere à construção da máscara do ator e de sua
participação na composição do filme ao longo desses anos, acompanhando a
transição dessa máscara do sistema analógico para o digital. Consequentemente
o intuito é estudar a presença do ator, sua imagem real e de que maneira a
personagem se constitui no modelo virtual.
O primeiro filme da série mencionada, de 1968, O Planeta dos Macacos
(Planet of the Apes) é classificado como ficção científica65. Foi dirigido por Franklin
65
Antes, um gênero quase exclusivo do cinema "B", a ficção científica deu uma grande virada em 1968. Nesse ano, foram lançados dois de seus marcos: 2001 – Uma Odisseia no Espaço e Planeta
159
J. Schaffner, com roteiro escrito a partir do livro de Pierre Boulle, Planete des
Singes. Considerado um clássico muito ousado, possuía elementos que juntos
poderiam ter levado ao fracasso de bilheteria ou ao pertencimento ao acervo de
filmes de categoria “trash”. A maior questão da produção era fazer atores
parecerem macacos com uma interpretação que fosse de fato convincente. Um
verdadeiro desafio, se pensarmos que não havia ainda uma tecnologia de
computação gráfica na época que pudesse criar essa realidade. Mas com o
trabalho minucioso dos atores e os recursos usados pelo maquiador para criar as
máscaras, a experiência da “Verdade Cênica”66 do filme foi muito bem realizada.
Eram construídas máscaras a partir de um molde feito sob medida para
cada um dos atores, (foto a seguir), como um aplique no meio do rosto os moldes
eram quase iguais67·. O que fazia com que cada macaco tivesse um rosto
diferente eram as interpretações dos atores. O ator, Roddy Mcdowall, na hora da
maquiagem, experimentava movimentar a musculatura para ter um pouco mais de
mobilidade. E, de fato, ele e a atriz Kim Hunter trabalhavam nesse insistente
exercício de movimentação com a máscara, a fim de conseguirem o melhor
resultado expressivo no filme.
dos Macacos. Tudo que o filme de Stanley Kubrick tinha de metafórico e cerebral, a aventura do diretor Franklin J. Schaffner tinha de visceral. Símios falantes e prepotentes, seres humanos mudos e aguilhoados – não era preciso muita perspicácia para entender as bordoadas que o cineasta disparava sobre o frágil estado das relações humanas (por falta de palavra melhor) e sobre a corrida armamentista, que poderia roubar à humanidade seu posto de espécie dominante. BOSCOV, 2001. 66
Verdade Cênica: O termo verdade cênica foi introduzido pelo diretor russo Konstantin Stanislavski no vocabulário teatral e, desta maneira, influenciou e polemizou toda uma série de pesquisas em busca dessa qualidade, o ator tem que se transformar na personagem e fazer com que o público acredite nessa verdade. 67
No teatro chamamos essa máscara expressiva de acento, pois ela não se configura como máscara por ser pequena e preencher só quase o nariz, mas modifica o rosto completamente.
160
Os atores tinham suas roupas e maquiagens montadas algumas horas
antes da filmagem. Mas a preparação era demorada, o que desmotivava alguns
atores a continuarem com o filme68.
A forma como os atores realizaram a composição física dos macacos é
totalmente baseada em construção de personagem clássica e está ligada a ações
reais. Observa-se que a interpretação dos atores é de efeito totalmente
compositivo, ou seja, cria-se a personagem através de uma pesquisa imitativa dos
macacos e transformam-se os movimentos estudos em movimentos humanizados,
que, assim, vão caracterizar cada personagem da história. Para isso, os atores se
submetiam a buscar um trabalho corporal baseado na observação dos símios
(nota-se um jeito característico do andar do macaco em cada personagem/macaco
do filme) e a isso, depois, somava-se o figurino e a maquiagem, que completavam
a construção das personagens.
68
Uma cena piloto foi feita com Charleston Heston (como o humano Taylor) e Edward G. Robison (como macaco Dr. Zaius), mas Robinson, temendo que horas na cadeira do maquiador ameaçassem sua já debilitada saúde, saiu do elenco e foi substituído por Maurice Evans. Outro caso a respeito da maquiagem é que houve rumores de que Roddy McDowall (Cornelius, o macaco amistoso) seria alérgico aos componentes químicos usados na fabricação da máscara e só tenha aceitado continuar na produção após a criação do pagamento de um "seguro" pela irritação de sua pele. SCHNEIDER, 2008. p.484.
161
99 Molde de confecção da máscara dos Macacos
A maquiagem convincente foi feita por John Chambers69, um inovador, que
desenvolveu as melhores maquiagens da época (família Adams, o rosto e a orelha
do personagem Spok de Star Trek, alienígenas de vários filmes). Chambers
recebeu 50 mil dólares para desenvolver os efeitos com sobreposição de apliques
(formato do rosto de macaco, pelos, sombreamento) que formavam uma máscara,
maquiavam também a cor das mãos com pelos e os pés tinham uma espécie de
pantufa para parecerem pés de símios.
O figurino, era uma túnica comprida, ajudava a cobrir o corpo todo e
resolver de forma convincente o corpo do macaco. Para poder ter alguma
mobilidade, ele teve que fazer muitos testes com os mais variados materiais até
69
Ganhou o Oscar, Prêmio Especial de Maquiagem. É o maquiador que aparece no filme Argo, de 2012, com direção de Ben Affleck, e que ajuda no caso dos funcionários da embaixada americana escondidos no Irã.
162
chegar à máscara de látex que, na época, era a tecnologia possível. Mesmo
assim, o ator não tinha muita mobilidade expressiva no rosto, quase nenhuma
musculatura facial, o que tornava os movimentos de expressão facial muito
rudimentar, já que o material da máscara não era flexível, de modo que somente o
olhar e pequenas aberturas da boca é que davam as emoções das personagens.
Ainda assim, é impressionante notar como a interpretação tem vida. Podemos
compará-la ao trabalho dos atores com máscaras na Commedia dell’arte e
perceber que no filme também, apesar de a expressão ser quase fixa, o ator
consegue ter a capacidade de dar vida à personagem. E, nesse sentido, o olhar é
responsável por essa capacidade. Isso fica muito claro se observarmos a
interpretação dos dois macacos principais interpretados por Roddy McDowall e
Kim Hunter (Cornelius e Zira) que, apesar da máscara sem mobilidade,
conseguem uma enorme gama de expressões, o que na época causava certo
medo na plateia, pois até então nunca houvera nada parecido ou tão próximo do
real.
E talvez esse seja um dos motivos do sucesso que fez o filme na época. O
empenho dos atores (boa escolha de elenco) e da equipe, todos criando a ilusão
de que esses macacos humanizados teriam as mesmas características dos
homens, sem nenhum efeito de computador, somente com elementos de
encenação e filmagem tradicionais.
O ano de 1968 foi também o do lançamento do filme 2001: Uma Odisseia
no Espaço, dirigido por Stanley Kubrick, e considerado um marco do cinema: um
dos melhores filmes de ficção científica de todos os tempos. Num mesmo ano,
então, temos duas películas que coincidentemente caracterizam macacos.
163
Situações diferentes, mas que de qualquer forma investigam o homem e sua
relação instintiva. Um aborda questões filosóficas relacionadas à existência
humana e o outro, uma ficção em que macacos evoluiriam como humanos. Em
ambos temos abordagens diferentes da construção física dos macacos
representados.
Originalmente, Stanley Kubrick teve o maquiador Stuart Freeborn70 para
criar os primitivos macacos/hominídeos, a primeira ideia era uma maquiagem
semelhante à humana para os atores que interpretavam o homem primitivo, mas
ele não conseguiu encontrar uma maneira de fotografá-los em tamanho completo,
uma vez que tinham que estar nus. Então Kubrick resolveu usar o modelo de
macaco com traje peludo de corpo inteiro. Com a exceção de dois bebês,
chimpanzés reais, todos foram interpretados por excelentes atores/bailarinos
vestidos de figurino. Daniel Richter interpreta um macaco que observa a lua e foi
ele que coreografou a maioria dessas cenas. Não há falas, as cenas dos macacos
dialogam com a música “Assim Falou Zaratrusta”71 numa grande simbiose entre
som e movimento. A movimentação dos símios é tão real que espectadores no
início do filme se perguntavam “onde Kubrick conseguiu macacos tão
qualificados”? E como os “dirigiu”? Especula-se que mais tarde ele mesmo brincou
dizendo que 2001 teria perdido o Oscar de Melhor Maquiagem para John
Chambers, de O Planeta dos Macacos, porque os juízes não perceberam que os
macacos eram realmente pessoas, a Academia pensou que as personagens
70
Relembrando: Stuart Freeborn foi um maquiador britânico criador de criaturas cinematográficas como Yoda e Chewbacca, da série de filmes Guerra nas Estrelas, morreu recentemente, dia 07/02/2013, aos 98 anos. 71
Richard Strauss compôs a sinfonia “Assim falou Zaratustra” quando tinha 32 anos, em 1896, inspirada no livro homônimo de Nietzsche, escrito em 1885.
164
fossem macacos reais. De qualquer forma, não havia nomeação de conjunto de
maquiagem, pois o prêmio de maquiagem não foi criado antes de 1981 – o Prêmio
de Chambers foi meramente honorário.
Notamos em 2001 uma criação de máscara de enorme impacto: homens
fazendo mimese de macacos com perfeição, enquanto em Planeta dos Macacos
temos a ideia física do macaco se humanizando. Os dois trabalham com a noção
do instintivo/primitivo, mas obtiveram resultados totalmente diferentes na
representação.
Em 1970, foi feita uma continuação dessa ficção, cujo título era De Volta ao
Planeta dos Macacos (Beneath the Planet of the Apes). Essa continuação da
história fez certo sucesso como o anterior repetindo alguns atores, mas não foi
capaz de manter a mesma qualidade. Não acontecem grandes novidades, o
elenco dos macacos, que já tinha desenvolvido um estilo de atuação no trabalho
anterior, manteve a linha de movimentação e o uso de máscaras. Só estão mais à
vontade na movimentação que agora parece mais humana. Não há um grande
salto interpretativo em relação ao primeiro, já que entre um filme e outro,
passaram-se apenas dois anos. Provavelmente o filme tinha uma produção de
baixo custo, nota-se o uso de Chroma key em muitas cenas nesse segundo filme
e também muito estúdio, sendo que o primeiro utilizou mais locações externas.
Nesse caso, quando falávamos de um fio tênue entre uma boa perfomance e outra
menos convincente, essa continuação parece menos elaborada em relação ao
trabalho dos atores, e a plateia já tinha se acostumado com o macaco/homem e
não se surpreendeu mais. O fato é que o seu desfecho (a explosão do planeta
Terra), a trama rebuscada misturando os macacos, mais uma civilização
165
intraterrena com uma bomba atômica e seres humanoides não ajudaram o bom
desempenho dos atores.
Na terceira sequência, A Fuga do Planeta dos Macacos (Escape from the
Planet of the Apes) feita um ano depois, em 1971, portanto, o casal chimpanzé
(Roddy Mcdowall e Kim Hunter) vem para o planeta Terra com a nave que retorna
no tempo. Ainda temos como ponte original os mesmos atores que desenvolveram
a perfomance da máscara dos macacos e, com isso, a técnica aprendida ao longo
de três filmes fica preservada. Como na Commedia dell’arte, os atores repetem
suas perfomances sempre que o público se identifica com os tipos criados e,
nesse caso, a saga desses símios (e da atriz) vai terminar o seu ciclo neste
terceiro filme. Nos três filmes criou-se uma empatia coletiva do casal de macacos
com o público do cinema e na narrativa isso vai ser repetido quando os macacos
chegam ao planeta e inicialmente causam estranheza, mas logo cativam os
humanos da Terra. O casal de macacos morre no final deste filme, mas o filhote
vai dar o gancho para a continuidade. “Essa foi a melhor das continuações, ainda
que um pouco descaracterizada”, segundo Rubens Ewald Filho, e abriu espaço
para uma nova etapa.
Em 1972, A Conquista do Planeta dos Macacos (Conquest of the Planet of
the Apes) narra o que aconteceu com o filhote, chamado César. Esse filme
contém cenas com maior violência, que foram suprimidas na época. Uma segunda
edição foi refeita, amenizando as cenas violentas. Somente no ano de 2012 essas
cenas reaparecem no Box Blue Ray comemorativo de 44 anos. A Conquista do
Planeta dos Macacos vai servir de base para a refilmagem de O Planeta dos
166
Macacos – a origem 72, 2011. Eles têm muitas semelhanças: o nome do filhote
também é César, o filhote cresce e é muito inteligente e será um revolucionário, as
cenas de revolução têm sequências parecidas e violentas. O de 1972 foi o filme
mais político da série talvez refletindo os conturbados acontecimentos da época. A
grande diferença entre o de 1972 e 2011 é o uso da tecnologia. O modo de
compor o macaco César que em 1972 era totalmente construído por efeito
compositivo e sua perfomance realizada pelo mesmo ator Roddy Mcdowall desde
1968, modifica-se completamente. Em 2011 o macaco César é totalmente
capturado por Motion Capture (MoCap) através do ator Andy Serkis, que já havia
criado o personagem King Kong, em 2005.
O quinto e último filme desta etapa foi feito em 1973, A Batalha do Planeta
dos Macacos73 e tem algumas semelhanças com o segundo filme. A história se
passa depois da devastação de uma guerra nuclear e os sobreviventes são
liderados pelo macaco César que prega a igualdade entre as espécies (no atual
Planeta dos Macacos - a Origem, o macaco César não quer igualdade e sim, o fim
da raça humana). Aqui há uma repetição de ideias, como no segundo filme, pois
César vai procurar informações sobre seus pais dentro de destroços subterrâneos,
onde encontra um povo mutante. Tal qual De Volta ao planeta dos Macacos, os
figurinos dos mutantes são muito parecidos e também toda ação dos macacos.
Mais uma vez o ator Mcdowall atua tornando sua perfomance de macaco/humano
uma especialidade. Sempre identificado por essa atuação, em 1974, ele vai com a
máscara característica e figurino do macaco se apresentar na TV, no The Carol
72
Rise of the Planet of the Apes. 73
Battle for the Planet of the Apes.
167
Burnett Show. Caracterizando, assim, a ideia de que quando os atores criam tipos
fixos74, eles podem “performar” em qualquer situação, criando uma mistura entre a
persona do ator e a personagem, já que ele vai ao programa de máscara como
“ele mesmo”, o seu rosto de ator não aparece e isso não importa.
Neste mesmo ano (1974) também foi criada uma série de TV semelhante
ao filme, de qualidade inferior, no entanto, foi considerada ruim pela crítica da
época. Outro agravante para a série não dar certo foi que o tempo médio gasto em
cada episódio era de 5 a 7 dias, ritmo que resultava em falhas de gravação, pois
só na maquiagem dos macacos eram gastas diversas horas. A série foi cancelada
com apenas 14 episódios.
Até essa etapa o trabalho desenvolvido pelos atores e direção aproveitava
ainda os recursos e os efeitos especiais que foram desenvolvidos para o primeiro
filme da série. Não houve mudanças significativas entre os filmes com relação à
atuação dos atores que dependiam da sua própria composição da personagem e
da construção física relacionando o macaco e o homem. A interpretação
procurava dar vida à máscara zoomórfica, criada por Chambers, e os atores
fizeram um trabalho excelente dentro da tecnologia quase artesanal da época.
74
Tipo fixo – Fr.: type; Ingl.: type; Al.:typus; Esp.: tipo. Personagem convencional que possui características físicas, fisiológicas ou morais comuns conhecidas de antemão pelo público e constantes durante a performance. PAVIS, 1999, p.61.
168
100 Cartazes dos filmes do planeta dos macacos até 2001
Depois da última produção dos anos 70, O Planeta dos Macacos foi
refilmado em 2001, com direção de Tim Burton, num filme tipicamente pós-
moderno, cheio de referências às outras continuações. Burton misturou o roteiro
original de 1968 ao livro do autor Pierre Bouelle e aqui o apelo comercial é de um
Blockbuster75.
Nessa releitura do clássico de 1968, temos um salto evolutivo na
maquiagem e nos efeitos especiais. No final dos anos 60 era impossível mostrá-
los de corpo inteiro de forma convincente, por isso o uso das longas túnicas com
que se vestiam os chimpanzés da época; não havia também variedades dos tipos
75
Blockbuster – Em tradução livre para o português, é “arrasa-quarteirão”. A palavra foi usada para designar um filme de sucesso em 1975, “Tubarão” e se tornou adjetivo para filmes de grande bilheteria. Informação retirada do blog: <http://estacao-nerd.blogspot.com.br/2012/12/o-que-e-um-filme-blockbuster-parte-1.html.>
169
de macacos. Nesta versão, o trabalho de maquiagem dos protagonistas também
consumia até quatro horas por dia, pois o processo de montagem das máscaras
era trabalhoso. Mas o resultado eram chimpanzés, orangotangos, gorilas, com
uma enorme variedade de espécies humanizadas. Rick Backer, responsável pela
criação da maquiagem dos filmes como MIB, Professor Aloprado, O Grinch,
consegue misturar as espécies símias com a fisionomia humana, como explica
essa reportagem da Revista Veja:
Não só era preciso aplicar com cuidado as próteses de látex, flexíveis o suficiente para acompanhar os movimentos da musculatura facial, como se tinha de espetar os pelos um a um. O saldo é estarrecedor: macacos que parecem de verdade, mas preservam as feições de seus intérpretes. Para estes, a pior parte do ritual era a dentadura postiça, que aumenta a mandíbula e dá uma aparência animalesca aos dentes. Ninguém conseguia sequer tomar um refrigerante com ela, quanto mais falar direito – o que obrigou os atores a regravar muitos dos seus diálogos em estúdio. "Felizmente, ninguém deu chilique, o que é uma raridade", contou Backer a Revista VEJA. “É uma sorte, considerando que, em certos dias, ele e sua equipe tiveram de preparar até 500 atores de uma vez. Nem todos, claro, necessitavam dos cuidados reservados aos protagonistas. Os figurantes, por exemplo, usavam máscaras rígidas, já que não têm falas. Mas, numa foto, esses apliques pareceriam idênticos aos dos atores principais (BOSCOV, 2001)
Isso contribui para que a construção dos tipos físicos dos macacos pelos
atores se diferenciasse. A tecnologia desenvolvida no setor de make-up é tão
avançada que permite aos atores que seu rosto se misture ao do macaco. Mesmo
de máscara o público reconhece os atores. Nesse período já existe uma transição
entre a elaboração de cenas de efeito compositivo com cenas de efeito narrativo,
mas a composição concreta com materiais e figurinos ainda prevalece sobre os
efeitos de computador.
170
Na pós-produção, essa máscara de efeito compositivo se mistura ao
efeito narrativo das imagens. A fusão acontece de tal forma que quase não
sabemos o que é ou não virtual. Começa na construção da máscara real concreta
que se realiza no trabalho corporal do ator e se desenvolve nas aplicações de
efeitos especiais. Mas os atores ainda estão nas cenas concretamente criando a
composição.
Na movimentação as personagens estão mais viscerais, como é o caso da
atriz inglesa Helena Bonham-Carter que lembra muito a Dr ª Zira do primeiro filme,
embora um pouco mais sensual; Tim Roth, o general, mistura o gestual de
soldado policial com a ferocidade animal e o ator Mark Wahlberg é um herói mais
prático, mais musculoso e parece querer salvar a própria pele, não tem, portanto,
a grandiosidade de Charleston Heston, que parecia estar sempre a um passo da
morte, tal era sua dramaticidade. Uma novidade é a introdução da comicidade: o
ator Paul Giamatti constroi um macaco engraçado, dando alívio cômico à trama.
As etapas de transformação do ator em símio dão a noção das camadas de
materiais que compõem a caracterização da máscara:
101
Primeiro, uma touca de látex esconde os
cabelos.
Em seguida, aplica-se a incômoda dentadura.
A face é coberta com borracha
especial e pintada.
Por último, vão os pelos e a
peruca.
171
Ao assistir ao filme, imediatamente notamos que o tempo ritmo das cenas
está completamente diferente, ele é mais rápido e muito mais violento. A produção
sugere um épico, pois a música é grande eloquente, os efeitos especiais estão
presentes e dividem a composição das cenas com a maquiagem compositiva, nas
cenas das batalhas os inúmeros soldados já são multiplicados através de
computação gráfica. Com os efeitos especiais as cenas parecem mais reais.
102 O ator Tim Roth como General Thade
Nesse momento a narrativa acontece muito mais pela sequência de
imagens, as imagens de ação já se sobrepõem às cenas dialogadas. E o uso dos
vários recursos tecnológicos concorre com a compreensão da história, pois a
quantidade de acontecimentos simultâneos é bem maior do que nos anos 70. O
final da história fica mais rebuscado principalmente pela sua estrutura narrativa
que é um "vai-e-volta" na linha do tempo, com a ideia de uma ação circular. Esse
filme, embora não tenha feito o sucesso esperado, é muito convincente no
conjunto de interpretações antropomórficas, ponto que nos interessa.
172
3.4. VIRTUAL REAL
O Último filme O Planeta dos Macacos: a Origem, direção de Rupert Wyatt,
de 2011, reflete bem a mudança analógica para o processo de digitalização e
computação gráfica que foram desenvolvidos ao longo dos dez anos desde o filme
de Tim Burton até A Origem. Evidencia-se também a voracidade com que a
indústria de cinema realiza suas grandes produções, transformando o orçamento
do filme em milhões de dólares. O grande aspecto inovador é que a personagem
principal, o macaco César, que desencadeia toda a trama do filme, é construído
digitalmente e, no resultado final, não temos como protagonista a presença de
nenhum ator principal, mas de um macaco concebido virtualmente.
Observando os títulos das críticas da época do lançamento, notamos que a
aplicação de efeitos especiais está à frente de qualquer discussão e é o tema
central de divulgação do filme: “Com efeitos especiais impressionantes, o filme
coloca humanos como coadjuvantes da história”, diz Marco Tomazzoni 76,
“nenhum animal foi ferido durante as filmagens”, “se depender da Weta Digital de
Peter Jackson, esses dias de crueldade podem ficar definitivamente para trás”,
disse o crítico Érico Bogo77 se referindo ao fato de a empresa Weta Digital ter
criado todos os animais virtualmente. “Planeta dos Macacos: a Origem é um filme
76 Fonte: site IG – "Planeta dos Macacos - A Origem" dá novo fôlego à franquia, Tomazzoni,2011.
Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/planeta+dos+macacos+a+origem+da+novo+folego+a+franquia/n1597177457372.html>
77 Fonte: site Omelete, disponível em< http://omelete.uol.com.br/planeta-dos-
macacos/cinema/planeta-dos-macacos-origem-critica>, acessado em /25 de Agosto de 2011.
173
em que a tecnologia digital FX já evoluiu a tal ponto que macacos super-
inteligentes podem ser demonstrados de forma convincente na tela pela primeira
vez”, diz o inglês Peter Bradshaw, do The Guardian. O primeiro trailer divulgado
em vez de citar “Do diretor de…”, diz “Da produtora de efeitos visuais Weta…”e
não há muita divulgação dos nomes dos atores reais, deixando claro que as
grandes estrelas do filme são os macacos desenvolvidos com Motion Capture
(MoCap) pela produtora de efeitos especiais.
Nessa nova versão a história é contada pela primeira vez sob o ponto de
vista de um animal, o macaco César, que nasceu inteligente por meio de um bem
sucedido experimento feito em laboratório. Por desenvolver qualidades humanas
de estratégia e organização, essa personagem precisava ser muito real,
convincente para que o público pudesse se identificar emocionalmente com ela. A
tecnologia MoCap que criou os mundos de King Kong, Harry Potter, Avatar e de O
Senhor dos Anéis, trouxe a solução e mais avanços na área de captação de
interpretação nesse filme, pois permitiu que os macacos tivessem uma
perfomance dramática muito próxima da realidade. Contudo, acentuou-se o
dilema: a perfomance do ator através do MoCap pode ser considerada atuação?
Não há mais próteses e efeitos compositivos, só aplicação de camadas
virtuais de computação gráfica. Os realizadores do filme dizem que essa é uma
fusão técnico-criativa: capturar a atuação do ator e sobrepor imagens de desenho
virtual, formando uma máscara virtual. Na filmagem, o ator não está com figurino
nem maquiagem de macaco. Ele veste um tipo de pijama cinza ou preto com
sensores no corpo todo e com pontos no rosto que vão fazer com que a equipe de
174
efeitos especiais leia as expressões no computador. Além da roupa especial 78 e
dos sensores, há uma câmera colocada na frente do rosto do ator para captar
minuciosamente suas expressões. Há também as extensões de braço que ajudam
a fazer a movimentação dos símios.
103
Andy Serkis e sua roupa de captura de interpretação
78
No teatro essa vestimenta é chamada de roupa básica, pois ela define o contorno do corpo e é de cor neutra. Aqui ela é igualmente utilizada para definir as expressões corporais do ator que vai ser revestido, posteriormente, por pelos virtuais.
175
104
As várias camadas de imagem para formar a máscara virtual
Esse efeito, que já não é mais de composição com maquiagem, mas
aplicado a partir do rosto do ator, ajuda na antropomorfia e identificação do público
com os macacos, que têm características quase humanas. Notamos que as
expressões dos macacos principais são muito detalhadas e de um realismo quase
concreto (principalmente quando César, que é um chimpanzé, está com outras
espécies de macacos e todos estão presos em jaulas de um abrigo). É claro que
ainda há aperfeiçoamentos relativos ao peso gravitacional a se fazer,
principalmente quando observamos as cenas coletivas dos macacos em bando. O
espectador pode perceber que eles parecem leves, muito mais leves do que
seriam os macacos reais. Em oposição a isso, o desenvolvimento das expressões
faciais está mais avançado e as sutilezas do olhar de César são o grande
diferencial do filme. A partir de O Planeta dos Macacos: a Origem já se pode notar
que a indústria cinematográfica começa a destacar os atores de MoCap, pois,
principalmente depois de Avatar, essa tecnologia tem causado muita curiosidade
176
no público e tem sido mais divulgada criando uma legião de fãs. Nesse filme
também há uma diferença importante: o fato de a personagem de MoCap não
estar num universo fantástico de alienígenas ou duendes e sim, num mundo mais
realista. O roteiro desenvolve a narrativa numa cidade comum. É o MoCap sendo
introduzido nas histórias de vida cotidiana.
A nova versão teve grande aceitação no mercado não só em função dessa
nova tecnologia, que impressiona ao espectador, mas pelo fato de comercialmente
desenvolver-se a partir de um pressuposto de potencial para uma trilogia. E isso
faz do “produto” uma possível franquia, nos mesmos moldes de Star Wars, X-Men,
Harry Potter, Senhor dos Anéis79 ou das sagas de super-heróis.
3.5. O ATOR VIRTUAL
A aposta nesse filme se dá na imagem do principal representante de
Motion Capture, o ator Andy Serkis. Não há como falar em MoCap sem destacar
sua importância, já que ele é o ator mais requisitado hoje nesse tipo de atuação. E
segundo um dos diretores de efeitos especiais do filme, é o primeiro ator que
entende (ou aceita) que a sua atuação seja “trabalhada” com elementos
adicionados por cima das nuances e sutilezas da sua construção de personagem.
Ele não é um dublê da personagem que será criada virtualmente, ele determina a
construção da personagem e, colaborativamente, com os outros criadores dão
79
Harry Potter, Senhor dos Anéis foram feitos também pela Weta Digital.
177
vida ao macaco César. Sua perfomance está destacada nos créditos do filme, no
making of, na divulgação em geral. Um fator de importância nesse novo processo
é que o público também já se acostumou a seus personagens virtuais. A máscara
virtual não causa mais estranheza. E conceitualmente essa quase perfeita
realidade criada por MoCap traz uma outra questão o conceito de mutação das
forças da natureza.
104 As várias etapas do MoCap
Aqui começa um impasse quanto ao lugar da tecnologia no processo de
criação das personagens, na relação dos atores com suas perfomances e das
equipes colaborativas, no público com as personagens e consequentemente com
178
os atores. Também começa a questão de como é esse imaginário do espaço
virtual e qual a necessidade da expansão do ficcional. E conceitualmente onde
seria possível, por exemplo, a premiação dessa perfomance, pois a interpretação
do ator parece não pertencer a nenhuma categoria existente.
O ator Andy Serkis em uma entrevista declarou que “ele absolutamente
acreditava que a interpretação por MoCap devia ser encarada como uma
categoria de atuação normal. E que, no final, a captura de interpretação era uma
tecnologia. Ela não é outra coisa que não isso. É uma forma de registrar a
perfomance do ator e, por isso, se o desempenho é emocionalmente envolvente e
se significa algo para uma plateia é porque essa emoção foi gerada inicialmente
pelo trabalho do ator. Diz ainda: “é um aperfeiçoamento de um filme onde a
propriedade, a autoria da personagem tem origem no ator, que é
significativamente diferente de um filme de animação que tem origem em algo
inanimado, onde a autoria do personagem realmente pertence a um grupo muito
maior de pessoas” 80.
Na verdade essa nova maneira de atuar, mesmo não se inserindo em
nenhuma categoria que exista, não pode mais ser ignorada. Proliferam filmes,
videogames, shows, instalações que utilizam o MoCap na elaboração da ação de
modelos virtuais. Em 2014, há uma nova sequência de Planeta dos Macacos cujo
título, no original, será Dawn of the Planet of the Apes, com Andy Serkis. E
atualmente o próprio ator abriu sua escola de formação para atores interessados
em desenvolver técnicas de treinamento para MoCap que se chama Imaginarium.
80
Entrevista dada ao jornalista Kristopher Tapley, 2011. Fonte: s<http://www.hitfix.com>
179
A jornalista Ana Maria Bahiana conta que “nos idos de 1998, os avanços da
tecnologia digital de imagem se encaminhavam para o inevitável – a manipulação
do desempenho dos atores a serviço da criação de personagens virtuais – a
maioria da classe (artística) ficou entre o pânico e a fúria”81. E diz que, ao contrário
de todos, Andy Serkis se prontificou a experimentar esse novo jeito de interpretar
no cinema. O próprio ator continua explicando: “Eu compreendo que muitos atores
não tenham gostado e ainda não gostem dessa opção, para eles, ter seu rosto na
tela é essencial para o trabalho que fazem, é como eles se expressam. Mas eu
nunca me importei com minha cara, e sim com os personagens que interpreto. Ter
mais uma ferramenta para me perder nos personagens me pareceu irresistível.”
Serkis reforça que a construção das personagens é mais importante que
sua imagem como ator relacionado ao filme, relação que nos remete ao trabalho
dos atores que se “emprestavam” aos tipos da Commedia dell´arte, onde a
máscara tinha importância maior do que quem a utilizava.
A matéria de Ana Maria Bahiana diz ainda que em 2001 “Serkis estava na
tela, irreconhecível, como Smeagol/Gollum, no primeiro filme da trilogia O Senhor
dos Anéis, de Peter Jackson. Foi o início de uma colaboração tão produtiva que
Serkis mudou-se parcialmente para a Nova Zelândia, mantendo uma casa em
Wellington só para ficar próximo do estúdio da Weta Digital, para quem continuaria
sendo Gollum e, em 2005, o Kong do King Kong, de Jackson. Outra colaboração
de Serkis com a Weta, foi Capitão Haddock de Tintin e o Segredo do Licorne”82
que estreou mundialmente em dezembro de 2011.
81
Fonte: Uol/ entretenimento, entrevista de 30/08/2011. 82
Fonte: idem.
180
Ana Maria Bahiana perguntou-lhe ainda sobre o personagem César e
Serkys revelou que sua fonte de pesquisa é a mesma com primatas desde King
Kong, indicando que como ator mantém o método usual de pesquisa:
Você teve uma inspiração individual para Caesar?
Tive. Além de toda a pesquisa que venho fazendo com primatas desde King Kong eu me inspirei diretamente em Oliver, um chimpanzé que foi muito popular nos anos 1970 porque andava sempre em duas patas e exibia uma série de comportamentos que podíamos chamar de humanos. Na época ele foi promovido como “o elo perdido” e a própria comunidade científica acreditou nessa possibilidade e submeteu Oliver a várias experiências. Quando se comprovou que ele era apenas um primata inteligente e, possivelmente, treinado, ele foi abandonado e posto numa jaula. Para mim ele é o centro do personagem Caesar: um inocente que, gradualmente, toma consciência do mundo à sua volta.
Aqui ele fala de nuances e de aprimoramento da técnica de captura de
interpretação:
Existe alguma técnica específica para o trabalho com captura de desempenho (MoCap)?
Muitos atores ainda acham que é preciso ser exagerado, fazer uma perfomance carregada, uma pantomina, para render bem em MoCap. Minha experiência me diz o contrário: a tecnologia é perfeitamente capaz de captar os movimentos mais sutis dos músculos, dos nervos. O desempenho precisa ser o que todo desempenho deve ser: sentido de dentro para fora, com integridade absoluta, fiel à verdade do personagem. Com MoCap não dá para fingir. Se existe uma técnica específica para o desempenho em MoCap é ser preciso. A precisão rende os melhores resultados.
181
A técnica de máscara do ator virtual está caminhando junto com as
mudanças que ocorrem a cada novo trabalho de filmagem:
Como a técnica em si evoluiu nessa década em que você trabalhou em MoCap?
Eu me lembro que no Senhor dos Anéis o trabalho teve que ser duas etapas: uma primeira em que trabalhei contracenando com outros atores num set normal, e depois a parte da captura, que foi separada, num estúdio menor. E no fim tivemos que refazer várias tomadas onde havia closes de Gollum, para que a sincronicidade fosse perfeita. Era mais um trabalho de animação, e os animadores tinham que criar expressões faciais para o Gollum a partir do que havíamos filmado. Em King Kong já tínhamos marcadores faciais, e eram eles que guiavam a “marionete digital” _ todas as expressões faciais de Kong eram, literalmente, as minhas expressões, direto do meu rosto. No Planeta do Macacos todos os equipamentos estavam mais leves e portáteis e a tecnologia muito mais ágil. Podíamos trabalhar como um grupo de atores, contracenando, inspirando-nos pelas atuações dos outros, respondendo aos movimentos, interagindo, e tudo era captado. Mais que isso: podíamos usar o mesmo processo em sets vivos, em locações, dando muito mais campo para trabalharmos com objetos, com reações diretas ao ambiente.
O equipamento está cada vez mais leve e cada vez mais acessível. Por
isso a possibilidade do uso desta ferramenta nos filmes está se tornando comum.
Quando iniciamos esta pesquisa quase ninguém tinha ouvido falar sobre esse tipo
de atuação, em pouco tempo inúmeros filmes foram feitos e no ano de 2013 a
abertura do Oscar foi feita toda com um personagem em MoCap.
182
106
Andy Serkis em captura de movimento de O Planeta dos Macacos: a Origem
E quanto ao processo, à técnica de atuação, Serkis ainda fala da
relação do ator com a criação da personagem e de não sentir diferença na hora de
atuar:
Seu trabalho como ator muda de um filme “normal” para um filme MoCap?
Não… ser ator é ser ator. Não tem diferença para mim. Ser ator é conscientemente se perder em outra pessoa, outro ser. Não faz diferença se esse outro ser é (o punk rocker) Ian Dury (que Serkis interpretou em Sex and Drugs and Rock n Roll, de 2010) ou Caesar em Planeta dos Macacos -a Origem. O trabalho é sempre achar a verdade do personagem, entrar em sua mente, procurar sua fisicalidade e construir emocionalmente o personagem, de dentro para fora. Nunca faço distinção entre um trabalho ao vivo e um trabalho MoCap.
Deveria haver uma categoria nos prêmios para atuações MoCap?
_Não sei. No fim das contas, todas as interpretações são interpretações humanas, conduzidas pelo ator. Se a interpretação é mostrada, em última forma, realística ou estilizadamente, isso não altera o essencial, que é o trabalho do ator. Animação, MoCap são apenas ferramentas. O que as anima é o espírito do ator.
183
Em 2010, Serkis foi capturado para o game Ninja Theory onde o co-
fundador Tameem Antoniades teve a ideia de desenvolver um videogame que
fosse mais envolvente, dramático e, para isso, convidou o ator para criar a
personagem virtual. Segundo o ator, sua atuação na captura lembra o sistema de
ensaio teatral, com improviso e construção da linha de pensamento da
personagem. Conforme declarou: "Eu nunca me aproximaria atuando de forma
diferente, pois eu atuo como o trabalho de palco no filme, ou agora no game", diz
Serkis. "No game também tenho que incorporar a personagem e ser tão
verdadeiro emocionalmente, como se pode ser em cinema ou teatro. A única
diferença é que você tem a capacidade de se transformar até certo ponto em
personagem marionete". Sempre que fala sobre seu trabalho no MoCap, Serkis
faz questão de enfatizar que utiliza as mesmas técnicas e procedimentos que
qualquer outro trabalho compositivo. Todavia, é bom notar que no caso do game
temos de levar em consideração uma mudança porque, em uma narrativa
cinematográfica, existe uma intenção para desenvolver o tema. Mas no game, por
ser manipulado como um jogo, não há intencionalidade nos bonecos construídos.
3.6. AUTORIA PERSONAGEM COMPOSITIVO PERSONAGEM NARRATIVO
Várias vezes, ao se referir à possiblidade de sua perfomance em MoCap
ser aceita como indicada a alguma premiação, os produtores do filme Planeta dos
Macacos: a Origem ou o próprio Andy Serkis se referem à perfomance do filme O
184
Homem Elefante83, do diretor David Lynch. Guardadas as devidas circunstâncias
sobre esse filme, que se poderiam desenvolver mais aprofundadamente (uma
estética que criou um ambiente do século XIX parecido com os filmes de terror e a
imagem em preto em branco para enfatizar o drama da personagem principal),
observemos a máscara criada pelo ator que representa a personagem com
deformidade física.
O Homem Elefante (The Elephant Man,1980) foi indicado a oito prêmios
Oscar (USA), quatro indicações ao Globo de Ouro (EUA) , indicado a quatro
categorias do BAFTA (Reino Unido) ganhou três e venceu o César (França) como
melhor filme estrangeiro. Em todas as premiações, o ator John Hurt recebeu
indicação como melhor ator.
Esse filme é um grande exemplo de personagem feito com máscara de
efeito compositivo. A maquiagem do Homem-Elefante levava 12 horas para ser
feita a cada vez que era aplicada no ator. O que a princípio, parecia ser mais uma
história de terror e de suspense, ao longo do filme, vai-se mostrando um drama
tocante e muito emocional. Apesar de o ator principal estar debaixo de muita
maquiagem, John Hurt dá vida à máscara e consegue criar um ser com carisma,
delicadeza e cortesia que contrastam com seu visual. Construiu uma máscara que
englobou toda a gestualidade e movimentação corporal que foram sendo
construídas a partir das horas de montagem da maquiagem. A dificuldade que a
83
Elenco principal: John Hurt, Antony Hophkins, Anne Bancroft.
185
máscara lhe impunha na boca e nariz é aproveitada pelo ator de maneira a
mostrar a própria limitação física da personagem.
107
O ator John Hurt e sua máscara em O Homem Elefante
Em uma entrevista registrada no site Digital Spy, o ator Andy Serkis diz não
entender qual a diferença da aplicação da máscara digital e compositiva., Ele se
prepara para compor os personagens de ação ao vivo do mesmo jeito como na
captura de interpretação, embora a tecnologia permita que os atores façam
personagens que seriam impossíveis sem as camadas de materiais de
maquiagem.
E ainda acrescenta que “é frustrante que esse processo (MoCap) não seja
melhor entendido. É fácil compreender o papel de John Hurt em O Homem
Elefante. Ele tinha camadas de muita maquiagem, mas o seu desempenho
surpreendente foi contemplado por muitas nomeações a prêmios. A captura de
186
interpretação é o mesmo que isso, mas a maquiagem é aplicada como linhas de
pixels pintados mais tarde no corpo do ator. Qualquer ator deve ser capaz de
reproduzir esse tipo de papel, é apenas uma questão de abraçar a tecnologia"84.
O que se observa, que ainda não é aceito, é o fato de que o ator de MoCap
não parece realizar grande esforço para executar a criação da perfomance. É
claro que o ator de MoCap fisicaliza a personagem, mas não passa por uma
“montagem” física da personagem. Contudo, alguns atores afirmam, justamente,
que usar roupa aderente ao corpo (sua roupa especial com captadores) dá
liberdade de criação para a partitura corporal. Outro fato da não aceitação é talvez
que a personagem não crie força dramática (tensões) para ser considerada uma
real interpretação. De fato a transformação fica composta virtualmente, no
programa do computador, e o ator pode até acompanhar em tempo real a imagem
transformada no vídeo, mas ela acontece fora do corpo numa relação de ausência
– presença.
Serkis está certo quando diz que a preparação é bastante similar a do ator
que desenvolve uma máscara compositiva, porém, todo o processo de tratamento
do material capturado vai ser finalizado externamente, o que é diferente de um
ator que trabalha a partir da sua imagem. No MoCap a imagem capturada vai ser
aplicada em outras imagens e também sofrerá sobreposições de camadas de
linhas que aumentarão ou diminuirão a proporção do tamanho do ator, da textura,
da forma. E essa imagem já não será correspondente ao ator. É sim como “um
simulacro”85 de uma máscara. E depois quando os movimentos estão todos
84
Fonte: Site Digital Spy – “Andy Serkis: performance-capture is like make-up”. 85
BAUDRILLARD, 1981.
187
capturados é criado um protótipo que se assemelha a um títere que vai ser
manipulado para a finalização da cena. É o mascaramento da imagem.
Podemos dizer que numa criação de máscara com efeito compositivo como
centro da narrativa temos o ator e isso fica claro neste exemplo de John Hurt. E
agora com a máscara digital temos como centro da narrativa a própria tecnologia.
Sendo assim, a questão talvez seja como essa máscara virtual representa,
ou não, o conceito de humanidade na sua narrativa. Qual o ponto fundamental que
a captura de interpretação traz nesse caso? O que parece mais, por exemplo, no
macaco virtual o instintivo/primitivo ou humano? O macaco é aparentemente
macaco, mas totalmente humanizado, parece gente e está no meio de nós (essa é
a justificativa do uso do MoCap). Como já dito, O Planeta dos Macacos: a Origem
é o primeiro filme de MoCap que introduz a personagem virtual associada a um
realismo mais próximo de uma história comum. Ou seja, o personagem não está
num reino fantástico, não está em uma outra dimensão, não é personagem de
história em quadrinho, não pertence a um universo paralelo ao real. As cenas são
feitas em uma suposta cidade comum.
Mas como a humanidade do macaco é criada? O macaco César tem um
percurso que tenta justificar a sua humanização através de uma experiência com
uma espécie de “Smart Drug86”, ou seja, pelo uso de uma substância que
desenvolveria no cérebro humano potencialidades adormecidas e que são
aplicadas na mãe do macaco, a mãe morre mas deixa o bebê. Ele nasce e
desenvolve todo o seu potencial, mesmo sem ter tido um contato social que
86
São drogas que melhoram a performance das funções mentais. Hoje existem vários filmes que tratam desse assunto.
188
justifique seu comportamento tão humano. Quer dizer, tudo acontece sem uma
razoável explicação: ele, macaco, se torna inteligente como um humano
meramente por uma causa química. Isso causa muitas vezes uma artificialidade
na dimensão da personagem. Do mesmo modo, não parece que haja uma
consciência que justifique o nascimento da sua raiva contra os homens.
Se compararmos essa máscara e essa personagem à máscara do Homem
Elefante, cuja narrativa diz respeito à bondade, a diferentes relações, à
monstruosidade humana e que nos toca diretamente, a personagem se aproxima
de nós pela identificação. Isso cria uma dimensão dramática que justifica o peso
da máscara criada. Algo que não ocorre na figura de César.
Em outro caso, como na cena dos macacos de 2001: Uma Odisseia no
Espaço, observamos que ela é essencialmente metafórica. Uma experiência não
verbal, por isso a relação entre a máscara macaco criada na narrativa do filme foi
rigorosamente trabalhada por profissionais de dança e atores com excelente
trabalho físico. Isso causa a sensação de um caminho sensorial onde há muito
mais acontecendo em 2001 do que o diálogo que o filme traz à tona. O tratamento
dado às máscaras de macacos está no âmbito da representação humana e do
desenvolvimento do espaço social. Ao se assistir ao filme sente-se certo choque
diante da mudança do laboratório espacial para os primitivos macacos. Todos se
perguntam o que os macacos estariam fazendo em um filme de ficção científica
sobre a exploração espacial? Mas o que parece sem sentido logo é transformado
em uma grande metáfora sobre os saltos evolutivos da humanidade e se justifica
pela presença marcante dos macacos quase reais criados pelos atores.
189
108
A cena do macaco feita por Dan Richter
Em O Homem Elefante, descobrimos a humanidade no monstro, atração do
circo, e nos identificamos com a vontade que ele tem de ser incluído na
sociedade.
O Planeta dos Macacos propõe um desafio de criar um macaco
antropomórfico, que quer se tornar humano, mas como, sendo um animal? Ele
desja ser identificado pelos homens como um igual (talvez venha daí a sua raiva),
mas não o é. E, ao mesmo tempo, não tem mais como se reconhecer na sua
própria raça. Ele não é mais um chimpanzé puro e sim, um híbrido. Assim como a
atuação do ator virtual.
3.7. PREPARAÇÃO INTENSA
Uma forma de entretenimento que se tornou popular na década de 1960
era chamada de "a caixa-preta" do teatro, e era assim chamado porque consistia
190
em um espetáculo de artistas em uma sala com paredes pretas e um piso plano (o
mesmo da plateia), com os atores de roupa básica da mesma cor, em geral preta,
iluminação básica, sem figurino, ou outros apetrechos teatrais para distrair o
desempenho, que era o mais importante. Em grande parte a maneira de construir
as perfomances em MoCap são, essencialmente, na caixa-preta, só que do
cinema. Apesar de toda a parafernália técnica que entraram no set-up, quando os
atores entram no galpão, a perfomance é fundamental, e a maior parte dos
elementos periféricos de produção de um filme normal está ausente. E fica por
longos períodos realizando esse trabalho.
Para os atores o começo parece difícil, pois têm que se adaptar aos
captadores que ficam por todo o corpo, principalmente no rosto, o que se torna um
tanto invasivo na criação do papel. No entanto, a se pensar nas enormes
máscaras compositivas que os atores usavam para os filmes anteriores ao
MoCap, de fato esses captadores são muito menos intromissores que a
maquiagem anteriormente usada. Dessa maneira quando vão para o set para o
trabalho de captura de interpretação sem fantasias, maquiagem, ou os requisitos
da fotografia convencional para distrair e atrasá-los, os atores, são capazes de se
concentrar na perfomance. As equipes, assim, procuram ver se os atores estão
confortáveis com a configuração da produção virtual usando as plataformas de
leitura e trajes de captura de movimento para que essa não saja a causa de
alguma desconcentração. Quando tudo isso se harmoniza, os atores estão
prontos para trabalhar. E em muitas declarações eles dizem que se divertem e
que a "captura de interpretação é incrivelmente libertadora. Você não pode se
esconder, por isso cada tomada tem que ser verdadeiro. No começo é um pouco
191
nervoso, mas depois você esquece que está vestindo capacetes e pontos em seu
rosto”87.
MoCap é atuação? Diante das polêmicas que envolvem esse novo tipo de
máscara, no mínimo é ousado da parte do ator experimentar esse novo modo de
atuar, que parece não ter mais volta, e se adaptar colocando sua arte em diálogo
com essa tecnologia. Mas ao mesmo tempo existe certa nebulosidade entre a
imagem do ator e a imagem formada pela máscara virtualizada. Mas a todo o
momento as equipes exaltam a importância expressiva do ator e mostram que
eles é que dão vida às expressões humanas e que são insubstituíveis, pois os
computadores não conseguem realizar a expressividade sem um “modelo” de ator
real.
Provavelmente temos uma nova forma de atuação, em que o ator não é
mais o centro das atenções, mas sim a sua imagem doada para o computador,
trabalhada por várias equipes. Essa imagem é que vai gerar a composição final e
talvez a autoria seja mesmo coletiva. Ainda assim, o resultado da atuação do ator
não é apresentado em toda a sua integridade. Ele é uma espécie de clone de si
mesmo.
Como um experimentador, o ator se coloca no novo espaço de
representação por MoCap. E uma pergunta que aqui começa a ser investigada
é para que serve o ator hoje?
Um modo de fazer completamente diferente, mas ao mesmo tempo igual,
pois no processo de preparação o ator passa por várias situações de pesquisa,
87
DUNCAN, 2010, p.126.
192
sua corporeidade está presente num estado de prontidão. Na ação não há nada
que o diferencie dos atores mascarados de outros tempos, mas no resultado é
como se sua interpretação se desmaterializasse na imagem. Talvez uma nova
ramificação que trafega por um território onde ainda não temos definições.
193
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando falamos sobre técnicas digitais na produção cinematográfica
percebe-se que há uma grande quantidade de material escrito relacionado a parte
técnica e aos modos de fazer, mas não há muitos textos que associem o recurso
digital à perfomance do ator. E, sobretudo, não há ainda uma formação que
desenvolva um pensamento reflexivo sobre a questão do uso da tecnologia e a
presença do ator. A intenção desta pesquisa foi trazer à tona panoramas relativos
ao trabalho do ator e suas relações com os processos imagéticos.
A questão da utilização das camadas de imagens para formar uma máscara
narrativa está apenas começando. Neste trecho, do texto de Beatrice Picon-Vallin,
a respeito do futuro da tecnologia em cena, podemos perceber que a interação
com a tecnologia tende a se aprofundar ainda mais:
A ampliação da nossa experiência, graças às tecnologias digitais,
implica a existência de uma nova condição sensorial,
independente de qualquer simbolização e de qualquer elaboração
imaginária. A realidade de hoje é ao mesmo tempo vivida e visual,
decididamente hibrida. Telepresença, vida artificial, robôs cada vez
mais próximos do humano são as novas facetas da existência que
o teatro pode e deve levar em consideração. A tensão entre nossa
realidade biológica e nossa realidade tecnológica obriga a
repensar a percepção, a visão que se tem do ser humano e os
problemas colocados por essa mutação podem ser analisados de
modo lúdico e critico em cena, lugar político para colocar o ator e o
espectador vivos diante de seus duplos digitais (vídeos, clones,
marionetes eletrônicos, hologramas, robôs) – e lugar experimental
194
e lúdico ao mesmo tempo, para pensar a técnica em mutação e a
evolução dos modos de estar no mundo (VALLIN, 2009, p. 329).
Observando o percurso da máscara e seu processo de evolução com as
tecnologias, é possível notar como o ator reestrutura a sua técnica teatral
adaptando o jogo dramático a cada mudança tecnológica ao longo dos anos até
compor a atual máscara virtual. Sim, podemos afirmar que o teatro mantém-se
como a base de todo este processo. Isto nos leva a perceber que os diretores de
efeitos especiais do cinema estão em busca justamente do jogo lúdico que o ator
é capaz de desenhar para então molda-lo como “essência” da imagem. O que faz
com que a teatralidade a partir do lúdico na imagem pareça adquirir um certo
senso de autonomia. Um senso de autonomia que todos que participam do
processo vêm moldando em busca de um espaço comum que reflita a experiência
dramática virtualizada.
O que pudemos constatar foi que apesar de termos a nítida impressão
de que o cinema esteja se distanciando do trabalho artesanal do ator, nunca
estivemos tão perto (no plano da criação de personagem virtual) da necessidade
de elaboração física do ator tal qual os moldes de construção usados em outros
tempos. A composição de personagem, a corporeidade (e o suor) apesar de ser
feita como uma colagem de fragmentos, ainda utiliza os princípios da máscara
tradicional (moldagem, pesquisa de expressões, experimentação de postura física,
pesquisa vocal, agilidade e resistência física) e principalmente o elemento que dá
mais veracidade à máscara: a improvisação.
195
Se observarmos todos os períodos em que a teatralidade é revista
(retomada) a noção de improvisação é o fator primordial para que as personagens
criem mais verdade cênica. Isso acontece quando o ator Andy Serkis sugere pela
primeira vez aos diretores de O Senhor dos Anéis que eles experimentem usar
seus movimentos para fazer o personagem Gollum. É o frescor da improvisação
do ator que abre a possibilidade de criar o personagem totalmente através da sua
captura do movimento.
Hoje, com a virtualização, podemos pensar que de fato o mundo
invisível se torna visível nas telas e não vemos a transformação acontecer na
nossa frente, mas mediada por telas e computadores. De certa forma, houve um
deslocamento dos efeitos especiais que antes estavam mais presentes nos
cenários e que, agora, foram se deslocando para o ator.
Quanto à fragmentação da imagem do ator ela nos traz um novo papel
do artista, que está diretamente relacionado a idéia de trabalho colaborativo, ou
seja cada artista ou técnico compõe a personagem de forma que o resultado
pertence a todos. Impondo nesse formato de construção da personagem uma
ideia de desapego e autoria ao mesmo tempo, pois o ator tem que “doar” sua
performance, suas formas, suas habilidades que vão ser compostas com outras
formas criadas pelo computador ou até por outros atores que somados a uma
imagem terão como resultado uma espécie de “colagem”. Nesse sentido não é só
o ator que repensa o seu papel, mas o diretor e os criadores de personagens
animados. Toda a equipe envolvida no universo da captura de interpretação
(maquiadores, figurinistas) estão reelaborando sua função.
196
Mas não importa quantas camadas de imagem se sobrepõem para
formar a personagem digitalizada, originalmente quem dá vida à máscara é o ator
e sua fisicalidade. Quando pensamos na nova tecnologia MoCap entendemos que
foi preciso a interferência do ator nas ferramentas digitais para que a
expressividade das personagens virtuais criasse maior ilusão e realismo narrativo.
Resumindo: é o ator que dá moldura à tecnologia e também “corpo” à
interpretação. Sendo assim, supomos que a velha e boa máscara se manterá
agora revalorizada pela tecnologia. Arriscamos dizer ainda que ela vai permanecer
sob o comando do ator.
197
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Metrópolis, 1927
Tempos Modernos, 1926
Marujos do Amor, 1945
Mary Poppins, 1964
Planeta dos Macacos,1968
De Volta ao Planeta dos Macacos ,1970
Fuga do Planeta dos Macacos, 1971
200
A Conquista do Planeta dos Macacos, 1972
Batalha do Planeta dos Macacos, 1973
O Homem Elefante, 1980
Uma Cilada Para Roger Rabbit, 1988
A Viagem Do Capitão Tornado, 1990
Harry Potter e a Pedra Filosofal,1997
Harry Potter e a Câmara Secreta,1998
Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, 1999
A Sociedade do Anel, 2001
As Duas Torres, 2002
O Retorno do Rei, 2003
King Kong, 2005
Piratas do Caribe: O Baú da Morte, 2006
Avatar, 2009
Planeta dos Macacos :A Origem, 2011
Hobbit, 2012
Tintin, 2012
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COLUNA DO ALEXANDRE MATE – Commedia dell‟ arte Apontamentos http://entretenimento.r7.com/blogs/teatro/2013/05/01/breves-apontamentos-sobre-a-commedia-dellarte-italiana/ TRON http://www.aoscubos.com/tron-e-o-hiper-realismo-na-ficcao-cientifica/
DETRAS DE LA MASCARA DE PELICULAS FAMOSAS!
https://www.youtube.com/watch?v=GL6oxcYua3Y