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ROGÉRIO CHRISTOFOLETTI A medida do olhar: objetividade e autoria na reportagem Tese apresentada à Área de Concentração: Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Doutor em Ciências da Comunicação, sob orientação da Profª Drª Cremilda Celeste de Araújo Medina. São Paulo 2004

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ROGÉRIO CHRISTOFOLETTI

A medida do olhar: objetividade e autoria

na reportagem

Tese apresentada à Área de Concentração: Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do Título de Doutor em Ciências da Comunicação, sob orientação da Profª Drª Cremilda Celeste de Araújo Medina.

São Paulo 2004

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DEFESA DA TESE A MEDIDA DO OLHAR – OBJETIVIDADE E

AUTORIA NA REPORTAGEM, DE ROGÉRIO CHRISTOFOLETTI

BANCA JULGADORA

____________________________________

____________________________________

____________________________________

____________________________________

____________________________________ PROFª DRª CREMILDA C.A. MEDINA

ORIENTADORA

SÃO PAULO (SP), ______ DE _____________ DE 2004.

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Para minha mãe Marlene, minha mulher Ana e meu filho Vinicius,

a quem tento impressionar. Sempre.

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AGRADECIMENTOS

Quero registrar meu reconhecimento

À Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI) pela concessão de uma bolsa de estudos e pelo afastamento integral de minhas funções, fundamentais para a conclusão desta pesquisa no tempo em que ela se realizou; À professora Cremilda Medina, minha bússola nesta caminhada, minha referência maior neste trajeto; A Josenildo Guerra, Patrícia Patrício e Edélcio Mostaço, gentis e atentos interlocutores durante a escritura desta tese; Ao meu irmão Rodrigo Christofoletti, leitor mais sagaz e bem-humorado destas páginas; Aos colegas do Núcleo de Epistemologia do Jornalismo (NEJ/ECA) pelos conselhos e idéias trocadas ao longo de nossas sempre proveitosas reuniões; Ao Paulo César Bontempi, o meu mais eficiente apoio operacional na Escola de Comunicações e Artes da USP; A Manoel Gonçalves Corrêa, amigo e mestre, meu anfitrião em muitas tardes paulistanas; A Jefferson Bittencourt e Gláucia Grígolo, amigos que não faltaram nos últimos minutos desta tese; A Ricardo Laux, querido sogro a quem devo apoio afetivo e logístico; Aos meus companheiros do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, especialmente Silvio e Luciana, que cobriram minhas ausências em momentos cruciais deste processo; E a minha amada Ana, que respirou esta tese comigo por pelo menos dois anos.

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RESUMO

O olhar está entre os sujeitos e os objetos, preenchendo a distância entre esses extremos na relação do conhecimento, onde o próprio Jornalismo se inscreve. A partir do estudo do olhar, reflito sobre um dos pilares sobre os quais o Jornalismo se edificou: a objetividade. Num paradigma de crise, o Jornalismo questiona esse conceito, e aprofundo tal discussão, alargando seu foco para o exercício da subjetividade na reportagem. Concentro esforços na conceituação do que vem a ser uma autoria em jornalismo e enumero as principais condições para o seu efetivo exercício na reportagem. Esse mapeamento é acompanhado da apresentação de uma experiência que fiz como repórter em busca de inscrição de uma autoria jornalística. Tanto a reflexão teórica quanto a pesquisa-experiência atuam num processo que busca a desautomatização das práticas jornalísticas, desmistificando as gramáticas da área e apontando para novos procedimentos na apuração das informações e na escritura dos textos.

PALAVRAS-CHAVE

OBJETIVIDADE – AUTORIA – TEXTO – JORNALISMO – OLHAR

ABSTRACT

The glance is in between subjects and objects, fullfilling the distance between these terms at a knowledge relation, where Journalism itself inscribes. From the glance’s analysis, I reflect about one of the basis in which Journalism built itself: objectivity. At a crisis paradigm, Journalism questions this concept, and I deepen this discussion, widening its focus to the exercise of subjectivity in newspaper reporting. I concentrate efforts at the definition of what comes to be autorship in journalism and enumerate the main condition for its effective exercise in newspaper reporting. This cartography is followed by the presentation of an experience I have done as a reporter searching for a journalistic autorship criterion. Theoric reflection acts as much as experience-research at a process that looks after a non automation of journalistic practices, those of which will unmystify grammar rules of the area and point out to new procedures relating the checking of information and text writing.

KEYWORDS Objectivity – Autorship – Text – Journalism – The glance

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO Crise de Paradigmas na Ciência – Paradigma de crise no

Jornalismo: p. 08

1.O OLHAR 1.1 O olhar é uma leitura do mundo: p. 14 1.2 O olhar como processo e relação: p. 18

1.3 O olhar jornalístico: p. 27 1.3.1 O Jornalismo como campo de saber, fazer e ser: p. 29

1.3.2 O conhecimento jornalístico: p. 32 1.3.3 A constituição do olhar no Jornalismo: p. 34 1.3.4 Jornalismo e os sentidos humanos: p. 43 1.4 O olhar estabelece sujeitos e objetos: p. 49

2. OBJETIVIDADE

2.1 Uma idéia em cinco séculos: p. 53 2.1.1 O conceito na filosofia: p. 55 2.1.2 O conceito na ciência: p. 60

2.1.3 Como o Jornalismo emprega a idéia: p. 64 2.2 Pequena História da Objetividade no Jornalismo: p. 68

2.3 Resguardando a objetividade: p. 72 2.3.1 Imperativo ético da atividade: p. 72 2.3.2 Uma meta para o mito: p. 77 2.4 A objetividade questionada: p. 81 2.4.1 Uma categoria mitificada: p. 84

2.4.2 O ritual profissional e os interesses incidentes: p. 88 2.4.3 Objetividade como efeito de discurso: p. 93

3. ENTRE A DÚVIDA E A INCERTEZA

3.1 Descartes, a dúvida e o método: p. 100 3.1.1 Jornalismo e cartesianismo: p. 104 3.2 Heisenberg e a incerteza: p. 110

3.3.O Jornalismo entre a dúvida e a incerteza: p. 114

4. SUBJETIVIDADE 4.1 Apontamentos sobre o sujeito: p. 119 4.2 Consciência, atestado do sujeito: p. 124

4.3 Subjetividade na atividade jornalística: p. 128 4.4 Assinatura: marca do sujeito: p. 132

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5. AUTORIA 5.1 Uma genealogia do autor no Ocidente: p. 137 5.1.1 Digressão jurídica: a autoria como direito: p. 143

5.1.2 Retorno à genealogia: p. 145 5.2 Reconhecimento do sujeito e afirmação do singular: p. 149

5.3 A função autor: p. 152 5.4 Autoria como exercício de estilo: p. 159 5.5 Estilo e Autoria no Jornalismo: p. 165

5.6 A narrativa da contemporaneidade: p. 174 5. 7 Condições para uma autoria na reportagem: p. 178

6. EM BUSCA DE UMA AUTORIA NA REPORTAGEM 6.1 O pesquisador como cobaia: p. 199

6.2 O ambiente do laboratório e as condições do repórter: p. 205 6.2.1 As revistas: p. 206

6.2.2 A rotina do repórter: p. 211 6.2.3 O recorte: p. 214

6.3 As tentativas de inscrição de uma assinatura: p. 217 6.4 O que os editores têm a dizer: p. 258

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um jornalismo com impressões digitais: p. 264

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS p. 269

ANEXOS As reportagens analisadas: p. 275

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INTRODUÇÃO

Crise de paradigmas na Ciência Paradigma de crise no Jornalismo

“Na verdade, nós redefinimos a função da ciência como a descoberta de leis que nos permitirão predizer

os eventos dentro dos limites impostos pelo princípio da incerteza”

Stephen Hawking – físico inglês

“O Jornalismo, tal como está disposto nos meios de comunicação atuais, pratica ao

mesmo tempo técnicas de informação e desinformação”

Leão Serva – jornalista brasileiro

s planetas e o sol giravam em torno da Terra até que um polonês

perturbou a ordem do sistema. Era a primeira metade do século XVI, e

Nicolau Copérnico concluía o volume De revolutionibus orbium

caelestium, onde apresentava a teoria segundo a qual a Terra dava uma volta diária em

torno de si e uma volta anual ao redor do sol. O modelo colocava por terra a idéia de

que o planeta era o centro do universo, tese que vigorava há 1300 anos pelo menos.

Mais do que avançar nos estudos astronômicos de então, a intervenção de Copérnico

desencadeou uma revolução na ciência, na filosofia e na religião. O deslocamento da

Terra do centro do universo propiciava pensar num outro papel e importância do

homem na natureza e acabava por questionar alguns dogmas da Igreja.

Trezentos anos depois, viriam outros dois graves golpes nas certezas humanas

no Ocidente: o homem deixava de ser o centro da natureza e da História. No século

XIX, o cientista inglês Charles Darwin e o filósofo alemão Karl Marx vão soterrar essas

idéias ao afirmar que o homem é resultado de leis e processos evolutivos que incidem

sobre todas as espécies vivas e que existem outras variáveis que determinam os

caminhos e descaminhos da trajetória humana.

O

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Se, como escreveu Nietzsche, Deus está morto; se a terra é só mais um planeta

perdido no espaço a reboque de uma estrela finita; se o homem não domina o reino

animal, só resta mesmo não ser ele o centro de si mesmo. Pois não faltou muito para que

alguém apontasse isso. Em 1900, o psiquiatra e neurologista austríaco Sigmund Freud

publica A interpretação dos sonhos, obra que inaugura o campo da Psicanálise, onde o

sujeito não é monolítico e centrado, e o inconsciente tem papel decisivo nas ações

humanas.

Os golpes na estabilidade da racionalidade ocidental continuam. Contemporâneo

a Freud, o físico alemão Albert Einstein formula, na primeira década do século XX,

algumas bases da sua Teoria da Relatividade, tese que vai provocar nova reviravolta não

apenas no mundo científico, mas também na filosofia e cultura mundiais. Com a nova

teoria, acontece uma profunda renovação científica, que altera algumas idéias básicas da

física clássica, oferecendo explicação coerente e unificada para grande número de

fenômenos da natureza. Com a Teoria da Relatividade, espaço e tempo são variáveis

relativas, massa pode se converter em energia e um objeto com velocidade próxima à da

luz sofre aumento de sua massa, ao passo em que o espaço se contrai e o tempo se

dilata.

Pelos estudos em física quântica, passa-se a perceber que não existe nenhum

fenômeno totalmente objetivo, quer dizer, independente do estado do seu observador. A

incerteza cresce em 1926, quando o físico alemão Werner Heinsenberg enuncia o

Princípio da Indeterminação, de acordo com o qual é impossível medir,

simultaneamente e com absoluta precisão, a posição e a velocidade de uma partícula de

átomo. A tese produz rachaduras graves no sonho de uma ciência determinista: afinal,

se não é possível medir o estado atual do universo, que dirá prever eventos futuros sem

erros.

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Um brevíssimo percurso pela história da ciência mostra como as mentalidades se

modificaram nos últimos quinhentos anos, tempo que não significa quase nada no

período de permanência do homem sobre a Terra. Os últimos acontecimentos

fragilizaram o modelo monolítico de saber científico, deslocando a atenção para

aspectos como a complexidade, a incerteza e a descontinuidade. Se tempos atrás a

ciência consolidou-se enquanto saber hegemônico na explicação dos fenômenos da

natureza, orientando, inclusive, a trajetória de desenvolvimento social em muitos pontos

do planeta, atualmente, a ciência disputa espaço e preferência com outros saberes. É o

que se pode chamar de crise do paradigma científico: tem-se a consciência de que o

conhecimento científico não é o mais coerente de todos, nem oferece as únicas respostas

aos problemas da humanidade.

Não é o descarte da ciência, mas o questionamento da sua onipotência. O

cidadão comum continua acreditando no desenvolvimento científico e tecnológico, mas

ao mesmo tempo não deixa de consultar a astrologia diariamente, prossegue

alimentando sua mitologia particular e não se desvencilha dos seus vínculos religiosos.

De maneira direta, não é a ciência que está em crise, mas a ciência como se

construiu e se apresentou nos últimos séculos: metodologicamente determinista,

pretensamente absolutista, excludentemente ocidental, paradoxalmente dogmática. O

que vive uma crise de paradigma é a ciência filha da Razão surgida no século XVII

como um método de conhecimento fundado na lógica e no cálculo. Para René

Descartes, a razão é o poder de bem julgar e discernir o verdadeiro do falso. É em torno

dela que o conceito moderno de homem (e de sujeito) vai ser desenhado, sustentado

pela idéia de consciência. Com um novo homem sobre a Terra, é preciso desenvolver

um percurso que lhe permita dominar a natureza e alcançar uma condição mais digna no

reino animal.

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Da razão, decorrem os conceitos de racionalização e racionalidade, que vão ser

alicerces para os esforços da tecnologia e da ciência. A racionalidade é a adequação

entre uma coerência lógica e uma determinada realidade empírica. A racionalização, por

sua vez, é o conjunto de práticas que vai tornar viável uma racionalidade. Desta forma,

resulta uma conseqüência fácil: na ciência, a objetividade vai ser uma das condições de

sustentação do processo de racionalização. A objetividade estará ligada ao que se

entende por mundo objetivo, ou mundo dos estados de coisa dados no espaço-tempo. O

mundo dos fatos. A objetividade é a faculdade de tornar uma situação, um ser ou uma

coisa objetos. Tudo aquilo que o sujeito não reconhece como uma extensão de si é

entendido como objeto, uma exterioridade, uma alteridade.

A objetividade vai servir a ciência durante muitos anos, tempo em que a

natureza será observada a uma distância segura. Deus não estará por perto, e a

perspectiva e as condições íntimas do observador serão ignoradas. Quando o objeto é

uma bactéria ou uma molécula gasosa, todos sobrevivem relativamente ilesos neste

distanciamento. Mas e quando se observa a psique humana ou um ecossistema urbano,

objetos em que o homem – e até mesmo o observador – está envolvido? O que vai

determinar a distância e as fronteiras entre o sujeito e o objeto?

O surgimento das ciências humanas vai colocar este impasse epistemológico,

trazendo à tona a discussão sobre a metodologia na pesquisa e sobre a própria definição

de objetividade. Embora isso ocorra, em diversos campos do conhecimento, um certo

culto à objetividade permanecerá, já que ela estaria intimamente ligada à observação

direta dos fenômenos e, portanto, mais próxima deles. No exercício do Jornalismo,

mesmo apesar do intenso debate que suscita, a objetividade se mantém como uma

categoria de suporte da atividade jornalística. Pelo menos é o que defendem muitos

autores e profissionais, e é o que professam empresas e instituições.

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As gramáticas do ramo orientam para que o jornalista reporte os fatos de forma

objetiva e direta, desapaixonadamente. Há que se perceber que o Jornalismo se inspira

na ciência para construir seu modelo de representação do mundo. Isto é, o Jornalismo

vai se inscrever numa tradição narrativa que tenta ser o reflexo do mundo, e nesta

perspectiva, a reportagem dos fatos precisa atender a critérios rigorosos de observação e

de descrição. Assim, no Jornalismo, tal como na ciência, a objetividade vai ser uma

condição que liga os sujeitos a acontecimentos e a fenômenos. Como essas ligações são

distintas, diferentes também são as formas de constituição do efeito de objetividade.

Um produto do capitalismo, a atividade jornalística vai se desenvolver sob o

signo da modernização industrial e da racionalização produtiva. Dessa forma, surte

natural que venha se espelhar na ciência para determinar alguns dos seus

procedimentos. Apegar-se à objetividade pode ser entendido como condição necessária

para a construção de uma credibilidade, por exemplo.

Mas a exemplo do saber científico, o Jornalismo também sente os tremores de

contestação das suas bases. O desenvolvimento das ciências da linguagem facilitou o

entendimento e a disseminação de explicações que denunciavam o mito da neutralidade

das palavras. Então, a cada formulação de frase, o jornalista não poderia desviar-se da

escolha nada objetiva do vocabulário que usaria no relato do fato. Segundo algumas

correntes lingüísticas, incidiriam neste processo - mesmo que involuntariamente –

aspectos ideológicos e do inconsciente psíquico.

Uma outra impossibilidade ajuda a minar a objetividade jornalística: o

profissional precisa estar próximo do fato o suficiente para apreendê-lo, mas ao passo

que faz isso, deixa de estar alheio, isolado do acontecimento. A cena se contamina com

a presença do jornalista, permite distorções da realidade.

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A objetividade no Jornalismo sofre ainda com a possibilidade do engajamento

ideológico-sentimental do profissional em alguns assuntos, e com as relações

promíscuas entre as empresas jornalísticas (cada vez menos auto-suficientes) e os

poderes político e econômico-financeiro.

Se a ciência vive uma crise de paradigmas, o Jornalismo padece sob um

paradigma de crises. Objetividade, imparcialidade, veracidade e honestidade são todas

colocadas em xeque. Em não raros momentos, ao invés de informar, o Jornalismo

desinforma. Seja pela saturação ou redução de dados, seja pela distorção ou

apagamento. São postos em dúvida até mesmo a suficiência e a fidelidade do Jornalismo

enquanto forma de representação dos fatos contemporâneos.

As incertezas da ciência fomentam mudanças na visão de mundo hegemônica

nas sociedades. No Jornalismo, a crise de paradigmas ajuda a provocar um ambiente de

análise das bases do conhecimento jornalístico como modo de saber, de fazer e de ser.

Tanto no Jornalismo, como em qualquer campo de atuação humana, antes de se

lançar ao objeto, é preciso refletir sobre a forma de sua observação. O que define um

objeto é o olhar que se dispensa a ele. É o olhar – este processo que tateia a superfície

das coisas e das idéias – quem estabelece o sujeito e o objeto nos extremos da

observação. É o olhar – este raio invisível que dá visibilidade a tudo – quem inscreve

uma consciência num ponto e uma alteridade no outro. Entre os dois, o mundo e a vida,

contaminados de sentidos.

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CAPÍTULO 1

O olhar

1.1 O olhar é uma leitura do mundo

“O que permite ao homem reconciliar-se com a infância e alcançar o permanente nascimento da verdade

é esta ingenuidade clara, distante e aberta do olhar. (...) O discurso do mundo passa por olhos abertos,

e abertos a cada instante como que pela primeira vez.” Michel Foucault – O nascimento da clínica

studos psicofisiológicos atestam que 80% das informações que nos chegam do

mundo nos vêm pelos olhos1. Nosso universo de conhecimento é

predominantemente visual, preenchido de cores, nitidez e contorno. Nossos

olhos são radares particulares, atentos ao movimento dos corpos, alertas a mudanças no

ambiente. Mas olhar é muito mais do que ver.

Olhar é fitar, mirar, contemplar. É sondar, cuidar e ponderar. Admirar, julgar,

estudar. Olhar é apreender o mundo, as coisas, as pessoas e suas circunstâncias e

considerá-las, guardá-las de alguma forma nos escaninhos da memória. Olhar é encarar,

pesquisar, examinar. Olhar é observar, atentar, considerar. E reparar, procurar, enxergar.

Mas também ver, procurar ver, conectar-se com o objeto da sua visão. Olhar é lançar-se

ao mundo e significá-lo, perceber seus sentidos plurais. Para além de um fenômeno

físico, olhar é captar, receber, ler o mundo. Lançar um olhar é deter-se sobre algo. Não

perder de olho é preocupar-se, cuidar.

Na sua dimensão total, o olhar está próximo do entender, do saber, do conhecer.

Desta forma, não é demais dizer que um olhar é uma forma de compreensão, um

ensaio de racionalidade e sensibilidade.

Os diversos olhares, as mais distintas maneiras de se projetar para as coisas,

sinalizam modalidades de apreensão dos planos do real. Por isso, os campos do saber

1 A estatística é de D. Morris, em Magie du corps, citado por Alain Brossard (1992).

E

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não interpretam os fenômenos igualmente; as explicações não coincidem, não se

cobrem. A maneira pela qual deitamos olhos sobre os objetos influencia

incontornavelmente nossa visão, nossa compreensão das coisas. A variedade destes

olhares leva à pluralidade dos saberes, das ciências, das relações que o humano

estabelece com seus pares e o meio que o cerca.

Cercar um olhar, determinar como ele se compõe, em que premissas se apóia é

apresentar uma racionalidade, um campo de saber, uma epistéme. Assim, o olhar clínico

do médico é um contato com o corpo do paciente, o olhar atento do mecânico é uma

prospecção dos defeitos no motor do automóvel. E como se pode ver, um olhar

especializado é um processo de produção de subjetividades em série. Sujeitos são

também engendrados conforme as regras do olhar, da leitura do mundo. Um modo de

olhar – vigiar, por exemplo – ajuda a “fazer” um sujeito – o segurança – diferente do

astrônomo ou do navegador, que dispõem de mecanismos distintos de ação

contemplativa. No caso deles, há mais prospecção que contemplação.

O olho é o espelho do mundo, mas também é a janela da alma – já disse

Leonardo Da Vinci. Ver o exterior é constituir-se como vidente no universo do visível,

engendrando uma relação complexa e complementar: sujeito-objeto.

Esta relação torna-se ainda mais problemática quando o sujeito tem que

descrever para outrem o que viu, interpretar o que enxergou. Dessa forma, jornalistas

convivem diariamente com este desafio, e emprestam seus olhares aos consumidores de

informação. É uma tele-visão do local onde os fatos acontecem. Os meios de

comunicação funcionam como extensões dos sentidos do homem comum. Jornalistas

repassam ao público suas visões do mundo. Momentaneamente, este público suspende

seu próprio olhar para absorver uma outra luz que pode lhe ajudar a compreender mais o

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mundo. Depois da leitura dos jornais, a vida se reconfigura, e, de repente, passa a fazer

sentido.

Não é exagerado dizer que o olhar atrai especial atenção de pensadores e artistas

desde os tempos mais remotos. Entre os antigos, não são poucos os mitos em que o

olhar tem lugar privilegiado: são os olhos vítreos da Medusa que transformam a todos

em estátuas de pedra, é a visão profética de Cassandra, é a proibição às filhas de Ló para

que não se voltem para as ruínas de Sodoma e Gomorra. Mesmo Édipo, quando conhece

a verdade de seus crimes, cega os próprios olhos, disposto a não enxergar mais nada, a

não saber de mais nada. É neste sentido, entre tantos, que o estudo do olhar do jornalista

me interessa: na medida em que ver e saber, enxergar e conhecer têm proximidade,

parentesco.

É na medida em que um olhar delimita uma forma de compreensão, uma

tradução do mundo, que se pode empreender uma pesquisa acerca deste olhar. Fechando

o foco sobre os jornalistas – sua categorização profissional e sua natureza social -, este

olhar ganha importância-chave, já que a inserção destes sujeitos no mundo depende das

relações que estabelecem com as coisas e fatos que o cercam. Quando os jornalistas

lançam seus olhares, captam as atmosferas dos acontecimentos, eles percebem os

processos e ordenam (pelo menos momentânea e aparentemente) o caos local. Mais que

isso. Por meio dos olhares lançados, jornalistas concebem as figuras da alteridade

(público e fontes de informação), reconfiguram suas próprias identidades (sua posição

social, sua condição de representante de tal empresa, etc.) e mapeiam a história e a

geografia das relações do cotidiano.

Tratar desse olhar clínico é apontar os condicionamentos, os vínculos, as

dependências, os valores de fundo que compõem a maneira deste profissional se

constituir enquanto tal. Estudar este olhar é ensaiar uma epistemologia dos sentidos

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destes trabalhadores nas suas práticas cotidianas. Operar na observação desta relação –

o olhar – é tracejar um campo de ação, de saber, de constituição específica. É operar na

delimitação de um quadrante na epistemologia do Jornalismo.

Assim, para o jornalista, o olhar é a encruzilhada entre os conhecimentos

técnicos da captação da informação e da conversão do fato em notícia, dos valores

éticos que dão base à sua conduta, e dos cuidados e preocupações estéticas próprios das

linguagens em que apresenta seus produtos informativos. Em outros termos, penso que

uma epistemologia do Jornalismo reúne pontes que interligam Técnica, Ética e Estética.

O olhar imprime tudo isso. É o olhar crítico, curioso, cético; é o olhar clínico,

preocupado, compromissado, crônico.

A construção de um olhar se apóia num pré-construído, num discurso sustentado

por indícios, regras de conduta técnica e ética: assim, espera-se que o jornalista tenha

um olhar crítico, busque “a verdade acima de tudo”, ouça “os diversos lados da

questão”, seja “objetivo e imparcial”.

Um olhar específico para o jornalista reserva-lhe uma identidade própria, na

medida em que contribui para a produção de subjetividades e para a consolidação de um

padrão de subjetivação. Um olhar de jornalista está apoiado num discurso singular,

crivado de valores, de normas, de recomendações, o que desencadeia certas práticas.

Audálio Dantas (1998) lembra a definição do jornalista Acácio Ramos sobre a

própria profissão: “repórteres são pessoas que perguntam”. Para além disso, é preciso

lembrar que jornalistas são pessoas que lêem o mundo. E tal operação, demandada por

um olhar aguçado e atento, chama a nossa atenção para uma problematização do

conceito de leitura, na dimensão epistemológica que proponho para esta pesquisa. Que

leitura é esta que o jornalista faz da vida e do mundo? Seu olhar – premeditadamente

crítico – orienta uma leitura diferenciada dos fatos?

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1.2 O olhar como processo e relação

“Até quanto posso entender, nós conhecemos o mundo porque as partículas dos objetos ferem os nossos olhos.”

John Locke, filósofo inglês

Apesar de forte e profundamente influenciadora, a intuição de um olhar

específico do jornalista não é suficiente para atestar sua real existência. É preciso buscar

este olhar, verificar onde se configura, de que forma e sob quais condições. Mas antes

disso ainda, seria necessário averiguar como o conceito de olhar é problematizado em

outros campos de saber, exteriores ao Jornalismo.

De forma geral, o olhar é estudado pela Psicologia por diversas correntes2, mas

três áreas são destacáveis: a Psicofisiologia, que se preocupa com o olho e a visão, a

Psicologia Cognitiva, que se concentra na percepção visual, e a Psicologia Social, atenta

ao olhar nas interações sociais. Em La psychologie du regard – de la perception visuelle

aux regards, Alain Brossard distingue os conceitos: visão é a estrutura neuro-fisiológica

desta modalidade sensorial; percepção visual reúne os processos psicológicos

individuais de recepção, tratamento e integração das estimulações visuais; e por fim,

olhar encerra as condutas visuais observáveis numa situação de interação social,

compreendendo dois ou mais indivíduos.

Visando contemplar as perspectivas individual e social, Brossard concebe o

olhar como uma função sócio-cognitiva, o que permite, por exemplo, que nas interações

sociais, a criança adquira novas ferramentas cognitivas. Assim, o olhar possibilita que o

indivíduo se oriente por ele e edifique seus pensamentos e atos. “Perceber é uma noção

epistêmica que reúne importantes afinidades com a de conhecer. Se se imputa a algum

conhecimento de um estado de coisas, ela implica que este estado de coisas exista

2 Não há unidade entre as vertentes psicológicas que estudam o olhar ou um fio condutor que as ligue, mesmo diante do grande volume de estudos na área. As abordagens são modulares, e uma noção de conjunto pode ser buscada na interface entre estas perspectivas.

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realmente” (op.cit.: 59). Para alguns autores, a percepção é uma fonte de conhecimento

a posteriori, que pode reunir uma relação entre um objeto, o sujeito percebente, e uma

proposição por contraste a uma relação de dois objetos. Assim, para além de mero

fenômeno físico de incidência da luz na estrutura ótica, o olhar é uma forma de

apreensão do mundo, um tipo especial de conhecimento, que cruza objeto, sujeito e

contexto de observação.

Para Gaiarsa (2000), o fato de cada nervo ótico ser formado por um milhão de

fibras nervosas, enquanto os nervos acústicos não têm mais de 30 mil cada, se deve à

necessidade de maior sensibilidade de que a visão como modalidade sensorial precisa

ser dotada. “Os olhos são os maiores espiões do mundo. São dois mas funcionam como

se fossem um só” (op.cit.: 14). O olhar é a busca, “nosso radar mais fino e sempre

inquieto” (132), o que torna a linha do olhar “a direção mais importante do mundo”,

afinal, o “traço que vai do olho ao objeto não marca só a direção do desejo; marca

também o caminho” (138).

Mais uma vez, a relação pura e estática entre sujeito e objeto é dissolvida. É o

olhar, sua direção, intensidade, duração e atenção, que determinam quem é sujeito e

quem é objeto. Isso porque preenche a distância entre esses pólos dinâmicos, seja com

sentidos ou interrogações.

***

Em muitos momentos, o trabalho do jornalista se assemelha ao de um

antropólogo: ele é um profissional enviado a um contexto social que precisa ser

observado, entendido, e traduzido para outros contextos. O cientista chega à aldeia

isolada, faz contato, estuda hábitos e culturas, e depois retorna com uma sistematização

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das informações que colheu. O jornalista vai cobrir um fato, interage com os envolvidos

no acontecimento, coleta dados, e volta à redação para ordenar seu material. Em ambos

os casos, acontece o mergulho numa realidade para sua interpretação posterior. Nos dois

exemplos – seguindo metodologias próprias -, um olhar é lançado na tentativa de

apreensão e compreensão de fenômenos.

Para Sérgio Cardoso (1992), o etnólogo tem um olhar viajante. Há ligações entre

olhar e viajar, na medida em que, estando em outros lugares, encontra-se com o novo,

com o estrangeiro, com o estranho. O olhar estabelece a distância entre as instâncias do

eu e do outro. É por isso que olhar vai além de ver. Este último, em geral, significa o

vidente numa perspectiva discreta, passiva, que “espelha e registra, reflete e grava”.

Com o olhar é diferente. Ele remete, de imediato, à atividade e às virtudes do sujeito, e atesta a cada passo nesta ação a espessura da sua interioridade. Ele perscruta e investiga, indaga a partir e para além do visto, e parece originar-se sempre da necessidade de ‘ver de novo’(ou ver o novo), como intento de ‘olhar bem’. Por isso é sempre direcionado e atento, tenso e alerta no seu impulso inquiridor. (348)

Neste sentido, é entre o ver e o olhar que a própria configuração do mundo se

transforma, define Cardoso. A força do olhar é também não descansar imóvel sobre a

paisagem extensa do espaço, pois o olho se apega às descontinuidades, às diferenças, às

irregularidades, à alteridade. É por isso que o olhar não acumula, mas procura. Para o

autor, o olhar pensa e pode ser visto como a visão feita interrogação.

Ainda dentro da Antropologia, há outras problematizações acerca do olhar.

Disciplinarmente, há até uma Antropologia Visual, que se municia de instrumentos para

fazer uma leitura ótica de certas realidades. A máquina fotográfica, por exemplo, serve

de suporte e os signos apreensíveis pelo sentido do olhar despertam do contexto para

auxiliar o cientista a interpretá-lo. Mas perseguir tais caminhos pode se mostrar

dificultoso, conforme atesta Collier Jr. (1973:1):

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Aprender a observar visualmente, ver uma cultura em todos os seus complexos detalhes, pode ser uma tarefa de muito empenho para o pesquisador. A natureza fragmentada da vida moderna torna difícil o ajustamento à visão global. A capacidade de visão de conjunto do observador depende da proporção de envolvimento dele em relação ao seu meio ambiente. Nós, modernos, nos afastamos de um relacionamento muito envolvente com o ambiente que nos circunda, pois comumente lidamos apenas com partes desse esquema de grande amplitude.

O autor explica que, em geral, o desenvolvimento cultural foi orientado para

dominar a natureza pela tecnologia, o que provocou a organização de funções

fragmentadas. Collier Jr. admite que em certas áreas específicas, o homem é um analista

visual bastante perspicaz, principalmente no que tange ao campo de trabalho: o

radiologista pode diagnosticar uma tuberculose através do raio X e o bacteriologista

pode reconhecer os bacilos pelo microscópio. Mas são olhares exclusivos,

compartimentados, recortados. “Somente podemos considerar-nos os mais acurados

observadores na história humana se considerarmos a soma total de nossas

especializações”.

O isolamento desses olhares – chamado pelo autor de cegueira pessoal - está

diretamente ligado à orientação positivista, mecanicista das sociedades urbanas

contemporâneas. “Aprendemos a ver apenas o que praticamente precisamos ver.

Atravessamos nossos dias com viseiras, observando somente uma fração do que nos

rodeia. E quando observamos criticamente, é quase sempre com o auxílio de alguma

tecnologia” (op.cit.: 3). Há uma domesticação do olhar3.

No caso específico do Jornalismo, a mecânica do olhar não é mediatizada por

instrumentos tecnológicos, já que recorre a uma série de comportamentos, de ações

humanas, que são comuns a todos, mas levadas a um grau de especialização que motiva

3 A domesticação do olhar vai ao encontro ao que aponta o artista plástico inglês David Hockneyn (1937). Ícone da Pop Art, sua arte sinaliza para um olhar atravessado pela linguagem, pelo simbólico. Para além de suas já célebres pinturas de piscinas, são os trabalhos fotográficos dos anos 80 que enfatizam essa hipótese: com sua lente, Hockney capta um objeto num enquadramento que privilegie a parte e não o todo. Em

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a excelência no seu funcionamento. Isto é, outros profissionais vêem o mundo, assistem

aos fatos, mas não treinaram seus olhos para enxergar certos aspectos que são

importantes para os jornalistas. O jornalista não precisa de um telescópio ou de um

microscópio especial para atuar profissionalmente, mas de um olhar educado,

domesticado, treinado. Entretanto, precisa de uma técnica de ver, de um conjunto de

procedimentos que o capacite a observar as cenas de uma forma precisa.

Neste sentido, o olhar do jornalista se aproxima de uma tecnologia. Os antigos

gregos chamavam de tecnologia o tratado sobre uma arte, conjunto de conhecimentos e

princípios científicos que se aplicavam a determinado ramo de atividade. Uma

tecnologia é um feixe de técnicas, um coletivo de saberes, uma filosofia de ação. Se o

olhar do jornalista encerra procedimentos próprios no trabalho e determina processos de

entendimento dos fatos que cobre, este olhar pode ser qualificado como uma tecnologia.

***

Mas para além de qualquer instrumentalidade que se possa impingir ao olhar, é

preciso alargar o entendimento de como ele vem sendo refletido pelo pensamento

ocidental. Talvez a forma mais saliente dos estudos filosóficos sobre o olhar seja a

fenomenológica4. Merleau-Ponty vai se debruçar sobre a questão na metade do século

20. Para o pensador, os olhos de carne são mais do que meros “receptores para as luzes,

para as cores e para as linhas”. Os olhos “são computadores do mundo, que têm o dom

do visível como se diz que o homem inspirado tem o dom das línguas” (1980: 90).

seguida, ele faz as composições com as polaroids tiradas, como quem monta um quebra-cabeças. A percepção é selvagem. 4 O programa desta corrente filosófica ajuda a amparar algumas preocupações sobre o olhar. A fenomenologia, por definição, é o estudo das essências, e não tenta compreender o homem e o mundo senão a partir de sua factidade. Segundo Merleau-Ponty no prefácio de Fenomenologia da Percepção, “trata-se, então, de descrever, não de explicar ou analisar”. Um fenômeno se apresenta ao mundo, e neste momento, mostra-se. Cabe ao homem – e aí entra o olhar -, captar sua essência.

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Assim, atraído pelas incertezas da visibilidade e da invisibilidade, Merleau-

Ponty projeta em seus escritos as bases de uma busca do espírito e do ser, pela matriz do

olhar. Desse modo, o processo da visão não se resume a uma modalidade de

pensamento ou de presença, de constituição de lugar; mas sim “o meio que me é dado

de estar ausente de mim mesmo, de assistir de dentro a fissão do Ser, só no termo da

qual eu me fecho sobre mim” (108). A visão funciona como o encontro de todos os

aspectos do Ser. Mas ver é entrar num universo de seres que se mostram. Com isso,

olhar um objeto é vir habitá-lo e dali apreender todas as coisas segundo a face que elas voltam para ele. Mas, na medida em que também as vejo, elas permanecem moradas abertas ao meu olhar e, situado virtualmente nelas, percebo sob diferentes ângulos o objeto central de minha visão atual. (1999:105)

Olhar e ver não são a mesma coisa. A simples visão supõe e expõe um campo de

significações; o olhar as procura, seguindo a trilha do sentido. O pensamento não é

conjunto de enunciados, mas afastamentos determinados no interior do Ser. Marilena

Chaui (1992) esclarece que, na leitura de uma filosofia da visão, os conceitos não

podem ser vistos como representações fechadas, mas pontos de convergência, de

generalidade; e as idéias funcionariam como eixo de equivalências, fios provisórios para

o estabelecimento dos entendimentos. O olhar aponta para um pensar generoso, “que,

entrando em si, sai de si pelo pensamento de outrem que o apanha e o prossegue. O

olhar, identidade do sair e do entrar em si, é a definição mesma do espírito” (63).

Para Alfredo Bosi (1992), uma teoria completa do olhar poderia coincidir com

outras duas teorias, uma do conhecimento e outra, da expressão. Os gregos têm na sua

língua uma forte vinculação entre ver e conhecer. Mas esta coincidência entre olhar e

conhecer não é direta, já que o homem dispõe de outros sentidos que atuam neste

processo do ver e do ter em mente. Vincular a percepção visual com os estímulos

captados pelos outros sentidos é um dos temas básicos para uma fenomenologia do

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corpo. “O olhar não está isolado, o olhar está enraizado na corporeidade, enquanto

sensibilidade e enquanto motricidade” (66). Bosi adverte que gregos e romanos

helenizados percebiam duas dimensões no olhar: a receptiva e a ativa. Ao mesmo tempo

em que recebemos os estímulos visuais do exterior, direcionamos nossos fachos de luz

para as coisas, os fatos. Penso que o olhar é ativo, determinado, preciso, enquanto que a

visão concerne o aspecto passivo que os antigos percebiam. Assim, o olhar requer

vontade, desejo de saber, busca.

É Sartre (1943) quem diz que o olhar não é só uma luz que conhece, mas uma

força que penetra no ser olhado, tocando-o, ferindo-o, tirando a sua liberdade, jogando-o

para o nada. Assim, olhar e ser olhado, atividade e passividade – as duas dimensões do

ato de olhar - constituem um campo de forças onde saber e poder se misturam. O que

nos leva a pensar também na perspectiva do objeto do olhar, no Outro que identificamos

com nosso facho de luz, com nosso foco. Para Sartre, este olhar do outro sobre a minha

pessoa não dá conta numa absorção da imagem total. Nem a minha visão consegue essa

definição. A perspectiva do olhar-outro escorre na minha; e “a minha perspectiva

desliza espontaneamente na do outro e, juntas, são recolhidas em um único mundo onde

todos participamos como sujeitos anônimos da percepção”.

Destacando alguns aspectos, temos que o olhar é uma relação, auxiliando na

interação e na cognição; o projetar de um olhar marca as figuras de sujeito e

objeto, na medida em que se coloca entre elas; depois, até pode dissolvê-las,

chamando a atenção para o percurso que as liga; o olhar vai além da visão, pois é a

visão que procura, que interroga; o olhar é um ponto de contato, conhecimento e

reconhecimento da alteridade; o olhar reúne percepção sensorial e interpretação

simbólica; é leitura e é apreensão; é assim um gesto que constrói, gesto de leitura..

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Em O nascimento da clínica, Michel Foucault empreende um minucioso estudo

sobre um olhar específico, o do médico, na passagem do século XVIII para XIX na

França. Um olhar ativo, direcionado, único. O surgimento da medicina moderna se dá

com a instituição de um novo olhar que os profissionais lançam sobre os corpos dos

enfermos, enxergando de outra forma a doença, vendo novos sintomas, observando

comportamentos até então desconsiderados. A experiência clínica e a fundação de um

olhar determinarão novas práticas, novas compreensões dos fenômenos: “O olho torna-

se o depositário e a fonte da clareza; tem o poder de trazer à luz uma verdade que ele só

recebe à medida que lhe deu à luz” (1998: XI-XII).

Foucault afirma que existe um trabalho da medicina para alcançar sua condição,

mas por um caminho em que ela deve apagar cada um de seus passos, desde que atinja seu fim, neutralizando não somente os casos em que se apóia, mas sua própria intervenção. Daí a estranha característica do olhar médico; ele é tomado em uma espiral indefinida: dirige-se ao que há de visível na doença, mas a partir do doente, que oculta este visível, mostrando-o; conseqüentemente, para conhecer, ele deve reconhecer. E este olhar, progredindo, recua, visto que só atinge a verdade da doença, deixando-a vencê-lo, esquivando-se e permitindo ao próprio mal realizar, em seus fenômenos, sua natureza. (8)

É um olhar clínico: atento, qualitativo, com sutil percepção, sensível,

direcionado, que não descarta o essencial. Parcialmente, Foucault formula uma

definição para este olhar clínico:

Um ato perceptivo subentendido por uma lógica das operações; é analítico, porque reconstitui a gênese da composição; mas está isento de toda intervenção, na medida em que esta gênese nada mais é do que a sintaxe da linguagem que falam as próprias coisas em um silêncio originário. O olhar da observação e as coisas que ele percebe se comunicam por um mesmo Logos, que é, em um caso, gênese dos conjuntos e, no outro, lógica das operações. (123)

Se antes os relatos médicos eram recheados de explicações míticas, fantasiosas,

em poucas décadas, as descrições patológicas revestem-se de minúcias que garantem

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uma maior visibilidade das moléstias, tornando-as mais verossímeis. A experiência

clínica e a mudança na estrutura hospitalar possibilitam este novo olhar, dando espaço

para o aparecimento de uma outra medicina. O olhar do clínico vai se assemelhar à

reflexão do filósofo na medida em que ambos buscarão alcançar uma estrutura de

objetividade. As formas de visibilidade no ambiente médico vão mudar e aí, “o olhar se

realizará em sua verdade própria e terá acesso à verdade das coisas”, permitindo uma

“reorganização epistemológica da doença, em que os limites do visível e do invisível

seguem novo plano”.

É bem verdade que o olhar não é o único sentido manifesto nesta operação. O

tato e a audição ajudaram a compor uma triangulação sensorial indispensável para a

percepção anatômico-clínica. Entretanto, a tríade mantém-se sob o signo dominante do

visível5. Na leitura de Foucault, a instituição de um novo olhar é sintoma de uma nova

medicina, aquela que contém a experiência clínica, que se sustenta em outras bases

epistemológicas. Fazendo um paralelo com o Jornalismo, também se pode refletir sobre

o olhar que este campo lança sobre seus objetos. Tal como na medicina, existe um olhar

clínico para os fatos, para as cenas, para o mundo. Enquanto o médico se preocupa com

o diagnóstico da doença, à procura das causas para o mal do paciente, o jornalista

observa a vida em busca de fatos noticiáveis, que precisem ser recontados, transmitidos

ao público. Como o olhar clínico, o olhar jornalístico também procura, interroga, escava

a superfície pretensamente homogênea do tempo. Assim como é pretensamente direto e

transparente o seu facho. Entre o sujeito e os objetos, bem na medida do olhar,

repousam a opacidade, a resistência e a incerteza.

5 Giles Deleuze disse certa vez que Foucault tinha paixão pelo ato de ver. Entre os franceses, ele não é único. Há ainda Derrida, Barthes, Merleau-Ponty, Sartre, Baudelaire, Valéry, Appolinaire, Robbe-Grillet, entre outros. Fraize-Pereira (1995) esclarece que, no caso de Foucault, o interesse pelo olhar vem da fenomenologia de Merleau-Ponty e da ontologia de Heidegger, além da psicanálise existencial de Binswanger.

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1.3 O olhar jornalístico

“En effet les regards variant en fréquence, dureé et direction pour un même individu placé dans des contexts situationnels différents,

mas aussi pour plusiers individus placés dans une même situation” Alain Brossard – La psychologie du regard

Por uma lei da física newtoniana, dois corpos não podem ocupar um mesmo

lugar no espaço, fato que traz como conseqüência, por exemplo, a impossibilidade de

duas pessoas terem a mesma visão de um objeto. Mesmo se postadas lado a lado, suas

perspectivas serão ligeiramente distintas, e é bem possível que, se estes indivíduos se

alternarem no ponto de vista, suas visões não sejam as mesmas. Esta formulação

impede, então, a existência de um olhar comum?

Fisiologicamente, sim. Mas filosoficamente, há uma brecha. Isto é, cada

observador tem seu par de olhos que captam as imagens dos objetos iluminados,

identificando-os cada um em seu cérebro. Porém, pode-se considerar que um olhar seja

também uma maneira de ler o mundo, uma forma de entendê-lo, de se colocar como

observador. Assim, se os dois indivíduos do exemplo seguem as mesmas diretrizes

ideológicas ou religiosas, se foram educados nas mesmas matrizes de pensamento, se

acreditam em valores morais comuns, etc., eles podem enxergar a vida sob um mesmo

prisma, como se usassem óculos semelhantes. Assim, os indivíduos podem alcançar

condições semelhantes de visibilidade e observação, somando-se a isso fatores

individuais como acuidade visual, por exemplo.

Embora pareça um tanto determinista, os diversos modelos de representação –

científico, ideológico, simbólico, religioso... – grosseiramente funcionam como

corredores que levam as pessoas a várias janelas, de onde se olha para o mundo. Seguir

uma crença ou repetir os procedimentos de uma mesma formação profissional podem

redundar numa mesma perspectiva de leitura do mundo (e por conseguinte, de ação

nele) para diferentes indivíduos.

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No caso profissional, a formação não se limita só ao adestramento técnico, mas

passa também pela construção de um saber específico e pelo processo de um

assujeitamento comum. Desta forma, ao longo da etapa formativa, uma profissão vai se

apresentar como o entrelaçamento de campos característicos de saber, fazer e ser. Esta

convergência fortalece um olhar específico.

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1.3.1 O Jornalismo como campo de saber, fazer e ser

O Jornalismo é uma atividade profissional relativamente recente se se considerar

que seus primódios remetem ao século XVII6. A invenção da imprensa por Gutenberg

em 1456 possibilitou condições tecnológicas que redundaram no surgimento de um

sistema, que mais tarde seria chamado de mediático.

Historicamente, contam-se trezentos anos das primeiras manifestações próximas

ao Jornalismo como o conhecemos hoje7. Neste curto período, ele foi se constituindo

enquanto campo específico de fazer (consolidando uma técnica), de saber (estruturando

uma teoria) e de ser (constituindo uma ética).

De acordo com Didier Hussen e Olivier Robert (1991:162), toda profissão

encoraja um certo conformismo e com o Jornalismo não é diferente. “Fazer carreira

supõe um respeito às regras estabelecidas”. Assim, a fixação destes parâmetros vai

auxiliar na demarcação de um ofício próprio, preenchendo com um espírito comum o

conjunto das atividades profissionais.

No manual Jornalismo para principiantes, Natalício Norberto (1978:13) define

a profissão como o “ofício de escrever, publicar ou dirigir um jornal, departamento de

notícia de emissora de rádio ou de televisão, ou uma assessoria de comunicação social”.

Para o autor, a área demanda dos profissionais nela envolvidos certas qualidades e

qualificações que vão da vocação ao conhecimento técnico (“saber ler e escrever e

outros atributos indispensáveis como saber outras línguas”), passando por dotes físicos

(“boa saúde, bons músculos e bons nervos”) e mentais (“o jornalista precisa de algo

mais que a inteligência”, “o repórter deve ser responsável, persistente, sincero,

imparcial”). Outro atributo mencionado é o que chama de “senso de notícia”:

6 Apesar de a primeira folha periódica impressa sob processo tipográfico – a Relatio Historica – ter sido lançada em 1583, com publicação semestral, só a partir do século XVII surgem os primeiros jornais diários: The Tatler (1709-1711) e The Spectator (1711-1712), ambos na Grã-Bretanha.

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Assim como o cozinheiro sabe escolher os ingredientes ou um bom tempero, também o Repórter deve ser capaz de distinguir entre os fatos realmente aproveitáveis e aqueles de pouco ou nenhum valor. O ‘faro’ jornalístico é tão importante para o Repórter como a água para o peixe. O senso da notícia ajuda o Repórter a: a) Perceber onde está a notícia b) Reconhecer a notícia, onde quer que se encontre c) Selecionar o ponto de interesse da história, a fim de apresentá-lo no início da redação. (27-28)

Esta percepção ou reconhecimento do noticiável está vinculado estreitamente a

um certo olhar específico do Jornalismo. Mas os atributos relegados ao jornalista

profissional podem ser complementados por outros autores.

Luiz Amaral (1982:29-30), por exemplo, define o jornalista como “o homem que

faz a notícia; quem a descobre, apura, escreve e divulga seca, comentada ou

interpretada. Seu trabalho consiste em formar, informar, reformar, ensinar, divertir”. O

estudioso ressalta que, embora as circunstâncias possam ser diferenciadas, “as

qualidades profundas que se lhe exigem são as mesmas”. Isto é, o jornalista precisa ter

vocação, viver em estado de curiosidade e ter iniciativa.

Além de curiosidade, para Spencer Crump (1974), o indivíduo que se dedica ao

Jornalismo precisa alimentar um senso de responsabilidade, ter flexibilidade para

trabalhar em equipe, gostar de jornais, ter vários campos de interesse e senso de

empatia, e contar com habilidade para expor idéias, conhecimentos de ortografia e

pontuação.

Julian Harris, Kelly Lester e Stanley Johnson (1965: 9-10) têm uma visão menos

determinista do profissional: ele não nasce jornalista, torna-se. A maioria dos atributos

para o sucesso de um repórter é adquirida: curiosidade insaciável, personalidade flexível

e social, disposição para passar por muitas experiências, temperamento para trabalhar

7 No Brasil, a imprensa só completará dois séculos de existência em 2008 por ocasião dos 200 anos de surgimento do Correio Braziliense, que curiosamente era editado em Londres.

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sob pressão de prazos e uma tolerância que permita observação de pessoas e eventos.

Ambição, senso, determinação e autodisciplina também auxiliam.

John Hohenberg (1982:5) lembra que no início do século XX cabia ao repórter o

papel de registrar objetivamente os fatos. Apesar disso, alguns jornalistas extrapolavam

o padrão estenográfico e se aprofundavam em acontecimentos, propiciando denúncias,

revelações e acontecimentos importantes do ponto de vista do interesse público8. Com

isso, “longe de se conformar com um vago padrão de objetividade, o jornalista verifica

que, muitas vezes, a avaliação das notícias obedece a critérios subjetivos. E, dada a

condição humana, não poderia ser de outra forma”, conclui o autor.

8 O Jornalismo norte-americano cunhou uma expressão para estes jornalistas investigativos: “muckrakers”, isto é, fuçadores de lixo. De acordo com Hohenberg, “foram eles que expuseram a decadência das cidades, as máquinas administrativas corruptas, a desapiedada busca de lucro pelos grandes monopólios industriais, as tragédias humanas do trabalho escravo, a exploração de crianças (...) Esses exemplos pioneiros de Jornalismo a serviço da comunidade e reportagens de investigação deixaram marca profunda no tipo de Jornalismo hoje praticado”.

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1.3.2 O conhecimento jornalístico

Se o Jornalismo é uma prática, o desenvolvimento de seus procedimentos

técnicos possibilitou, ao longo dos anos, a emergência de um campo teórico que o

balizasse. Com o tempo, foi surgindo uma teoria que sustentasse o Jornalismo.

De acordo com Juan Beneyto (1965:15-6), o Jornalismo reflete um fazer ligado a

uma profissão, mas não só isso: “El periodismo es, evidentemente, una técnica, como

todas las actividades profesionalizadas lo son en grado mayor o menor, pero constituye

también, com creciente relieve, una cultura”. O conhecimento jornalístico é um “saber

alertado”, já que o jornalista é alguém que está preparado para dar conta dos fatos. E

sem homem alerta, defende, não há jornalista:

Sin esta apititud, las cuartillas mejor escritas no deben lograr la luz da la Prensa, y ciertamente se han de perder muchas imágenes y muchos metros de reportaje fílmico porque los fotógrafos de las revistas ilustradas o los cámaras del noticiario o de la televisión no han sabido ‘ver periodísticamente’ lo que tenían delante de sus ojos. (47)

De novo, o olhar...

Na esteira da consideração sobre um conhecimento específico no Jornalismo,

Eduardo Meditsch (1992:20) argumenta que se há uma produção de saber diferente da

produzida pela ciência, o Jornalismo tem importância social muito maior do que se vem

atribuindo a ele. O autor sugere, então, que por meio do conhecimento de mundo

produzido pelo Jornalismo, o sujeito possa encontrar vestígios para o entendimento da

crescente irracionalidade da civilização racional e científica, por exemplo.

Segundo Meditsch, todo conhecimento social (inclusive o Jornalismo) acarreta

em certa perspectiva do tempo histórico, do contexto social. Como estas esferas estão

em constante mobilidade, o Jornalismo puramente objetivo é rechaçado.

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Isso não acontece por motivos de ordem psicológica, como dizem os manuais. Não é porque o indivíduo está psicologicamente envolvido com o fato, mas porque toda a forma de conhecimento pressupõe também um posicionamento do sujeito diante do objeto. Essa é a razão mais profunda, porque o próprio Jornalismo implica uma visão ideológica, implica um posicionamento ético e político sobre a realidade. (31-2)

O posicionamento de Meditsch se aproxima bem das formulações de Javier Del

Rey Morato (1988), para quem se pode pensar numa filosofia da atualidade e daí

considerar que a atualidade é uma ideologia. Conforme aponta, a atualidade é a nossa

circunstância, nossa cultura, nossa sensibilidade. E o critério para tal realidade é o

universo gerado pelos meios de comunicação. É por meio deles que o cidadão

contemporâneo se situa no tempo e no espaço, dimensiona alguns de seus valores,

assenta sua racionalidade. A partir disso se permite dizer que a mídia constrói nossa

consciência de atualidade, que oferece as condições de nossa experiência de mundo para

além de nossos sentidos.

Desta forma, a atualidade é uma ideologia, uma ideologia acontecimental:

Es la actualidad como hábito y como cultura, como sensibilidad y modo de instalarse en el tiempo y en el espacio – modo de habérselas com ellos – la que no sólo admite, sino promociona y privilegia el que los acontecimientos idiosincráticos sean reducidos al común denominador del ‘human interest’ y de la espectacularidad. (67)

O sujeito receptor, sob a torrente de informação e parâmetros de real, é quem

confere uma ordem ao mundo, mas para isso, precisa estar sintonizado numa mesma

freqüência dos meios de comunicação. Comungar a mesma ideologia acontecimental.

Para Morato (idem:82), se a ciência persegue a objetividade e se a arte a subjetividade, o

Jornalismo apela para a criação de um lugar de mundo, observado por meio de uma

tecnologia – o tipo e a natureza do veículo de comunicação - e de uma ideologia – a

atualidade.

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1.3.3 A constituição do olhar no Jornalismo

Entre jornalistas, embora se comente muito sobre um possível faro para a

notícia, é possível também ouvir coisas do tipo: “Jornalismo não é pra qualquer um. É

preciso ter olho pra coisa!”. Descontados os exageros e entendido que a exclusividade

se estende para outras tantas (senão todas as) profissões, não se pode ignorar a idéia que

está por trás desse enunciado: o Jornalismo tem uma especialidade que exige, de quem o

exerce, esforços com que outros profissionais não se preocupam. Um breve inventário

das falas de eminentes repórteres aponta justamente para uma confirmação desta idéia.

Relatando seus 35 anos de correspondente de guerra, Peter Arnett (1994) usa

diversas vezes expressões do tipo “aprendi a escrever apenas o que vi” ou que sua

função é “dizer apenas o que vê”. Estas declarações ganham maior contorno quando, na

página 307, cita uma carta à sua base em Nova Iorque: “Pretendo continuar a contar a

guerra como ela é ...”.

Na esteira dos casos profissionais, seguem-se mais alguns. Certa vez, ao ser

questionado sobre o que era necessário para ser jornalista, Samuel Wainer respondeu

que era preciso mergulhar realmente na vida para poder transmiti-la. Mas, além disso,

um jornalista precisa saber ver. “E saber ver é só vivendo. Muitas vezes no mesmo lugar

em que há três pessoas, acontece algo e só o jornalista vê”9. O cronista Lourenço

Diaféria reforça a idéia, descrevendo o jornalista como aquele que tem a capacidade “de

ver as coisas como os outros não vêem”10. Esta capacidade ou esta necessidade

profissional converge no senso comum que circula pela categoria de que é necessário

estar alerta, atento aos sinais do mundo.

Clóvis Rossi ajuda a desenhar este olhar diferenciado do jornalista ao relatar sua

experiência como correspondente internacional em meio aos conflitos na Faixa de Gaza:

9 Apud Medina (1982:190).

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A primeira viagem (1987) foi a passeio (...) Saí com a sensação de ter andado sobre um barril de pólvora, prestes a explodir, mas não me atrevi a escrever nada a respeito, porque, como turista, podia ter-me deixado iludir por aparências. Mas ficou um desejo enorme de voltar, de ver mais de perto, de avaliar melhor tudo aquilo. (1999:177)

Isto é, o cidadão comum, o turista, olha para o mundo de forma passiva,

receptiva, enquanto que o repórter afia seus instrumentos para ler a vida de forma mais

aguda. Não isenta de miragens e distorções, mas com um olhar que procura, que caça.

Mesmo que sejam apenas fantasmas.

Rossi justifica constantemente sua opção pelo Jornalismo por este permitir-lhe

“ser testemunha ocular da história do meu tempo”. A expressão – cara ao Jornalismo

brasileiro por ter se decantado no bojo de um paradigma, O Repórter Esso – reúne forte

carga de verossimilhança. Afinal, ver a História é estar diante dela no seu

acontecimento, testemunhando-a com os próprios olhos11 na tentativa de absorver os

fatos na sua integridade. Desta crença resulta a ilusão de que o olhar é transparente,

perfeito, que a ele chegam os objetos sem distorções, sem embaçamentos. Esquece-se

que o que vêm aos olhos são imagens das coisas e não as próprias. A opacidade é

constitutiva do olhar, e o jornalista não pode se desviar disso.

O jornalista Audálio Dantas diz que uma das exigências do ofício do repórter é

ter “coragem para ver”, e depois dela, a coragem para contar o que se viu:

De um bom repórter, desses que vão além das prescrições dos manuais da redação ou das receitas da pauta diária, exige-se muito mais. Ao contrário daqueles macaquinhos chineses, eles têm de ver, ouvir e contar – de preferência contar bem, em texto de qualidade. (1998:10)

O inventário discursivo sobre o olhar do jornalista continua:

10 Segundo Ribeiro (1994:204). 11 O Jornalismo adquire dimensões de crônica histórica, como se pode ver no artigo de Clóvis Rossi na Playboy de abril de 1984: Eu vi a Argentina mudar.

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Ainda hoje, sempre que posso, volto à reportagem. O desafio de perseguir a informação pelos labirintos onde ela tenta esconder-se, a astúcia na formulação das perguntas, o olho vigilante em busca dos detalhes desprezados, enfim, a guerra da inteligência contra a mentira, tudo isso faz da reportagem a fascinante aventura que ela deve ser. Mauro Santayana, IN: Dantas (1998:168) Lugar de repórter é na rua, costuma-se dizer na Redação. Mas para sê-lo de fato é preciso mais, é preciso saber ver. Tendo o olhar, pode-se ser repórter sendo músico, escrevendo livro, fazendo filme, poema ou pintura. Uma das reportagens mais contundentes sobre os horrores da Guerra Civil Espanhola foi um quadro em preto-e-branco, Guernica, de Picasso. Zuenir Ventura, IN: Nogueira (s/d:108) O bom repórter político, aliás, sabe sempre para onde o vento está soprando, mesmo nos momentos de calmaria absoluta, como quando, por exemplo, as flores do recesso brotam do cerrado árido nas férias que os políticos se dão (quando não se pagam a si mesmos para trabalhar) no inverno ou no verão. Quando o assunto é política, convém saber ler nas entrelinhas escondidas entre a ponta da língua (normalmente escondendo alguma bolsa de veneno) e o canino mais próximo. José Nêumanne Pinto, IN: Nogueira (idem: 51)

Embora se possa pensar que este acervo de idéias semelhantes seja um evento

recente no Jornalismo local, o fato é que, em muitos momentos, o papel da imprensa foi

se consolidando sobre a idéia de que jornalistas têm uma missão a cumprir frente a seu

público. Numa famosa conferência de 1920, Rui Barbosa manifesta o que considera este

dever:

A imprensa é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam, percebe onde lhe alvejam, ou nodoam, mede o que lhe cerceiam, ou destroem, vela pelo que lhe interessa, e se acautela do que a ameaça. Sem vista mal se vive. Vida sem vista é vida no escuro, vida na soledade, vida no medo, morte em vida (...) Já lhe não era pouco ser o órgão visual da nação. Mas a imprensa, entre os povos livres, não é só o instrumento da vista, não é unicamente o aparelho do ver, a serventia de um só sentido. Participa, nesses organismos coletivos, de quase todas as funções vitais. Barbosa (1990: 37)

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O Jornalismo enquanto atividade que revela os acontecimentos para o grande

público, e o jornalista enquanto profissional que detém um olhar atento a estes fatos são

duas idéias que se combinam nos fragmentos discursivos elencados até aqui. No que

tange à esfera do jornalista, uma discussão ganha vulto, a de uma identidade comum

àqueles que exercem esta atividade.

Frente ao estudo da identidade profissional do jornalista, encontramos raros

trabalhos científicos produzidos no país, mas que servem de medida para a colocação do

problema. É o caso, por exemplo, de Travancas (1993), que parte da premissa de que

haja realmente uma identidade particular neste profissional. Conforme atesta, a

profissão é tão importante para quem a desempenha que delineia para estes uma

“identidade particular”. A partir do conceito de identidade social, conseqüência direta

de papel social e da sua construção, a autora acredita que o papel profissional para os

jornalistas ocupa um lugar privilegiado em suas histórias de vida, mesmo apesar dos

demais papéis a serem desempenhados. “O ser jornalista contamina os demais papéis,

ainda que de forma diferenciada” (101-102)12. Assim, a identidade do jornalista se

forma a partir da profissão, mas resulta algo além do que o seu mero exercício.

Expandindo os limites, a autora, neste ponto, faz referência ao fato de algumas

carreiras significarem bem mais do que uma atividade ou emprego na vida de seus

profissionais, provocando “um envolvimento que resultará num estilo de vida e numa

visão de mundo específicos”(108). Estas tais ocupações – e o jornalista é uma delas -

têm exigido de seus membros um sentimento de adesão, de compromisso que marcará

suas trajetórias na carreira, em meio à categoria, aos pares profissionais. Esta adesão –

este é o termo de Travancas – “surge como expressão de suas individualidades”,

12 Outro estudo da condição jornalística, o de Cremilda Medina (1982), já apontava esta tendência: “Torna-se difícil dividir as características do profissional assumido entre aptidões de personalidade e simples técnicas de treinamento no ofício. Tanto uma como outros são visíveis e podem ser catalogadas no estudo direto do desempenho diário, mas, se para efeitos de análise, pode-se apontá-los isoladamente, na realidade formam um feixe indissociável que nem os psicólogos sociais ainda desvendaram” (24).

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marcando fortemente a conduta prática destes profissionais, sua compreensão de mundo

e as formas de reação aos estímulos da vida cotidiana. Condição que nos permite pensar,

por extensão, que esta visão de mundo, esta adesão sejam traços constituintes nos

processos de confecção de indivíduos-jornalistas, sendo também responsável pelas

práticas que colhemos na contemporaneidade das mídias.

Se existe um olhar de jornalista, uma forma de esses profissionais se dirigirem

aos seus objetos, este olhar é particularmente importante para a formação de sua

identidade de jornalista, porque ajuda a configurar a alteridade e a individualidade

pessoal.

Identidade que é um terreno complexo e pantanoso, onde convivem velhos mitos

cultivados nas redações e novos titãs, engendrados nos gabinetes, nas gerências e nos

departamentos de engenharia e recursos humanos. Ribeiro (1994) se debruça sobre a

modernização pela qual dois grandes jornais brasileiros passaram nos últimos anos – a

Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo – e as conseqüências destes processos para os

jornalistas, na ponta da escala industrial produtiva da mídia. O título de seu trabalho é

sugestivo - Sempre alerta - clara remissão a um dos valores do Jornalismo, estar atento

a tudo a toda hora.

Vigora nos veículos da grande imprensa uma peculiar onisciência, de tipo seletivo, em que o jornal e seus repórteres pretendem saber tudo. Não em sentido absoluto, mas trata-se de saber tudo o que é importante. Esse conhecimento universal deriva de uma onipresença, também seletiva, e que abarca cada jornalista, suas fontes, cada empresa de notícias e o conjunto da imprensa.(125)

Assim, reforçando o dito, mitos românticos da profissão cedem espaço a uma

nova mitologia, agora gerencial, administrativa, de modernização, sob a lógica de

mercado. Os manuais criam não apenas regras de estilo e redação, mas também

condicionam como se deve ver o mundo. De que parte, de que forma, sob quais

aspectos. O que passa a ser importante, publicável, identificável como notícia.

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Estar sempre alerta é lançar um olhar sagaz, penetrante e apurado. É enxergar

nas cenas mais prosaicas algum descompasso que mereça menção. É ver no lixo

matéria-prima para o noticiário. É antever os passos da fonte de informação suspeita. É

se deixar levar por miragens também, vultos e sombras. É prever o que fazer na edição

seguinte. É configurar o mundo e seus acontecimentos nos minutos que o telejornal

dispõe ou espremê-los na largura de algumas colunas de página. Ser jornalista, então, é

lançar um olhar para o mundo, compreendê-lo, organizá-lo em manchetes e traduzi-lo

rápida e claramente.

Ribeiro (op.cit.) estabelece uma relação próxima de análise do Jornalismo

enquanto profissão e a religião, nas suas estruturas, funcionamentos, hierarquias e

ordenamentos. Alguns valores do Jornalismo – tal qual na religião – tornam-se dogmas,

indiscutíveis. E estar sempre alerta é um deles. O que permite o autor, lá pelas tantas,

questionar-se se o Jornalismo é uma forma de sacerdócio. Ou, reformulando,

poderíamos indagar: ficar vendo o mundo 24 horas por dia de uma forma determinada é

agir como se estivesse numa religião? É ver a vida, as contingências e as pessoas por

um prisma redutor, compressor da realidade, normatizar? Vamos um pouco mais longe:

Enxergar assim é ver em profundidade? É observar com amplidão? Ter uma visão geral,

panorâmica, é ter o melhor ponto de vista?

A questão da identidade se equilibra também nos mitos que ajudam a construir

um ramo profissional. Nas crônicas do repórter Pedro Bial (1996), o correspondente

internacional acaba citando algumas dessas expressões que envolvem os jornalistas:

“repórteres vivem de carne humana”, são “viciados em perigo”, e “repórteres podem ser

advogados de causas perdidas, padres confessores, carrascos, redentores. Têm noites de

médicos e dias de coveiros. Alguns diriam abutres. Mas, como dizem os tiras, ‘alguém

tem de fazer o trabalho sujo’”

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O olhar é uma forma de apreensão da realidade, provoca uma compreensão dos

fenômenos, reúne um conjunto de procedimentos práticos e expressa um traço da

identidade do jornalista. Mas não existe uma homogeneidade neste olhar, uma

perenidade em todas as suas manifestações. Apesar de exercerem o Jornalismo, o

correspondente internacional, o repórter investigativo, o jornalista que trabalha nas

editorias de Geral e de Comportamento tem suas especificidades no ofício de enxergar

notícias. Setoristas vêem com mais rigor que os jornalistas generalistas, porque o foco –

para usar um termo da óptica – é mais preciso, mais recortado.

Um exemplo das diferenças no olhar na imprensa nacional é Ricardo Kotscho,

que já se autodefiniu como o repórter do pipoqueiro: “Enquanto todos cobriam o palco,

eu ficava pela platéia, dando uma espiada nos bastidores” (IN: Dimenstein & Kotscho,

1990: 68). A atenção para fatos periféricos, geralmente considerados acessórios, a

preocupação com as histórias dos anônimos envolvidos, tudo isso faz do olhar deste

repórter uma janela no Jornalismo burocrático.

É Kotscho (1986) quem mesmo diz que o indivíduo que trabalha na área precisa

ter alma de repórter: “o repórter deve estar sempre livre de qualquer preconceito,

qualquer idéia pré-fixada pela pauta ou por ele mesmo. É a sua sensibilidade que vai

determinar o enfoque da matéria” (42).

Talvez alma de repórter, esta sensibilidade para o fato noticiável, seja um outro

nome para o que venho tentando desenhar aqui como olhar no Jornalismo. É preciso, no

entanto, polir melhor esta expressão. Existe um olhar clínico, especial, particular na

apreensão dos estímulos do mundo. Esta modalidade distinta de compreensão provoca

uma série de ações e reações daqueles que olham. Diante disso, é possível que não

exista um olhar de jornalista, mas sim um olhar do Jornalismo, um olhar jornalístico.

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A expressão olhar de jornalista pode ser um problema, já que assinala algum

traço determinista na profissão: para ser jornalista, é necessário que se tenha tal olhar,

tal natureza. O equívoco se revela quando uma pergunta simples é feita: Quem não tem

estes olhos, então, não é jornalista?

A solução parece ser substituir a expressão original por “olhar jornalístico”, tal

como “olhar clínico”, “olhar cinematográfico”. Aí sim, parece ter-se chegado a um

ponto menos incômodo. Dessa forma, o “olhar jornalístico” compreenderia um

conjunto de procedimentos de apreensão da realidade e seus elementos, o que

ajuda a desenhar traços de uma identidade funcional no campo social do trabalho.

É um feixe de comportamentos operacionais, um amontoado de padrões de

resposta aos estímulos do mundo, preciso na sua vocação de busca, mas não livre

de erros, perdas de foco e embaçamentos. Imperfeito, o olhar jornalístico é menos

evidente e transparente quanto se almeja; é mais complexo do que se imagina.

Se se pode caracterizar alguém pela natureza das funções que desempenha,

jornalistas são pessoas que executam certas atividades comuns. Para estes trabalhadores,

a apreensão da realidade é fundamental, imprescindível para a manutenção de seu devir

profissional. Para estes trabalhadores, tudo o que cerca os procedimentos desta

apreensão deve, de alguma forma, incidir sobre os demais comportamentos, as demais

ações (ou reações ao mundo). A adoção da expressão “olhar jornalístico” se mostra

mais pacificadora, neste sentido, e mais precisa na definição. Isto na medida em que

aponta para um olhar que é próprio, vinculado ao campo jornalístico.

Abandonando uma lógica perigosamente determinista, é preciso ter claro que o

olhar jornalístico é um produto social criado dentro e fora da profissão. Isto é,

inicialmente, com o surgimento das gramáticas jornalísticas, alguns elementos foram

lançados, dando contorno e formato visível ao perfil do trabalhador. Luiz Beltrão (1992)

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afirma que o Jornalismo tem seis caracteres fundamentais: atualidade, variedade,

interpretação, periodicidade, popularidade e promoção. O olhar jornalístico é motivado

por muitos destes aspectos e funciona sob eles. O repórter sai para a cobertura em busca

da novidade, tentando atualizar conhecimentos que ele e o público já têm sobre o fato...

Mas o olhar jornalístico leva em conta também expectativas que o público

consumidor de informação manifesta. Por isso, este produto social também se alimenta

de outras fontes exteriores ao seu campo específico de formação e atuação.

Este olhar tem lá os seus critérios, suas regras de funcionamento. Um olhar

rigoroso, seletivo, abrangente, aprofundado, obcecado. Um olhar recheado daquilo que

Luiz Beltrão (op.cit.) chamou de curiosidade comunicativa:

O primeiro atributo do autêntico jornalista é a curiosidade comunicativa, que difere da curiosidade pura e simples porque se reveste de um insopitável desejo de passar adiante a informação obtida ou o fato testemunhado, ajuntando-lhe dados novos e comentários. Diante de uma ocorrência, o homem comum pára, informa-se e segue o seu caminho, indiferente, se tal fato não lhe diz respeito imediato; o intelectual e o cientista igualmente param, informam-se e prosseguem, quando muito retirando dela algumas inferências particulares ligadas à sua ordem cultural; o jornalista age diferentemente. A sua parada é mais longa ou mais intensa; a informação que colhe é mais completa e tem aplicação imediata porque ele lhe dá forma, julga-a, pesa-a, não em função dos seus próprios interesses, mas da sociedade de que se sente receptor e transmissor. Neste sentido é que o jornalista é aquele ‘órgão constante e vivo de informação’. Para ele, o fato tem um sentido que é preciso captar, definir, situar, comparar com outros, classificá-lo pela sua maior ou menor importância e, finalmente, exprimi-lo, divulgá-lo, comunicá-lo. (148)

Mas o olhar jornalístico se preocupa em extrair do fato seus elementos

essenciais, os aspectos que mais contribuem para a narrativa do contemporâneo, caráter

que Beltrão batizou de “fecundidade jornalística”:

A fecundidade jornalística já foi conceituada por um escritor chileno, Andres Siegfried, com as seguintes palavras: ‘(o jornalista) deve olhar, escrever, evocar... tem-se a impressão de que examina o mundo... com um olho novo; é um memorialista mas é também um sociólogo, inclinado ante a sociedade em que vive, acumulando observações curiosas que serão aproveitadas pelos filósofos para deduzir leis’.

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1.3.4 Jornalismo e sentidos humanos

Em seu último livro, Roland Barthes se detém sobre a fotografia e como ela se

apresenta pessoalmente a ele. A câmara clara é um livro deliberadamente subjetivo e

tenta lançar luzes sobre o ato e a arte de apreender imagens. A exemplo de outras obras,

Barthes faz aqui certos deslocamentos preciosos para o entendimento do processo

fotográfico, não no seu viés técnico, mas no simbólico. Assim, para o autor, o órgão do

fotógrafo não é o olho, mas seu dedo, e a vidência deste sujeito não consiste no ver, mas

no estar lá (1984: 30 e 76). O olhar se revela como algo “virtualmente louco”, já que é

simultaneamente efeito de verdade e de loucura. O olhar fotográfico

tem algo de paradoxal, que às vezes encontramos na vida (...) Diríamos que a Fotografia separa a atenção da percepção, e liberta apenas a primeira, todavia impossível sem a segunda (...) uma mirada sem alvo. No entanto, é esse movimento escandaloso que produz a mais rara qualidade de um ar. Eis o paradoxo: como se pode ter o ar inteligente sem pensar em nada de inteligente, quando se olha esse pedaço de baquelita negra? É que o olhar, ao fazer a economia da visão, parece retido por algo interior (164-167).

Difícil dizer o que vem a ser esta matéria interior. Mas, com Barthes,

percebemos que a análise do olhar não se apóia apenas nos mecanismos de

funcionamento dos órgãos da visão13. É previsível que uma análise do olhar se

circunscreva ao sentido da visão. É recorrente que se apóie o julgamento da vida e do

mundo nas imagens que captamos, até porque a civilização contemporânea construiu-se

muito à base de uma cognição vidente, de modelos de representação visíveis, de

pressupostos filosóficos que vinculam o real ao verificável pelos olhos.

13 Étienne Samain (2000) afirma que não seria demais pensar em Barthes como um antropólogo, com seu agudo olhar sobre o mundo, as pessoas e os seus fatos. Um antropólogo visual: “Barthes levanta um problema cognitivo e epistemológico sério. Existem atrás e dentro das matrizes imagéticas – fotográfica, cinematográfica, videográfica, informática -, lógicas, operações cognitivas, posturas filosóficas, visões e apreensões singulares do mundo, que temos ainda que descobrir e pôr à luz” (48)

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No Jornalismo, isso, constantemente, é levado às últimas conseqüências. César

Tralli (2001:22) conta que, numa reportagem sobre uma menina que supostamente

chorava lágrimas de cristal, só acreditou no fato ao assistir a uma demonstração da

adolescente. Tomada de ceticismo, a equipe de televisão queria desmascarar a farsa:

“Afinal, obrigação de repórter é desconfiar sempre de tudo e de todos. Questionar-se a

todo instante sobre o que vê, ouve e apura... Porém, mesmo sendo fiel à cartilha do bom

repórter, só mais tarde eu iria descobrir que fora traído pelos meus próprios olhos”.

Neste caso, o olhar não bastou.

Fernandes (1998:37) revela que o dramaturgo Jorge Andrade comparava o

jornalista à figura mitológica judaica do demônio Asmodeu, aquele que espia dentro dos

outros e de tudo o que está oculto.

Tal qual um Asmodeu moderno, o repórter ao escrever seus textos, reporta os acontecimentos como processo de revelação de suas raízes. Um movimento de abrir portas, ver as pessoas por dentro e mostrar o resultado ao mundo”. De acordo com a autora, a postura do repórter Asmodeu “implica na possibilidade de assimilar o outro modo de ‘ver’, espreitar a realidade, a partir do próprio olho” (179).

Como que se reforçasse o dito, o próprio Jorge Andrade, no romance-biografia

Labirinto, vai afirmar: “Ver coisas, ver pessoas na sua diversidade, ver, rever, ver,

rever. O olho armado me dava e continua a me dar força para a vida” (1978:60).

É comum que se reflita sobre o entendimento com base na visão que temos de

tudo, mas é preciso entender que o olhar pode se guiar também pelas demais

sensibilidades humanas. Pode-se dizer – embora pareça contraditório – que o olhar não

se limita à visão. Ele vai mais longe, pois articula conjuntamente os demais sentidos.

Esquadrinhar um modo de ver é importante, fundamental. Mas ele é insuficiente

para realizar um Jornalismo orgânico, apoiado pelas demais extensões do homem, seus

outros sentidos. Todos eles devem estar aguçados, sob controle e com perfeito manejo.

Todos os sentidos no seu maior grau de acuidade, dispostos a responder, ágeis na

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condução dos impulsos, precisos na identificação das causas de seus alertas. A visão

tem que ser abrangente e penetrante, podendo rasgar o espaço, chegar aos objetos,

retornando com a sua indelével imagem, a mais nítida possível. A audição deve ser

aguda, delicada, na possibilidade de pinçar as palavras e os sons na sua inteireza. Fino

deve ser o faro, limpo de incertezas, captando a atmosfera das cenas e das pessoas,

desviando-se das artificialidades. O toque deve ser ameno e perscrutador, tateante da

natureza das coisas, do seu volume, espessura, temperatura e rugosidade. As papilas

gustativas, por sua vez, estarão preenchidas com intensa memória e precisão, com

clareza e certeza no paladar.

O olhar jornalístico não pode se estreitar a ser apenas o olhar, a visão. É

necessário recorrer a uma epistemologia dos sentidos, uma compreensão de que estas

células de apreensão de signos funcionem combinadas, articuladas. É importante frisar

que não estou atrás de uma percepção integral, totalizante, com a qual me perderia na

armadilha determinista. Mas sim enfatizo a necessidade de conjugar os sentidos

humanos para ampliar a captação dos estímulos externos e facilitar a conexão sujeito-

objeto, tão necessária nos processos cognitivos. Com isso, o olhar jornalístico não se

estrutura apenas na visão, mas ganha também com as informações que os demais

sentidos recolhem do mundo.

Dessa forma, uma epistemologia dos sentidos prevê como se configuram os

saberes próprios do campo jornalístico, condicionados pela construção de uma visão

específica, mediados por todos os sentidos. Tal visão ímpar não pode estar associada

apenas ao sentido dos olhos, mas amparado pelos demais, na consolidação de uma

sensibilidade treinada para a apreensão do que pode ser noticiável. Todos os sentidos

estão presentes na lida cotidiana: ouvir bem e captar as palavras impronunciáveis são

fundamentais para o trabalho jornalístico; farejar os fatos, seguir os odores dos

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acontecimentos, também é necessário para o profissional; bem como apalpar a

consistência das informações e saborear (provar) as versões. Já se disse que um bom

jornalista deve contar as histórias com o corpo inteiro14...

Assim, é possível operar com conhecimentos de diversas origens,

complementares de início, redundantes em algumas vezes, mas nunca descartáveis. Luis

Carlos Restrepo chama isso de “cognição afetiva”, diálogo entre os diversos sentidos

humanos, alargando a razão, abrindo espaço para o coração e a sensibilidade. O

intelecto não se mantém sozinho, é preciso um resgate da emoção, do sentimento.

O interdito que separa a intelecção da afetividade parece ter sua origem em que, frente a uma percepção mediada pelo tato, gosto ou olfato, o Ocidente preferiu o conhecimento dos exteroreceptores, ou receptores à distância, como são a vista e o ouvido. Nossa cultura é uma cultura audiovisual. (2000: 32)

Entre os povos mais antigos, as referências a experiências sensoriais mediadas

pelo olfato e pelo tato são mais numerosas, e tidas como sinônimos de sabedoria,

perícia, aguda percepção. Hoje em dia, a percepção das pessoas é largamente visual, ou

audiovisual. É evidente que há neste hábito uma marca profunda deixada pelos meios de

comunicação, majoritariamente auditivos e visuais.

Mas a simples conexão dos sentidos não basta para o surgimento e consolidação

de um Jornalismo orgânico. É preciso que as extensões do homem estejam preparadas,

afinadas, sensíveis aos mais sutis estímulos. Denis Diderot (1979) mostra-nos tal

importância, ao dissertar sobre a condição de um cego de nascença na iminência de uma

cirurgia para a retirada de cataratas. Embora o filósofo, em alguns momentos, pareça

estar elogiando aqueles que não vêem em detrimento dos que enxergam, na verdade,

critica o olhar que não vê.

14 Para José Hamilton Ribeiro, uma das condições objetivas do repórter é “ter os sentidos aguçados”: “Melhor é confiar mesmo nos olhos, sem desprezar o que vem pela audição, talvez elaborando assim: o que se diz convém registrar como versão; o fato mesmo depende de mais observação. E olho aberto. Olho aberto para o mundo” (Dantas: 1998, 114).

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O nosso cego se dirige pelo ruído e pela voz tão seguramente que não duvido que um tal exercício tornasse os cegos muito destros e muito perigosos. (6)

Se alguma vez um filósofo cego e surdo de nascença fizer um homem à imitação do de Descartes, ouso assegurar-vos, senhora, que colocará a alma na ponta dos dedos; pois é dali que lhe vêm as principais sensações, e todos os conhecimentos. (10)

Diderot chama a atenção para uma educação dos sentidos. Assim, é preciso

educar o olhar, educar os ouvidos, sensibilizar as pontas dos dedos para tatear melhor...

Um sentido pode ajudar o outro a se aperfeiçoar, aumentando sua acuidade, sua

habilidade, mas não há dependência essencial de suas funções, embora sirvam-se

complementarmente.

Num trecho de A Caverna15, José Saramago descreve o trabalho de um velho

escultor sobre a argila. Seus dedos experientes tocam a matéria bruta com intensa

sensibilidade, como se vissem o barro de perto, como se nas suas pontas estivesse seu

cérebro. A passagem é ilustrativa disso que vejo como uma conjugação dos sentidos

para uma compreensão de algo maior.

Quando me remeto a um olhar clínico do Jornalismo, quero me referir a uma

maneira particular de receber o mundo, compreendê-lo e demandar ações de resposta.

Um olhar é um entendimento, e não apenas a captação de uma imagem pelos faróis

dos olhos. Este olhar não se resume a uma visão, mas também tem o suporte dos

demais sentidos humanos, já que esta profissão depende deles no seu dia-a-dia16. O

olhar jornalístico é um complexo sensorial que articula os cinco sentidos humanos

na busca de sentidos (significados) apreensíveis. Incompleto por natureza e

imperfeito por definição, este olhar enfrenta resistências e sombras para tocar a

superfície das cenas e das coisas, e interpretar nelas sentidos. O jornalista vive entre

15 São Paulo: Cia das Letras, 2000.

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seus semelhantes, deve relatar o seu tempo, os acontecimentos que tomam lugar nele,

por isso fica impossível eximir-se da apreensão da realidade pelos sentidos. A vida lhe

chega também pelos ouvidos, pelas narinas, no contato com a pele, sobre a língua.

Em alguns ramos do campo do trabalho, certos sentidos são mais prementes.

Para o fonoaudiólogo, o músico e o psicanalista, a escuta é fundamental, ponto de

partida de muitas ações17. Para o escultor, para o massagista e para o telegrafista, reside

no tato esta importância primeira. O astrônomo e o vigilante centram sua atenção na

visão, enquanto que o cozinheiro a combina com o paladar, o olfato e o tato. Mecânicos

e médicos equilibram-se nos sentidos dos olhos, dos ouvidos e das mãos. Jornalistas se

assemelham a esses profissionais, já que necessitam lançar mão de mais recursos de

leitura da realidade.

Ao dissertar sobre o processo comunicativo e os sentidos humanos, não posso

deixar de citar Marshall McLuhan (1969), para quem os meios de comunicação

funcionam como extensões do corpo humano. Assim, os veículos (TV, Rádio, etc.)

configuram um sistema nervoso prolongado, por meio do qual o homem capta, sente,

tem consciência de seu lugar e fato presentes.

Se a metáfora se mostra verdadeira, isto é, se o cidadão tem a sua noção de

atualidade por meio dos muitos meios (ou sentidos prolongados), nada mais natural que

isso se verifique também numa escala micro. Quer dizer, a apreensão do real (ou do que

chamamos disso) deve ser mediada não apenas pela visão, mas por todos os sentidos

humanos disponíveis. Daí a importância de uma epistemologia dos sentidos. Na prática

jornalística, ela precisa ser proposta e colocada em prática neste sentido. Ou melhor,

nestes sentidos.

16 Note este trecho de Wainer (1987:106): “Mas [Chateaubriand] tinha faro de repórter, sabia onde estavam os assuntos efetivamente importantes. (...) Graças a esse faro, eu pude olhar com meus próprios olhos o nascimento do Estado de Israel”. 17 Imagine, por exemplo, como seria hoje a história dos estudos da psique humana se Freud não tivesse se preocupado em ouvir suas pacientes histéricas...

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1.4 O olhar estabelece sujeitos e objetos

“A reportagem é sempre uma ação transitiva; e o repórter, o seu sujeito, o que vai atrás do objeto, transitando de um lugar para o outro.

É o contato imediato em primeiro grau com todos os sentidos: é o olhar, o paladar, o olfato, o tato e a audição de quem não pode ver,

gostar, cheirar, tocar e ouvir o acontecimento. O resto é vicário e virtual” Zuenir Ventura, jornalista brasileiro

Um olhar é o que preenche a distância entre um corpo e outro. Numa ponta, a da

origem, resta um sujeito. No outro extremo, fica o objeto deste olhar, coisa perscrutada,

cena recortada das demais seqüências do mundo. Na outra ponta, pode estar também

outro sujeito, mas se ele é o foco de um olhar, está objetivado, mirado.

O olhar é aquele processo que estabelece sujeitos e objetos, que dimensiona

relações. O olhar é o tato da distância, da longitude: ele toca tudo, até mesmo aquilo que

os dedos ainda não alcançam. Ele enquadra a realidade, numa tentativa de organizá-la,

de conservá-la num campo de visão próximo do entendimento. Ele cerca as cenas, as

situações, os corpos que ali habitam ou que, simplesmente, por lá passam. O lançamento

de um olhar é uma ação do sujeito, pois tem na sua medida de existência a

pressuposição de alguém que vê algo, que se coloca na posição de vidente, observador.

O olhar só pára quando encontra um objeto. Pára, mas não estaciona. Detém-se num

instante para reconhecimento superficial, escaneando o objeto, colhendo informações

para o processamento subjetivo. O olhar bate e volta. Recheado. Transformado.

Um corpo (vivo ou morto), uma cena (estática ou em movimento), uma

seqüência de movimentos (lenta ou ligeira), um acontecimento (relevante ou

desimportante) são objetos, coisas apreensíveis pelo olhar. A operação do olhar pode se

dar entre sujeitos que se entreolham, que se encontram. Mas o olhar é um vetor, com

ponto de partida e lugar de chegada. Não está livre de desvios ou de errâncias, pois faz

parte de um universo repleto de incertezas. O olhar é uma mira, uma flechada, um raio.

O olhar laça o mundo para o observador, e transforma, muitas vezes, sujeitos em objetos

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desta visão. A fotografia imita o olhar humano nesta mesma conversão, mas o faz com

maior ênfase: pois congela o momento, corporifica a cena, coisifica os sujeitos, tirando

a sua dimensão viva e consciente.

Michel Foucault (1980) já disse que o olhar clínico tem uma propriedade

paradoxal de ouvir uma linguagem no instante em que percebe um espetáculo. A

fotografia é um olhar com córneas mecânicas, preocupado com o alargamento do

presente, com a sua distensão.

Dois processos – um físico e outro químico – permitem o registro do instante, a

permanência histórica de um segundo. Primeiro, a luz ilumina os corpos e permite que

sejam refletidos numa superfície receptora. Depois, uma solução de nitrato de prata –

quimicamente sensível à incidência de luz – reage num suporte plástico (o filme)

gravando os corpos captados pela lente. É o desenvolvimento tecnológico que

possibilita a manutenção de um instante. E a história da fotografia, de alguma forma,

acaba perturbando a forma humana de ver18: ela “é capaz de ver tudo - a verdadeira

retina do cientista, segundo o astrônomo Jules Jansen –, ela é dotada de uma missão

documentária” (idem: 28, volume 2), ferramenta ideal para um inventário do planeta.

Assim, ao se deparar com retratos de Henri Cartier-Bresson, por exemplo, pode-

se dizer que é perceptível ali uma certa mania de ver, de “restabelecer um sentido que

escapa pela metade, de encontrar oportunamente na ocultação do olhar, numa figura

anônima e imprecisa, um retorno a sua própria inquietude” (idem: 16, volume 3). Ou

ainda que o fotojornalismo de Robert Capa é “uma maneira de viver e uma forma de

escritura, mais incisiva que um relato, uma instintiva ‘prolongação do espírito e do

coração’” (idem: 24, volume 3). A fotografia é a manutenção do ver, leitura do mundo.

18 Conforme Robert Delpne e Michel Frizot no volume 1, página 5, da coleção Histoire de Voir (1989)

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O homem é um ser que produz e se alimenta de sentidos. Ao longo de sua

existência, consome-se significando os fatos e ressignificando a si mesmo. Explicar os

acontecimentos, compreender o mundo, nomear as coisas, ler a vida, todas estas ações

são iniciativas de produção e preenchimento de sentidos. Um olhar é uma etapa do

processo de preenchimento e fixação de sentidos.

Por meio do movimento da leitura – considerada aqui uma ação ampla e

profunda disseminada nos afazeres humanos -, o olhar manifesta-se como uma iniciativa

de criação e multiplicação de sentidos. A leitura é a decodificação de signos e sua

atribuição de sentidos e significados nos contextos. Então, ler – tal como escrever,

pintar ou compor - é produzir sentidos.

O Jornalismo é uma atividade que, destacadamente, opera sobre o campo da

significação, pois lê o mundo, interpreta o que nele vê na tentativa de traduzir este

estado de coisas para outras pessoas. Para Maurice Mouillaud (1997:38), produzir

informação é destacar, trazer à tona, permitir uma visibilidade, colocar a ponto de se

perceber. Assim,

o pôr em visibilidade não constitui apenas um ser ou um fazer; não é simplesmente infinitivo, contém modalidades do poder e do dever. Indica um possível, um duplo sentido da capacidade e da autorização. A informação é o que é possível e o que é legítimo mostrar, mas também o que devemos saber, o que está marcado para ser percebido.

O jornalista coloca em evidência, dá visibilidade ao fato, mas antes disso, ele

precisa enxergá-lo, reconhecê-lo no oceano de informações descartáveis e relevantes. O

olhar jornalístico deve operar sobre esta extensão em busca do que pode mesmo vir à

tona, e permanecer na superfície19.

19 Uma passagem das memórias de Samuel Wainer (1987) sinaliza o peso dado ao olhar jornalístico no exercício profissional: “Para um jovem profissional, nada poderia haver de mais emocionante que ver a História acontecendo diante dos próprios olhos. (...) Circulei com olhos de jovem repórter por aquela Europa devastada pela guerra”. Alexandre GARCIA (1990) estende o raciocínio para outros sentidos humanos: “Só me vali do que vi, ouvi, senti, toquei e cheirei.”

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Este ler-o-mundo carrega consigo o peso da responsabilidade, o que acarreta

comprometimentos éticos20. A presença do olhar pressupõe uma subjetividade ativa, que

dispara o olhar para o exterior. No campo jornalístico, mais cara que a subjetividade é a

objetividade, esta faculdade de tornar tudo o que o olhar toca em coisa, objeto.

20 De forma alegórica, José Saramago (1995) mostra isso no seu Ensaio sobre a cegueira, quando coloca alguém que enxerga perfeitamente no meio de uma multidão de cegos. A mulher do oftalmologista – ironia! – convive com os acometidos pela “treva branca”. Só ela vê, mas ninguém sabe disso. Mesmo assim, ela guia sua vida por uma “responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”.

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CAPÍTULO 2 A objetividade

2.1 Uma idéia em cinco séculos “...isso que a você parece uma bacia de barbeiro,

para mim é o elmo de Manbrino, e a outro parecerá outra coisa...” Miguel de Cervantes - O engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha

gudos, os olhos seguem o vulto pela relva. Dom Quixote avista um cavaleiro

portando o almejado elmo de Manbrino, reluzindo a ouro. O fidalgo ordena

que se defenda e, num átimo, investe sobre o oponente que sequer esboça

reação. Quando o cavaleiro se levanta do chão não se mostra tão vultoso quanto antes: é

apenas o que sobrou de um simples barbeiro. Dom Quixote toma-lhe o elmo e segue seu

caminho, ignorando as objeções de Sancho Pança. Mais tarde, numa taverna – que o

fidalgo julga ser um castelo – Dom Quixote discute com o escudeiro e outros

acompanhantes. Eles teimam em dizer que o elmo não passa de uma bacia de barbeiro,

mas – sagaz – o fidalgo adverte que ali naquele castelo, tudo se dá de forma

encantatória e todos se deixam confundir por ilusões.

Se um pedaço retorcido de metal pode ser ao mesmo tempo um admirável

capacete e um recipiente ordinário, um conceito como o de objetividade pode se

sustentar nesta ambigüidade? Onde mora a objetividade quando as visões se

multiplicam, e com elas os objetos vistos?

O trecho da obra de Cervantes ilustra com clareza o problema que se tem diante

dos olhos: A objetividade é possível? Como ela se dá? Em que nível? Sob quais

condições? Quem a exerce? E no que ela se apóia para vigorar?

É evidente que o problema da objetividade não é recente, mas o que se percebe é

que nos últimos cinco séculos a sua discussão não só se alargou como também ganhou

profundidade no meio daqueles que se aventuram a enfrentá-la. Muito arbitrariamente,

A

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pode-se eleger como um marco desta temática a edição de O discurso do método, de

René Descartes, em 1637.

Este é um marco que se pode denominar como pré-histórico às discussões

recentes sobre a objetividade, já que a obra cartesiana, na verdade, lança bases para o

que se pode chamar de uma filosofia da consciência21. Numa alegoria, pode-se pensar

que uma seta disparada pelo filósofo francês vem atravessando os séculos, trazendo

amarrada a si uma longa linha de incertezas e indefinições. O fio, flexível por natureza,

resiste ao tempo, às mudanças do clima e à tentação dos homens em querer arrebentá-lo,

deixando a tradição nas brumas do esquecimento. Do marco estabelecido até o ponto de

onde se fala contemporaneamente, a flecha viaja cortando os séculos XVII, XVIII, XIX,

XX e XXI. E o desafio que proponho agora é que tomemos como guia a linha amarrada

à seta, numa imitação de Teseu. Com este alegórico fio de Ariadne nas mãos,

retrocedamos em busca de pistas de como foram assentados os conceitos ligados à

objetividade. O labirinto, os moinhos de vento e todo tipo de miragem fazem parte do

caminho.

21 Na medida em que fica clara a distinção entre a consciência pensante e a extensão, podemos falar de sujeito e objeto, e de suas relações resultantes.

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2.1.1 O conceito na filosofia

“Objetividade é a ilusão de que as observações podem ser feitas sem um observador” Heinz von Foerster, cientista austríaco

Em meio à busca de um conceito, resulta quase impossível ignorar as menções e

as significações que este adquire em dicionários e glossários já reconhecidos22.

Portanto, marcando passo no caminho já percorrido por Abbagnano (2000:723), o termo

“objeto” surge na filosofia lá pelo século XIII, nas mãos dos pensadores escolásticos. E

seu conceito se refere ao elemento de qualquer operação que leve em conta atividade ou

passividade. Nestas equações, o sujeito é sempre o agente, o elemento ativo, restando ao

objeto uma natureza passiva, terceira. Assim, na acepção generalizada, um objeto é uma

coisa, algo: “é o fim a que se tende, a coisa que se deseja, a qualidade ou a realidade

percebida, a imagem da fantasia, o significado expresso ou o conceito pensado. A

pessoa é o objeto de amor ou de ódio, de estima, de consideração ou de estudo”

(op.cit.). Dessa forma, até mesmo o eu, o sujeito, pode ser um objeto!

Nos processos cognitivos, o objeto do conhecimento pode ser uma idéia

(conforme quis Berkeley), pode ser um fenômeno (como para Kant) ou mesmo uma

representação (segundo frisou Schopenhauer). A tentativa e a intenção de conhecer, as

etapas do conhecimento colocam sujeitos e objetos frente a frente, ficando visíveis suas

condições de atividade ou passividade. Segundo se entende, a ação parece constituir o

limite de distinção de papéis entre sujeitos e objetos...

Ainda segundo Abbagnano, objetividade é o

caráter da consideração que procura ver o objeto como ele é, não levando em conta as preferências ou os interesses de quem o considera, mas apenas procedimentos intersubjetivos de averiguação e aferição. Neste significado, a Objetividade é um ideal de que a pesquisa científica se aproxima à medida que dispõe de técnicas convenientes (721).

22 Muito rapidamente, percorro aqui corredores trilhados por autores que consideram a distinção clara entre objetividade e subjetividade. É uma escolha metodológica. Há pensadores como Bachelard, Canguilhen e Lecour, para quem essa oposição é clivada e problematizada, alcançando novos contornos, mas eles não se enquadram na opção que fiz para esta tese.

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Lalande (1999:747) complementa dizendo que a objetividade é a característica

do que é objetivo, especialmente “atitude, disposição de espírito daquele que ‘vê as

coisas como elas são’, que não as deforma nem por estreiteza de espírito nem por

parcialidade”. Mas o que é objetivo?

O termo “objetivo” é usado em diversas acepções: refere-se àquilo que é

independente do sujeito, que é externo em relação à consciência ou pensamento e àquilo

que é válido para todos. É a partir de Kant que estes sentidos se configuram, já que é o

filósofo alemão quem determina que o objeto do conhecimento é real ou empiricamente

dado. Assim, algo objetivo é algo empiricamente real, isto é, existe enquanto

consciência comum e vale para todos os sujeitos pensantes, não só para um deles.

Então, em síntese, objetivo se opõe a subjetivo, está fora de uma consciência particular

e tem validade universal. O que significa dizer que não depende de preferências e

avaliações pessoais, juízos e gostos particulares. Objetivo para Kant é o próprio

fundamento do acordo dos espíritos, é aquilo que é em si no nosso espírito e em

qualquer outro.

Diante dos diversos sentidos para o termo “objetivo”, Lalande (op.cit: 753)

propõe que se utilize apenas o significado que aponta a oposição entre subjetivo e

objetivo nos termos de particularidade e universalidade. Isto é, objetivos são as idéias e

conceitos válidos para todos os sujeitos e não apenas para um. “Esta oposição é precisa,

central, conforme ao uso dos historiadores e cientistas; ela permite distinguir o subjetivo

do objetivo, na maior parte dos casos, por um critério experiencial incontestado”. Para o

autor, esta acepção do termo contém ainda – mesmo que em potência, virtualmente -

“tudo o que há de sólido nas outras distinções às quais estas palavras foram aplicadas”.

Essa validação universal é que pode garantir que uma coisa, um conceito ou uma

afirmação sejam objetivos e não subjetivos. Isto é, a objetividade nasce de um consenso

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de subjetividades. A objetividade vem do atestado comum de diversos pontos de vista, o

que permite pensar que o objetivo é uma homogeneização do coletivo de visões

particulares. Por trás disso está o entendimento de que a coisa, o conceito e/ou a

afirmação precisam ser verificados, comprovados por outros sujeitos, havendo um

embate de opiniões e de olhares, conforme afirmam Aranha & Martins (1986). São estas

autoras, aliás, que lembram que é fácil confundir os termos “particular” e “subjetivo”,

tomando-os como sinônimos. A despeito disso, elas esclarecem:

Quando dizemos particular ou geral, referimo-nos ao objeto que conhecemos e se o consideramos em parte ou na totalidade. Quando dizemos subjetivo ou objetivo, referimo-nos ao ponto de vista do sujeito que conhece e que, num caso, se acha centrado em si próprio e, em outro caso, está descentrado (97).

Com isso, temos também que a objetividade aspira à generalidade, a um senso

plural, coletivo, válido para todos. Seguindo esse parâmetro, como é mesmo possível

simultaneamente algo ser para uns um elmo dourado e para outros uma bacia de

barbeiro? Objetividade rima com ambigüidade, mas a primeira não suporta a segunda,

não sobrevive no mesmo ambiente.

Na atualidade, rompendo com a dicotomia objetividade-subjetividade, Richard

Rorty sinaliza com outra oposição: objetividade X solidariedade23. Segundo ele, há duas

formas de os indivíduos reflexivos darem sentidos às suas vidas: contribuindo para a sua

comunidade ou descrevendo-se a si mesmos como estando em relação imediata com a

realidade não-humana. Num lado, tem-se a solidariedade, noutro, a objetividade.

A tradição da cultura ocidental, centrada na noção de busca pela verdade, a tradição que corre desde os filósofos gregos e atravessa o Iluminismo, é o exemplo mais claro da tentativa de encontrar um sentido para a existência a partir do abandono da solidariedade em direção à objetividade. A idéia de verdade como algo que persuade por sua própria causa, não por ser boa para nós, ou para uma comunidade real ou imaginária, é o tema central dessa tradição. (1997:37-8)

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Segundo Rorty, desde Platão a concepção de investigação racional consiste

tornar visíveis as coisas a que não se tem acesso. Isso porque, para o grego, há um

descolamento entre aparência e realidade, conhecimento e opinião. Este postulado,

prossegue Rorty, evoluiu no Iluminismo sedimentando a adoção do cientista físico

newtoniano como modelo de intelectual. “Nós somos os herdeiros dessa tradição

objetivista, centrada na assunção de que nós precisamos nos manter fora de nossa

sociedade, o tempo que for necessário, para examina-la sob a luz de algo que a

transcenda” (38).

Para reforçar sua dicotomia, Rorty denomina de “realistas” os que querem

fundar a solidariedade na objetividade, pois “têm de construir a verdade como

correspondência à realidade”; e de “pragmáticos” os que desejam reduzir a objetividade

à solidariedade24, pois se apóiam numa atitude mais prática e utilitarista. Se a verdade

ou a racionalidade dispõem de uma natureza intrínseca, esta é uma questão ligada

intimamente com a descrição que o próprio homem faz dele, esclarece o autor. Se esta

descrição se faz a partir da relação com a natureza humana ou com um coletivo

particular de indivíduos. Na síntese do autor: se o que se deseja é objetividade ou

solidariedade.

Para os pragmatistas, a verdade não é uma correspondência com a realidade, mas

um sinal de aprovação para crenças bem justificadas. Os realistas não entendem este

divórcio (verdade-realidade), o que fez com que seus opositores intelectuais fossem

tachados de “relativistas”. Rorty vem ao seu próprio socorro e defende a tese de que o

pragmático só pode ser criticado por seu etnocentrismo e não por seu relativismo. O

principal argumento que move os pragmáticos contra os partidários do realismo

23 “A distinção entre o objetivo e o subjetivo foi designada paralelamente à distinção entre fato e valor, de modo que o valor objetivo soa tão vagamente mitológico quanto um cavalo alado” (cd. Rorty: 1997,56) 24 Rorty se insere nesta ala. É preciso que se tenha a clareza de que o autor renomeia de “pragmáticos” os “relativistas”. Para um exame mais detalhado da questão, ler o artigo Objetividade ou Solidariedade? Do

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objetivista é que “o modo tradicional ocidental metafísico-epistemológico de cristalizar

nossos hábitos simplesmente não está mais se efetivando, não está cumprindo sua

tarefa”.

Voltando-se para a construção do conhecimento humano, o filósofo norte-

americano denuncia o que considera alguns mal entendidos. O primeiro deles é a

identificação comum de que buscar uma verdade objetiva é usar a razão, e por isso, as

ciências naturais sejam consideradas modelos de racionalidade. Segundo: ter este

parâmetro de racionalidade requer que se pense em metodismo, em apego aos rigores

metodológicos. Com isso, tomam-se como sinônimos os termos “racional”, “objetivo”e

“científico”. Rorty reage a isso, explicando que os pragmáticos substituem questões

como “a objetividade dos valores” por questões práticas sobre a conveniência (ou não)

da conservação desses valores, por exemplo.

Ainda para os pragmáticos, a investigação – científica, inclusive - consiste na

“obtenção de uma mistura apropriada de concordância não-forçada com discordância

tolerante (onde o que conta como apropriado está determinado no interior dessa esfera

por tentativa e erro)” (63). Ligeiramente otimista, Richard Rorty acredita que, se

houvesse uma adesão aos pressupostos pragmatistas, muito possivelmente dissolveriam-

se as fronteiras entre as ciências, fazendo com que o cientista modificasse também o seu

papel e com que o meio científico fosse mais leal às comunidades. Neste sentido, a

objetividade seria deixada de lado e seria fundada uma ciência solidária.

Uma visão como essa estimula uma breve discussão do lugar da objetividade na

ciência...

primeiro tomo dos escritos filosóficos do autor publicado no Brasil: Objetivismo, relativismo e verdade (Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997). Kuhn, Foucault, Feyerabend podem também ser considerados “relativistas”.

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2.1.2 O conceito na ciência “Duas idéias foram freqüentemente utilizadas para tornar

intelectualmente respeitável a expansão ocidental: a idéia de Razão e a idéia de Objetividade.

Dizer de um método ou de um ponto de vista que é objetivo (objetivamente verdadeiro), significa pretender que seja válido

independentemente das expectativas, das idéias, das atitudes e das esperanças humanas.”

Paul Feyerabend – Adeus à razão

Historicamente, são contemporâneas as raízes que instituíram a razão, o sujeito e

o método científico. Elas datam do século XVII, principalmente a partir de Descartes,

Bacon, Galileu e Newton, e desde a Antigüidade a metodologia da busca pelo

conhecimento não sofria tantas e tão profundas modificações. Com estes autores, a

razão recebe contornos bem definidos, o fazer científico adota regras para a sua

execução, o homem – sujeito no universo – coloca-se no centro da criação, a

matemática passa a ser a linguagem cujos caracteres preenchem o livro da natureza e a

física assume, definitivamente, o matriarcado das ciências.

A objetividade, a imparcialidade, o rigor na análise dos elementos, a necessidade

da comprovação das hipóteses, a compreensão global e profunda dos fenômenos

tornam-se ferramentas preciosas e indescartáveis nas mãos e mentes habilidosas de

quem faz ciência.

De forma positiva25 (e por que não dizer impositiva), o conhecimento se alastra,

chegando a todas as manifestações humanas e a (quase) todos os confins geográficos.

De maneira geral, a humanidade experimenta expressivos e incontestáveis avanços

tecnológicos, o que redunda numa melhora da qualidade de vida, nas redefinições das

percepções sobre o tempo e sobre o espaço, num alargamento da vida média humana e

em mais conforto pessoal. Os avanços tecnológicos propiciam também maior alcance

nos resultados bélicos, mais vulnerabilidade humana frente à máquina e não

25 Na acepção do positivismo.

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necessariamente numa divisão equânime das conquistas científicas entre as diferentes

populações no planeta.

Durante séculos, certezas foram construídas sobre os alicerces do conhecimento

acumulado. Estruturas poderosas se edificaram sobre os saberes engendrados por

homens e mulheres nas mais diferentes latitudes. Mas de uns tempos para cá, vêm sendo

percebidos alguns sintomas de que algo não corria totalmente bem: embora a ciência se

desenvolvesse, muitos dos seus frutos não eram revertidos para toda a humanidade,

destino daqueles esforços. Mais ainda: alguns dos resultados colhidos não traziam

apenas benefícios à vida humana. O projeto iluminista parecia falido...

Aranha & Martins afirmam que as ciências naturais “aspiram à objetividade, que

consiste na descentração do eu no processo de conhecer: na capacidade de lançar

hipóteses verificáveis por todos, fornecendo instrumentos de controle; e na descentração

das emoções e da própria subjetividade do cientista” (1986: 187). Mas as próprias

autoras se flagram, questionando: O que acontece quando o sujeito do conhecimento é

da mesma natureza do objeto conhecido? (Como estudar a felicidade, o medo, as

emoções humanas se são humanos os pesquisadores? De que forma pode-se colocar os

cientistas mergulhados nos ambientes que configuram seus objetos de estudo?) Neste

caso, o propalado descentramento do eu pode não vir a acontecer, o que compromete

algum pilar importante da equação racionalista.

Entretanto, as fraturas na concepção da ciência e do conhecimento se dão de

outras formas também. Como, por exemplo, quando os modelos científicos dados como

totalizantes e universais não dão conta de certos fenômenos26 ou quando as regras

constituintes do modelo vigente são contraditas27. Num primeiro momento, estes

26 A insuficiência da mecânica de Newton abriu brecha para o surgimento da teoria da relatividade e da física quântica... 27 É o caso do princípio da incerteza de Heisenberg que se contrapõe à exatidão e mesmo do princípio da complementaridade de Bohr, que torna mais ambígua ainda a teoria quântica.

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questionamentos se mostram mais como trincas, mas depois adquirem aspecto de

fissuras que podem comprometer a estrutura geral do edifício. Acaba-se configurando

um ambiente de crise de paradigmas, para se usar uma expressão kuhniana.

Nestas condições, Hilton Japiassú (1996) faz duros ataques ao momento atual da

ciência, onde enxerga uma crise da razão e do saber objetivo. Em termos concretos,

propõe que se renuncie à herança iluminista de absolutização da razão para que se possa

vislumbrar a possibilidade de uma ciência universal. Tal renúncia implica na negação

do cientificismo e do reducionismo, num comportamento crítico e autocrítico da

racionalidade científica e no estabelecimento de um diálogo com outras formas de saber

e outros valores culturais. A tomada destas atitudes faz repensar conceitos como o de

objetividade e força uma mudança de postura do próprio cientista frente ao seu ofício.

Desde Descartes e Kant, passando por numerosos outros filósofos, sempre acreditamos que o ‘mundo interior’ do observador era inteiramente independente da realidade física. Assim sendo, para melhor se abordar o segundo, era preciso submeter o primeiro a um controle, a uma neutralização radical. Tal ‘realismo científico’, excluindo qualquer possibilidade de interferências psíquicas, místicas ou irracionais, dominou o pensamento físico até bem pouco tempo. Nas últimas décadas, muitos cientistas vêm afirmando que um elemento fundamental novo deve ser levado em conta nas relações do sujeito com o objeto: a consciência do observador. O dualismo cartesiano é recusado. (12)

O rechaço, segundo Japiassú, estender-se-ia para toda a ciência e a técnica por

aqueles que nelas perderam a fé. Um certo desencantamento da razão desperta o

irracionalismo que se revela na forma de movimento anticiência e de relativismo

epistemológico, completa o pensador brasileiro. A saída: uma razão aberta.

Mais flexível diante da crise de paradigmas científicos, o ganhador do prêmio

Nobel de Química em 1977, Ilya Prigogine, mostra-se menos cético: “O futuro não é

dado. Vivemos o fim das certezas. Será isto uma derrota do espírito humano? Estou

convencido do contrário” (1996:193). Para ele, as explicações científicas estão muito

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localizadas em suas épocas, por isso, encara com naturalidade o determinismo científico

de certas eras. Atualmente, isso já não é mais aceitável, porém a ciência mantém uma

posição estratégica na construção de uma nova coerência humana.

Segundo Prigogine, a ciência é um empreendimento coletivo, e a solução de um

problema científico deve satisfazer exigências e critérios rigorosos para ser aceito pela

comunidade pesquisadora e mesmo pelas sociedades. O rigor e a seriedade não

eliminam a criatividade, frisa o químico russo, apenas desafiam o seu exercício na busca

humana pelo conhecimento. A ciência se preocupa com regras explicativas do

funcionamento do universo, apesar delas não governarem o mundo, afirma. Tampouco

ele é regido pelo acaso.

O acaso puro é tanto uma negação da realidade e de nossa exigência de compreender o mundo quanto o determinismo o é. O que procuramos construir é um caminho estreito entre essas duas concepções que levam igualmente à alienação, a de um mundo regido por leis que não deixam nenhum lugar para a novidade, e a de um mundo absurdo, acausal, onde nada pode ser previsto nem descrito em termos gerais. (197-8)

A posição do químico não resolve a questão, mas pontua uma natureza e um

destino bem distintos para a ciência.

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2.1.3 Como o Jornalismo emprega a idéia

“Até onde o repórter tem de ser objetivo perante a fonte de informação? Repeti,

não sei quantas centenas de vezes, que a objetividade jornalística é uma balela

mas aproximar-se dela é dever do profissional” Caio Túlio Costa - O Relógio de Pascal

Atividade profissional que se infiltra nas demais esferas humanas, o Jornalismo

tem como um dos seus pilares de sustentação o dogma da objetividade. Estabelecido

como um padrão técnico de conduta ou como imperativo ético, a objetividade se revela

como um dos nós constituintes da profissão, sendo, inclusive, questionada. (A exemplo

do que acontece com outros aspectos).

De maneira geral, no Jornalismo, o conceito de objetividade não destoa dos

sentidos usados em outras áreas. São apenas as condições de articulação entre

jornalistas e fatos, cenas e personagens que vão determinar uma constituição exclusiva

de objetividade, a jornalística. Para os profissionais da informação, ser objetivo é

informar sem emoções, é mostrar-se desapaixonado no relato dos fatos, é empregar

citações diretas; jornalisticamente, ser objetivo é citar fontes contraditórias, buscar a

pluralidade e tentar selecionar palavras neutras para descrever o contexto. Portanto,

requer distanciamento das pessoas, das circunstâncias que compõem o fato, das versões

a ele ligadas. Requer não envolvimento com as partes, proximidade e engajamento.

Pressupõe equilíbrio, dispensa a parcialidade no relato, espera o mínimo contato

possível com os objetos do relato. Desta forma, devem ficar muito bem nítidas e

estabelecidas as fronteiras que separam comentários e opiniões dos relatos informativos,

pretendidos com isenção de qualquer traço de subjetividade.

O discurso que dá base e legitimidade a este padrão de conduta muito se

aproxima do campo científico na área da saúde: o jornalista não pode se contaminar

com as versões que dão conta do fato. Deve descrevê-lo, assepticamente, de forma a não

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se contagiar com os humores latentes no acontecimento. O contágio, a contaminação

podem influenciar no estado geral do ambiente, perturbando sua ordem, alterando a

ordem comum dos acontecimentos. A lógica, grosso modo, é essa.

Seguindo esta orientação, Michael Kunczik (1997:230) completa que esta

objetividade faz com que os textos jornalísticos objetivos possam “ser identificados por

suas qualidades de precisão, interesse, verificação, veracidade e neutralidade”. É de se

perceber que os critérios se assemelham muito aos usados no mundo científico,

principalmente quanto à condição de verificabilidade, de precisão e de veracidade. Isso

deixa evidente um parentesco, mesmo que distante, mas absolutamente consciente entre

as duas áreas. O Jornalismo quer traduzir o mundo e seus fatos às pessoas, e para ser

crível é necessário que corresponda às expectativas de fidelidade narrativa que o público

nutre por ele. Como a mulher de César, ao Jornalismo não basta ser honesto apenas (ou

fiel, verdadeiro), mas é preciso ainda que pareça, mostre-se da mesma forma...

Embora nos aprofundemos nestas raízes posteriormente, uma hipótese desta

obrigatoriedade (ser objetivo) encontra gênese no que Walter Lippman escreveu em seu

clássico Public Opinion, em 1922: a atividade jornalística atingiu um patamar em que é

absolutamente fundamental o testemunho objetivo. Por trás deste imperativo, está a

idéia de que, se apresentada de maneira isenta e desapaixonada, a informação motiva o

público a formar suas próprias opiniões. Mas isso é mesmo possível? Redatores,

repórteres e editores conseguem dar relatos objetivos dos fatos? Existem palavras

neutras que podem ser empregadas em certos contextos a fim de homogeneizar versões?

Consegue-se oferecer coberturas totalmente isentas para o público? Os questionamentos

são muitos, cada vez mais freqüentes e ruidosos28.

28 Kunczik (op.cit.) cita uma pesquisa feita na então Alemanha Ocidental que demonstra que os jornalistas que trabalham nas redações ou nas ruas afirmam ser impossíveis reportagens objetivas. Como contraponto, chefes de redação enfatizam a necessidade da objetividade. “Pode-se supor que quanto maior for a distância entre uma pessoa e seu trabalho jornalístico diário, maior será sua tendência a se iludir quanto à possibilidade de uma reportagem objetiva”, conclui o autor. O teórico alemão menciona outra pesquisa

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Nas redações brasileiras, o conceito não só é discutido, como também

normatizado. Nos quatro principais manuais de estilo, as gramáticas jornalísticas, a

objetividade é mencionada, definida e tem seus tentáculos medidos. Patrícia Patrício

(2002) fez um levantamento das ocorrências do conceito nestes manuais e observou as

contradições irreconciliáveis neles contidas. Sem contar a divergência entre os

entendimentos dos diversos grupos de comunicação para o conceito. Em O Globo, por

exemplo, o relato deve ser “absolutamente isento” mesmo o jornal reconhecendo que a

isenção não pode ser absoluta; no manual de O Estado de S.Paulo, entende-se que a

interpretação passa pela subjetividade, mas apesar disso, o jornalista deve ter um

“respeito religioso à verdade”; nos veículos da Editora Abril, é pedido o relato de uma

verdade estetizada e o estilo deve ter como marca o “bom senso”, o “bom gosto” (mais

objetivo impossível!); a Folha de S.Paulo prega o apartidarismo, a neutralidade, a

objetividade e o pluralismo, naquilo que convencionou chamar de “ouvir o outro lado”.

Observadas as distâncias de lado a lado, fica a impressão de intensa nebulosidade

quanto ao conceito, a sua aplicabilidade e a sua eficácia. Lidos em conjunto, os manuais

mais confundem que esclarecem.

No Jornalismo, a objetividade se apresenta não só como padrão técnico de

conduta e como imperativo ético, mas também enquanto mistificação. Neste caso, pelas

mãos e línguas dos que desacreditam na viabilidade de uma objetividade plena no

exercício da profissão. Elcias Lustosa (1996) é um dos exemplos dessa vertente. Sua

crítica é voltada à imparcialidade, que julga impossível de ser obtida na medida em que

o Jornalismo é uma atividade humana, que seleciona fatos, relata acontecimentos de

uma dada perspectiva. Assim, embora se pregue a isenção, ela não se verifica na prática,

o que provoca um descolamento entre discurso profissional e ação cotidiana.

onde apenas um terço dos trainees e redatores de jornais consideravam que conseguiam ter em “seu trabalho diário informações objetivas e isentas de valores” (228)

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Apesar do propósito e do compromisso de alguns jornalistas, a imparcialidade e a impessoalidade jamais ocorreram efetivamente no Jornalismo. (...) A notícia é pois uma versão de um fenômeno social, não a tradução objetiva, imparcial e descomprometida de um fato. (21)

Com isso, a imparcialidade – viga de sustentação da objetividade – não passaria

de retórica, castelo de areia erodido diariamente nas redações de todo o mundo. Tal

discurso serviria para preservar os interesses e a sobrevivência dos próprios veículos de

comunicação, segundo Lustosa.

O debate sobre a viabilidade ou não da objetividade jornalística é fundamental

para o percurso deste trabalho. No entanto, antes disso, é preciso entender sob quais

circunstâncias histórico-sociais a objetividade foi introjetada como elemento de base na

constituição do Jornalismo e do discurso que lhe dá sustentação.

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2.2 Pequena história da objetividade no Jornalismo

“A questão da objetividade nasce, portanto, com o próprio Jornalismo” José Marques de Melo – Apontamentos sobre temas de comunicação

A objetividade jornalística é uma instituição originariamente norte-americana. É

nos Estados Unidos, no interior das redações dos principais veículos, que surge o

conceito no final do século XIX. Segundo alguns relatos, a prerrogativa nasce como

contraposição a uma vertente que vinha crescendo demasiadamente rápido e ameaçando

o projeto jornalístico. Assim, a objetividade ganha corpo no Jornalismo para afastar o

noticiário sensacionalista e um imperdoável amadorismo. Os cronistas da época

desenham a objetividade como uma medida extrema, um estabelecimento de um padrão

técnico que pudesse salvar o Jornalismo como indústria, instituição e negócio.

Influente e expansivo, o Jornalismo norte-americano conseguiu exportar o

conceito, que chegou ao Brasil e às redações mais remotas do globo. Entretanto, esta

construção simbólica não se fez de uma hora para outra. Conforme lembra Amaral

(1996), as primeiras discussões sobre imparcialidade e equilíbrio como elementos de

uma ética profissional no Jornalismo começam em meados do século XIX, embora o

termo só venha a ser empregado depois da 1ª Guerra Mundial. Para o autor, quatro

acontecimentos contribuíram inevitavelmente para a adoção definitiva do princípio da

objetividade no meio jornalístico: o advento das agências de notícias – o que exigiu

padronização de estilos narrativos -, o desenvolvimento industrial – que auxiliou

tecnologicamente o desenvolvimento do Jornalismo como métier – as duas guerras

mundiais – que mudaram o panorama do mundo e a configuração do seu entendimento

– e o surgimento da publicidade e das relações públicas – o que provocou a necessidade

de definir muito claramente o que era jornalístico e o que deixava de sê-lo.

Devido à multiplicidade de seus clientes, as agências noticiosas precisaram

buscar maior grau de imparcialidade no serviço prestado, até mesmo para não ferir

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suscetibilidades. Esta preocupação é tão enfatizada na Associated Press que há quem

atribua à agência a criação do conceito de objetividade na área. Depois da ascensão dos

nazistas na Alemanha, os Estados Unidos chegam a receber muitos artistas, esportistas,

cientistas e intelectuais. Entre outros lugares, as universidades fervilham de discussão,

ao passo que muitas áreas se desenvolvem impulsionadas pelos estudos e pesquisas. É o

caso das ciências da comunicação, onde o termo objetividade passa a ser usado.

No final da década de 40, a importação da fórmula textual do lead e da função

do copy-desk faz com que a atividade jornalística se altere completamente nas redações.

Além disso, as reformulações ajudam a implantar o conceito no país.

Acontece, porém, que essa grande mudança no Jornalismo brasileiro não foi muito além da valorização da notícia e de sua construção. Ficou sobretudo na forma. O conteúdo continuou o mesmo, sem a mostra de um esforço maior de isenção, imparcialidade, eqüidade, como se fazia notar, bem ou mal, a imprensa americana. (Amaral: 1996, 75)

A questão da objetividade só viria a ser realmente discutida, muito mais tarde,

inclusive por um dos responsáveis pelas grandes modificações na imprensa em meados

do século passado, o jornalista carioca Alberto Dines, na seção “Jornal dos Jornais”, que

fazia crítica de mídia na Folha de S.Paulo.

Se surgiu como um importante contraponto ao sensacionalismo e a um

desconfortável subjetivismo dos empresários da mídia de então, a objetividade tem sua

origem estreitamente ligada à própria definição da atividade de informar29. Os primeiros

esforços dos jornalistas em definir suas ocupações, buscando assim uma identidade

comum, datam das últimas duas décadas do século XIX. Foi por esta época que se

começou a dizer que jornalistas tinham uma vocação independente, o que ajudaria a

plantar a semente da futura objetividade.

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Schudson (1978) encaixa entre 1920 e 1930 o surgimento da noção até hoje

vigente de objetividade jornalística. Naquela época, segundo o autor, repórteres e

editores perceberam como havia elementos subjetivos no trabalho de outros

profissionais da comunicação, mais especificamente de relações públicas e de

propaganda. Era necessário demarcar território. Esta determinação histórica é

questionável, mas sabe-se que o processo de cristalização da objetividade como padrão

técnico e como imperativo ético da profissão durou três ou quatro décadas. O mundo

passou por um segundo conflito bélico de proporções mundiais, assistiu a um

realinhamento de forças militares e tecnológicas e suspirou intranqüilo em meio a uma

polaridade ideológica, econômica e militar. A Guerra Fria fez cerrar os dentes de lado a

lado do planeta, e a objetividade foi se infiltrando nas redações, estabelecendo-se cada

vez mais no comportamento e na formação dos jornalistas.

Ainda de acordo com Schudson (op.cit.), o governo norte-americano foi

aumentando cada vez mais a sua intervenção no processo de produção das notícias,

passando a se preocupar efetivamente com o gerenciamento das informações ao longo

do século. Isso fez com que começasse a surgir uma reação silenciosa nas redações:

redatores, editores e repórteres ficaram incomodados e ressentidos com a política de

contra-informação e sigilo do governo. A objetividade passou a ser desafiada, explica

Chad Raphael30, já que era identificada com a aquiescência aos ditames dos relações

públicas militares, com excessiva submissão aos segredos do governo e com os abusos

do governo no final dos anos 60 e começo dos 7031.

29 Bethânia Mariani (1998) detém-se neste aspecto para, inclusive, questionar conceitos como os de “verdade” e “informação”, tão sedimentados no Jornalismo. 30 Professor de comunicação da Santa Clara University, na Califórnia. A citação se refere ao material usado nos cursos de Raphael, acessados em 3 de março de 2003, e disponíveis no endereço http://codesign.scu.edu/chad/147/objectivity1.html 31 Os protestos contra a Guerra do Vietnã, o questionamento popular da política internacional norte-americana e a derrapada de Richard Nixon atuam como catalisadores nesta reação.

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Este questionamento da objetividade jornalística, pelo menos sob a visão do

mercado norte-americano (o que nos motiva a pensar que possa ser extensivo em níveis

globais, dada a sua influência), é justificado por dois fatores, de acordo com Raphael:

Primeiro, os jornalistas estariam respondendo à intervenção governamental e ao seu

desejo de gerenciamento das informações; Segundo, surgem outros formatos

jornalísticos – como o Jornalismo investigativo, o new journalism e um crescimento da

interpretação nas reportagens - , que abrem novas sendas na selva social. O autor revela

uma visão bem política do processo: não basta que se analise a rejeição parcial da

objetividade pelos jornalistas desde 1960 sob o viés da comunidade profissional. É

preciso ainda se compreender este fenômeno na sua interface com os desafios de uma

maior política de entendimento global.

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2.3 Resguardando a objetividade "Ser objetivo é expulsar as coisas da própria cabeça

e devolvê-las ao mundo de onde vieram. Foi esse o exemplo de Copérnico e tantos outros (...) Não existe

objetividade dada. O erro está em procurá-la na sinceridade ou no esforço quando ela só pode estar

em um método. (...) As coisas ou já são objetivas ou ainda vão ser” Otávio Frias Filho - Antimanual de Jornalismo

Folha de S.Paulo, 18 de novembro de 1984

O astuto Polonius coçou o queixo, intrigado. Em seguida, diante da majestade na

sala do trono, solenizou: “É loucura, mas revela método!” Furtiva, a cena de Hamlet

aponta para o lugar da racionalização já naquela época: até mesmo a insanidade tem lá

suas regras de funcionamento, seus processos internos. O Jornalismo – que em muitos

de seus momentos mais se aparenta à desrazão (basta acompanhar o fechamento de um

jornal) – também se apóia em métodos, dispõe de suas cartilhas. A objetividade é um

capítulo importante, convocado de forma recorrente na afirmação da atividade

jornalística. Sua escritura seguiu diversas caligrafias. A seguir, algumas delas.

2.3.1 Imperativo ético da atividade

“Uma realidade completamente independente do espírito que a concebe, a vê ou a sente é uma impossibilidade.

Um mundo tão exterior, se chegasse a existir, seria para nós sempre inacessível. Mas aquilo a que chamamos a realidade objetiva é, em última análise,

o que é comum a vários seres pensantes, e poderia ser comum a todos” Henri Poincaré - O valor da ciência

Para além de um padrão na conduta profissional, a objetividade se mostra no

Jornalismo como um imperativo ético, um chamamento deontológico. Visto dessa

maneira, o conceito funciona como princípio, valor que orienta a postura dos jornalistas

diante dos desafios cotidianos de seu ofício. Para atuar corretamente na área, é preciso

então se fazer conduzir com correção e objetividade, buscando relatar os fatos de

maneira desapaixonada, medindo a proximidade com as fontes e com o contexto

retratado; é necessário calibrar o tom dos discursos, equilibrar a presença e ênfase das

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diversas versões, abstendo-se de tomar partido. Assim, sob esta orientação, ser objetivo

é adequado e próprio do jornalista; ajuda a definir a categoria profissional, garante a

qualidade do serviço prestado, assegura o profissionalismo no exercício da

comunicação.

Para Josenildo Guerra (1998), a objetividade se coloca como o imperativo ético

fundante do Jornalismo. Isto porque o que se espera do Jornalismo é que relate os

acontecimentos da maneira mais fiel ao que se deram. A objetividade seria a condição

para que o Jornalismo viesse a cumprir o que se destina, já que se entende objetividade

como correspondência entre fato e relato. Segundo o autor, a objetividade funciona

como propriedade que permite ao discurso (nas suas mais diversas formas) refletir a

realidade. O que provoca uma conclusão, entre outras: a objetividade é um dos critérios

de qualidade mais importantes na prática jornalística. A sua ausência permite que se

critique a conduta e a competência dos profissionais do ramo. O autor passa por três

perspectivas diferentes de encarar o Jornalismo e a notícia, tendo em vista a questão da

objetividade: realismo – onde a notícia reflete a realidade dada e a objetividade é

possível -, construcionismo – onde a notícia não pode refletir a realidade, já que esta é

uma produção social e não existe independente de um sujeito histórico – e subjetivismo

– onde a realidade é pensada a partir da interpretação que os indivíduos têm dela e só

existe a partir desta interpretação.

Diante do que se apresenta, Guerra (op.cit.) opta pela visão realista. Para ele,

“por maiores limitações que apresente do ponto de vista de sua sustentação teórica, [o

realismo] teve o mérito de reconhecer essa nova experiência que a sociedade foi capaz

de produzir e desenvolver. Essa experiência tem de ser assumida” (135). Ainda

seguindo os passos do autor, a objetividade “pode ser reavaliada, revista, relativizada,

reconsiderada, mas não pode ser simplesmente descartada” (136). A fundamentação

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realista até pode ser negada, mas isso não implica que aconteça o mesmo com o

conceito de objetividade, defende o autor. Rechaçar esta condição é dinamitar uma das

bases que sustentam o Jornalismo com o conhecemos, e isso não é admitido por Guerra.

É preciso que se entenda o ponto de vista do autor. Não é a objetividade que

legitima o discurso da imprensa, da mídia, mas o vínculo que se cria entre o Jornalismo

e o público a partir do imperativo ético fundante. Desta forma, a objetividade é apenas

uma tentativa de justificar o vínculo entre quem faz Jornalismo e quem consome.

(...) quando se toma a objetividade como um pressuposto possível, a objetividade intencionada pelo jornalista se converte na sua contrapartida para a realização do imperativo ético fundante de sua prática profissional: tese aqui defendida. (173)

É relevante, no entanto, perceber que a objetividade é uma condição alcançável

graças a um ato subjetivo, pois, conforme aponta, a objetividade se dá mediante o

cumprimento de três prescrições metodológicas: a intenção do repórter, o rigor na

realização dos procedimentos usados na apreensão dos fatos e a redação da notícia.

Note-se, então, que a objetividade depende de uma decisão de sujeito, de um ato

subjetivo, nasce na subjetividade. “Primeiramente, para se conseguir a objetividade há,

antes de tudo, a intenção de se querer atingi-la” (op.cit.:33).

A objetividade se configura como “imperativo ético fundante” do Jornalismo, e

é nesta esfera que se marca a distinção entre o Jornalismo e outros gêneros discursivos,

como a ficção (cf. p.168). Para o autor, ser objetivo é o que reveste de jornalístico textos

e falas, produtos e representações. O Jornalismo se define por uma ética e não por uma

técnica.

Neste sentido, neutralidade e imparcialidade não são sinônimos de objetividade,

embora sejam conceitos estreitamente ligados. Ao contrário da última, as duas primeiras

não são características da notícia propriamente dita. A neutralidade seria uma condição

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experimentável pelo profissional ou pela empresa jornalística. E depois de saciada esta

condição, aí sim, ambos podem mostrar-se imparciais no relato do fato, segundo Guerra.

Negar simplesmente esses conceitos, como fazem subjetivistas e construcionistas, significa abrir mão de um referencial ético a partir do que a imprensa deve se pautar, para que contemple o pluralismo das sociedades democráticas, por exemplo. Na medida que esses conceitos passam a ser considerados, num âmbito específico de relações e situações nas quais eles efetivamente fazem sentido, tornam-se importantes critérios de avaliação do trabalho jornalístico e de orientação para os próprios profissionais.” (op.cit.:169)

A distinção é importante para esta pesquisa e para o percurso que se está

fazendo, mesmo que seja questionado o apego a um conceito que não encontra

sustentação total na vida prática. Como um repórter pode ser totalmente objetivo no

relato de uma guerra, por exemplo, quando é acometido por medos? Como sustentar

esta postura quando a proximidade do fato não nos impede de nos contaminarmos por

ele?

Na academia ou nas redações, a objetividade enquanto imperativo ético do

Jornalismo, volta e meia, é reafirmado.

Em 2001, mal fazia um mês dos atentados ao World Trade Center nos Estados

Unidos, uma influente voz do Jornalismo norte-americano se levantava para pedir o

retorno da objetividade nos jornais e emissoras de televisão do país. Walther Cronkite,

um dos mais famosos e duradouros âncoras da TV norte-americana, afirmou em

entrevista à Folha de S.Paulo que era preciso que a mídia recuperasse a objetividade32:

"Os que se dizem patriotas devem entender que esse sentimento não implica

necessariamente elogiar todas as decisões oficiais. Também pode ser expresso com

32 A entrevista foi concedida a Marcio Aith e publicada na edição dominical de 7 de outubro de 2001.

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divergência", queixava-se o veterano jornalista de 86 anos33. De acordo com Cronkite,

logo após o ocorrido, a mídia local patrocinou um “show aberto de patriotismo,

compreensível no início”: “Eu mesmo não contive minha emoção ao relatar a morte do

presidente Kennedy, em 1963”, lembrou. Entretanto, após a comoção geral, era

fundamental que a “frieza e a independência” voltassem a freqüentar as redações, frisou.

A postura de Cronkite revela o que o conceito de objetividade traz no seu bojo:

distanciamento, frieza, independência, ausência de emoções ou equilíbrio na expressão

dessas paixões. É possível dominar o emocional totalmente? Um jornalista consegue se

manter frio e distante frente às cenas mais brutais, aos personagens mais apaixonantes?

Talvez esta postura se coloque mais como uma meta, um desejo, um ideal de postura. E

a objetividade, neste cenário, converta-se mais em mito do que em realidade.

33 Curioso é que Cronkite soube do ataque às torres gêmeas quando voltava ao hotel, vindo de uma palestra sobre objetividade jornalística que fizera em Florença, na Itália.

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2.3.2 Uma meta para o mito “Objectivity is a method of understanding”

Thomas Nagel – A view from nowhere

Se aparenta um mito ou pilastra de sustentação do Jornalismo, a objetividade

parece estar ligada intimamente à própria definição da atividade jornalística. A reflexão

sobre a possibilidade de produzir relatos fiéis aos acontecimentos diz diretamente ao

cerne do que se espera do Jornalismo no contexto social. A separação formal entre o ato

de reportar e o de opinar trata efetivamente de quão este compromisso de fidelidade

pode ser cumprido, diariamente, independente de geografia e de condições externas.

Logo após a Revolução Francesa, sedimenta-se na sociedade francesa um

conjunto de práticas jornalísticas que vão disseminar muito mais opiniões e comentários

do que propriamente crônicas dos acontecimentos. É uma imprensa mais política,

entusiasta, engajada, diferente da que se propaga na Inglaterra, mais apegada aos

relatos. Lá, os profissionais da área começam a focar seus interesses na difusão de

notícias, precárias, é verdade, e muito diferentes das que concebemos hoje. Mas estes

esforços vão redundar, décadas mais tarde, na consolidação de um conceito de

objetividade. Noção que sofre hoje constantes questionamentos na sua base de

fundamentação e mesmo na sua efetividade prática.

Marques de Melo (1985) chega a dizer que nos dias atuais a objetividade se

coloca muito mais numa dimensão mítica, muito embora seja uma questão que

acompanhe o Jornalismo desde a sua gênese. A raiz deste debate contemporâneo estaria

numa “doutrina de responsabilidade” pregada pelo Jornalismo norte-americano.

Impôs-se o sensacionalismo como diretriz norteadora do funcionamento dos grandes jornais, que competiam entre si na conquista dos leitores. Os princípios éticos mais elementares, prescrevendo a conduta dos cidadãos numa sociedade puritana como a norte-americana, foram deixados de lado. Ocorreu então que, do ponto de vista jornalístico, a fidedignidade dos fatos deixou de ser o referencial para a difusão das notícias.(11)

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A doutrina surge como reação das empresas na defesa de uma especificidade de

serviço prestado e mesmo de um mercado a ser explorado. Mais do que isso, o culto da

objetividade, conforme o autor, vai favorecer o processo de racionalização da atividade

jornalística que está mergulhada numa fase industrial. É preciso instituir uma rotina

diária que coadune as diversas etapas do Jornalismo: apuração dos fatos, checagem,

redação dos textos, edição do material, impressão e reprodução massiva e distribuição.

As jornadas de trabalho precisam ser mais bem divididas e gerenciadas, o fechamento

das edições dá uma nova dimensão no cotidiano das incipientes e ainda desorganizadas

redações. Ferramentas, equipamentos e máquinas evoluem e ditam novo ritmo a

redatores e repórteres. Tanto que é preciso que se normatize os diversos estilos de

redação buscando mais clareza, um texto menos prolixo, de maior alcance de leitura.

Com o tempo, o que era compromisso ético reconfigura-se enquanto doutrina,

fórmula de trabalho, receituário operacional, norma. A objetividade encontra outro

sinônimo: síntese. Ser objetivo no Jornalismo torna-se captar o máximo de informações

possível, dar-lhes um tratamento em que possam ser repassadas da forma mais direta.

A “doutrina da objetividade” é transcrita nos manuais de redação e de estilo, nas

instruções normativas e executivas das nascentes corporações de mídia. Entretanto,

Marques de Melo (op.cit:14) pontua que “além de tolher a criatividade do jornalista, o

culto da objetividade (...) significou a diminuição da sua capacidade de aferir a

realidade”. Isso porque o responsável por este referencial – o pauteiro – inevitavelmente

refletiria a orientação da empresa, fazendo com que a objetividade se dissolvesse na

afirmação de uma subjetividade patronal. Para o autor, esta condição facilitaria para que

a recusa ao conceito de objetividade se espalhasse dentro da própria categoria

jornalística. Repórteres e redatores reagiriam à homogeneização, à estandardização dos

processos e práticas correntes. A objetividade é relegada à categoria de mito, segundo

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Marques de Melo. E é preciso dar uma meta ao mito: retomar a questão significa

resgatar o sentido ético da profissão, já que deixar as coisas como estão apenas ajuda a

perenizar as distorções atuais.

A discussão da questão da objetividade, hoje, passa necessariamente pela compreensão do direito à informação. Mais ainda: pela sua defesa como prerrogativa democrática. E a informação entrelaça as duas vertentes do relato jornalístico: a descrição dos fatos (informação objetiva: veraz, comprovável, confiável) e a sua interpretação (informação opinativa: analítica, valorativa, orientadora). A objetividade jornalística converte-se novamente à sua dimensão ética. Na medida em que o jornalista assume o papel de agente social, responsável pela observação da realidade, ele se torna mediador entre os fatos de interesse público e a cidadania. (17)

Para o autor, o debate não está ultrapassado, extemporâneo. A objetividade

pressupõe pluralidade de observação e de relato. Isto é, espera-se mais fontes de

informações, mais versões, mais canais de difusão, mais pontos de recepção das

informações. Para se exercer esta objetividade jornalística nas sociedades democráticas

é preciso ouvir estas vozes divergentes, cobrir os pontos cegos, dar vazão ao plural e ao

diverso. O jornalista terá que sustentar seu trabalho na veracidade, na clareza e na

credibilidade. Ao público, cabe a arbitragem deste processo, escolhendo entre um jornal

e outro, acolhendo uma versão em detrimento de outra que julga menos correta e útil.

Colocada desta forma, a objetividade jornalística “deixa de ser dogma e se torna utopia.

E como tal pode servir como dínamo das sociedades democráticas, tornando-se

transparentes, visíveis nas suas contradições, abertas à intervenção da cidadania”

(op.cit.:19).

Entretanto, o que Marques de Melo chama de mito não coincide com o conceito

na formulação de autoridades no assunto, como o teórico romeno Mircea Eliade.

Conforme ele, mito é uma narrativa explicativa, relato de surgimento de algo, atestado

de ancestralidade.

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O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. (...) é sempre, portanto, a narrativa de uma criação: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. (1986:11)

Seguindo os passos de Eliade, o mito da objetividade não passa de mistificação

no campo profissional, de doutrina que revela uma mística, uma idealização de

condutas. Voltaremos a isso mais a seguir.

Mais inflexível que Marques de Melo, Arcelina Helena Publio Dias (1985)

sequer reconhece a presença de uma objetividade no Jornalismo. Para a pesquisadora,

de forma prática, ela não se mostra na produção atual, fato que provoca uma indagação:

é a objetividade um “mito” ou uma meta? Uma resposta é arriscada na direção do

último, mais desejável para a autora. Isso porque o lugar da utopia, do alcançável,

reserva a possibilidade de um exercício – mesmo que distante – da objetividade. Assim,

a objetividade deve ser perseguida como um princípio ético.

É uma função inquestionável dos meios de comunicação de massa, numa sociedade como a nossa, informar e formar a opinião pública. Este princípio ético ligado à função inquestionável de formar e informar a opinião pública deve nortear nossa atividade, como professores, pesquisadores e na prática cotidiana do Jornalismo. O princípio ético da objetividade da informação jornalística está intimamente ligado aos fins dessa atividade. (25)

Marcadamente idealista, a posição frisa que a idéia de uma objetividade total e

plena não existe, e que é necessário desmistificar isso. Embora pareça paradoxal, é

fundamental, no entanto, que se busque a verdade dos fatos, que se corra atrás das

informações que possam dar base a um relato. A preocupação ética move os

profissionais, dá orientação ativa ao seu exercício jornalístico, confere objetivos claros

para a função no contexto social.

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2.4 A objetividade questionada

“A mecânica de Newton partia da hipótese segundo a qual podemos descrever o mundo sem falar de

Deus ou de nós mesmos. As ciências experimentais não se contentam em descrever e em explicar a Natureza;

elas constituem uma parte da interação entre a Natureza e nós. Trata-se de uma possibilidade que torna impossível

a separação entre o universo e o Eu.” Werner Heisenberg – Física e Filosofia

Basicamente, há duas vertentes que servem de viga de sustentação da

objetividade dentro do Jornalismo. A primeira tem na objetividade o imperativo ético

que funda a atividade jornalística, a segunda reconhece que é preciso buscar a

objetividade para manter um compromisso ético. Nota-se que ambas têm uma linha de

parentesco comum na deontologia e que acabam por se complementar na medida em

que se entende que o dever de informar (e bem informar implicaria em ser objetivo) e o

direito à informação (ter o relato fiel ao fato) são condições necessárias para o bom

andamento do fenômeno comunicacional. O Jornalismo estaria se cumprindo assim.

Mas, por contraste, quais são os argumentos que balizam os questionamentos à

existência da objetividade? Que raciocínios põem em xeque sua viabilidade e sua

integridade?

De maneira geral, aqueles que questionam a objetividade têm em mente que é

impossível fazer um relato exatamente fiel ao fato, já que a interferência do narrador é

inerente ao próprio processo de comunicação. Por menos que se queira intervir, não se

pode deixar de escolher uma palavra em detrimento da outra, não se pode deixar de

selecionar uma matéria para abrir um telejornal, não se pode deixar de descartar uma

notícia para que outra entre.

Fernando Resende (2002) localiza a questão na superfície do texto:

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A pretensa objetividade jornalística, entretanto, só encontra recursos no mesmo lugar em que o discurso literário pretende a literariedade: na unilateralidade do discurso, na intransitividade da palavra. O discurso jornalístico, se analisado meramente sob esse ângulo, facilmente traveste-se de objetivo, diferenciando-se daqueles chamados subjetivos. Porém, não há como pensar a linguagem jornalística tão-somente sob uma rígida perspectiva do contexto factual no qual ela se processa. Ainda que esse contexto não fosse ele próprio fluido, que nele não coubessem tipos variados de manifestações verbais, visuais e outras, o discurso jornalístico não se constitui da palavra objetiva, sem dobras, mas, como qualquer outro, de universos sígnicos que, ad infinitum, representam e significam. O texto jornalístico, inserido nesse campo maior, mais que componente de um ato lingüístico, torna-se parte de um ato semiótico. (75)

Assim, por maior distância que o repórter queira estabelecer entre a sua posição

e a do fato, não se consegue resguardar total isenção, ausência de contato. O próprio

relato já seria uma intervenção na medida em que o repórter recorta um fato dentro da

realidade e o remonta num outro momento, configurando novos contextos que

influenciam, inclusive, outros acontecimentos reais. Diante da impossibilidade, o ideal é

que o jornalista se aproxime o máximo possível do fato e de sua verdade34.

Embora atentem contra a objetividade, diversos pensadores reconhecem a

importância do conceito, mesmo que sob o rótulo de “mito” ou de paradigma.

Especificamente sobre este último, tratam do declínio de um paradigma.

Robert Hackett (1999), por exemplo, afirma ser preferível a objetividade

ortodoxa ao propagandismo deliberado dos jornalistas do século XIX. Mas só isso não

basta. “Já não nos podemos limitar a pressupor a possibilidade de comunicação

imparcial, de notícias objectivas e independentes acerca de um alegado mundo político

e social exterior” (op.cit.: 127). Se é comum opor objetividade a parcialidade, o autor

recomenda que se substitua parcialidade pelo conceito de “orientação estruturada”.

34 Conforme Peter Krieg (1995:125): Segundo isto o jornalista é alguém incessantemente em busca da realidade e assim da verdade”

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Ao abandonar a noção de comunicação imparcial, podemos evitar ser afastados dos nossos propósitos pela busca de padrões de equilíbrio e imparcialidade. (...) É evidente que a mudança da ‘parcialidade’ para a ‘ideologia’ nos estudos dos media não é qualquer garantia contra a ingenuidade ou a trivialidade. Contudo, parece ser importante se quisermos compreender suficientemente os papéis políticos do Jornalismo. (128-9)

Note-se que o problema da objetividade não é resolvido, mas serve de trampolim

para discussões muito relevantes no trabalho cotidiano jornalístico. Debates como o que

vincula o exercício da objetividade como um pré-requisito da competência profissional.

Sylvia Moretzsohn (2001, 2002) enfoca esta dicotomia assinalando pontos interessantes.

Por exemplo, para a autora, o paradigma da objetividade sobrevive porque os meios de

comunicação “mascaram o processo de construção social que permitiria perceber a

intermediação discursiva entre sujeito e realidade através da linguagem”. A defesa da

objetividade se sustentaria por esta funcionar como mecanismo de controle contra a

manipulação, arrisca.

Insistindo em buscar a verdade (mesmo que seu relato, inevitavelmente, não

reflita exatamente o fato) ou alimentando parentescos que garantam a sua sobrevivência,

de uma forma ou de outra, a objetividade assume dimensão de mito, de padrão mais

simbólico que concreto. Como isso se configura?

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2.4.1 Uma categoria mitificada

“O mito é uma fala” Roland Barthes – Mitologias

Já se disse aqui que a objetividade é entendida por muitos olhares como um

mito, mesmo embora a designação mais apropriada seja mesmo mistificação. O retorno

a este ponto se faz necessário para salientar como isso se configura entre os jornalistas e

por quem não compõe a comunidade profissional, mas a acompanha de perto.

No final do inverno de 2001, em Campo Grande (MS), durante o XXIV

Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Intercom35, o professor Antonio

Hohlfeldt (PUC-RS) apresentou dados parciais de uma pesquisa que coordenou sobre a

percepção da objetividade jornalística. O estudo levava em conta livros sobre o assunto,

entrevistas com renomados profissionais e os mais importantes manuais de Jornalismo

do país. Num primeiro momento, foram anotadas as mais lembradas categorias do

Jornalismo entre 21 autores nacionais e estrangeiros e entre 13 jornalistas. A mais

mencionada foi a objetividade. Em seguida, Hohlfeldt cruzou os resultados com as

menções nos oito principais manuais de redação e estilo no mercado, o que reforçou a

presença da categoria e revelou sua ambigüidade entre as fontes consultadas.

O pesquisador reconhece que a adoção de tal metodologia não permite que se

trace conclusão tão definitiva sobre a importância da objetividade no imaginário

jornalístico, entretanto, salienta que a incidência maciça nas obras e nos depoimentos

colhidos chama a atenção. E mais: cada vez mais, os manuais – pedagógicos ou de

redação – questionam a sua viabilidade. A situação registrada na pesquisa36 esboça um

cenário curioso de ambigüidade: de um lado, os jornalistas ainda preservam a imagem e

o conceito que têm da objetividade, “mitificando-a”, e de outro, a academia e outras

camadas sociais desvalorizam-na, relativizando seu alcance e poder. A objetividade

35 Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação.

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emerge do estudo como uma “categoria mitificada”, distante ainda de sua total

compreensão enquanto parte constituinte do Jornalismo e como fenômeno aparente.

Um ano depois da apresentação de Hohlfeldt, agora em Salvador (BA) na 25ª

edição do Congresso da Intercom, a professora Regina Glória Nunes Andrade (UERJ)

mostrou como se configura uma visão que também pode ser lida como mitificada37.

Desta vez, trabalha-se com a neutralidade, freqüentemente remetida à objetividade, e o

viés de análise é psicanalítico, articulando-se com a mídia e a formação da opinião

pública. De início, a pesquisadora recorre a Lacan, lembrando que se o inconsciente é

estruturado como uma linguagem e se, para significar, é necessário passar pelos três

registros – real, simbólico, imaginário -, a neutralidade está distante da psique

humana38. Estas condições fazem com que fique cada vez mais evidente o caráter

subjetivo nos processos psicológicos, reduzindo na mesma proporção a neutralidade.

Enfocando a opinião pública, a pesquisadora afirma que as questões relativas à

neutralidade não encontram maior sustentação nas teorias da comunicação quando se

analisa o lado do receptor da informação. A neutralidade pode ser atribuída ao emissor

da notícia, mas não é uma exigência teórica prática da comunicação seja em qualquer

dos níveis do processo.

A bem da verdade, a diferença dos registros da realidade, para o mito está no abismo das referências dos fatos ocorridos para os fatos imaginários. Se considerarmos a importância dos meios de divulgação, das novas normas da informática, da comunicação eletrônica face à neutralidade, estaremos diante de fatos novos. O mais evidente de todos, constitui-se a partir de um olhar diferenciado frente aos fatos ocorridos, que chegam através da imagem o que favorecerá o aparecimento de novos pressupostos da comunicação. (2002:119)

36 Mais detalhes podem ser conferidos no texto integral, disponível nos anais do XXIV Congresso da Intercom. 37 Além de constar dos anais do evento, o texto foi publicado em Hohlfeldt & Barbosa (2002). 38 Note-se que, mesmo dentro do próprio trabalho do psicanalista, a neutralidade se coloca como uma recomendação técnica, como separação dos métodos de sugestão frente ao paciente, conforme escreveu Freud. Neutralidade é entendida como medida de intervenção no atendimento clínico.

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A neutralidade – e por extensão a objetividade – traduz-se enquanto mito,

enquanto fala que funciona num contexto imaginário específico. O tom inconclusivo de

Andrade deixa aberta a ferida de desconfiança sobre a neutralidade no processo de

comunicação: do lado do receptor, ela não encontra pouso tranqüilo; do do emissor, não

requer necessariamente propulsão para vôo. De acordo com a autora, é melhor se ater

aos estudos de Freud sobre o comportamento de grupo (instinto gregário e opinião

pública parecem ter muito em comum, intui-se) e àqueles que buscam a articulação dos

conteúdos latentes (inconscientes) e manifestos nas mensagens informativas.

Se não há uma resposta para a neutralidade junto ao receptor, há a sensação

incômoda de que esta neutralidade não é um manto que cobre todo o processo de

comunicação. A ferida continua aberta. E o que é considerado mitificação pode ser lido

como mistificação, engano, burla.

O colombiano Javier Darío Restrepo (2001) aponta a encruzilhada em que situa

a objetividade: é uma pretensão tão desmedida como a de aprisionar o reflexo das águas

de um rio, mas ao mesmo tempo é a garantia que o leitor busca para poder acreditar nos

relatos jornalísticos.

O autor, experiente profissional que hoje se dedica ao trabalho de ombudsman

na imprensa colombiana, lembra que o princípio da objetividade está presente na

totalidade dos códigos deontológicos em diversas partes do mundo e que está prescrito

nas gramáticas jornalísticas. Entretanto, esta presença indisfarçável não garante a

existência efetiva da objetividade no trabalho de repórteres e redatores. A objetividade

não se dá por decreto. E isso permite que se conclua que, na doutrina da objetividade, há

mais teoria que prática. A fala se sobrepõe à ação: há um discurso sobre a objetividade

que ajuda a constituir o Jornalismo. E isso permite que, durante muito tempo, a

discussão sobre a objetividade jornalística tenha funcionado como um “sofisma de

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distração” que impediu enxergar o papel da informação no contexto de construção da

democracia. O cidadão livre é um produto do poder democrático, e para ser realmente

livre, precisa se alimentar de informação livre, enfatiza Restrepo.

Mas o que assegura esta condição de liberdade? Um relato objetivo é totalmente

livre de intervenções subjetivas? E o autor pergunta: Para preservar a objetividade deve

desaparecer o jornalista?

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2.4.2 O ritual profissional e os interesses incidentes

“Os jornais da manhã e da tarde mentiram com lealdade” Jorge Luis Borges – A velha dama

Em muitos autores, o modelo que se sustenta no paradigma da objetividade mais

lembra um Jornalismo sem jornalistas; um Jornalismo onde os fatos falam por si

mesmos, onde as circunstâncias contam, sozinhas, os acontecimentos, apresentando

seus personagens e os cenários onde contracenam. A objetividade – como se vem

discutindo desde então na profissão – pressupõe ausência de emoções, nulidade de

julgamentos, equilíbrio na costura das versões. A objetividade como instituição

jornalística emerge da submersão dos indivíduos que praticam o Jornalismo. A

objetividade se dá quando um manto espesso de homogeneidade se espalha pelo

coletivo. A objetividade acontece quando o sujeito não se manifesta, quando

desaparece, poderíamos continuar.

Repete-se a questão de Javier Restrepo: para preservar a objetividade deve

desaparecer o jornalista? Talvez sim. Mas invertendo a lógica, é possível ainda admitir

que a objetividade funcione como um conjunto de práticas que trabalham tecnicamente

para a ocultação dos interesses incidentes no processo comunicacional. É o que defende

Alice Mitika Koshyiama (1985):

Fazer os leitores acreditarem que se procura ser imparcial e objetivo, deixando a eles a escolha da afirmação mais verossímil, é um modo da empresa jornalística manter como seu público consumidor aqueles leitores que divergem da orientação editorial da publicação. Alinhar como realidades possíveis a objetividade e a imparcialidade é uma defesa prévia contra os que venham a acusar uma publicação de ser partidária e tendenciosa. Aí, vemos a colocação da objetividade enquanto problema técnico; é a fuga da discussão da atividade jornalística como questão política. (45)

Querer evitar ou se desviar de uma visão mais política é uma forma de ocultar os

interesses que incidem na produção e na circulação das notícias. Isso porque o processo

jornalístico não é apenas técnico, mas também político. Optar por um enfoque numa

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cobertura em detrimento de outro não é tão somente um procedimento técnico. Elaborar

uma manchete é uma operação que traz em si elementos muito subjetivos como valores

políticos e estratégias de incentivo à leitura da reportagem.

A pesquisadora lembra ainda que as experiências históricas do passado e do

presente do Jornalismo oferecem “frágil respaldo” para que se cultive a objetividade,

para que se acredite que se pode fazer Jornalismo imparcial. Até mesmo os critérios de

noticiabilidade não seriam lá muito irrefutáveis diante de um questionamento. Isto

provoca uma perigosa fissura dentro da atividade. Como dizer que se pode praticar um

Jornalismo objetivo se “a definição do que é uma notícia publicável depende de várias

avaliações de interesses e fins visados pelas publicações”? E como ir adiante na crença

da isenção se nesse processo “se envolvem profissionais sujeitos a todos os tipos de

condicionamentos”?

Uma saída é enxergar a objetividade não como algo a se exercer, mas como uma

estratégia a se colocar em curso. Assim, de acordo com a autora, a objetividade se opera

em nome da ocultação técnica dos interesses que recaem sobre a produção e difusão das

notícias. Evocar a objetividade e puxar o cobertor até esconder a cabeça, para que não

se enxergue o corpo ali estirado.

Se até então havíamos entendido a objetividade como mistificação, como

imperativo ético, como compromisso para resguardar a profissão, como meta, agora ela

se apresenta como estratégia, como atitude deliberada, disfarce.

Mais fundo nisso, Gaye Tuchman (1999) faz um sobrevôo antropológico sobre a

selva da objetividade. É evidente que esta prerrogativa não é apenas assumida por

jornalistas – cientistas sociais, médicos e advogados também o fazem -, mas para os

profissionais da comunicação a objetividade atua como anteparo entre a categoria e seus

críticos. Assim, quando questionados sobre seus procedimentos, “os jornalistas invocam

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a sua objectividade quase do mesmo modo que um camponês mediterrânico põe um

colar de alhos à volta do pescoço para afastar os espíritos malignos”, compara a autora

(op.cit.: 75).

A objetividade se traveste de ritual estratégico, orientado para defender o

profissional de críticas e questionamentos. Com isso, diante de uma interpelação, um

repórter recorre a uma noção operacional ou mesmo a algo que aponte para critérios e

procedimentos técnicos que o livrem de sua intervenção pessoal, erro acidental ou

parcialidades inconvenientes.

A hipótese de Gaye Tuchman bebe na fonte de Everett Hughes, que em seu Men

and their work, de 1964, dizia que as profissões desenvolvem procedimentos

ritualizados para se protegerem de críticas. Para resistir às pressões externas, às

cobranças pelo cumprimento de prazos e dar nova dimensão aos seus afazeres, os

jornalistas defenderiam a normatização de atividades para dar conta dos fatos. O

raciocínio é simples: fazer um relato objetivo orienta a conduta do jornalista, volta os

esforços para os resultados esperados, cristaliza uma prática profissional, define um

perfil de Jornalismo e ainda evita processos judiciais por calúnia, injúria ou difamação.

Segundo a autora, além da verificação/apuração dos fatos, há mais quatro

procedimentos que auxiliam o jornalista a efetivar o que chama de objetividade:

• a apresentação de possibilidades conflituais;

• a apresentação de provas auxiliares;

• uso judicioso de aspas;

• e a estruturação da informação numa seqüência apropriada.

Além destes procedimentos, um outro - a separação entre conteúdos noticiosos e

conteúdos opinativos – ajudaria tanto o jornalista quanto o público a definir o que é um

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relato jornalisticamente objetivo. Na prática cotidiana, quando há dúvida sobre os

critérios de noticiabilidade, repórteres e editores invocam seu “news judgement”,

definido “experiência e senso comum que lhe permitam atribuir aos ‘factos’ o valor de

‘importantes’ e ‘interessantes’” (op.cit.:85). Os profissionais atribuem a esse “news

judgement” a qualidade de conhecimento sagrado, como se constituísse numa

capacidade secreta diferenciadora das demais pessoas. (Seria possível ver aqui o olhar

jornalístico de que tratamos no capítulo anterior?). Gaye Tuchman critica essa

percepção, já que observa ali uma contradição interna que inviabiliza o conceito:

A experiência organizacional do jornalista o predispõe contra hipóteses que contrariam as suas expectativas preexistentes. Do ponto de vista dos jornalistas, as suas experiências com outras organizações durante um período de tempo validam o seu news judgement e podem ser reduzidos ao ‘senso comum’. Por ‘senso comum’ os jornalistas entendem o que a maioria deles considera como verdadeiro, ou dado como adquirido. (87)

Desta forma, a autora tenta desconstruir a noção, na medida em que expõe que

os julgamentos sobre a noticiabilidade de um acontecimento não seriam lá muito

diferentes dos critérios utilizados por profissionais não-jornalistas.

A reivindicação do news judgement se enquadraria no rol dos atributos formais

que dão envergadura ao Jornalismo – e também consolidam a idéia de objetividade -,

mas que na verdade não passariam de estratégias de defesa de críticas profissionais. De

um lado, os jornalistas oferecem “provas” de que fazem distinção entre o que relatam e

o que pensam, de que apresentam versões diferentes de uma mesma realidade, de que

separam cuidadosamente os fatos das opiniões. Mas embora tais procedimentos possam

fornecer demonstrações de uma tentativa de atingir a objetividade, “não se pode dizer

que a consigam alcançar”, frisa Tuchman.

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Para ela, ao contrário, esses procedimentos constituem um convite à percepção

seletiva; eles insistem “erradamente” na idéia de que os fatos falam por si; constituem

um instrumento de descrédito e um meio do jornalista fazer passar a sua opinião; e

iludem o público ao sugerir que a matéria analítica é convincente, equilibrada ou

definitiva. Em suma, a objetividade no Jornalismo se coloca como um ritual estratégico

que preserva o profissional de críticas à qualidade de seu trabalho, de questionamentos a

sua legitimidade, de acusações de parcialidade em uma cobertura.

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2.4.3 Objetividade como efeito de discurso

"As pessoas não param de confundir com notícias o que lêem nos jornais"

A. J. Liebing, jornalista norte-americano (1904-1963)

“Nada é mentira, nem tudo é verdade: de omissões em edições se constrói uma realidade de ficções”

Patrícia Patrício – Tirando o manual do automático

Já se disse aqui que, em termos de objetividade jornalística, a fala sobrepõe-se à

ação. Isto é, o discurso estabelece condições para que práticas se consolidem, e se

disseminem no mundo social do trabalho. Isso porque o discurso não apenas reflete o

mundo e seus elementos, mas também porque o discurso refrate a realidade, criando

cenários e conceitos, cristalizando entendimentos e visões. Desta forma, pode-se pensar

em universos paralelos que se tocam, que se entrecruzam criando zonas em que a

realidade do discurso vale tanto a realidade das coisas do mundo (que até poderíamos

chamar de real-real). O Jornalismo é uma atividade social envolvendo um complexo

tecnológico que torna mais evidente a porosidade dos limites entre essas realidades: o

que se lê nos jornais ou se vê na TV é tomado como o acontecimento em si; os discursos

veiculados nos meios de comunicação alcançam estatuto de verdades do mundo.

A objetividade é uma condição que dá sustentação ao Jornalismo como prática.

Reescrevo o enunciado: A objetividade falada – o que se diz dela – ajuda a suportar o

Jornalismo no mundo social. Desde os tempos de consolidação da atividade jornalística,

a objetividade recheia o discurso de constituição, definição e inserção social do

Jornalismo. Isso não pode ser ignorado.

A exemplo dos demais, o discurso jornalístico tem suas regras de

funcionamento. Essas normas não só ajudam a fundar o Jornalismo como prática

discursiva como também contribuem para a conseqüente cristalização de suas práticas

sociais. Bethânia Mariani (1998) diagnostica que esse discurso jornalístico é um tipo de

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“discurso sobre”, uma espécie de discurso que se ocupa de objetos, de alteridades. Neste

sentido,

um efeito imediato do falar sobre é tornar objeto aquilo sobre o que se fala. Por esse viés, o sujeito enunciador produz um efeito de distanciamento – o jornalista projeta a imagem de um observador imparcial – e marca uma diferença com relação ao que é falado, podendo, desta forma, formular juízos de valor, emitir opiniões etc., justamente porque não se ‘envolveu’ com a questão (p.60).

Então, é na superfície do texto que se tornam possíveis as condições para alguma

objetividade jornalística. É na costura do texto, na amarração das falas e descrições que

se cria um efeito de objetividade, uma sensação de que os fatos falam por si mesmos.

No funcionamento jornalístico, o profissional opera de uma forma que se apóia num

apagamento de sujeito narrador. Isto é, o jornalista reúne as informações que julga

necessárias para que as reapresente em forma de notícia, gênero que tenta se legitimar

por trazer a leitura fiel dos acontecimentos. O distanciamento que o discurso da

objetividade propõe propicia uma dupla ilusão: o jornalista se ilude pensando que está

distante do objeto e que pode ser imparcial, deixando o fato falar por si mesmo; e o

público se ilude tomando como um fiel reflexo do fato o relato oferecido39.

A ilusão se dá com base na consideração que o Jornalismo leva ao público um

relato literal do acontecido. Como se fosse possível o jornalista apreender a essência do

real e repassá-la ao leitor sem perigo de contaminação. Ocorre que ao tomar contato

com o fato – seja por meio de depoimentos de quem o presenciou ou viveu, seja por

meio de sua observação direta -, o jornalista reconfigura os elementos que dele fazem

parte, interferindo na sua integridade. O jornalista não apenas apreende o

acontecimento; ele o lê, o compreende. E a leitura é um processo complexo de

39 O jornalista se ilude ainda pensando que domina o fato relatado só porque acumulou consigo algumas versões a ele referentes. O Jornalismo pode mesmo esgotar a exploração de um acontecimento?

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interpretação, é um gesto não só de entendimento puro, mas também de construção de

sentidos que podem ser inscritos numa ordem simbólica admissível.

Um conhecido diagrama mostra que o real não chega ao imaginário sem passar

pelo simbólico. Isto é, não se pode apanhar fragmentos da realidade e lançá-las ao

público sem que essas fagulhas passem pela linguagem. E é aí que os efeitos são

criados. Ao escolher uma palavra em detrimento de outra, ao optar pela primazia de

uma fala, quem escreve entra em cena, atua, suja as próprias mãos. E isso não é mera

prerrogativa do jornalista. Não. Essa inevitabilidade está no próprio funcionamento da

língua, está inscrita na sua forma de operação. As palavras não são neutras, carregam

cargas semânticas; um relato é resultado do ato de reportar partindo de um determinado

ponto de vista; verossimilhança e veracidade não são as mesmas coisas; literalidade e

objetividade são efeitos de discurso, efeitos que vigoram em enunciados, textos e falas.

A objetividade jornalística é um efeito que serve para referendar o discurso de

sustentação do Jornalismo enquanto prática social. A objetividade, desde o momento em

que o Jornalismo fortalece suas bases no mundo do trabalho, funciona como uma

exigência para o seu exercício. A objetividade está inscrita na ordem do discurso

jornalístico.

A ordem do discurso jornalístico, com seu sistema de exclusões e limites, marcada por um tipo de relação com a verdade a com a informação (ou melhor, com a verdade-da-informação), está relacionada por um lado com a ilusão referencial da linguagem e, por outro, com seu próprio processo histórico de constituição. Isto quer dizer que no discurso jornalístico, como tal, já se tem uma memória da própria instituição da imprensa agindo na produção das notícias. Memória que atua como um ‘filtro’ na significação das notícias e, conseqüentemente, no modo como o mundo é significado. (cf. Mariane, 1998. p. 67)

O texto – e aqui se consideram os textos verbais e os não-verbais – é o local

onde o efeito de objetividade pode vigorar, onde ele pode ter seu regime de vigência. O

que significa dizer que a objetividade jornalística só pode ser possível na órbita do

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discurso, no raio de sua influência e vigor. Repito: pode ser possível. Como é um efeito,

a objetividade pode funcionar ou não, marcar-se ou não.

Pensando nas etapas do fazer jornalístico, a objetividade só pode se dar no

estágio de tessitura do texto, e não na apuração das informações, por exemplo. Na coleta

dos dados, o jornalista não pode se apagar, ele está ali, junto à fonte de informação,

tomando seu depoimento, estimulando sua fala, reunindo versões. Aqui, um ponto que

não pode ser alijado da discussão: o Jornalismo trabalha com versões e não verdades.

Cotidianamente, nas redações, nos estúdios e nas ruas, repórteres manipulam40 versões,

misturam falas e pontos-de-vistas. Lidam com versões que se pretendem verdades. O

Jornalismo se ocupa de referendar verdades, fixar conceitos, estabelecer ditos e fatos.

Mas não se pode tratar do conceito de verdade sem vinculá-lo ao de poder, afirma

Michel Foucault (1984, p.12).

O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (...) A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.

Não se encontra a verdade, como se ela estivesse oculta, escondida. A verdade é

construída, costurada; é consensual entre aqueles que detêm a prerrogativa de a

definirem; é conveniente e é plural. Ela é uma direção de sentido, uma sinalização de

entendimento e compreensão. Trata-se da sua imposição como algo literal,

incontestável, inadiável, incontornável. A operação que ocorre é a imposição de uma

versão em detrimento de outras – atendendo a certos critérios que chamamos de

40 Uso o verbo “manipular” na sua acepção primeira, a de trabalhar com as mãos, de manejar, tratar manualmente. O termo tem origem entre os romanos e se referia às atividades de alguns soldados que se ocupavam de ostentar os manípulos, hastes e pavilhões com símbolos do Império.

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veracidade e verossimilhança, fidelidade e realidade, por exemplo. Por isso, a verdade é

histórico-social e não essencial, natural ou literal. E no percurso de fixação de uma

verdade, o efeito de objetividade é crucial no exercício jornalístico porque oferece

alicerces para este estabelecimento. O Jornalismo possibilita e permite41 a circulação de

certos sentidos, ratifica verdades convenientes e possíveis, cristaliza relatos dos

acontecimentos e perfis de personagens, dando a eles contornos definidos e tangíveis.

Então, a verdade não existe? Não da forma como se a pronuncia, com uma

inicial maiúscula e no singular; não da maneira como se a define: como um achado, uma

meta ou tesouro; não da forma como se a quer: tangível, factual, inconteste. Bernard

Cequilini, em seu Éloge de la variante (1989), assinala que não há senão versões, e que

convivemos com essas versões. Para a maioria dos jornalistas, um enunciado como este

é um golpe mortal para a profissão, sua identidade e a história que se quer manter dela.

Se a coragem é um valor importante no exercício jornalístico, enfrentar uma resistência

como essa me parece fundamental. Mesmo que essa coragem mais pareça atrevimento

irresponsável, devaneio quixotesco.

***

Sob uma luz diáfana, o fidalgo Dom Quixote olhou bem para os companheiros

que lhe acompanhavam na venda e percebeu que eles não estavam de acordo quanto à

natureza de seu elmo e quanto ao ambiente que habitavam. Por um segundo entendeu

que só mesmo um tipo de encantamento poderia iludi-los fazendo pensar que se tratava

de uma bacia de barbeiro e de uma modesta venda. Mas eram o elmo de Manbrino e um

castelo, insistiu em silêncio para si mesmo, como se quisesse reforçar seu

41 Possibilita, pois dá condições materiais para que esses enunciados se difundam; permite porque está numa das instâncias de seu aparente controle.

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convencimento. Só mesmo artimanhas de feiticeiros poderiam provocar aquelas

miragens...

A objetividade não permite concomitância, ambigüidades. Impossível ser

objetivo sob o teto de uma venda onde imperam muitas visões, onde o real não se

manifesta da mesma forma para todos. Na taverna do Jornalismo, o Cavaleiro da Triste

Figura perceberia muitos encantamentos embaçando os olhares dos que se acotovelam

no balcão. A objetividade jornalística se mostra para uns como o elmo de Manbrino –

que veste seu possuidor de pompa e dignidade; para outros, ela mais parece um pedaço

de metal retorcido que de nada serve além de ocupar espaço na fronte dos que a

ostentam; e para terceiros como um adereço importante que está perdido em algum

ponto, mas que deve ser buscado para justificar a honra de seus detentores.

Mas vultos e visões mais confundem que explicam. Miragens corrompem nossos

olhares. Como atravessar as distâncias sem se deixar iludir, caindo no desvio e no

engano? Como evitar ser guiado pela errância? Entre a pergunta e a resposta, é preciso

prosseguir, enfrentando os caminhos e o que neles aparecer. Mesmo que sejam

fantasmas e ilusões de óptica. A objetividade está inscrita na ordem do discurso

jornalístico, e mais importante que descobrir se ela existe ou não é saber como ela

funciona. A questão da objetividade jornalística - já pudemos sentir - repousa entre a

dúvida e a incerteza.

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CAPÍTULO 3

Entre a dúvida e a incerteza

“Se não vir nas suas mãos as feridas dos pregos, e se não puser nelas meu dedo e não colocar minha mão

no seu lado, não acreditarei” Evangelho de João, Cap. 20, Vers. 25

m dos episódios mais conhecidos quando o tema é dúvida, a incredulidade do

Tomé bíblico ganhou dimensão de substantivo. Assim, quando lhe dizem que

seu mestre ressuscitara, o apóstolo rechaça a hipótese, admitindo-a apenas se

constatada pela visão e pelo tato, sentidos auxiliares da sua razão. Só tocando e vendo o

corpo à sua frente, o homem simples que vivia como pescador confiaria no retorno de

Jesus à vida. O traço humano mais evidente da passagem de Tomé pelos quatro

evangelhos – a dúvida – cristaliza-se em um estigma, e o discípulo passa a ser

conhecido como o “incrédulo”, o santo do “ver para crer”.

Similar ao episódio é a suspeita dos guardas frente à aparição de um vulto nas

cercanias do castelo de Elsinor, em Hamlet, de William Shakespeare. Estupefatos, os

soldados não crêem no que se mostra a eles mais de uma vez. O príncipe da Dinamarca

também duvida, até que o fantasma de seu pai aparece e lhe conta a verdade sobre sua

morte.

Nas duas histórias, aquilo que é difícil de aceitar como verdadeiro, como crível,

ganha corpo sob uma forma sobrenatural: é um anjo ou uma visão, é um espírito ou um

fantasma. Entidades que burlam as regras da natureza e que se colocam no mundo dos

vivos e das aparências para trazer revelações, denúncias. Nos dois casos - e em muitos

outros -, a dúvida é a chancela da verdade; a condição de legitimação de uma suspeita; o

elemento que vai sustentar a assertiva, já que a coloca em prova: num primeiro

momento, a dúvida reforça a desconfiança, mas depois, serve de etapa probatória da

verdade. Se a afirmação sobrevive ao teste da dúvida, do questionamento, ela ganha

U

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contornos de verossimilhança, passaporte para um perfil de veracidade42. A dúvida é

capital para quem busca certezas. A instabilidade do questionamento e a angústia da

incerteza parecem funcionar como estágios de um ritual, de um processo de encontro

das verdades. É preciso passar por eles até se alcançar o conforto, a calmaria da certeza.

Para cientistas, filósofos ou mesmo jornalistas, certas certezas são fundamentais.

Neste sentido, a dúvida tem papel importante em suas buscas cotidianas. Para observar

como isso se dá, é preciso, no entanto, percorrer alguns caminhos ancestrais, a começar

pelo trilhado por Descartes nos séculos XVI e XVII.

3.1 Descartes, a dúvida e o método

“Os achados mais valiosos são os métodos” Friedrich W. Nietzsche, filósofo alemão

Os historiadores da filosofia demarcam que a escola do racionalismo nasce com

Descartes. Isto é, o estabelecimento de uma conduta humana e de sua estruturação em

pensamento apoiadas na razão surge a partir das idéias deste francês nascido no final do

Século dos Descobrimentos. Mas, para além do que possamos imaginar hoje, este é um

tempo não só de euforia econômica e de descobertas marítimas, mas de forte opressão

da Inquisição. E embora “a razão constitua cada homem”, a Igreja é quem sempre tem

razão...

Sociável e inteligente, Descartes freqüenta as cortes e as rodas intelectuais onde

se discutem as idéias de Galileu e Pascal, que estremecerão as cúpulas de igrejas e

governos. Com nítido talento matemático, Descartes se dedica a estudos da área, mas

aventura-se (com êxito) na Óptica e Biologia, contribuindo com seus insights e modelos

explicativos. Alguns que se mantêm até hoje, conforme se pode ver nas neurociências.

42 Funciona assim também nas discussões da filosofia da ciência. Principalmente no caso da crítica de Karl Popper aos critérios de verificação científica dos empiristas lógicos do Círculo de Viena, no começo do século XX. A eles, Popper opõe princípios que apontam para a refutabilidade de uma teoria científica.

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O filósofo será o primeiro a defender o conceito dual de corpo e mente, propondo um

lugar para ela. As bases cartesianas vão nos permitir quatro séculos depois discutir

noções como consciência, emoções e ações voluntárias, por exemplo43...

Em 1619, Descartes passa um inverno aquartelado em Ulm, Neuburgo, onde

acaba se relacionando com o matemático Johannes Faulhaber, que já havia publicado

obras relacionadas à aritmética e à Ordem Rosa-Cruz. Para Stephen Gaukroger, que

escreveu o que chamou de biografia intelectual de Descartes, este encontro “marcou o

início de sua teoria geral do ‘método’” (1999:145).

É a partir daí que o filósofo francês passa a trabalhar nas Regulae ad

directionum ingenii (Regras para a direção do espírito), que só seriam mesmo

publicadas após a sua morte. Na verdade, elas não foram redigidas para que fossem

editadas, embora o tivessem sido apenas em 1684, em holandês. Entretanto, mesmo que

o público não tivesse tido acesso às regras, seu autor já estruturava seu pensamento num

corpo coerente de pensamentos: as regras primavam pela unidade do conhecimento,

alertavam para a necessidade de um método para dirigir as ações humanas, e

explicitavam as etapas desse método. Segundo elas, assuntos complexos deveriam ser

decompostos em outros mais simples, e depois separados em absolutos e relativos,

comparando-os44.

43 Muito influente atualmente, o neurologista português António Damásio vai se apegar ao dualismo psicofísico cartesiano para apontar ali um deslize do filósofo francês: “É esse o erro de Descartes: a separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível, com volume, com dimensões e com um funcionamento mecânico, de um lado, e a substância mental, indivisível, sem volume, sem dimensões e intangível, de outro; a sugestão de que o raciocínio, o juízo moral e o sofrimento adveniente da dor física ou agitação emocional poderiam existir independentemente do corpo. Especificamente: a separação das operações mais refinadas da mente, para um lado, e da estrutura e funcionamento do organismo biológico, para o outro” (1998:280). Segundo Damásio, a compreensão da mente humana depende da adoção de uma perspectiva do organismo: “Não só a mente tem de passar de um cogitum não físico para o domínio do tecido biológico, como deve também ser relacionada com todo o organismo que possui cérebro e corpo integrados e que se encontra plenamente interativo com um meio ambiente físico e social” (op.cit.:282) 44 Mesmo nesta brevíssima apresentação das Regras para a direção do espírito, é fácil observar como há um paralelo entre a filosofia cartesiana e o modus operandi dos exames anatômicos. Este parentesco pode ser explicado pelo fato de o próprio Descartes ter estudado e pesquisado fisiologia. Para o pensador francês, analisar é esmiuçar, dissecar questões...

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É interessante perceber como a questão do método envolve Descartes, a tal

ponto de colocar em segundo plano estudos e pesquisas que deveriam ser figuras de

proa em sua produção, principalmente na década de 30 do século XVII. Na primavera

de 1635, o autor passa a trabalhar no Discours de la Méthode, que deveria ser um

prefácio a outros dois ensaios: Dioptrique, um tratado prático para construção de

instrumentos ópticos, e Météors, obra composta por discursos acerca dos fenômenos

meteorológicos. O prefácio ganhou corpo e acabou absorvendo os trabalhos

precedentes, que se tornaram acessórios. Mais ainda: o Discurso do Método se

transformou na obra mais importante de Descartes e na pedra de fundação do que se

pode chamar hoje de filosofia da consciência.

A importância da incursão de um método precisa ser dimensionada no seu

contexto histórico. O século XVII ainda respira as névoas do obscurantismo europeu, a

Igreja domina a civilização ocidental, dando a ela sua conformação e base. Em termos

paradigmáticos, a grande influência metodológica ainda era Aristóteles, passados já dois

mil anos45. É neste cenário que se deve considerar o peso da pedra que Descartes atira

sobre o lago do pensamento humano.

Dentro do universo cartesiano, nenhuma crença resiste ao processo de dúvida. O

questionamento é o motor, o primeiro toque. Descartes vê no ato de duvidar uma outra

ação: pensar. Para ele, a consciência está no ato do pensamento. Para ele, não é possível

separar a prática de um ato de consciência de ter consciência propriamente. Aí, sim,

chega-se a algo indubitável. E como toda ação pressupõe um agente, temos aí o

nascimento do sujeito da consciência. Para Raul Landin Filho (1996), a descoberta da

indubitabilidade do enunciado “Eu penso” e, por extensão, “o reconhecimento da

45 Gaukroger (op.cit.) conta que a contribuição metodológica de Francis Bacon não é ignorada nem mesmo por Descartes nesta discussão. Entretanto, Aristóteles é um autor com mais vulto e permanência do que o contemporâneo racionalista...

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prioridade dos atos mentais sobre os atos que envolvem o corpo ou os objetos externos à

mente é um dos mais importantes legados da filosofia cartesiana”.

É a partir da dúvida que os objetos e as realidades vão se configurar no prisma

cartesiano. Quando se pensa e se pensa que se está pensando algo, temos ali uma

consciência pensante, uma unidade chamada sujeito. Tudo o que está exterior a ela é

extensão do mundo, objeto. Para investigar cada um deles, absorvê-los ou descartá-los,

é preciso duvidar, pôr-se a questionar. O apego a um método como este dá a segurança

que os racionalistas precisam. Se o método não dá solução de tudo, ele pelo menos

ajuda a encontrá-la.

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3.1.1 Jornalismo e cartesianismo

“Comentei com um veterano jornalista, que já cobria o Congresso desde os tempos em que a capital era no Rio de Janeiro, que estava

sentado ao meu lado: ‘Como esses senadores têm cara de bobos’. Sorrindo, complacente, ele aconselhou: ‘Já que você vai trabalhar em

Brasília, é melhor que saiba de uma coisa:o mais bobo deles conserta um relógio no escuro. E com luvas de box’”.

Gilberto Dimenstein – As armadilhas do poder

O Jornalismo busca certezas. O relato dos acontecimentos mais importantes de

uma comunidade precisa ter uma correspondência clara com o que se pode considerar

como a real ocorrência dos fatos. Não se admite um descolamento entre o informe e a

situação relatada. O Jornalismo existe para dar conta do real, conter o que de mais

importante aconteceu, mostrar o que é relevante, denunciar o que está encoberto,

organizar – de certo modo – o caos sígnico onde homens e mulheres estão mergulhados.

Jornalismo se apóia em narrativas cotidianas, que se diferenciam das encontradas na

literatura pelo seu estatuto de veracidade. Isto é, as histórias que nos chegam pelos

jornalistas devem estar lastreadas a verdades. Ou por porções bem generosas delas.

O estilo do texto jornalístico pode ter certo parentesco com o do conto, da

crônica ou mesmo dos romances. A construção dos personagens pode flertar com as

técnicas usadas pelos escritores, mas a essência dos relatos jornalísticos não admite

ficção. Se isso ocorrer, houve contaminação, e o teor jornalístico do relato se dissolveu

nas tramas da narrativa.

Este apego à verdade tem evidente inspiração nos campos da ciência e dos

saberes totalizantes. A preocupação de cientistas de verificar a confiabilidade de certas

teorias, de tentar explicar fenômenos com modelos, de testar hipóteses até chegar a

formular regras físicas de funcionamento do universo é reeditada no Jornalismo. Numa

escala menor, é claro, e com outros estatutos de rigor metodológico. Jornalistas se

preocupam em verificar a autenticidade de certas versões dadas por suas fontes de

informação; tentam explicar acontecimentos, muitas vezes, apoiados em diagnósticos de

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especialistas; retornam a alguns assuntos e instigam os envolvidos para se certificar que

tais relatos foram os mais fiéis à realidade.

Tal como historiadores, arqueólogos e geólogos, jornalistas preocupam-se com a

reconstituição de certos cenários e episódios acontecidos no passado. Voltam às fontes,

recorrem a documentos, perseguem vestígios, confrontam versões, observam

discrepâncias. Cercam-se de certezas para refazer a situação enquanto relato. Como

quem monta um quebra-cabeças, jornalistas se ocupam de encontrar peças que possam

se encaixar e que permitam uma visão mais abrangente do todo (ou da parte que mais

interessa). O problema é que nem sempre temos acesso a todas as peças – ou até mesmo

às mais importantes. Outro impasse é que não é sempre que o montador encontra

condições (profissionais, operacionais, de competência, de interesse) para se debruçar

sobre aquele jogo. Sobram peças embaralhadas e um desenho incompleto...

O vínculo umbilical com a busca da verdade é um traço do Jornalismo na sua

definição hegemônica atual. Mas subjaz nesta procura uma outra semente: a dúvida. O

questionamento permeia a atividade cotidiana dos profissionais, seja sob a forma das

perguntas em uma entrevista, seja sob a mais banal abordagem de um repórter.

Jornalistas são pessoas que perguntam, que tentam saber coisas, que buscam dados para

transmiti-los adiante. A dúvida está entranhada na rotina das redações, impressa nas

paredes dos estúdios, tatuada no bloco de anotação que repousa no bolso do repórter.

Esta assertiva mais parece uma banalidade para quem acompanha o fazer

jornalístico, mas é fundamental que se a compreenda como uma questão de método. No

Jornalismo, a dúvida orienta os demais procedimentos metodológicos. Neste sentido,

não é exagero admitir que o Jornalismo bebe em fontes cartesianas para se constituir

enquanto campo autônomo de fazer, ser e compreender a realidade.

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Mas o método no Jornalismo é algo recente. O Jornalismo só surge como técnica

na virada do século XIX para o XX. A expansão capitalista permite que se desenvolva

nos Estados Unidos e em alguns países da Europa uma indústria dos jornais, coletivo

que vai precisar se estruturar para atender à crescente demanda por informações na

sociedade industrial contemporânea.

Tais modificações vão se dar tanto nos aspectos fabris – com o desenvolvimento

de novas máquinas e equipamentos e uma reengenharia nas plantas dos parques gráficos

– quanto nos relativos à participação humana no processo produtivo. Assim, implanta-se

nas redações um sistema fordista-taylorista46, padroniza-se uma série de procedimentos

na confecção das notícias e na logística de sua distribuição47, estabelece-se uma rotina

operacional (com horários de fechamento em conformidade com a capacidade de

produção da gráfica), definem-se linhas editoriais e estruturas básicas para o texto

jornalístico.

As linhas editoriais tornam-se guias internos das empresas e, mais tarde, vão

redundar em manuais de redação e estilo, que sinalizam como se pratica Jornalismo

naqueles veículos. O lead é desenvolvido e se impõe como padrão de organização das

informações num relato escrito. Alguns padrões de conduta vão se cristalizando entre os

jornalistas e isso ajuda na definição de um ethos profissional, no desenho de um perfil

mínimo deste trabalhador. Os valores morais e éticos vão emergindo: o apego à

verdade, a defesa da liberdade de expressão, a preocupação com a correção da

informação, uma atitude perene de desconfiança, um senso crítico frente ao mundo e às

pessoas, o compromisso com a fiscalização dos poderes, a independência editorial, um

contínuo questionamento sobre as versões e sobre os fatos...

46 Caracterizado pela segmentação de funções, onde cada indivíduo se ocupa de uma tarefa específica, e o conjunto dos profissionais forma uma linha de montagem industrial. A idéia que se tem na base disso é a de que alguém pode executar melhor uma determinada função se ficar concentrado nela. Se todas as peças da engrenagem funcionarem, a máquina toda opera bem. 47 As agências internacionais de notícia são os resultados mais bem acabados disso.

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Esses valores morais vão desdobrar certos procedimentos, como a checagem –

muitas vezes exaustiva - das informações, a confrontação de versões e a investigação

jornalística. Em todos eles, está difusa a dúvida, a indagação sobre a veracidade e a

sustentação real de falas e acontecimentos.

(Entretanto, alguém pode perguntar: só porque o Jornalismo se apóia na dúvida,

ele deve ser considerado tributário do cartesianismo? O Jornalismo é cartesiano apenas

por que duvida?)

São muitas as correspondências entre as leis cartesianas para bem conduzir um

espírito (ou uma mente) e as regras para se exercer bem o Jornalismo (ou de uma forma

próxima da ideal). No Discurso do Método, Descartes aponta que assim como um

Estado se governa bem com poucas leis, ele se impunha a observância de quatro

preceitos em seu percurso filosófico (cf.: 1977:35):

• Não receber como verdadeira qualquer coisa que ele não conhecesse

evidentemente como tal;

• Dividir cada dificuldade que examinasse em tantas parcelas mais fáceis a

fim de resolvê-las;

• Conduzir o pensamento por uma ordem crescente de dificuldade,

partindo dos elementos mais simples até os mais complexos;

• Fazer revisões gerais e retornar a certos pontos diversas vezes para se

certificar de que nada ficou para trás.

As gramáticas jornalísticas têm forte acento cartesiano na medida em que

orientam os profissionais a:

• Não aceitarem versões sem as checar devidamente, sempre duvidando do

óbvio e cercando-se de provas ou indícios que as sustentem;

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• Sistematizar as informações coletadas, agrupando campos de dados

relativos a certos assuntos, formando assim retrancas de textos ou blocos

de interesse;

• Hierarquizar as informações, trazendo de imediato os dados mais

essenciais, mais importantes e desdobrando os detalhes acessórios e mais

aprofundados depois, na autêntica estrutura de pirâmide invertida;

• Cuidar para que nada de relevante no assunto deixe de ser tratado na

matéria.

O que se percebe, além da clara correspondência entre as diretrizes de um lado e

outro, é a condução do processo de busca da verdade em nome da clareza, da nitidez e

da distinção de cada parte do todo a ser apreensível.

Tanto no método cartesiano quanto no dos jornalistas, decomposição e de síntese

estão a serviço da melhor compreensão de uma idéia ou uma história. Em ambos, o

encadeamento das informações (simples e complexas) se organiza para melhor

transmitir um conteúdo, e repassá-lo sem uma veracidade suspeita. A dúvida é o

princípio do trabalho, mas não pode ser um dos dividendos da busca.

Tanto no Jornalismo como nas Regulae ad directionum ingenii (Regras para a

direção do espírito) de Descartes, a intuição tem o seu papel, mas sempre a sua atuação

se dá a serviço do trabalho racional de encontro da verdade, da informação fidedigna, da

melhor maneira de se contar como algo aconteceu. Jornalistas e filósofos têm feeling,

têm faro, intuem sobre determinados casos ou questões. Mas intuir é cismar, é operar

sobre o imaginável, é indagar e, portanto, agir numa sucessão de pensamentos e

organizações racionais desses objetos. Na Regra 10 das Regulae, o pensador francês

critica a tentativa de se descobrir verdades por meio de silogismos, o que seria exercer

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mais a dedução do que testar hipóteses e chegar à essência do que se busca. No

Jornalismo, deduzir, muitas vezes, significa pré-julgar, definir razões sem ao menos

verificá-las, o que também é uma prática condenável, sendo rechaçada pela categoria.

Diante disso, não é demais considerar o Jornalismo como um signatário do

cartesianismo. O Jornalismo nasceu e se desenvolveu no rastro do capitalismo, cresceu

alimentado pela forma de vida das sociedades industriais, fortaleceu-se com a

organização positivista dos saberes e amadureceu com a implementação de uma

racionalidade moderna. A raiz cartesiana, portanto, não lhe é um fardo, é um traço

constitutivo da sua natureza.

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3.2 Heisenberg e a incerteza

“E agora, José? A festa acabou,

a luz apagou, o povo sumiu,

a noite esfriou, e agora, José?”

Carlos Drummond de Andrade – José

Se a dúvida era uma noção cara a Descartes no século XVII, trezentos anos mais

tarde, ela vai permanecer no centro do debate intelectual. Mas com uma nova roupagem,

sob um sinônimo mais elegante e num campo mais definido: a Física. Em 1926, Werner

Heisenberg arrepia os cabelos das mentes mais brilhantes da ciência mundial com o seu

Princípio da Incerteza. Na tentativa de cobrir lacunas na Teoria Quântica, a explicação

pretendia dar conta da velocidade e da localização de um elétron num átomo.

Segundo o princípio, quando se observa um átomo, não é possível determinar

onde está e a quanto viaja um elétron em sua órbita. Sabe-se que ele está lá, que se

move ao redor de um núcleo formado por outras partículas, mas, em escala subatômica,

é incerto assinalar tais valores. “O fato de existirem limitações dessa ordem, impostas

pela própria teoria à medida de, por exemplo, posições e momentos de partículas

perturbou profundamente Einstein”, afirma Jeremy Bernstein (1991:158). Curioso é que

o próprio Heisenberg relatou ter tido inspiração para formular o Princípio da Incerteza a

partir de uma conversa que teve com Albert Einstein na metade dos anos 20.

Heisenberg ainda achava que ‘Einstein sustentava as concepções positivistas preconizadas por Mach – a idéia de que todas as quantidades que integram uma teoria física devem ter ‘definições operacionais’, em termos de instrumentos de medida – que caracterizaram a análise conducente à teoria especial’. Não se dera conta de que Einstein havia abandonado essa posição muitos anos antes, quando procurava formulação final para a teoria da gravitação. Assim, grande foi o espanto de Heisenberg, quando Einstein indagou: ‘Mas você acredita seriamente que só magnitudes observáveis devem integrar uma teoria física?’ (Bernstein, idem)

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Heisenberg respondeu que o próprio Einstein havia raciocinado daquela forma a

respeito da relatividade anos antes. Mais especificamente sobre a natureza do tempo e a

impossibilidade de existir um tempo absoluto, já que ele seria inobservável. Em sua

autobiografia, Heisenberg reproduz a resposta que teria provocado um clarão em seu

cérebro, abrindo caminho para a solução do Princípio da Incerteza:

É possível que eu tenha usado esse tipo de raciocínio – admitiu Einstein -, mas ele é absurdo, de qualquer maneira. Talvez eu possa expressá-lo de maneira mais diplomática, dizendo que é heuristicamente útil ter em mente o que de fato se observou. Mas, em princípio, é um grande erro tentar fundamentar uma teoria apenas nas grandezas observáveis. Na realidade, dá-se exatamente o inverso. É a teoria que decide o que podemos observar. (1996:78)

Numa certa madrugada de 1926, Heisenberg tornou a se lembrar da frase que

invertia os pólos de seu pensamento até então. Para ele, um cientista que investigava os

movimentos da natureza, as medidas é que davam as certezas. As medidas é que

ajudavam a explicar os fenômenos com convicção. Em outras palavras, o método

produzia a certeza, a verdade, solucionava problemas. Tal como Descartes, trezentos

anos antes! Mas se para o filósofo francês a dúvida deu sustentação ao método, para o

físico alemão, o método mostrava-se insuficiente para dar a certeza.

Cientista com disposição atlética, Heisenberg quis caminhar naquela madrugada

pelo Parque Faelled, em Copenhague. Precisava pensar sobre tudo aquilo. Mentalmente,

passou a revisar cada um dos passos dos testes que fazia no laboratório, onde tentava

observar a trajetória de elétrons numa câmara de nuvem. Num dado momento, fez-se a

pergunta: A mecânica quântica pode representar o fato de um elétron estar

aproximadamente num lugar e a uma certa velocidade? (É importante perceber que

Heisenberg disse “aproximadamente”. Isto é, com certa imprecisão, sem valores

absolutos, com algum grau de certeza, mas não toda. Eis a incerteza!) Horas depois, de

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volta ao laboratório, Heisenberg debruçou-se sobre cálculos que logo atestaram que era

possível se chegar a uma proposição que lhe servisse48.

A fórmula era a ponte necessária entre as observações da câmara de nuvem e a

linguagem matemática da física quântica. É claro que ainda faltava provar que qualquer

experimento estaria de acordo com o Princípio da Incerteza, mas isso era uma segunda

etapa. Afinal, Einstein não disse que a teoria é quem decide o que se deve observar?

Para a física quântica, as partículas subatômicas não obedecem às leis da física

clássica. Elétrons, por exemplo, podem existir como duas coisas diferentes: tendo

aspecto de matéria e de energia. Nesta nova Física49, a luz é partícula e é onda, já que

tem freqüência e se propaga em ondas e é formada por ondas-partículas, isto é, quanta.

Essa ambigüidade da Teoria Quântica perturba a lógica linear e monolítica da Física

clássica, o que ainda provoca atritos entre os pesquisadores.

No caso específico de Heisenberg, sua proposição deixa evidente que nem

mesmo as medidas podiam assegurar certeza total em níveis subatômicos. Por exemplo,

elétrons são partículas tão minúsculas que

independentemente de como se tentava aferir seu comportamento, a forma de efetuar a medição afetava esse comportamento. Caso se lançasse luz sobre um elétron, de modo a se poder ‘vê-lo’, isso inevitavelmente o colocava fora de curso, afetando sua velocidade ou sua posição. (cf. Strathern, 1999, p.74)

A instabilidade provocada pelos avanços da Teoria Quântica incomodou até

mesmo Einstein, o mais notório dos cientistas numa época de revoluções na área. “Deus

não joga dados!”, repetia a quem teimasse atestar a validade do Princípio da Incerteza.

Não poderia ser diferente. Ele passara a vida investigando o mundo objetivo com

coordenadas de tempo e espaço, segundo leis exatas que ignoravam a existência e

48 A expressão seria: o produto das incertezas dos valores da posição e do momento não pode ser inferior à

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interferência humana. Desde que Galileu disse que o livro da natureza fora escrito em

caracteres matemáticos, tinha-se como certo que esta linguagem representava o mundo

objetivo e isso permitir aos físicos fazer afirmações sobre o futuro comportamento desse

mundo. Agora, dentro do átomo, “esse mundo objetivo do tempo e do espaço nem

sequer existia, e os símbolos matemáticos da física teórica referiam-se a possibilidades,

e não a fatos” (Heisenberg, 1996: 98).

Esta discussão – que parece intrínseca aos embates epistemológicos da Física –

envolve, na verdade, muito mais terreno. Tem relação com objetividade, certezas e

verdades de um lado; e com instabilidade, dúvida e subjetividade, de outro.

O advento do Princípio da Incerteza é apenas a ponta visível de um iceberg de

crises paradigmáticas. Abaixo dela está uma montanha de questionamentos a certezas

antes inabaláveis, que logo virão à tona. O anúncio de Heisenberg provoca uma fissura

perigosa no colosso das certezas universais porque revela a fragilidade destas

convicções. Por essa trinca, pode-se entrever insegurança, instabilidade, desconforto.

Permanece uma sensação desagradável parecida com uma vertigem, que traz consigo

falta de discernimento, inexatidão, imprecisão.

constante de Planck, ou um quantum de ação. 49 Nova em relação à mecânica newtoniana, hegemônica desde o século XVII.

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3.3 O Jornalismo entre a dúvida e a incerteza

"Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data" Luís Fernando Veríssimo, escritor brasileiro

Um dos cânones do Jornalismo é a exatidão das informações, a correção dos

relatos, a fidelidade do informe com o acontecido. O mundo do Jornalismo (sua função

social, sua justificativa ética e boa parte de seus procedimentos técnicos) se sustenta na

crença e nos esforços dos profissionais para reportar com precisão. Esta atividade

moderna se expandiu no mundo e consolidou-se enquanto campo autônomo na esfera

pública à base do compromisso do jornalista com a verdade e com seus detalhes.

Imaginar o Jornalismo como uma máquina distribuidora de incertezas e ambigüidades é

mesmo muito difícil para o imaginário popular. Que dirá para quem está diretamente

ligado à reflexão e à manutenção desse valor?

Tal como os paradigmas científicos, as bases do Jornalismo também sofreram

abalos no último século. Sua habilidade em relatar objetivamente os fatos é questionada;

pairam dúvidas sobre sua capacidade de manter isenção editorial frente a pressões

políticas e de mercado; e mesmo o próprio conceito de verdade – com o qual o

Jornalismo trabalha – é, hoje, desacreditado. Com pilares desgastados, o Jornalismo se

vê diante de quatro cenários distintos, mas que têm correlação mútua:

• O perigo de um fracasso enquanto ideal de função. Com a crise dos

valores que o formam, o Jornalismo corre o risco de não satisfazer a seus

imperativos éticos e de não funcionar como esperado. Se repórteres não

relatam os fatos com a veracidade anunciada e se a imprecisão toma

conta de suas narrativas, qual a sua função numa sociedade ansiosa por

informação?

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• A proximidade de uma grave crise de confiança. Há décadas, crescem

e se disseminam as críticas aos veículos de comunicação e aos

profissionais envolvidos no processo informativo. Este é um sintoma

claro de que algo não vai bem. Com o aprofundamento nas indagações

sobre os valores que servem de base para o Jornalismo, a tendência desta

crise se tornar crônica é mais real. Como conviver com as pressões e

expectativas de um público cada vez mais ciente de seus direitos à

informação e mais conhecedor do funcionamento do circo da mídia?

• A emergência de mudanças estruturais e de revisão de paradigmas.

A decorrência natural de uma situação constante de cobrança é a tomada

de atitudes mais concretas. Neste sentido, repórteres, redatores e editores

devem se sentir instados a mudar, buscando novos procedimentos,

estabelecendo outras rotinas de trabalho e mesmo rediscutindo padrões

deontológicos.

• O temor de uma convivência com elementos estranhos à sua gênese,

mas que já contaminam seus alicerces. Se a velocidade e o processo de

acumulação dos acontecimentos atropelar o poder de aglutinação da

categoria e inviabilizar muitas das mudanças pretendidas, o cenário é

desalentador. Além de precisar se adaptar a novas condições, os

profissionais da área terão ainda que se habituar a práticas que já

corroem as fronteiras de delimitação do Jornalismo: a cada vez mais

freqüente confusão entre informação e entretenimento, a ditadura dos

dispositivos de medição da audiência, a prevalência das leis de mercado

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como reguladoras de litígios, o embaçamento do limite entre Jornalismo

e Publicidade...

Qualquer que seja o cenário a ser enfrentado pelo Jornalismo, uma condição é

subjacente: valores como objetividade e verdade precisam ser reavaliados. Não há como

contornar o impasse. O Jornalismo precisa enfrentar a discussão sobre sua relação como

mediador social, repensando o que é um relato preciso, o que significa reportar fatos

com objetividade. Se o Jornalismo se ocupa de certezas, e se as indagações acerca da

participação da subjetividade emergem com força crescente, não mergulhar nesta busca

pode comprometer ainda mais a função desse campo profissional. Se até mesmo os

cientistas vêm mergulhando nestas escuras águas, por que jornalistas – que sempre se

espelharam nos primeiros para definir método e conduta – iriam se esgueirar?

Heisenberg, de novo ele, reflete sobre a dose de subjetivismo presente em suas

contribuições à Física. Segundo ele, a teoria não contém características subjetivas

genuínas. Mas ela começa

pela divisão do mundo em ‘objeto’ e o resto do mundo e, também, do fato de que, pelo menos para o ‘resto do mundo’, utilizamos conceitos clássicos em nossa descrição. Essa divisão é arbitrária e, historicamente, uma conseqüência direta do método científico; a utilização de conceitos clássicos é, afinal, uma conseqüência da maneira geral de o ser humano pensar. Mas isso já constitui uma referência a nós mesmos e isso na medida em que nossa descrição não é completamente objetiva. (1999: 82)

A divisão entre subjetivo e objetivo, portanto, parece ser mais complexa do que

se supõe, acredita o físico alemão. As fronteiras que separam os dois latifúndios

parecem mais porosas, crivadas de entradas e saídas, através das quais acontece uma

mútua contaminação. De acordo com o mesmo Heisenberg (op.cit.: 112-113), a divisão

cartesiana sobre o pensamento humano “dificilmente poderá ser exagerada”, e é

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justamente o que se deve criticar. Ele prossegue, lembrando que, segundo a

interpretação dos cientistas que como ele trabalhavam em Copenhague, é possível falar

de Teoria Quântica sem se mencionar como indivíduo, embora não se possa ignorar que

a ciência é feita por pessoas, que trazem consigo traços de subjetividade.

A ciência natural não se restringe simplesmente a descrever e explicar a Natureza; ela resulta da interação entre nós mesmos e a Natureza, e propicia uma descrição que é revelada pelo nosso método de questionar. Essa foi uma possibilidade que não poderia ter ocorrido a Descartes, mas que torna impossível uma separação bem nítida entre o mundo e o ‘Eu’. (op.cit.:115)

Já se disse aqui que o Jornalismo tem raízes cartesianas, e que esta condição

ajuda a dar os traços distintivos de sua natureza. Já se disse também que há uma crise de

paradigmas na ciência e no próprio Jornalismo, o que provoca inquietações de lado a

lado. Afirmou-se ainda que as contribuições de Descartes funcionam como fundações

para a construção moderna do pensamento ocidental. Ao mesmo tempo, apontou-se para

a necessidade de viver a crise de valores e de perceber que, mesmo na ciência, saídas

estão sendo buscadas. O Princípio da Incerteza é um exemplo da engenhosidade do

raciocínio humano e uma forma de como pontes entre razão e empirismo podem ser

construídas.

No percurso reflexivo desta tese, quando me debruço sobre a objetividade no

Jornalismo e a autoria na reportagem, proponho não descartar Descartes, mas enraizar

Heinserbeg. Como o Tomé bíblico, alimento minhas suspeitas com perguntas. Até

chegar às respostas – se não definitivas, pelo menos mais acalentadoras -, será preciso

duvidar mais e mais, pois este é o motor da busca do conhecimento. Entretanto, com

uma tolerância maior no convívio com a incerteza.

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CAPÍTULO 4

Subjetividade

“O indivíduo, a meu ver, está na encruzilhada de múltiplos componentes de subjetividade. Entre esses componentes, alguns são inconscientes”

Félix Guattari – Cartografias do Desejo

ão é nada confortável viver numa realidade fragmentada, onde incidem

muitas forças de diversos lados, onde a visibilidade é prejudicada pela

inflação de signos, e a estabilidade é mais retórica do que vivenciável. É

num mundo como esse que sobrevivem os sujeitos contemporâneos. É neste cenário que

jornalistas e historiadores tentam dar conta do tempo e de seus componentes, buscam

ordenar os fatos e dar sentido ao que lhes cerca.

Tanto em uma atividade como em outra, são esperadas objetividade e isenção,

fidelidade no relato dos acontecimentos e apego à veracidade narrativa. No caso

específico dos jornalistas, alardeia-se que ser objetivo é prerrogativa técnica e

compromisso ético. Entretanto, essa objetividade funciona como negação do sujeito

narrador, como tentativa de apagamento do indivíduo, como catalisador para que o fato

fale por si mesmo, que se apresente sem intermediários.

Apesar de todo esforço nesse sentido, o Jornalismo é feito por sujeitos, por

jornalistas que se emocionam, que se envolvem com os acontecimentos e seus

personagens e que erram. Pensar a objetividade jornalística requer certas reflexões sobre

o que se convencionou chamar de sujeito. O que é que define as fronteiras entre o que

alguém é e o que deixa de ser? Esses limites são flexíveis ou há um núcleo rígido que

possa ser o centro do sujeito? Todas as atividades de uma pessoa são subjetivas? É

possível contar de maneira objetiva uma história do sujeito? Sujeito é algo ou é uma

função a ser exercida? É um processo de estabelecimento de identidade em meio ao

mosaico de coisas que existem?

N

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4.1 Apontamentos sobre o sujeito

“Meu nome não aparecia, lógico, eu desde sempre estive destinado à sombra...”

Chico Buarque – Budapeste

Partimos aqui de um conceito genérico de subjetividade. Isto é, tudo aquilo que

se refere ao sujeito, ao caráter pessoal, e que, por isso, é arbitrário, relativo, parcial e de

ordem afetiva. O subjetivo se opõe ao que é objetivo. Seguindo Kant, subjetivo é o que

provém de estruturas do entendimento humano, a priori; subjetivo se contrapõe às

“coisas em si”; subjetivo é o que, no sujeito, depende de sua sensibilidade, ao contrário

das exigências universais da razão. O conceito de subjetividade está mais próximo dos

de individualidade, de pessoalidade, de personalidade, de particularidade.

Dito isso, pode-se ver com mais nitidez o esgarçamento que uma crise provoca:

o sujeito já não é mais o mesmo. Desde que esse conceito surgiu na história do

pensamento ocidental – na Grécia antiga – até os dias atuais, houve sucessivos

deslocamentos de sentido, fazendo com que o entendimento humano sobre sua própria

natureza se alterasse também. De imediato, é necessário ter claro que o sujeito é uma

construção humana, fruto das condições históricas que o cercam, resultado de

motivações individuais e de injunções sociais. Portanto, o sujeito é um conceito, uma

idéia fixada que define certo objeto. Essa consideração já estremeceria muitos planos já

que embaralha numa mesma frase sujeito e objeto, diluindo as divisas entre um e outro

termo da equação do conhecimento.

Mas o sujeito é uma forma encontrada pelo homem para designar uma unidade,

uma singularidade em meio a coletivos. Na afirmação de um sujeito, temos a

sinalização de um alguém, o contorno de um indivíduo...

Atendendo a escolhas metodológicas – que não deixam de ser subjetivas,

embora sempre se escorem em justificativas objetivistas -, faremos uma breve remissão

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histórica do conceito de sujeito desde os séculos XVII e XVIII, a partir de René

Descartes. A definição deste recorte já sinaliza considerar o que se convencionou

chamar sujeito moderno. É, portanto, esse sujeito e suas mutações que estão em

discussão aqui.

Desta forma, o sujeito moderno surge no pensamento ocidental nos contornos

cartesianos: ele é o sujeito do pensamento, da reflexão. É racional, analítico, mental.

Define-se por contraste. Isto é, o sujeito é a parte pensante e se diferencia do resto da

matéria por esse mesmo caráter. Este sujeito cartesiano irá marcar uma nova forma de

individualismo na sociedade. Não que naquela época já não existissem indivíduos. A

mudança significativa se dá nas formas de uma nova concepção do homem no cenário

da vida: como sujeito do pensamento, o indivíduo marca sua posição de maneira

relativamente autônoma, independente dos suportes que antes a tradição e as estruturas

vigentes cediam. O sujeito é agente, é ponto de partida, é força que atua nas tramas do

pensamento. Com este conceito, o papel do homem é mais ativo, e vai prepará-lo para

os desafios do Iluminismo nas próximas décadas.

O sujeito cartesiano é uno, indivisível, singular. É um passaporte imprescindível

para o Humanismo crescente no mundo europeu. O conceito auxilia o homem a ordenar

suas idéias e o coloca numa posição de entendimento sobre as demais coisas. Isso o

credencia a dominar a natureza e o universo físico. O sujeito cartesiano ajuda a fundar o

sujeito moderno numa condição em que Deus não está mais no centro do universo, em

que o ceticismo é uma cicatriz de nascimento. A certidão de paternidade do sujeito

cartesiano não deve trazer apenas o pensador francês como seu titular, mas também

lembrar as contribuições de John Locke, de David Hume e de Immanuel Kant. O sujeito

moderno nasce como o sujeito do conhecimento. Emancipação, iluminismo e autonomia

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estão na ordem do dia. Libertação de tudo o que oprimia a humanização do sujeito antes

do século XVII.

À medida que a sociedade se torna mais e mais complexa, a vida das pessoas

assume uma perspectiva mais social. O indivíduo moderno, sujeito, não abdica de sua

condição singular, mas passa a perceber sua condição de parte de um coletivo maior.

Com isso, volta sua cabeça para uma concepção mais social do sujeito. O cidadão

comum passa a se enxergar mais nitidamente no meio das estruturas da sociedade

moderna. A organização dos saberes e sua classificação como ciências sociais, nos

séculos XVIII e XIX, é fator que dá grande visibilidade a esta faceta mais social do

sujeito.

Entram em cena a Sociologia, que ressalta as tramas e relações entre os grupos, a

Economia, que revela os mecanismos de evolução das sociedades, a Historiografia, que

ajuda a conferir sentidos aos fatos, a Filosofia, com seu acento menos metafísico e mais

materialista, e a Psicologia, que sublinha regras do funcionamento identitário. Desfilam

pelo pensamento ocidental figuras como Max Weber, Adam Smith, Karl Marx, Émile

Durkheim, Friedrich Hegel, cérebros mais enredados pelos nós do cotidiano, das

classes, das origens e das grandes estruturas.

Nas ciências naturais, a Teoria Evolucionista, de Charles Darwin, surge como

importante evento que contribui para este entendimento. O homem é biologizado,

colocado ao lado do macaco e da taturana no reino animal.

O sujeito moderno deixa de ser apenas a marca da individualidade, e absorve

também a interface do humano com seus pares. A identidade se dá não só pelo

reconhecimento de si mesmo, mas ainda pela relação com o outro.

No século XX, novos tremores chacoalham o conceito de sujeito moderno. O

sujeito social vai se dissolvendo, ruindo a cada martelada conceitual, e mostrando-se

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cada vez fragmentado, estilhaçado. Stuart Hall (2001) explica que o avanço tecnológico,

o aumento da complexidade da vida social, a ramificação dos pontos de referência

humana, o esfacelamento das fronteiras, a mundialização dos mercados e das culturas, a

derrocada de algumas utopias, e o progresso científico e histórico contribuíram para o

descentramento do sujeito nestes tempos de modernidade tardia. Para o autor,

especialmente cinco fatores acentuaram esse deslocamento na direção de um

esfacelamento da identidade humana:

• A descoberta do inconsciente por Freud;

• A proposição de Saussure de que a língua é um código social, um

sistema coletivo e não individual;

• A releitura dos escritos de Marx nos anos 60;

• A interferência de Michel Foucault em seus estudos sobre o exercício dos

poderes em escalas microscópicas, disciplinares, que podem se dar tanto

no discurso quanto em práticas não discursivas;

• E por último, o movimento feminista.

Com isso, o sujeito moderno perde seu centro, confunde-se com seus espectros.

Os escritos de Louis Althusser, Jacques Lacan, Jacques Derrida, Michel

Foucault, Gilles Deleuze e dos principais nomes do Estruturalismo, do Pós-

estruturalismo, e dos estudos culturais colocam mais lenha na fogueira que consome

uma identidade como porto seguro, impermeável, rígida e impenetrável50. O sujeito

freudiano já se desdobra, tem projeções; em algumas páginas, não se fala mais em

50 Foucault vai encarar o tema da constituição do sujeito como nenhum de seus pares. “A chave para a compreensão da individualidade moderna (dócil e útil) no pensamento de Foucault está em se partir da noção de sujeito enquanto produção das relações de poder e saber e na identificação de tais relações. O sujeito não é dado definitivamente na história, mas constitui-se no interior dela. Não pode mais ser visto

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sujeito, mas em assujeitamentos, em agenciamentos coletivos. O humano se perde em si

mesmo. Não mais um centro para o sujeito, nem uma universalidade. Fora de si, a

identidade cultural também sofre abalos com o hibridismo, a diluição de fronteiras

nacionais e os impactos tecnológicos. Para aqueles que procuram um terreno estável

para pisar, Stuart Hall (op.cit.: 97) não tem boas notícias:

A globalização não parece estar produzindo nem o triunfo do “global” nem a persistência, em sua velha forma nacionalista, do “local”. Os deslocamentos ou os desvios da globalização mostram-se, afinal, mais variados e mais contraditórios do que sugerem seus protagonistas ou seus oponentes. Entretanto, isto também sugere que, embora alimentada, sob muitos aspectos, pelo Ocidente, a globalização pode acabar sendo parte daquele lento e desigual, mas continuado descentramento do Ocidente.

Essa sucessão de descentramentos dá uma nítida visão da crise pela qual o

conceito de sujeito moderno passa atualmente. O sujeito contemporâneo não é mais

ponto de equilíbrio, nem a calmaria incólume aos temporais que cercam o ser humano.

Funciona mais como ponto de dispersão identitária do que como ponto de convergência.

É mais motivo de preocupação e nebulosidade; inspira mais questionamentos do que

respostas. Parece oferecer mais condições para o indivíduo atual se perder.

Se este sujeito está em crise, que dirá de seu pólo complementar (o objeto) no

processo de conhecimento? Se eles se definem por contraste, por oposição, por

alteridade, onde termina um e começa o outro? O sujeito contemporâneo, este sujeito

que habita uma modernidade tardia, uma pós-modernidade, significa a morte do sujeito,

conforme prognosticaram alguns apocalípticos? Se o sujeito, hoje, é um emaranhado de

desejos, ideologias, fantasmas e substratos sociais, onde reside a consciência? Cabe

ainda falar de consciência num ambiente tão pantanoso?

como o núcleo de todo conhecimento e a fonte de manifestação da liberdade e de eclosão da verdade. Ao contrário, antes de origem e fonte, o sujeito é produto e efeito.” (Fonseca, 1995: p.75)

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4.2 Consciência: atestado do sujeito

“A consciência do escritor é a matriz da sua arte, e ele paga um preço especial quando a sacrifica”

Howard Fast, escritor norte-americano

“...tudo o que inventamos, seja o que for, de normas éticas e jurídicas

a música e literatura, ciência e tecnologia, é diretamente determinado ou inspirado

pelas revelações da existência que a consciência nos proporciona”

António Damásio, neurologista português

Não é raro que celebridades sem traquejo para as letras procurem profissionais

experientes no ramo para escrever suas autobiografias. Estes jornalistas ou escritores

alugam seus dedos e sua inteligência para dar contornos visíveis aos fatos que mais

marcaram a vida ou a trajetória desses famosos. Chamados de ghost writers, esses

escritores praticamente fazem todo o trabalho de escritura dessas autobiografias, mas se

esgueiram discretos quando é o momento de assumir a autoria do trabalho. No alto da

capa, figura solene o nome da celebridade contratante que se exibe na condição de

reveladora de seus segredos mais íntimos. Conscientes dessa condição, os ghost writers

aceitam a renúncia da autoria e saem de cena, na maioria das vezes, com o propósito de

manter segredo sobre esse contrato.

O personagem central do romance Budapeste, de Chico Buarque, é um desses

profissionais. O versátil José Costa se gaba de suas habilidades estilísticas que o

permitem escrever de teses acadêmicas a discursos políticos, passando por artigos de

fundo e biografias. Esses exercícios de estilo são o ganha-pão do personagem que

mantém inclusive uma empresa prestadora desse serviço. Mas embora o personagem se

movimente com tanta desenvoltura entre as letras, fica evidente ao leitor que há um

constante desconforto nessa não-apropriação dos textos por parte de José Costa. Quando

um romance escrito por ele, mas assinado por um cliente, faz extremo sucesso no

mercado editorial, o ghost writer parece estar sentindo remorso de suas práticas, ciúme

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da obra ou mesmo inveja do desconhecido. No emaranhado das palavras, o leitor se

perde com as versões e detalhes da trama, apenas se orientando pelo que diz José Costa.

É a consciência do personagem que guia o leitor pelo romance. Só ela certifica que o

ghost writer tenha mesmo escrito aquele ruidoso livro e que ele seja ele mesmo.

Apesar de o sujeito moderno estar em crise, não se pode renunciar ao conceito.

Para além de argumentos racionais que o sustentem, há ainda um sentimento pessoal e

intransferível que garante a todos a existência do sujeito. De alguma forma, todos têm

uma sensação de que são alguém, de que estão vivos. A isso comumente se chama de

consciência, consciência de si mesmo e do momento que se vive. Embora haja um

ambiente de fragmentação naquilo que chamamos de sujeito e a clivagem seja a

configuração básica, a consciência parece assumir um papel mais rígido e definido –

embora ainda nebuloso – no processo identitário.

A divisão proposta por Descartes – entre matéria pensante e extensão – inaugura

a filosofia da consciência, mas atualmente é a neurologia quem oferece contribuições

mais palpáveis para a compreensão do que é ser. Pesquisadores como o português

António Damásio apóiam-se em diagnósticos de enfermidades nervosas para arriscar

modelos de funcionamento não apenas do cérebro, mas também da mente e de suas

extensões. Os pensamentos, as idéias e as emoções teriam padrões identificáveis e

estariam associados a um sistema estruturado logicamente.

No esquema cognitivo, Damásio (2002) vê de um lado o organismo e de outro os

objetos. A consciência se manifesta dentro do primeiro e alcança os demais, bem como

apreende o próprio organismo. Isto é, a pessoa é consciente de si mesma e daquilo que a

cerca e a afeta. Neste sentido, a consciência é um fenômeno totalmente privado,

exclusivo, de primeira pessoa. A consciência está intimamente ligada à mente, e

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imbricadas - mente e consciência - vinculam-se a comportamentos que podem ser

observados por terceiras pessoas. Assim, “a consciência consiste em construir um

conhecimento sobre dois fatos: um organismo está empenhado em relacionar-se com

algum objeto, e o objeto nessa relação causa uma mudança no organismo” (op.cit.:38).

Conforme o neurologista, o cérebro humano mapeia não só o organismo e os

objetos, mas também suas relações. A consciência é fundamental nesse sentido. Aliás,

ela é vital para a geração de imagens orientadoras que guiem as ações dos sujeitos. Isso

faz com que esses organismos prossigam com maior capacidade de sobrevivência no

reino da natureza.

Minha teoria é que nos tornamos conscientes quando os mecanismos de representação do organismo exibem um tipo específico de conhecimento sem palavras – o conhecimento de que o próprio estado do organismo foi alterado por um objeto – e quando esse conhecimento ocorre juntamente com a representação realçada de um objeto. O sentido do self no ato de conhecer um objeto é uma infusão de conhecimento novo, criado continuamente dentro do cérebro contando que os ‘objetos’, realmente presentes ou evocados, interajam com o organismo e o levem a mudar. (idem: 45)

Contrariando o senso comum de que a consciência seria um processo

eminentemente racional, António Damásio afirma que ela começa com um sentimento.

Um sentimento de conhecer. A consciência confere a sensação de ser uma espécie de

padrão construído a partir dos sinais não-verbais dos estados do corpo. São os sentidos

que estão em ação, como sensores de dentro e de fora do organismo. Damásio arrisca:

“Talvez seja por essa razão que a misteriosa fonte de nossa perspectiva mental de

primeira pessoa (...) se revela ao organismo de uma forma que é ao mesmo tempo

intensa e indefinível, inequívoca e vaga” (idem: 394).

A consciência se coloca como um processo complexo, um fenômeno mental que

envolve sentimentos e sensações não-verbais. É uma experiência única e indescritível;

comum a todos, mas pessoal e diferente de todas as outras. Funciona como um atestado

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do sujeito, como uma certificação de que se é alguém, que se vocaliza um EU só seu. A

consciência parece ser um porto seguro, um fio de certeza no mar das incertezas. Ter

consciência é ter domínio; estar consciente é apoiar-se em saberes seguros e empíricos.

É um exercício de subjetividade.

Na contemporaneidade, o sujeito é clivado, fragmentado, mas a consciência se

mostra como um ponto mais definido. A consciência se coloca como um conhecimento

de si mesmo, domínio dos limites pessoais. A consciência se configura igualmente na

interface com o outro: ter consciência é exibir uma certa habilidade ética de perceber as

pessoas e as situações, e de relacionar-se com elas. A consciência confere nitidez à

subjetividade humana e, por contraste, ajuda a visualizar a alteridade.

Em tempos pós-modernos, quando o sujeito é colocado em xeque, a consciência

– pelo menos enquanto conceito cognitivo – parece se manter firme, inabalável. Talvez

porque a conheçamos menos do que gostaríamos. Talvez porque não desfrutemos de

tanta consciência nesse terreno...

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4.3 Subjetividade na atividade jornalística

“Nada existe mais prejudicial para a individualidade do que cumprir as promessas, a não ser que dizer a

verdade seja ainda mais desastroso para ela” Oscar Wilde, escritor irlandês

No Jornalismo, a marca do profissional enquanto sujeito sofre restrições claras.

Não é sempre que se pode ser sujeito, que é permitido exercer e manifestar uma

subjetividade na atividade jornalística. Há regras rígidas que delimitam essa aparição,

que condicionam esse exercício, que fixam até onde o sujeito pode ir e a partir de onde

os objetos (os fatos) tomam a frente.

Durante todo o século XX, o Jornalismo se colocou como uma atividade social

de narração, tradução e compreensão do mundo. Desta forma, os profissionais da área

submeteram-se a um abrangente código de conduta que orientava seu trabalho para a

transmissão de estratos da realidade para a sociedade em geral. Segundo as gramáticas

jornalísticas, os profissionais deveriam deixar suas mesas na redação e cair no mundo

em busca de histórias. Mergulhados na realidade, os jornalistas teriam acesso aos fatos,

aos acontecimentos, aos protagonistas dessas ações e às condições sócio-históricas que

lhe serviam de cenário. Os jornalistas apanhariam esses fragmentos da realidade,

retornariam aos seus teclados e reconstituiriam esses recortes para posterior divulgação.

O trabalho jornalístico consistiria então da observação do real, da seleção do que era

mais relevante, e da retransmissão narrativa do que captaram para uma massa de

consumidores de informação.

Entretanto, entre uma coisa e outra, terceiras acontecem. E isso porque a redação

– como local de trabalho – não está apartada do caldo da realidade; faz parte dela e os

seus freqüentadores não estão assepticamente isolados dos fatos da vida; depois porque

os profissionais interferem – mesmo que não queiram – na matéria-prima das notícias,

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já que fazem recortes e reconfiguram os acontecimentos segundo outras regras, as da

empresa, do mercado e da sociedade de consumo.

O jornalista “suja as mãos” toda vez que faz seu trabalho. E aproveitando a

metáfora, o jornalista precisa afundar as mãos no lago para ter acesso a alguns fatos.

Quando faz isso, fica mais próximo deles, mas altera a superfície calma da água,

provocando pequenas marolas, turvando a sua limpidez. Mais que isso: também

encharca os braços e empapa as mangas da camisa. Mesmo diante dessa condição

inexorável, camadas influentes da categoria insistem na objetividade, na neutralidade,

na imparcialidade.

Este estado esquizofrênico que paira sobre as redações, além de desorientar os

seus habitantes, mantém um rol de regras, procedimentos e rotinas que cerceiam a

subjetividade nas práticas jornalísticas. Vigora um pacto entre os profissionais: a notícia

vem primeiro, e se for preciso, deve-se apagar quem a está dando, quem a produziu. Isto

é, o jornalista deve aparecer pouco, renunciar a qualquer exibicionismo, calar-se

enquanto sujeito-autor e produtor dos sentidos que redundam na notícia.

Assim, as gramáticas jornalísticas padronizam os textos, dando indicações de

como os relatos devem ser produzidos, seguindo a que critérios de relevâncias e que

ordem descritiva. Se por um lado a normatização dos estilos atende às exigências

industriais de fechamento das edições e confere um padrão para os produtos, por outro

ela homogeneíza as diferentes produções, pasteuriza, formata e reduz. O leitor, o

ouvinte, o telespectador e o internauta, todos eles ficam privados da diversidade de

estudos, própria de uma redação composta por múltiplos profissionais. O Jornalismo,

como prática profissional, vê nessas limitações outros impasses para um maior

experimentalismo, para inovações semióticas ou mesmo ousadias técnicas. O

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Jornalismo se imobiliza, retarda seus movimentos, silencia os espasmos naturais de uma

atividade tão intensa e nervosa.

A padronização dos estilos, o estabelecimento de procedimentos, a

hierarquização das funções profissionais, a divisão de tarefas e sua articulação em série

foram processos fundadores de uma rotina moderna no Jornalismo, preparando esse

campo para as sociedades mais complexas e pulsantes a partir do século XX. Não é

possível negar a importância dessas propostas no contexto de desenvolvimento humano,

autêntico projeto iluminista. Entretanto, não há dificuldade em enxergar que a utopia do

esclarecimento não se confirmou como hegemônica, e que o programa não se cumpriu.

Essas derrotas, por outro lado, fortalecem os alicerces de uma crítica a este formato de

desenvolvimento, à sociedade como a compreendemos hoje e, por extensão, ao

Jornalismo, sua expressão mais ruidosa.

Quando veículos de comunicação alardeiam que produzem um Jornalismo

imparcial, que seus relatos são recheados de objetividade, que seus produtos são

independentes e fiéis à verdade, apenas exibem as vigas abaladas de um edifício que

inspira intranqüilidade. Afinal, ser imparcial é não ter partido e falar a partir de lugar

nenhum; trabalhar com objetividade é abafar qualquer traço dos sujeitos que respondem

por aqueles produtos; ser independente é gozar de plena autonomia, estando descolado

de qualquer relação com outros atores sociais; e ser verdadeiro comporta mais

questionamentos que afirmações.

Se no discurso a mídia é imparcial, objetiva, independente e verdadeira, nas suas

práticas cotidianas ela mantém relações carnais com parcelas da sociedade; ela se

sustenta em critérios que atendem à subjetividade de alguns de seus controladores; ela é

patrocinada ora por grupos econômicos ora por elites políticas; ela oculta, distorce,

omite e mente propositada ou inadvertidamente. O descolamento entre discurso e

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prática provoca distorções que comprometem a qualidade dos seus produtos, corroem

sua credibilidade e questionam a sua legitimidade social, além de instaurar-lhe uma

crise existencial.

A questão do apagamento do sujeito no Jornalismo não é a principal ferida do

organismo, mas se mostra como um sintoma bem evidente desse mal estar. Enfrentar

essa questão é também trabalhar por um Jornalismo mais coerente e mais transparente.

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4.4 Assinatura: a marca do sujeito

“Assinar um texto é como assinar um cheque: a matéria também tem que ter fundo”

Sérgio Villas Boas - O estilo magazine

“Três assinaturas sempre inspiram confiança, até se a pessoa for um agiota” Oscar Wilde, escritor irlandês

A evidência mais clara da subjetividade no Jornalismo é a assinatura do

profissional sobre o fruto do seu trabalho. Reportagens, artigos, imagens, ilustrações,

locuções e fotografias são unidades concretas resultantes da atividade jornalística. E,

para além de dar os devidos créditos, a assinatura marca a presença e a atuação de

alguém naqueles terrenos. A assinatura revela ao grande público que aquelas peças

resultaram do trabalho das pessoas nominadas, a quem se lhes atribui a autoria. De

forma ilustrativa, se a complexa questão da autoria fosse comparada a um iceberg, a

assinatura poderia lhe servir de ponta, o aspecto mais agudo e visível do problema.

A assinatura de um produto51 é uma forma de reconhecimento, um signo de

titularidade, uma maneira de pertencimento. Por isso, a autoria não está dissociada das

discussões legais advindas de direitos morais e patrimoniais da obra. Ser autor de algo é

mais do que responder por ele ou tê-lo iniciado.

Depois de iniciada a era de Gutenberg, a assinatura ganha mais peso e

consistência. Isso porque, ao assinar um texto, seu autor fixa uma forma definitiva que

pode ser reproduzida à exaustão pelos processos técnicos. A assinatura garante a

paternidade, congela a versão bem acabada e chancela a permissão para a sua ampla

difusão. A assinatura se converte na mais evidente forma canônica de fixação de um

discurso, de um texto.

51 Chamo de produto todo resultado de uma produção, todo substrato do trabalho.

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No Jornalismo, não há uma prescrição exata dos critérios que levem à assinatura

de uma obra52. Entretanto, certos procedimentos são reproduzidos simultaneamente por

diferentes empresas jornalísticas e se repetem em diversas latitudes, dando uma

sensação de uma orientação básica e generalista para o assunto. No entanto, deve-se

enfatizar que não há uma política clara e definida para a assinatura no Jornalismo, e os

profissionais e suas obras se regem por costumes da categoria, por normas editoriais e

tendências de mercado que se cristalizam.

Na vigência de um acordo tácito, o que se percebe em geral é que:

• Colunistas e articulistas de meios impressos sempre assinam o material que

produzem. Eles são os titulares de seções fixas e de colunas de especialidades;

• Fotógrafos, ilustradores e chargistas também recebem créditos visíveis por seus

trabalhos nas publicações que os editam. Algumas exceções se notam quando

agências noticiosas vendem fotografias para outros veículos e esses deixam de

creditar o material aos profissionais, nominando apenas quem o forneceu;

• Repórteres de vídeo assinam suas matérias exibindo-se no início ou desfecho, ou

ainda através de locuções em off ou por legendas no vídeo;

• Na área gráfica, são raros os exemplos em que se dá aos profissionais o

reconhecimento visível de seus trabalhos53;

• Na internet, a assinatura de obra jornalística é prática pouco usual e sem

qualquer normatização, o que redunda num ambiente selvagem onde se

disseminam práticas como o plágio, o tráfico mundial de textos e imagens, o uso

52 Entenda-se aqui obra jornalística como qualquer peça resultante do trabalho na área e que contenha uma unidade formal e estrutural coerente. Artigos, textos, fotos, charges, ilustrações, matérias para TV, rádio ou internet, projetos gráficos, reportagens ou imagens geradas são obras jornalísticas. Títulos, chamadas e legendas, por exemplo, não chegam a essa condição por serem unidades constituintes de peças maiores e mais bem acabadas. Voltarei à discussão sobre o conceito de obra jornalística mais adiante. 53 Uma exceção digna de nota é a revista Superinteressante, da Editora Abril, que assina as reportagens mais importantes da edição dando créditos ao repórter de texto e ao “designer” da matéria, enfatizando a relevância dos dois discursos (verbal e não-verbal) e sua complementação harmônica na leitura. Mesmo no expediente da publicação, a eqüidade na importância é marcada: logo após o Diretor de Redação vem o Diretor de Arte.

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indevido e não autorizado de material autoral, e mesmo a republicação de

conteúdo jornalístico por empresas do ramo sem as devidas compensações

financeiras aos seus autores;

• Autores de textos para meios impressos podem ter seus nomes creditados no

cabeçalho de suas produções (ou no rodapé) ou ainda manterem-se anônimos.

Neste caso em particular, o que se percebe é que, em muitas redações, a

assinatura de um texto é considerada uma distinção ao jornalista, uma deferência ou

prêmio que ateste os méritos do profissional ou do seu trabalho. As cúpulas editoriais

dos veículos costumam ater-se a critérios não tão claros para decidir quando um texto

deve ou não ser assinado. Entre esses critérios, leva-se em conta a qualidade da peça

produzida, se a reportagem traz informações exclusivas ou um tratamento inédito dos

fatos, considera-se ainda a experiência do jornalista e sua trajetória pessoal – é a

assinatura funcionando como dispositivo retroalimentador da credibilidade profissional

-, e o destaque que a matéria tem dentro da edição a que pertence. Isto é, ter chamada na

capa ou ser uma das manchetes são fatores que pesam quando o que se discute é a

assinatura ou não do material.

Na assinatura do trabalho jornalístico, percebo cinco formas de sua ocorrência:

• Primeiro como prática que credita a alguém o produto que seu trabalho realizou. A

assinatura se assemelha a uma impressão digital do jornalista sobre sua produção;

• Segundo: a assinatura funciona como dispositivo de revelação ao público

consumidor que sujeito (ou sujeitos) está relacionado ao produto final;

• A assinatura atua como instrumento de responsabilização do autor frente a

possíveis conseqüências da difusão de sua obra. Um texto assinado, por exemplo,

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ajuda a identificar com mais facilidade quem pode ser responsabilizado

juridicamente por danos ou lesões;

• A assinatura funciona como dispositivo retroalimentador da credibilidade

profissional. Isto é: jornalistas famosos têm seus textos assinados mais

freqüentemente do que os demais porque, além de seus próprios méritos, essa

prática confere prestígio à publicação onde veiculam suas produções;

• A assinatura é meta, e não prática cotidiana. Assim, editores consideram-na um

prêmio, uma distinção. Essa postura é uma maneira de a empresa jornalística

oprimir o jornalista na medida em que acirra um ambiente de competição interna e

permite à chefia estabelecer níveis no reportariado que funcionam como sistemas de

controle social.

Estas cinco formas de ocorrência auxiliam na reflexão sobre a assinatura do

trabalho jornalístico. Uma ou duas delas podem acontecer simultaneamente na mesma

empresa, outras podem se dar em outros momentos. Não há um regime fixo de sua

incidência, e as condições de trabalho, impostas pelas empresas (e pelo mercado), e a

disposição dos profissionais em aceitá-las são determinantes para o seu sucesso.

Entretanto, como já se disse no início desta seção, a assinatura é só a ponta

visível do iceberg da autoria. Assinar um texto não garante que alguém seja autor dele.

Isto é, assumir a responsabilidade pela produção de algum produto jornalístico não é o

mesmo que exercer a autoria sobre ele. Um autor vai além da representação gráfica de

um nome associado a uma produção. Para ser autor, não basta assinar.

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CAPÍTULO 5

Autoria

“PAI: Estamos aqui à procura de um autor. DIRETOR: De um autor? Que autor?

PAI: Qualquer um” Luigi Pirandello – Seis personagens à procura de um autor

cena é inusitada: atores e atrizes ensaiam com o diretor, e de repente seis

estranhos entram na sala, dizendo-se personagens sem autor. Angustiados,

eles querem viver, mas foram desperdiçados, e por isso, vagam em busca de

uma peça que os absorva. O enredo foi escrito por Pirandello em 1920 e logo se tornou

um clássico do teatro. Para além de um texto que reflita sobre o mundo e a magia dos

espetáculos, Seis personagens à procura de um autor convida a pensar a criação e o ato

criador. O convite continua oportuno, até porque há pelo menos 35 anos, ouve-se falar

da “morte do autor” e desde então muito se fez pela sua desaparição.

Imediatamente após os personagens interromperem o ensaio, o Diretor informa:

“Mas aqui não há nenhum autor. Não estamos ensaiando nenhuma peça nova”. Agitada,

a Enteada sobe a escadinha do palco e retruca: “Melhor assim, então! Nós poderemos

ser a sua nova peça”. Mesmo como um autêntico fragmento de ficção, o trecho da peça

é revelador de dois aspectos característicos da figura do autor na contemporaneidade: o

autor tem uma função característica (só deve estar ali quando um novo espetáculo

estiver começando) e o autor exerce uma autoridade (na ausência dele, personagens,

atores e Diretor podem fazer o que quiserem).

Tanto nas artes cênicas quanto nas demais expressões literárias, o autor tem o

seu lugar no processo de produção da obra. O mesmo se dá nas artes plásticas, no

cinema, na fotografia, nos quadrinhos, no crime e no Jornalismo. O autor é um ponto

nodal na reflexão sobre a criação, sobre o exercício de um estilo, sobre a manifestação

A

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de uma subjetividade. No que tange a prática da reportagem, a autoria envolve ainda

extensas discussões acerca dos procedimentos técnicos no Jornalismo, debates sobre

questões estéticas e mesmo descartes e renovações em compromissos éticos.

É o que discutiremos no decorrer deste capítulo.

5.1 Uma genealogia do autor no Ocidente

“Como fazer para derrotar não os autores, mas a função do autor, a idéia de que atrás de cada livro há alguém que garante que a

verdade daquele mundo de fantasmas e ficções pelo simples fato de nele ter investido sua própria verdade, de ter se identificado

com essa construção de palavras?” Ítalo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno

Embora sejam usados com freqüência, os conceitos de “autoria” e de “autor” são

construções sociais que se cristalizaram há pouco tempo, praticamente nos últimos dois

séculos. O autor, por exemplo, é um personagem moderno, fruto da emancipação do

sujeito, da evolução tecnológica e da fundação de idéias que sustentam as utopias

contemporâneas. Entretanto, para compreender os conceitos de “autor” e “autoria”, é

fundamental acompanhar o surgimento dessas noções e o desenvolvimento de suas

naturezas no mundo ocidental. É muito possível que o percurso tenha sido semelhante

no Oriente, já que os conceitos, hoje, parecem universalizados.

Na Grécia antiga, não havia autores. A autoria não tinha um lugar e qualquer

autoridade de criação emanava dos deuses. Mesmo na Idade Média, a legitimidade e a

autoridade do autor não existem ainda, e só vão surgir para valer a partir da

industrialização da literatura nos séculos seguintes.

Entre os gregos, nem mesmo os poetas respondiam autoralmente por seus

versos. Eles atribuíam as criações às musas, que entoavam as frases e as estrofes. Foi

assim com Homero, por exemplo, tanto na Odisséia quanto no início de sua Ilíada:

“Canta-me, ó deusa, do peleio Aquiles...”. Assim, as musas sopram as palavras nos

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ouvidos dos poetas, elas cantam os feitos que os poetas apenas redigem para registro.

Nesta época, o entendimento é de que atua nos poetas uma onisciência divina, vigora

neles as vozes das musas e dos deuses. É a partir dessa compreensão que se forma a

idéia de inspiração: o poeta escreve sob a inspiração das musas e só sob esse estado.

Como se estivesse num transe, o poeta verseja, cria, escreve. Na Grécia antiga, o poeta

tem uma ligação especial com as esferas divinas, tem um canal de comunicação com os

deuses. Criar não é um ato mundano, é próprio dos deuses. Então, para criar, o poeta

precisa estar conectado com o mundo divino. Criar é um dom, um prêmio dos deuses,

uma faculdade especial concedida pelo supremo54.

Mesmo que Heródoto use “Eu” em trechos da História, não se manifesta ali uma

autoria para os antigos gregos. O entendimento é de que o artifício da primeira pessoa

do singular seja um recurso para que os fatos se contem, sejam apresentados, desfilem

diante dos olhos dos leitores. O “Eu” marca o testemunho, a voz pretensamente muda de

quem viu os acontecimentos, de quem ouviu os relatos de outras bocas.

Na Idade Média, vigora uma nova conjuntura: a estrutura do poder na Europa é

distinta das cidades-estado gregas, a Igreja impõe o monoteísmo e controla o

conhecimento, os valores morais e éticos são apoiados nos princípios cristãos. No

interior dos mosteiros, os textos da Antigüidade são guardados e catalogados. Versões

muito castigadas pelo tempo são copiadas pelos monges com a intenção de resguardar

as obras em suportes mais duráveis. De maneira geral, o autor ainda não existe. Os

textos são marcados pela glosa, pelo comentário, pela escrita coletiva e continuista. A

idéia é dar continuidade ao que foi escrito anteriormente. Com isso, os autores

permanecem anônimos ou, em alguns casos, são designados por prenomes e topônimos.

Umberto Eco, no seu romance O nome da rosa, mantém essa tradição batizando seus

54 Ainda hoje permanece forte em algumas camadas sociais a idéia de que só se escreve bem se “o autor estiver inspirado”. A inspiração é como um sopro, bafo divino que provoca perda momentânea da razão,

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personagens principais como Guilherme de Baskerville e Adso de Melk, cujos nomes

vêm seguidos da origem dos religiosos.

Na Idade Média, vigora a exegese e o comentário. Isso porque o termo “auctor”

designava não quem escrevia, mas quem tinha autoridade, quem era respeitado. A

palavra traria consigo a tradição do aumentar (do latim, augere) bem como do agir

(agere). Neste sentido, um texto de auctor detém auctoritas, e por isso, é uma sentença

digna de imitação. Para ser auctor é preciso ter autoridade, estar autorizado, o que

significa estar em conformidade com a verdade cristã. Para ter a autoridade digna de um

auctor, são necessárias autenticidade nos textos e sintonia com o poder central. Com

isso, não é qualquer um que pode ser um auctor. Geralmente, é quem reúne os valores

necessários para tal, quem traz consigo uma tradição e quem goza de respeito.

O conjunto de auctores acaba formando um cânon, uma orientação. Seguindo

essa diretriz, o ensino da gramática na Idade Média vai se apoiar na ciência do bem

falar, fundada na explicação dada pelos autores. Entre os séculos XI e XII, o gramático

Conrad de Hirsau dirá que o auctor é aquele que, com sua pena, amplia, aumenta os

ditos e escritos dos antigos. A afirmação está na letra dos dicionários latinos, onde

“auctore” é quem acrescenta, quem faz aumentar55.

Os textos, àquela época, traziam prólogos com comentários. Neles, havia uma

explicação do autor logo no início, seguido por notas ao conjunto do texto, antes das

explicações em detalhe. Foram esses comentários introdutórios que permitiram a

emergência silenciosa de uma noção de autor nos séculos XII e XIII na Europa. Foi a

conforme afirmou Sócrates no diálogo platônico Íon. 55 O lingüista Émile Benveniste (1995) contesta tal origem, dizendo ser insuficientes e pouco convincentes os argumentos de Conrad de Hirsau. Para mais informações, ver O Vocabulário das Instituições Indo-Européias, tradução de Denise Bottmann, 2 volume, Campinas: Editora da Unicamp.

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partir desta prática que se obteve condições para um descolamento do individual sobre o

coletivo, permitindo o esboço do que se tornaria um exercício de autoria em textos56.

A tradição do pensamento grego antigo ainda influencia os cérebros medievais.

É Aristóteles quem trará a discussão para um terreno mais propício para o surgimento

do conceito de autoria. O interessante é que não será a Poética quem vai possibilitar

isso, mas sim a Física, obra não tanto sobre estética, mas acerca dos movimentos. No

século XIII, a teoria aristotélica da causalidade dá novos contornos às faculdades

humanas, ao estilo, e à própria estrutura dos escritos. Diante do que o filósofo definiu

como causas material, formal, eficiente e final, a Escolástica muda o seu olhar para com

as Sagradas Escrituras. Antes, o sentido estava oculto na profundidade do texto bíblico.

Agora, cada profeta, cada autor de um dos livros formadores da Bíblia expressará no

sentido literal a palavra de Deus. Mas cada um a sua maneira. Assim, o Evangelho de

João traz uma parte da verdade, o de Lucas, outra, e assim por diante57.

De uma certa maneira, Aristóteles convida os escolásticos a revisarem os papéis

do autor divino (Deus) e dos autores humanos (os profetas e apóstolos) nos textos

sagrados58. Assim, começam a ser enxergados numa obra os atributos e as qualidades

literárias do autor, independentes das imperfeições de quem assinava os escritos. Neste

descolamento, vai surgindo a figura o autor. Muito possivelmente, o primeiro a ser

tratado no sentido moderno de autor pelos comentadores é Dante Alighieri, no século

XIV. A Divina Comédia - obra monumental, autêntica, seminal e com grande poder de

influência – vai projetar o nome de quem estava diretamente associado à sua criação.

56 Curioso é notar que, no século XII, um dos tipos de prólogo trazia sete questões dando conta das circunstâncias em que o texto apresentado teria sido escrito. Assim, o prólogo sinalizava QUEM havia escrito o texto, O QUE era ele, PORQUE teria sido elaborado, DE QUE FORMA isso teria acontecido, QUANDO e ONDE, e POR QUAIS MEIOS teria sido formulado. Não estaria ali uma proto-idéia do lead jormalístico? 57 O quinto evangelho, o de Tomé, ficou de fora da compilação de livros que resultou na Bíblia. Seguindo as regras do regime de autoria medieval, muito possivelmente, o autor não alcançou autoridade suficiente para ser reconhecido o seu valor como tal e impedindo o relato de integrar a obra. 58 Note-se que para ser autor de livros que componham a Bíblia será quase uma condição ter uma comunicação direta com Deus – ser profeta – ou ainda ser testemunha fiel dos fatos – ser apóstolo de Jesus Cristo. É o regime de autoria possível na época...

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Os conceitos de “autoria” e “autor” passam a se moldar com mais precisão nos

séculos seguintes. Elogio da loucura (1509), de Erasmo de Roterdam, O Príncipe

(1513), de Nicolai Machiavelli, e a Utopia (1516), de Thomas Morus, ajudam a

pavimentar terrenos firmes para o autor caminhar. Nas artes, as presenças de Leonardo

Da Vinci (1452-1519) e Michelangelo (1475-1564) dão a visibilidade necessária ao

valor individual humano. Montaigne vem com seus Ensaios (1580), Camões cruza os

mares com Os lusíadas (1572) e Cervantes rasga as Campinas com Don Quixote de la

Mancha (1605). Nos palcos, Christopher Marlowe (1564-1593) e William Shakespeare

(1564-1616) dão contornos ao novo sujeito humano que emerge das trevas medievais.

O nascimento das noções de “literatura” e de “escritor” vai se dar aos poucos,

por um longo período de cem anos, entre 1750 e 1850. O Renascimento abre as portas

para o autor, para o artista, para o criador. Mas os avanços tecnológicos que vão

redundar na invenção da imprensa vão catapultar esses conceitos. A massa de letrados

aumenta, as traduções se desenvolvem, o mercado literário aparece, o ofício se

profissionaliza e se dissemina nas principais cidades do mundo.

No século XVII, autor era toda e qualquer pessoa que produzisse algo, seja um

texto ou um crime. O autor é aquele que faz uma obra criativa. Continua sendo – como

na velha Idade Média – uma autoridade, mas confere a certificação de seu valor são as

instituições literárias. Assim, só o redator cujos escritos são reconhecidos por essas

entidades é que pode ser dado como autor. O escritor como uma função social é um

advento muito mais recente, datado do século XIX.

A possibilidade de reproduzir um escrito praticamente ao infinito e facilidade

para uma circulação planetária trazem preocupações inéditas aos autores. Como

controlar os ganhos daquelas transações? Como acompanhar a recepção de uma obra

pelo público? Como garantir aos autores os dividendos de seu trabalho intelectual?

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O Iluminismo consagrou o indivíduo, projetou a importância da individualização

das idéias e fez nascer noções filosóficas que sustentassem um direito de autor, uma

propriedade intelectual, um reconhecimento de autoria. Esses acréscimos tornavam mais

complexas as noções de “autor” e de “autoria”...

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5.1.1 Digressão jurídica: a autoria como direito

“Independentemente dos direitos patrimoniais do autor, e inclusive depois da cessão destes direitos, o autor

conservará o direito de reivindicar a paternidade da obra e de se opor a qualquer deformação, mutilação ou outra modificação da mesma ou a qualquer atentado à mesma

que cause prejuízo a sua honra ou a sua reputação” Artigo 6º - Convenção de Berna para a proteção das obras literárias e artísticas. 1886, revisada em 1971

Com o desenvolvimento da indústria gráfica, a preocupação com o controle dos

dividendos do autor cresceu na proporção inversa da dificuldade de reproduzir as obras.

Com os tipos móveis, os impressores ganharam mais agilidade na composição das

matrizes e as provas saíam das oficinas muito mais velozmente. A forma escrita se

estabeleceu e se espalhou, obrigando a massa iletrada a converter-se ao novo credo e

colocando a proteção jurídica do direito autoral como uma necessidade social.

Em 1709, os ingleses promulgam a primeira lei formal sobre o tema: o

Coypright Act. Na França, em 1777, as proteções ao direito do autor já constam das

Ordens do Conselho do Rei. E no Novo Mundo, os recém-fundados Estados Unidos

inscrevem preocupações análogas tanto na Constituição de 1783 quanto no Federal

Coypright Act, de 1790. No Brasil, a primeira menção jurídica sobre o tema data de

1831, quando da tipificação do delito de contrafação (falsificação).

Em todos esses casos, o objetivo era garantir os rendimentos financeiros

advindos da exploração da obra, assegurando o direito do autor beneficiar-se com a sua

reprodução. Daí o termo “copyright”, direito de cópia. O que estava em jogo era a

proteção dos direitos patrimoniais sobre a obra.

A garantia dos direitos imateriais surge na Alemanha já no século XIX como

parte do direito de personalidade. Com isso, na doutrina do Direito, ficam evidentes

duas vertentes sobre o terreno autoral: a que protege a obra contra reproduções não-

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autorizadas (commom law, de família anglo-saxã) e a que protege a obra como criação

do espírito (droit d’auteur, de família romano-germânica).

Essas duas vertentes acabam se mostrando como aspectos complementares no

direito autoral:

• O moral, que assegura ao criador o controle à menção do seu nome na

divulgação da obra e o respeito à sua integridade, além dos direitos de modificá-

la ou de retirá-la de circulação;

• O patrimonial, que regula a utilização econômica da obra, prevendo pagamento

ao autor pela circulação e exploração da criação.

Neste sentido, o direito autoral visa proteger as obras intelectuais por sua

originalidade (no que se refere à sua forma externa) ou por sua criatividade (no que se

refere à sua forma interna). Henrique Galdeman (1997: 36) explica que as idéias em si

não são protegidas, mas sim suas formas de expressão: “O que se protege não é a

novidade contida numa obra, mas tão-somente a originalidade de sua forma de

expressão”. Quando criadas em serviços profissionais ou seguindo deveres funcionais

(contratos de prestação ou mesmo encomendas), as obras pertencem geralmente aos

contratantes. Em ocasiões semelhantes – e o Jornalismo pode ser uma delas -, o contrato

deve trazer expresso a quem pertence a obra para evitar transtornos com os dividendos.

Bastante evoluído mundialmente, o direito autoral já conta com códigos

específicos na maioria dos países e com tratados e convenções internacionais que

arbitram sobre o tema em situações de litígio. Tal como em outras áreas do

conhecimento humano, a Estética também se beneficiou com o aperfeiçoamento do

Direito: hoje, os conceitos de “autor” e “autoria” são mais complexos também por conta

das evoluções no campo jurídico.

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5.1.2 Retorno à genealogia

“O autor designa a necessidade de uma epistemologia e de uma ética da leitura; o autor é o nome de uma

norma para a interpretação” M. Antoine Compagnon, crítico francês

O desenvolvimento da indústria gráfica e o Iluminismo ajudaram a sedimentar

novos padrões na difusão das idéias por meio da palavra escrita. Aliás, a forma escrita

acabou por exigir um processo de identificação do texto e do seu titular. Regina

Zilberman (2001) intui que a assinatura dos primeiros textos não tenha se dado por

iniciativa dos seus autores, mas sim para atender às solicitações dos leitores.

Mesmo que questionável, a hipótese chama a atenção para a figura do leitor no

processo de constituição do autor. O trabalho de Zilberman se preocupa não apenas com

a constituição do autor, mas também com a sua reificação. Segundo sustenta, quando o

autor se aliena do texto contribui para o ocultamento de sua subjetividade, franco

processo de coisificação.

Por outro lado, a assunção de uma obra literária é a afirmação de um direito de

propriedade intelectual. E, neste sentido, a garantia desse reconhecimento é uma

conquista dos escritores que venceram outros personagens da indústria gráfica neste

litígio: inicialmente, os tipógrafos europeus consideravam-se os donos dos produtos que

vendiam; depois foi a vez de editores e livreiros reivindicarem tal propriedade.

Com a vitória dos autores, e o reconhecimento de sua autoridade criadora sobre

a obra, difunde-se uma certa figura do autor.

Refletindo sobre uma suposta extinção do objeto livro, Zilberman (2000)

pondera a supervalorização do autor no mundo da escrita:

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Não surpreende que, por decorrência, se tenha hipertrofiado a noção de autor, que passa a constituir o elemento mais valorizado do sistema literário, obscurecendo, como se apontou em capítulos anteriores, a importância do leitor. Quando Roland Barthes, num de seus ensaios, decreta “a morte do autor”, talvez tenha em mente minimizar a importância dessa figura, tanto mais que ele propõe substituí-la pela do leitor, definido como “o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita a escritura”. O autor, contudo, não se entrega tão facilmente: não apenas a morte detectada por Barthes é simbólica e virtual, como não se anulam os direitos de propriedade conquistados por ele, mesmo depois de seu falecimento real.

A hipertrofia do autor é muito conveniente para o sistema na medida em que

ajuda a ocultar “a materialidade do produto que o difunde, encobrindo ao mesmo tempo

o sistema econômico que o sustenta” (112).

Em 196859, Barthes publica o artigo “A morte do autor”, quando o mundo da

escrita degusta (rumina e digere) algumas das mais ousadas experiências literárias no

tocante à figura do narrador, do autor. Mallarmé, Valéry e Proust já haviam passado

pelos olhos dos leitores, depositando na língua, na palavra, o peso da criação. Eram

autores despreocupados com a própria visibilidade. Importava o código escrito, que, de

tanto funcionar, implodia em imagens, signos, sentidos e sensações. Catalisando um

certo movimento orquestrado de apagamento do autor, o avanço nos estudos da

Lingüística – principalmente os estruturalistas e pós-estruturalistas – atraiu os holofotes

para a maquinaria da linguagem, como se ela estivesse dissociada dos sujeitos que a

usam (e são constituídos por ela).

Neste contexto, a morte do autor se apoiava numa oposição a uma crítica

tradicional (aquela que endeusava o autor) e a uma clara adesão à vanguarda literária

(que apagava, anulava, dissolvia o autor). Barthes se contrapôs a uma ala da Crítica e

abriu os braços para o Noveau Roman.

59 O texto será publicado no Brasil vinte anos depois no volume O rumor da língua, pela Editora Brasiliense.

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Para Barthes (1988), o protagonismo do processo é exercido pela escritura que

efetua a “destruição de toda voz, de toda origem”. A partir do momento em que algo é

relatado, contado, ocorreria um desligamento, o autor sucumbiria e a escritura

começaria. Ela se constitui numa espécie de neutro, “esse oblíquo aonde foge o nosso

sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo

que escreve” (65).

Barthes recorre à ciência para reforçar seus argumentos. Segundo ele, a

Lingüística mostra que a enunciação é um processo vazio, que funciona independente

do preenchimento da figura do interlocutor:

Lingüisticamente, o autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como “eu” outra coisa não é senão aquele que diz “eu”: a linguagem conhece um “sujeito”, não uma “pessoa”, e esse sujeito, vazio fora da enunciação que o define, basta para “sustentar” a linguagem, isto é, para exauri-la. (67)

Diante disso, e frente às vanguardas literárias, Barthes afirma que o afastamento

do autor não é apenas um acontecimento ou uma ação na escritura. Isso modifica

radicalmente o texto na contemporaneidade. Assim, só existe um tempo, o momento da

enunciação. O escritor moderno nasce no mesmo instante em que aparece o texto.

Para Barthes, dar ao texto um autor é impor-lhe uma trava, fechar sua escritura,

algo muito conveniente para o crítico que quer decifrar o texto na medida em que

encontra o autor.

A alternativa proposta é a escritura múltipla, onde se oferecem sentidos

ininterruptamente. Só se desvenda a integralidade da escritura pela consciência de que

um texto é um tecido formado de escrituras múltiplas, de entradas e saídas, de tramas e

frouxidões. Mas existe um ponto onde esse rizoma se reúne

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... e esse lugar não é o autor, como se disse até o presente, é o leitor: o leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino, mas esse destino não pode mais ser pessoal: o leitor é um homem sem história, sem biografia, sem psicologia; ele é apenas esse alguém que mantém reunidos em um único campo todos os traços de que é constituído o escrito. (...) para devolver à escritura o seu futuro, é preciso inverter o mito: o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor. (70)

Portanto, a morte do autor não é apenas um crime ordinário provocado por

Roland Barthes no final dos anos 60 do século XX. Barthes não é o responsável pelo

assassinato do autor, mas quem aponta e revela o cadáver da vítima. Mas o teórico

francês não é também só uma testemunha do homicídio, mas cúmplice do delito na

medida em que o celebra em favor do leitor. Nesta alegoria criminal e literária, Barthes

poderia ser arrolado ao processo não como mais uma peça no desvendamento do crime,

mas como co-autor. As evidências indicam que o autor foi morto em defesa do leitor.

Como evidência não é prova e como o processo não foi concluído até então, a discussão

também está longe de terminar.

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5.2 Reconhecimento do sujeito e afirmação do singular

“...é que eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço”

Machado de Assis – Memórias Póstumas de Brás Cubas

Se o assunto é a morte do autor, nada mais oportuno do que começar pelas

palavras de um defunto-autor ou mesmo pelas de um autor que já deixou de viver. Seja

o Brás Cubas, de Machado, seja Italo Calvino, que, entre tantos títulos, escreveu Se um

viajante numa noite de inverno. Editado em 1979, o romance é uma obra de engenharia

narrativa que desterritorializa a leitura, confere novos contornos aos papéis do autor e

do leitor e resignifica a arte do romance. Nele, os personagens estão todos ligados ao

campo da palavra escrita: são leitores ávidos por terminar a leitura de romances, um

velho editor preocupado com as erratas e as encadernações, um escritor difuso, um

artista plástico que esculpi livros, um tradutor-falsário... Mas, além disso, em termos

literários, há um exercício contumaz de apagamento do autor. O próprio Calvino explica

o seu trabalho:

tentar escrever romances ‘apócrifos’, isto é, aqueles que imagino tenham sido escritos por um autor que não sou eu e que não existe, foi tarefa levada ao extremo em Se um viajante numa noite de inverno. Trata-se de um romance sobre o prazer de ler romances; o protagonista é o Leitor, que por dez vezes recomeça a ler um livro que, em razão de vicissitudes alheias a sua vontade, ele não consegue terminar60.

Com isso, quem se dá ao trabalho de passar pelas páginas de Se um viajante...,

acaba por se tornar o centro da história, confundindo-se com o Leitor-personagem e

com ele peregrinando para concluir a leitura. Tal empreitada reforça o objetivo de

Calvino de construir ali um objeto literário onde não deixe suas impressões digitais, em

torno do qual não se vejam suas pegadas. Tal ofício é levado tão a sério que o romance

se desconstrói de trechos em trechos, reconstruindo-se em seguida, desprendendo novos

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fios narrativos que precisam ser puxados. Em dado momento, o confuso livreiro

Cavedagna mostra ao leitor um parágrafo de um certo escrito:

Que importa o nome do autor na capa? Vamos nos transportar pela imaginação para daqui a três mil anos. Sabe-se lá quais livros de nossa época terão sobrevivido e quais autores ainda serão lembrados. Haverá livros que continuarão célebres, mas que serão considerados obras anônimas, como é para nós a epopéia de Gilgamesh; haverá autores cujo nome permanecerá célebre, mas dos quais não restará nenhuma obra, como é o caso de Sócrates; ou talvez todos os livros remanescentes sejam atribuídos a um único e misterioso autor, como Homero.61

Se um viajante... serve de aperitivo, mas Calvino também morreu e não pode

mais alimentar o debate. É necessário buscar outras lombadas na estante.

Em uma delas, onde se lê John Caughie, eu encontro um artigo de Edward

Buscombe que diz que a teoria do autor nasceu como uma política dos autores. “A

política, como indica a escolha do termo, foi polêmica no intento e significava definir

uma atitude para o cinema e para o curso da ação” (1981: 22). Ah! Mas ele se refere ao

cinema, à Política dos Autores, lançada por François Truffaut num texto publicado na

edição 31 dos Cahiers du Cinema nos agitados anos 6062. De qualquer forma, não se

pode ignorar que até mesmo os cineastas passaram a discutir estética e criação seguindo

a medida da autoria. A provocação de Truffaut causou discussão mundial tendo as

páginas dos Cahiers como arena principal. A idéia de uma política, de uma atitude

estética deliberada dividia os profissionais entre autores e filmadores, entre quem fazia

cinema e quem estava imerso na indústria do cinema...

Deixo Truffaut e o cinema de lado e esbarro no estudo que Lisandro Nogueira

(2002) fez sobre a teledramaturgia brasileira, mais especificamente sobre Gilberto

60 A justificativa foi transcrita no apêndice ao romance, mas sua primeira aparição se dá no Nuovi Quaderni Italiani, publicado como o artigo “Il libro, i libri”, em Buenos Aires,1984. 61 Calvino (2002: 105) 62 O artigo foi intitulado “Une certaine tendance du cinéma français” e atacava certas produções francesas tachando-as de literárias e não cinematográficas. Para Truffaut, um verdadeiro filme de autor traz algo genuinamente pessoal do seu realizador na obra, e o material apresentado ao público é uma expressão da personalidade do cineasta.

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Braga. O volume que tenho nas mãos descreve as condições que caracterizam a

produção de telenovelas, tornando-a o produto audiovisual mais comercializado e

rentável do país. Produzidas em escala industrial, as telenovelas alcançam orçamentos

vultosos, contam com elencos estelares e um exército de técnicos e produtores. São

exportadas para dezenas de países e tal sucesso não impede o exercício de uma autoria.

Aliás, no Brasil, ao contrário do que acontece no cinema, são muito mais conhecidos os

autores das telenovelas do que os seus diretores... A tensão permanece: de um lado, os

que sepultam o autor, cuspindo sobre sua lápide fria; de outro, quem celebra a autoria,

quem afirma a necessidade da assinatura. Como no romance de Ítalo Calvino, a cada

livro que apanho, não chego ao final da história. Cada título me aponta caminhos por

onde me perco e me confundo. Preciso de um guia, de uma bússola...

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5.3 A função autor

“Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta

cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se

perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam

tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que

Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria

Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto”.

Jorge Luis Borges – O Labirinto

Para não se perder pelos corredores do labirinto do Minotauro, Teseu usou o fio

de Ariadne. Foi com ele preso nos dedos de uma mão que o guerreiro pôde deixar a

estrutura, deixando para trás o monstro derrotado. Jorge Luis Borges gostava muito de

labirintos e sempre que podia os encaixava nas paredes de suas histórias. Na epígrafe

acima, o escritor desfia as frases para atravessar a perdição. Michel Foucault gostava de

Borges e o lembrou no início de um livro seu. Cito também o argentino no começo

desta seção. E uso Foucault para me orientar no labirinto conceitual em que me meti.

Depois que Barthes anunciou a morte do autor, esse ocaso tornou-se objeto de

debates nos principais círculos críticos e literários. Uma resposta à altura do texto de

1968 chegará já no ano seguinte, quando da publicação de uma conferência dada por

Michel Foucault intitulada “O que é um autor?”63.

A intenção do pensador francês – ele mesmo dirá (2001: 294) - era investigar o

que havia por baixo do apagamento do autor. Isto é, o que poderia ser visto com o

anúncio da morte do autor. A partir desse questionamento, Foucault vai pensar sobre

que papel o autor exercia na literatura, sob que condições ele o fazia e que regras

atuavam nesse terreno. A resposta passa pela consideração de que há uma função autor,

63 A primeira publicação da conferência acontece no Bulletin de la Societé Française de Philosophie nº 3, de julho-setembro de 1969, pp. 73-104. Já na década de 70, Foucault reapresentará essa mesma fala na Universidade de Búfalo (EUA), acrescida de comentários, o que será publicado em 1979. No Brasil, o texto só

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e que esta é uma das especificações possíveis de uma entidade múltipla como o sujeito.

Dessa forma, para Foucault, não basta apenas alardear que o autor morreu, mas sim

identificar o espaço vago com essa desaparição e observar o que resta ali. Esse percurso

obriga a refletir sobre as noções de “obra” e mesmo de “unidade” que a obra deve

conter sob o mesmo nome de autor. O que caracteriza uma obra? O que faz com que

certos escritos possam ser encaixados numa mesma rubrica? Anotações em cantos de

página podem ser consideradas como romances ou ensaios? Não se nega o interesse que

esses escritos ordinários podem despertar – Foucault cita notas de lavanderia de

Nietzsche, por exemplo -, mas seu status de obra. Michel Foucault chama a atenção

para o fato de que há diferenças sensíveis entre os escritos e que a autoria nem sempre

se manifesta neles, fato que leva a pensar numa autoria como função do sujeito. Neste

sentido, chega a pensar que o próprio nome do autor não é exatamente um nome próprio

como os demais. Ele não apenas um elemento num discurso - como um complemento

ou um sujeito-, mas tem uma função classificatória: a partir dele se pode reagrupar

textos, traçar características comuns, delimita-se um campo próprio para o autor. O

nome do autor funciona para

caracterizar um certo modo de ser do discurso: para um discurso, o fato de haver um nome de autor, o fato de que se possa dizer ‘isso foi escrito por tal pessoa’, ou ‘tal pessoa é o autor disso’, indica que esse discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa, uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um certo status. Chegar-se-ia finalmente à idéia de que o nome do autor não passa, como o nome próprio, do interior de um discurso ao indivíduo real e exterior que o produziu, mas que ele corre, de qualquer maneira, aos limites dos textos, que ele os recorta, segue suas arestas, manifesta o modo de ser ou, pelo menos, que ele o caracteriza. Ele manifesta a ocorrência de um certo conjunto do discurso, e refere-se ao status desse discurso no interior de uma sociedade e de uma cultura. O nome do autor não está localizado no estado civil dos homens, não está localizado na ficção da obra, mas na ruptura que instaura um

chegará às estantes em 2001 no terceiro volume dos Ditos & Escritos de Michel Foucault, com organização de textos de Manoel Barros da Motta. As referências a este texto seguem a versão brasileira.

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certo grupo de discursos e seu modo singular de ser. Conseqüentemente, poder-se-ia dizer que há, em uma civilização como a nossa, um certo número de discursos que são providos da função ‘autor’, enquanto outros são dela desprovidos. Uma carta particular pode ter um signatário, ela não tem autor; um contrato pode ter um fiador, ele não tem um autor. Um texto anônimo que se lê na rua em uma parede terá um redator, não terá um autor. A função autor é, portanto, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade. (op.cit.: 273-4)

(A longa citação se justifica não só para evocar o sotaque foucaultiano, mas

ainda para fazer valer a função autor, na medida em que permite a emersão do nome do

autor na superfície do texto. À medida que convoco o próprio autor para vocalizar o que

escreveu, dão-se condições para que o nome do pensador revista-se de novos contornos.

A exemplo do funcionamento que ele mesmo diagnosticou).

Não apenas na literatura, mas também em outros campos, o nome do autor pesa.

Como uma grife, uma chancela, o nome não traduz apenas quem responde por aqueles

escritos. No Jornalismo, um texto de Paulo Francis não é apenas um conjunto bem

articulado de mordacidade, virulência e polêmica. É um texto de Paulo Francis. No

Jornalismo, uma reportagem de Joel Silveira não é uma matéria ordinária. É um

trabalho que tem a rubrica do legendário repórter. Da mesma forma, um quadro pintado

por Pablo Picasso é um Picasso, uma foto tirada por Sebastião Salgado alcança

notoriedade não apenas pela sua qualidade técnica, mas também pela história recente

que traz em seu bojo. Assim, o nome do autor deixa de ser complemento e torna-se

substantivo: o livro é um Rubem Fonseca, o poema é um Drummond, o romance é um

Proust, a tela é um Matisse...

É curioso lembrar que o nome do autor passa a ter mais visibilidade para que o

criador seja punido. Quer dizer, a assinatura do autor vai possibilitar que as instituições

identifiquem o indivíduo para que possam responsabilizá-lo por virtuais danos ou

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transgressões. A assinatura é como uma impressão digital, traço da identidade. A

metáfora da impressão digital não é gratuita já que se trata aqui de criminalização ou

responsabilização penal por produtos de criação autoral. Diante disso, Foucault teria

nisso mais uma confirmação de sua hipótese sobre o caráter disciplinar das sociedades.

Essa tendência se mantém até hoje64.

Para Foucault, é possível reconhecer no autor quatro componentes distintos que

fazem-no exercer a função de autoria:

• Os produtos de criação – textos, obras de arte, etc - são objetos de sua

apropriação. Ao estampar seu nome neles, o autor faz operar formas de

pertencimento sobre tais objetos;

• Não se exerce a função autor de maneira idêntica e constante em todos os

discursos. Não há uniformidade nesse exercício, e tudo depende das épocas e das

modalidades dos objetos de criação;

• A função autor não se forma espontaneamente tal qual a atribuição de um texto a

uma pessoa. Ela é resultado de uma operação complexa que constrói um certo

ser de razão que chamamos de autor. Para Foucault, o que faz de um indivíduo

um autor (ou o que no indivíduo é designado como autor) é a “projeção, em

termos sempre mais ou menos psicologizantes, do tratamento que se dá aos

textos, das aproximações que se operam, dos traços que se estabelecem como

pertinentes, das continuidades que se admitem ou das exclusões que se

praticam” (op.cit.:276-7). O autor é um ponto de reunião e dispersão, um vórtice

onde se estabelecem coerências criativas;

64 Tal orientação é tão introjetada no sujeito contemporâneo que o mesmo Foucault chegaria a dizer que o anonimato literário é insuportável para os leitores, sendo aceito apenas como jogo, enigma (op.cit.:276)

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• Não se deve buscar o autor na pessoa do escritor, do artista ou do jornalista. Eles

nem sempre coincidem, e a função autor se efetua “na própria cisão – nessa

divisão e nessa distância (op.cit.: 279). Todos os discursos e produtos onde

opera a função autor contêm essa pluralidade de egos. Seria enganoso buscar

razões na pessoa do dramaturgo para justificar as razões do texto da peça, por

exemplo. Essa correspondência pode se dar ou não. A autoria não remete tão

somente a um indivíduo real, mas pode estar vinculada ao mesmo tempo a várias

posições-sujeitos que diferentes indivíduos podem vir a preencher.

É necessário ressaltar que, com a determinação do que é e de como opera a

função autor, Michel Foucault oferece contribuições importantíssimas para o estudo do

sujeito contemporâneo. Isso porque reforça o seu caráter múltiplo, clivado, dinâmico.

Ser autor é uma dimensão possível nas tantas que ser sujeito comporta.

Assim, o autor é o que vai poder explicar numa obra modificações, desvios,

transformações ocorridas entre um produto e outro.

O autor é, igualmente, o princípio de uma certa unidade de escrita – todas as diferenças devendo ser reduzidas ao menos pelos princípios da evolução, da maturação ou da influência. O autor é ainda o que permite superar as contradições que podem se desencadear em uma série de textos: ali deve haver – em um certo nível do pensamento ou do seu desejo, de sua consciência ou do seu inconsciente – um ponto a partir do qual as contradições se resolvem, os elementos incompatíveis se encadeando finalmente uns aos outros ou se organizando em torno de uma contradição fundamental ou originária. O autor, enfim, é um certo foco de expressão que, sob formas mais ou menos acabadas, manifesta-se da mesma maneira, e com o mesmo valor, em obras, rascunhos, cartas, fragmentos etc. (op.cit.: 278)

Para Foucault, com a função autor em cena, compreende-se um pouco melhor a

natureza multifacetada do sujeito contemporâneo e suas relações com os diversos

discursos. Deixa-se de perguntar como a liberdade de alguém pode incidir nos objetos

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(nos textos e obras) para questionar de que formas o sujeito aparece na ordem dos

discursos, que papéis ocupa nos textos. “Trata-se, em suma, de retirar do sujeito (ou do

seu substituto) seu papel de fundamento originário, e de analisá-lo como uma função

variável e complexa do discurso”, sintetiza o pensador (287).

Em dezembro de 1970, Foucault voltaria a falar das relações entre sujeitos e

discursos em sua aula inaugural no Collège de France, intitulada “A ordem do

discurso”. Segundo ele, em toda sociedade, a produção dos discursos é controlada,

organizada, selecionada e redistribuída atendendo a uma rigorosa e complexa lógica de

controle. Entre os procedimentos incidentes, estariam técnicas de exclusão e de

rarefação. O autor seria um desses princípios que atuariam na produção discursiva. Não

a pessoa que escreve, pinta ou cria, mas o autor “como princípio de agrupamento do

discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”

(2001:26); o autor como alguém que “dá à inquietante linguagem da ficção suas

unidades, seus nós de coerência, sua inserção no real” (28).

Foucault torna a dizer que não se trata de negar o indivíduo que executa as

operações físicas e mecânicas de escrever, desenhar ou criar; seu foco está na função

autor que essa pessoa permite funcionar a cada momento.

Todo esse jogo de diferenças é prescrito pela função do autor, tal como a recebe de sua época ou tal como ele, por sua vez, a modifica. Pois embora possa modificar a imagem tradicional que se faz de um autor, será a partir de uma nova posição do autor que recortará, em tudo o que poderia ter dito, em tudo o que diz todos os dias, a todo momento, o perfil ainda trêmulo de sua obra. (idem: 29)

Na literatura, nas artes, no Jornalismo, o autor não é um corpo, um rosto ou uma

voz; é, sim, uma posição ocupada em tantas que o sujeito pode firmar. Aliás, tem-se

claro aqui que o sujeito é um lugar, uma instância, uma posição discursiva. A noção de

autor opera como função da de sujeito, e responde pela organização dos sentidos e por

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uma certa unidade de textos e discursos, o que provoca o efeito de continuidade do

sujeito. Conforme frisa Eni Orlandi, a função autor não se limita a um pequeno conjunto

de produtores originais de linguagem. “Para nós, a função autor se realiza toda vez que

o produtor da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade,

coerência, progressão, não-contradição e fim” (1996: 68).

Ainda segundo Orlandi, a posição de autor se constrói à medida que se funda um

lugar de interpretação definido pela relação com o outro e com os demais discursos que

podem ser correlacionados. No final das contas, a autoria constrói e é construída pela

interpretação simultaneamente. Na terminologia da tradição francesa da Análise do

Discurso65, o autor surge graças a um efeito-leitor. Isto é, o autor se produz através d

“possibilidade de um gesto de interpretação que lhe corresponde e que vem ‘de fora’. O

lugar do autor é determinado pelo lugar da interpretação. O efeito-leitor representa, para

o autor, sua exterioridade constitutiva (memória do dizer, repetição histórica)”

(op.cit.:74-5).

Com isso posto, o sistema de escrita e leitura – ou de criação e recepção – fica

mais dinâmico, com lugares bem definidos e com uma estrutura menos hierárquica. Isto

é, o autor não é o centro do sistema, como queriam influentes camadas da crítica e da

produção artística. Nem mesmo o leitor assume o centro, a despeito do que pregou

Roland Barthes. Leitor e autor são posições ocupáveis, igualmente relevantes no

processo comunicativo, mutuamente influenciáveis, interdependentes e complementares

nas suas constituições.

65 Matriz conceitual e operativa dos estudos lingüísticos a qual Eni Orlandi se filia. Surgida em 1969 a partir de estudos de Michel Pêcheux, teve continuidade com pesquisadores como Françoise Gadet, Denise Maldidier, Paul Henry, Silvain Auroux, Régine Robin e Jacqueline Authier-Revuz. No Brasil, além de Orlandi, destacam-se Pedro de Souza, Freda Indursky, Mônica Zoppi-Fontana, Sírio Possenti e Solange Galo.

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5.4 Autoria como exercício de estilo

“O estilo é o próprio homem” George de Buffon, naturalista francês

“Agora, sim, você está pronto para devorar as primeiras

linhas da primeira página. Está preparado para reconhecer o inconfundível estilo do autor. Não, você não o está reconhecendo.

Mas, pensando bem, quem afirmou que este autor tem estilo inconfundível? Pelo contrário: sabe-se que é um autor que muda muito

de um livro para outro. E é justamente nessas mudanças que se pode reconhecê-lo” Ítalo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno

Fazer valer a função autor não é apenas ceder o nome para que ele carimbe a

lombada de um livro e dê ao escrito uma paternidade. A autoria deve revelar um estilo.

O exercício do estilo, de um semblante para o texto pode se constituir num dos

procedimentos necessários para marcar uma autoria, seja na arte ou no Jornalismo.

Mas o estilo no cotidiano jornalístico é diferente do na literatura, por exemplo, já

que contém muito mais limitadores técnicos e estéticos. Para exercer um estilo na

reportagem, o profissional parece ter um espaço mais estreito, com menos margem de

manobras textuais, dadas as condições em que se inscreve o Jornalismo como prática

social. Entretanto, o que se toma aqui por estilo?

Erik Nils Enkvist (1974) aborda o estilo como escolha e desvio. O estilo opera

enquanto escolha em três níveis: na gramática, em termos estilísticos e em termos não-

estilísticos. Isto é, quando se escreve, a escolha de uma construção gramatical em

detrimento de outra ajuda a marcar um estilo de texto. Claro que há limitações neste

primeiro nível, principalmente quanto às regras da língua, a correção de seu uso e

aplicação, bem como a inteligibilidade dos enunciados que se quer lançar adiante.

Mas se é fácil identificar tais opções na superfície da língua, na sua pele

gramatical, nas outras camadas, resulta mais complicado, adverte o próprio Enkvist.

Mesmo assim, ele arrisca uma distinção: à primeira vista, uma escolha estilística se dé

entre “coisas que dificilmente significam o mesmo, ao passo que escolha não estilística

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envolve seleção entre significados diferentes” (op.cit.: 34). Assim, para dizer o mesmo,

o escritor pode lançar mão de diversos recursos que dêem conta do que pretende. “Não

sabia que tu tinhas tantos motivos para não fazê-lo” pode ser dito como “Ignorava que

havia razões para tal”, por exemplo, ou qualquer outra glosa.

A primeira tentação que se pode sucumbir agora é considerar que ter um estilo é

falar um dialeto próprio. Entretanto, entender o estilo como expressão tão somente

individual reserva pelo menos o problema de que alguns traços apontados como

estilísticos nem sempre são totalmente individuais, e sim coletivos, compartilhados por

grupos. São jargões, gírias ou terminologias técnicas, incorporadas pelo indivíduo.

Desta forma, identificar um estilo torna-se uma tarefa mais trabalhosa do que se

supõe inicialmente. Enkvist estabelece que, para isso, deve-se organizar um conjunto de

obras que sirvam de referência para se encontrar a norma da qual um certo texto difere.

Por comparação, pode-se observar o que é expressão individual, estilo propriamente

dito e seguimento de padrão textual.

Toda análise estilística baseia-se fundamentalmente na comparação de um texto a uma norma contextualmente relacionada. Tais normas podem ser explicitamente circunscritas ou permanecerem implicitamente encerradas na experiência pretérita do falante, escritor ou crítico literário. Uma referência ao contexto torna possível a definição de uma norma sem referência inicial ao estilo, que ainda permanece desconhecida a essa altura do processo. O presente enfoque, portanto, evita a circularidade inerente a algumas teorias de estilo. Os itens lingüísticos dependentes do contexto funcionam como marcadores de estilo. Marcadores de estilo que ocorram no mesmo texto formam uma série estilística para esse contexto. Uma série estilística partilhada por um grande número de textos contextualmente correlacionados forma série estilística maior, que ocorre dentro de uma escala contextual maior. Os marcadores de estilo consistem em tendências estatísticas ou em itens mutuamente exclusivos. (op.cit.:71)

Assim, o estilo é desvio, é aquilo que se destaca do homogêneo, é diferença.

Contraria o padrão, fazendo viger parte de suas regras constituintes. Isto é, um escritor

precisa submeter-se a certos elementos definidores do conto para, na escritura da

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história, poder imprimir aquilo que lhe é peculiar, particular, próprio, diferenciando-se

dos demais contistas. Em “Some effects of motivation as sttyle of encoding”66, Charles

Osgood define estilo como “o desvio de um indivíduo de normas para situações em que

ele esteja codificado estando esses desvios nas propriedades estatísticas daqueles traços

estruturais para os quais exista algum grau de escolha no seu código”. Seguindo esse

entendimento, um jornalista só empreende um estilo na medida em que encontra

espaços preciosos dentro da estrutura da reportagem para reportar os fatos de uma

maneira característica, sensivelmente diferente da maneira usada por seus colegas. Seu

texto não deixa de ser jornalístico, não ignora seu compromisso de informar, não

contraria a preponderância da fidelidade aos acontecimentos. Mas reporta de uma forma

distinta, diferenciada.

José Lemos Monteiro (1991:12) vai insistir no fato de que todas as acepções do

termo estilo67 convergem para o plano da linguagem. É nela que o estilo se realiza. Em

última instância, ele seria “uma forma peculiar de encarar a linguagem com uma

finalidade expressiva”. Atender a essa finalidade é, nos dizeres de José G. Herculano de

Carvalho68 - lançar mão de um conjunto de características formais adequando o

instrumento lingüístico aos propósitos para os quais o texto foi produzido. Com isso,

fica mais claro que ter um estilo não é apenas dizer o que se quer, da forma que bem

entender. Mas, sim, inscrever-se numa ordem do discurso, submeter-se a algumas

regras, fazer determinadas escolhas de forma, de maneira a afastar-se da norma. É na

tensão entre atender a norma e se distanciar dela – não perdendo de vista a adequação

do texto à ocasião e ao propósito que lhe deu origem - que se consegue marcar um

estilo, deixar marcas. Vou mais longe: deixar impressões digitais. Quer dizer,

66 Artigo publicado em Style in Language e citado por Enkvist à p. 40 da obra que nos serve de referência. 67 Estilo pode ser entendido como elemento idiossincrático (um conjunto de traços próprios da personalidade de quem escreve), como técnica expositiva (tudo aquilo que ajudaria a tornar o texto reconhecível e pertencente a alguém) ou como realização literária (execução universal de uma expressão particular).

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empreender um estilo é uma manifestação do singular, do individual, do pessoal. É uma

evidência da subjetividade. No Jornalismo, o estilo do repórter segue na contramão da

objetividade, debate-se com o estilo perpetrado pelos manuais de redação, que

padronizam e normatizam. O estilo é a peculiaridade do contador dos fatos, a voz de

quem reporta o acontecimento, o sotaque da testemunha da História.

Othon M. Garcia (1985: 103) dirá que o estilo é “tudo aquilo que individualiza

obra criada pelo homem, como resultado de um esforço mental, de uma elaboração do

espírito, traduzido em idéias, imagens ou formas concretas”. No Jornalismo, “a procura

da ênfase através da posição das palavras no texto, nos títulos ou manchetes, constitui

preocupação constante de redatores e repórteres” (op.cit.:265). Mas o estilo jornalístico

não se restringe apenas à fixação de uma sintaxe ou na sobrevalorização da clareza

como elemento textual. Na próxima seção, trato disso com mais atenção, mas antes é

necessário alinhavar alguns pontos.

Se o estilo revela um caráter para o texto, é preciso ter em mente que ele pode

ser um desdobramento do caráter do escritor. Ele pode ser. Não necessariamente é. Não

há um compromisso inescapável de sê-lo, mas pode se contagiar pelo autor. O estilo é

uma expressão do pessoal, do particular, por essa razão é o oposto de qualquer arroubo

de objetividade ou neutralidade. Nas ciências e no Jornalismo, essa distinção alcança

bastante relevância porque constitui um franco golpe contra um dos pilares mais caros

de suas constituições. Golpeia, mas não derruba. Trinca, provoca fissuras.

Estilo não é o mesmo que autoria, mas um subconjunto dela. O estilo é uma

condição de existência da autoria, sua forma mais bem acabada de visibilidade e

evidência. Um estilo é um olhar manifesto no texto, na fotografia, nas artes. É um eco

do sujeito, resto de uma voz que ecoa e que por vezes se perde. A autoria é mais que o

estilo; é o exercício de um estilo. Isto é, para ser autor, é preciso fazer operar um estilo,

68 Teoria da linguagem: natureza do fenômeno lingüístico e análise das línguas. Coimbra: Atlântida, 1973

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fazer funcionar um semblante, um aspecto só seu. Por isso, insisto na expressão exercer

um estilo. Porque é um empreendimento, uma iniciativa, uma ação deliberada, resultado

de uma vontade, de desejos.

Se o sujeito contemporâneo não é centrado, nem é mesmo a origem do que fala e

escreve; se ele é uma posição de discurso; se ele é dinâmico e multifacetado, habitado

por fantasmas; e se a autoria lhe é uma função, o estilo é um exercício, uma operação

constituinte dela. O estilo é um gesto consciente de que se pode ser único, de que se

pode ser distinto dos demais. Tem correspondência com o sujeito a quem é reconhecido

porque é resultado de muitas de suas ações.

Escrevi há pouco que o estilo não é o mesmo que a autoria, mas um subconjunto

dela. O que significa dizer também que o estilo é a forma como a autoria se apresenta,

como se mostra a sua estética e a sua interface gráfica, visual. O que aparenta ser um

elemento único a quem dirige um olhar ao produto, seja ele um texto, uma reportagem,

uma obra de arte. Que isso não nos confunda e faça crer que o estilo é uma aura. Pois

não o é. O estilo é um rastro visível, sondável da passagem de um sujeito por alguma

forma de expressão artística ou comunicacional. Por isso, é que é preciso entender o

estilo como um exercício, uma atitude, enfim, algo a se exercer. Para ser autor, é

necessário marcar um estilo, deixar traços do que podem vir a se tornar marcas para

novos padrões. Assim, no Jornalismo, para ser autor na reportagem, é preciso que haja

uma preocupação em contar os fatos de maneira não-automatizada, com margens que

permitam reportar os acontecimentos a despeito de qualquer clausura que um manual de

redação de empresa possa impor. Na reportagem, a autoria restitui os sujeitos no

processo de comunicação: primeiro porque compreende o leitor como uma instância de

alteridade-complementaridade na definição da identidade discursiva de quem escreve;

depois porque resgata o autor como jornalista, narrador da contemporaneidade.

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Se o sujeito fosse um rosto, a função autor seria seu reflexo no espelho, uma

imagem projetada. Esta superfície de vidro e prata que reflete o rosto é imperfeita, sofre

ação de elementos exteriores e deforma, duplica, contorce a imagem do rosto. A função

é uma projeção do rosto, um desdobramento daquela fisionomia. O rosto também se

move, mobiliza músculos, quase nunca é o mesmo. Avançando na metáfora, perceber o

estilo é ver como a imagem refletida no espelho se penteia diante de si. Isto é, o estilo é

como se mostra o pentear, como a mão se comporta, como os cabelos caem para o lado.

Mas e o espelho, o que ele é na metáfora? O espelho é o texto, a obra onde se vê a

autoria e o estilo, onde eles se imprimem.

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5.5 Estilo e Autoria no Jornalismo

“... este é o momento (na história da cultura ocidental) em que aqueles que buscam a realização por meio do papel

não são apenas indivíduos isolados, mas também coletividades: seminários de estudo, grupos operacionais, equipes de pesquisa,

como se o trabalho intelectual fosse demasiado desolador para ser enfrentado solitariamente. A figura do autor se tornou plural

e se desloca sempre em grupo, porque ninguém pode ser delegado a representar ninguém...”

Ítalo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno

“O autor tem autoridade e o leitor precisa dele não como uma pessoa, como o outro, como um herói, mas como um princípio

ao qual cumpre adequar-se(...) O autor deve ser compreendido, acima de tudo, a partir do acontecimento da obra, em sua

qualidade de participante, de guia autorizado pelo leitor” Mikhail Bakhtin – Estética da criação verbal

Certamente, é mais fácil identificar na literatura ou nas artes um estilo, um rosto.

No Jornalismo, uma atividade técnico-profissional, há menos espaço para manifestações

da subjetividade, graças a alguns dos conceitos que se cristalizaram com o tempo e o

aumento da complexidade do mundo jornalístico. É evidente que em colunas de jornal e

revista, em programas personalizados de radiodifusão ou em espaços opinativos –

inclusive as charges -, fica mais nítido perceber as marcas de uma personalidade, de

uma certa subjetividade. Entretanto, na maioria dos produtos jornalísticos oferecidos ao

público, existe uma tentativa deliberada de calar os sujeitos que reportam em detrimento

de uma suposta possibilidade de os fatos falarem por si mesmos. Nas redações, nos

estúdios e nas ruas, o repórter deve desaparecer em nome da notícia. Para isso, criaram-

se procedimentos técnicos, justificativas éticas e mesmo desculpas estéticas para a busca

do que se convencionou chamar de objetividade jornalística. Assim, desenvolveu-se o

Jornalismo nas grandes praças mundiais – e por extensão, o brasileiro.

Os apóstolos dessa orientação têm razão quando afirmam que a notícia é mais

importante do que seu narrador. Entretanto, não se pode esconder o fato de que notícias

são relatos sobre coisas, situações e pessoas feitos por pessoas inseridas em contextos

históricos. Mais: não se pode ignorar que Jornalismo e comunicação são atividades e

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processos sociais, envolvendo sujeitos históricos. Esse argumento isolado já traria boa

carga de munição num debate acerca da objetividade, mas prefiro não retornar às

discussões do Capítulo 2. Interessa agora mapear como o estilo é entendido no

Jornalismo, como se manifesta e sob quais circunstâncias permite a inscrição de uma

autoria na reportagem.

A primeira parada obrigatória é o ensaio de Alceu Amoroso Lima onde se

ilumina o Jornalismo como gênero literário distinto de seus parentes e contraparentes da

literatura. Um gênero literário “é um tipo de construção estética determinada por um

conjunto de disposições interiores em que se distribuem as obras segundo as suas

afinidades intrínsecas e extrínsecas” (1990:33). O Jornalismo reuniria um conjunto de

aspectos de uma constituição única o que o credenciaria a uma condição de gênero

específico. O primeiro traço de distinção do Jornalismo é o apego pela informação,

afirma o ensaísta. A formação da opinião pública, a atualidade e a objetividade seriam

outras características desse gênero.

A objetividade é outro traço natural do Jornalismo, como gênero literário. O importante é manter o contato com o fato. Tudo mais deriva daí: a informação do fato; a informação pelo fato; a atualidade do fato; o estilo determinado pelo fato. O fato, o acontecimento é a medida do jornalista (op.cit.: 65).

Entenda-se, então, objetividade como foco nos objetos, nas coisas, nas situações

exteriores ao narrador. A objetividade de Alceu Amoroso Lima é uma preocupação do

profissional que tem por devir repassar à sociedade o que acontece no mundo. Tal

objetividade junto às demais qualidades já mencionadas determinariam os elementos

formadores de um estilo jornalístico, dirá o autor. Este é condição preliminar para um

estilo do jornalista. Entretanto, o profissional deve atender ao primeiro para que possa

manifestar o segundo. Para Amoroso Lima, o estilo é conseqüência e não causa, e

melhora à medida que deixa o plano consciente para um “substrato da personalidade”.

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Logo, o estilo é um modo de ser e não algo em si mesmo. A concepção tem acento

naturalista, quase biológica, pode-se perceber.

Numa oposição ao beletrismo ou mesmo às experimentações literárias, o estilo

jornalístico estaria fortemente marcado por um sotaque coloquial, cotidiano, comum.

O estilo comum precede o estilo próprio. É uma preparação para aquele. E é uma das justificativas da existência de gêneros literários e não de sua fusão num gênero único (...) É o estilo comum que exige do jornalista precisão de termos (...) O verbo preciso será sempre a exigência comum do estilo jornalístico. É preciso que a palavra corresponda ao fato e seja o mais transparente possível, precisamente para revelar e não esconder o fato (...) Mas um jornalista, mesmo que o seu objeto seja impreciso, tem de ser preciso em seu estilo (...) A concisão é uma conseqüência da precisão. O modo melhor de ser preciso é ser conciso: empregar o menor número de palavras, embora sempre as palavras mais adequadas. Não é qualidade específica do jornalista. Mas o é do Jornalismo (idem: 68).

Assim, o estilo jornalístico está a serviço do compromisso de informar. Para

Amoroso Lima, o bom profissional escreve rápido – porque deve se ater ao

acontecimento do dia -, escreve com precisão e de maneira concisa – para informar com

exatidão -, narra com clareza – porque precisa disseminar a informação ao máximo - e

forma a opinião pública com honestidade.

Resumindo: o estilo jornalístico se pauta por rapidez, concisão, clareza, exatidão

e cultura geral, atributos racionais que conformam a atividade sob o que o autor chama

de “têmpera intelectualista”. O jornalista dissipa a confusão na medida em que traz a

informação; coloca ordem no caos informativo; ele organiza os fatos em manchetes por

sua relevância e alcance, ineditismo e atualidade.

O Jornalismo é uma atividade racional, que permite o sentimento, mas determina

que a inteligência domine a emoção (69-70). Mas como disse o autor, o estilo comum é

condição que antecede o exercício de um estilo pessoal:

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Se o estilo comum do Jornalismo exige certas condições intrínsecas e rigorosas, já o estilo próprio admite, como sempre, a máxima liberdade. Preenchidas as condições comuns – precisão, concisão, clareza, cultura – então a liberdade, em vez de ser condicionada pelo gênero, é uma exigência dele mesmo e da condição do próprio jornalista, que é um artista como outro qualquer. Essa característica do estilo próprio passa então a ser a própria afirmação da personalidade, aquilo que faz com que um jornalista seja diferente do outro e constitua o seu mundo à parte, o seu estilo próprio. (...) A afirmação da personalidade pelo estilo é, pois, a exigência máxima do verdadeiro jornalista. E, neste terreno, cada qual é o seu próprio guia. Se o jornalista, preocupado demais com o estilo comum da profissão, deixar na sombra o seu estilo próprio, terá falhado, como falhará aquele que sacrificar o comum ao próprio. Um não entrará, sequer, no recinto. O outro, dele sairá... (71-72)

É na satisfação do estilo comum do Jornalismo que o repórter encontra espaço e

condições para manifestar sua maneira de reportar os acontecimentos. Insisto aqui:

referimo-nos até então à reportagem, ao material noticioso e não ao opinativo. Como as

modalidades textuais do Jornalismo opinativo são a expressão de pontos de vista

pessoais ou coletivos, como elas se concentram na tomada de partidos e na difusão de

idéias (em detrimento de relatos de fatos), o exercício do estilo no Jornalismo opinativo

segue outras regras que não me interessam neste estudo. Trata-se aqui apenas da autoria

e do exercício do estilo na reportagem jornalística.

Para Juarez Bahia, a reportagem “só se esgota no desdobramento, na

pormenorização, no amplo relato dos fatos. O salto da notícia para a reportagem se dá

no momento em que é preciso ir além da notificação” (1990:49). Assim, é na

reportagem que o ato de narrar irá encontrar no sujeito narrador a sua sustentação maior,

o suporte que vai dar ao relato a força, o envolvimento e o alcance das grandes histórias.

O detalhamento das situações, os questionamentos pertinentes e a interpretação dão ao

texto “uma nova dimensão narrativa e ética”.

Na reportagem e no Jornalismo, estilo se remete à forma de escrita, mas também

ao modo de ser do veículo de comunicação, lembra Bahia. Estariam em jogo, então, não

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apenas a linguagem, a personalidade, o ritmo dos textos e as técnicas redacionais, mas

também a angulação das matérias, o lugar de onde se fala. Incidem também aspectos

idiossincráticos, corporativos, ideológicos e influências histórico-contextuais. O estilo

assume um papel diferente do desempenhado na literatura: no Jornalismo, não é uma

qualidade, mas uma necessidade, uma condição para tornar os textos mais legíveis, mais

compreensíveis e – por que não? – mais agradáveis. Por essa razão, o estilo jornalístico

estabelece pontes ligando-se a outros estilos, como o literário, por exemplo. Entretanto,

o estilo jornalístico é próprio

não por ser original, e sim por ser a linguagem prática da notícia. Ao contrário do livro e da literatura – no seu sentido clássico -, o Jornalismo não é campo de prova para teorias de estilo. O estilo jornalístico tem uma dinâmica própria, que é a da linguagem comum das pessoas adaptada ou traduzida segundo normas de redação que não violam o seu significado. Assim, o lead – que se insere nas mudanças que ocorrem na comunicação coletiva desde a II Guerra Mundial – não exclui definitivamente o nariz-de-cera, a introdução ou a apresentação da matéria. (...) Como padrão de linguagem, o estilo jornalístico se aperfeiçoa beneficiado pela energia e dinamismo dos meios, e mais rapidamente que o estilo literário, por exemplo. (op.cit.: 83)

Na compreensão de Juarez Bahia, os veículos não devem aprisionar os

repórteres em camisas-de-força estilísticas, mas as restrições editoriais se justificariam

nos casos de abusos da linguagem, vícios e imprecisões que comprometam o produto

jornalístico. “A racionalização e a padronização no estilo do Jornalismo nada mais

representam que uma ordenação de critérios básicos, sem os quais práticas rotineiras da

informação ficariam confusas, redundantes ou ruidosas” (idem: 84-5). As normas

fixadas para a redação têm por objetivo alcançar uma unidade no produto polifônico,

garantir legibilidade aos textos e dar ao veículo uma identidade discursiva.

Poder-se-ia até concordar com as prescrições do autor caso as empresas

jornalísticas – pelo menos as maiores no mercado brasileiro – mantivessem essas

preocupações no foco de seus manuais. E caso os resultados da eficácia dessas novas

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gramáticas jornalísticas não sacrificassem a diversidade textual e não tolhessem a

criatividade dos narradores. O que se percebe nas últimas duas décadas é que o texto

jornalístico nacional automatizou-se, encolhendo em conteúdo e empobrecendo na

diversidade de sua forma de apresentação.

Uma olhadela nos manuais de redação e estilo mostra que eles não apenas

orientam procedimentos internos e unificam a grafia de expressões, mas tentam

padronizar os textos, sugando-lhes a identidade, cobrindo-nos com um manto de

homogeneidade69. Uma edição de Veja, por exemplo, pode ser lida como se fosse escrita

por um único redator do início ao fim. Claros prejuízos à qualidade do texto, já que a

polifonia constituinte do discurso jornalístico se esvai, a originalidade é cerceada e até

mesmo o prazer da leitura pode ser sufocado.

Apesar dessas conseqüências, a sétima edição do Novo Manual da Redação, da

Folha de S.Paulo, por exemplo, coloca-se como a mais flexível já editada e com menos

prescritivismos. Mesmo assim, segue os passos dados em seu surgimento em 1984,

trazendo não só regras de estilo, mas uma “uma concepção de jornal” (1992:7). A

flexibilidade alardeada pode ser observada, por exemplo, no verbete Objetividade. Se

nos anos 80, o manual orientava que os repórteres da Folha perseguissem a objetividade

em seus textos, agora, o volume é enfático em negar sua existência (op.cit.:19).

O manual do concorrente - O Estado de S.Paulo – nega que sua função seja

tolher a criatividade dos jornalistas ou aplicar-lhes impedimentos. “Seu objetivo é claro:

definir princípios que tornem uniforme a edição do jornal” (1990:11), tratando de “todas

as questões de estilo consideradas fundamentais para a obtenção de um texto elegante e

correto”, alertando para “formas pobres ou viciosas de redação”, “redundâncias

69 Jacira Werle Rodrigues (2003) afirma que são poucas as orientações específicas para a reportagem enquanto gênero. “A grande maioria das normas refletem ditames universais do jornalismo, adaptados ao linguajar, aos termos de cada manual” (p.106). Em seu estudo, ela verifica que é possível, mesmo no jornalismo diário, empreender construções autorais nos textos jornalísticos.

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comprometedoras” e “modismos absolutamente descartáveis” (op.cit.:83). Correção é

um aspecto relativamente fácil de ser aferido no texto, mas elegância é algo de fácil e

imediata apreensão por todos? Em outras palavras: é possível regulamentar a elegância

textual ou essa credencial é subjetiva e, portanto, exterior a qualquer manual de estilo?

[Nas revistas da Editora Abril, o mesmo problema pode ser identificado. No manual da

empresa (1990), “um texto não precisa de muito mais do que isso para ser lido com

prazer”: clareza na linguagem, precisão nas informações e bom gosto. Que critérios

palpáveis determinam se um texto tem bom gosto ou não?]

Luiz Garcia (1992), que organizou o manual de O Globo, lembra que os

primeiros trabalhos brasileiros dessa natureza surgiram nos anos 50 no Rio de Janeiro.

Muito inspirados nos style books norte-americanos, esses primeiros manuais chegaram

às redações do Diário Carioca e da Tribuna da Imprensa pelas mãos de dois jornalistas

muito preocupados com a modernização (leia-se racionalização) do Jornalismo local:

Pompeu de Souza e Carlos Lacerda, respectivamente. Passado meio século, os manuais

se multiplicaram nas estantes, não se limitaram apenas às redações e migraram também

para as livrarias, e o prescritivismo não só aumentou como também a arrogância na

avaliação de seus papéis. O manual da Zero Hora, por exemplo, não dita apenas regras

de redação e de estilo, mas também de ética jornalística. Nas orientações para a escrita,

extensivas a todos os jornais do Grupo RBS, o estilo dos textos deve se pautar pela

elegância (mais uma vez?) e precisão. Não apenas um conjunto de regras, o manual

alcança status de obra de referência: “Os capítulos reservados a normas de redação e

estilo não substituem o dicionário. Mas talvez sejam seu perfeito complemento”, afirma

entusiasticamente Augusto Nunes na apresentação do livro (1994: 9).

Embora haja um descolamento entre o que Juarez Bahia preconizou sobre os

manuais e a realidade que eles ensejam, as preocupações do autor permanecem: os

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manuais das empresas não devem servir de camisas-de-força, mas são úteis na

unificação de alguns padrões gráficos e editoriais de jornais e revistas. Mas note-se:

padrões são diferentes de fórmulas. Os primeiros orientam, diferentes das fórmulas que

formatam, determinam, fecham-se enquanto únicos valores em vigor.

Juarez Bahia voltará à questão para dizer que, enquanto uma representação que

se pretende fiel à realidade, o estilo do Jornalismo está mais para uma literatura não-

ficcional do que literatura no sentido clássico:

Não é a supra-realidade que interessa ao Jornalismo, e sim a precisão verificável. Portanto, o que compõe a linguagem do Jornalismo como cultura de massa é o precisável, o avaliável, o nítido, o referenciável, o concreto sobre o abstrato, o direto sobre o figurado, a ênfase do fato e do ato sobre a metáfora e da repetição. Essa precedência do real sobre o supra-real está no estilo do Jornalismo, no seu espírito (1990:91).

Tal qual os manuais de redação e estilo, o lead é criado para oferecer um padrão

racional das informações que precisam ser repassadas. É um sistema que funciona nas

notícias breves, nos anúncios mais imediatos. Entretanto, esvazia-se quando o relato vai

além do comunicado do acontecimento ou é insuficiente quando a história carece de

uma narrativa mais complexa, mais imaginativa e original. O lead é útil, mas deve ser

encarado como padrão e não fórmula. Serve a alguns propósitos, assim como nariz de

cera serve a outros. São formas de textualidade, recursos que podem ser lançados no

texto se adequados à ocasião e se não corrompidos em seu uso. “O estilo de notícia mais

livre do que o lead não exclui seriedade, densidade e relevância”, escreveu Bahia

(op.cit.: 91). Renunciar a um em detrimento do outro é uma questão de adequação, de

eficiência, de bom funcionamento textual. Enfim, uma questão de estilo.

Voltamos à temática da escolha. O estilo como escolha e como desvio da norma.

Se ele é, então, uma expressão individual, no Jornalismo, também carrega as

características de um veículo de comunicação e os elementos de uma tradição textual.

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Segundo Sérgio Villas Boas, no Jornalismo, estilo é o homem, mas também o veículo.

Cada jornal ou revista tem lá “o seu estilo, seu modo de ser, sua linguagem. Não raro,

esta linguagem é definida pelo tipo de leitor que se quer atingir” (1996:39).

Dito isso, é trazido à cena mais uma vez o leitor, o público, o sujeito que está na

ponta da cadeia informativa. Volta à cena o sujeito que consome informação, o que nos

faz lembrar que o processo comunicativo é feito por sujeitos e não meramente por

manuais ou corporações midiáticas, leads ou normas editoriais. A comunicação, e em

especial o Jornalismo, envolve sujeitos que consomem informações e sujeitos que as

produzem e as disseminam. Por mais que se tente, não é possível fazer desaparecer os

sujeitos dessa equação. Por natureza, a atividade é humana e não pode prescindir dos

elos que a compõem. A cada tentativa de matar o autor, mais o estilo se afirma como

um eco da voz do criador. Não só na literatura, mas também no Jornalismo. Há tempos

se alardeia o fim da grande reportagem, mas ela resiste, mantém-se como um gênero

nobre, embora com espaços menos generosos que décadas atrás. Mesmo assim, continua

despertando o interesse do público e de valiosa parte dos jornalistas. Mesmo apesar da

crise anunciada, a reportagem sobrevive até mesmo nos setores mais conservadores da

mídia. Pensar a autoria na reportagem é refletir sobre as condições em que se faz

Jornalismo atualmente; é aferir como se constituem hoje o Jornalismo e a profissão de

repórter; é, de alguma maneira, não aceitar passivamente o desaparecimento do sujeito

numa atividade essencialmente humana.

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5. 6 A narrativa da contemporaneidade

“As redações são laboratórios assépticos para navegantes solidários, onde parece mais fácil comunicar-se com os fenômenos siderais

do que com o coração dos leitores. A desumanização é galopante" Gabriel García Márquez, escritor e jornalista colombiano

“Há uma padronização absolutamente inaceitável. Tudo é igual,

as variações são mínimas. Falta personalidade. Cada matéria deve ter o seu espírito. (...) Acho que é preciso uma nova reforma.

A que fiz transformou-se em fórmula e automatizou-se " Pompeu de Souza,introdutor do lead no Jornalismo brasileiro

As tentativas de apagamento do sujeito no Jornalismo funcionam como sintoma

de um amplo processo de desumanização contemporânea. A pretexto da pressa e do

pouco tempo, os indivíduos estabelecem vínculos frágeis em suas relações, priorizam as

demandas pessoais e esquivam-se de projetos solidários e coletivos. Nos hospitais, os

pacientes são números anotados nos prontuários médicos; nas repartições publicas, são

senhas de atendimento; nos exames vestibulares, são números de inscrição; nas

redações, poucas vezes, as pessoas são algo mais do que cifras e estatísticas.

Para retomar o percurso que contemple o humano, a narrativa mudar. E deve

insistir no “compromisso com o humano ser”, afirma Dimas Künsch. Com isso,

a renúncia à reportagem, por parte da imprensa de qualquer tamanho, representa a resposta o menos adequada possível aos desafios impostos pela necessidade de uma visão de mundo e de uma epistemologia aberta à complexidade aos encantos e mistérios do mundo. Dentro e fora do Jornalismo. A vida e o mundo não se cansam de mostrar que não cabem em, nem suportam, uma pirâmide invertida. (2000:294)

Precisa mudar a narrativa e, antes dela, a mediação. Cremilda Medina insiste no

que denomina Epistemologia Pragmática, terreno de compreensão que articula

realidade humana e meio ambiente humanizado. “Quando um saber especializado se dá

conta das condições sociais e humanas em que este saber se realiza, não há como evitar

a crise de degenerescência e a conseqüente ruptura com a gramática construída em torno

das técnicas e das tecnologias assépticas” (1994:179). A crise com o pré-estabelecido

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resulta numa nova consciência que respeita e cruza não só os saberes

institucionalizados, como também os conhecimentos cotidianos, míticos, artísticos e

religiosos. Assim, a Ciência deixa o centro do saber humano e se desloca para um pátio

mais amplo onde se relaciona com outros saberes. O jornalista que cobre eventos

científicos deixa de fazer divulgação para operar a relação entre diversidade de

conhecimentos existentes. O saber se assume plural provocando novas mediações.

Caminho natural se considerarmos o jornalista um produtor de sentidos atuante

na malha cultural da sociedade, como já definiu Medina (1991:193). Nesta condição, o

mediador-produtor de sentidos age como um “sujeito em relação com os sujeitos-fontes

de informação e os sujeitos fruidores de informação” (196). Esta reconfiguração desloca

o jornalista da posição de força primeira da produção de sentidos para um lugar que se

assemelha a um nó da teia informativa. Uma Epistemologia Pragmática corrói a

estrutura estratificada que impõe pautas e narrativas, dando espaço para uma disposição

mais democrática, respeitadora da diferença, relacionadora. A monologia é substituída

pela dialogia. Deixamos o esquema arborescente para assumir o rizomático70.

A escolha demanda um retorno reflexivo à narrativa. Medina lembra que uma

definição simples é a de que narrativa é “uma das respostas humanas diante do caos”.

Dotada da capacidade de produzir sentidos, ao narrar o mundo, a inteligência humana organiza o caos em um cosmos. O que se diz da realidade constitui outra realidade, a simbólica. Sem essa produção cultural – a narrativa – o humano ser não se expressa, não se afirma perante a desorganização e as inviabilidades da vida. Mais do que talento de alguns, poder narrar é uma necessidade vital. (...) Ao se dizer, o autor se assina como humano com personalidade; ao desejar contar a história social da atualidade, o jornalista cria uma marca mediadora que articula as histórias fragmentadas; ao traçar a poética intimista, que aflora do seu e do inconsciente dos contemporâneos, o artista conta a história dos desejos. Da perspectiva individual, sociocomunicacional ou artística, a produção simbólica oxigena os impasses do caos, da entropia, das desesperanças, e sonha com um cosmos dinâmico, emancipatório (2003:47-48)

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Para ultrapassar os escaninhos classificadores da sociedade pós-moderna, só

mesmo tecendo uma narrativa contemporânea que se alimente na mediação e na autoria.

A assinatura do autor atesta o pertencimento da obra, mas também denuncia em tom de

sussurro um lugar cultural de fala. O autor (o repórter) narra mergulhado no caldo

cultural de seu tempo. Quando lança seus relatos encontra do outro lado leitores também

autores. “O que parece fragmentado pode ser retecido na comunicação social”, conclui

Medina (op.cit.:143).

Como narrar é a questão, adverte Fernando Resende (2002), já que é no texto

que a mediação se processa. A preocupação é com o que chama de “narrativas

jornalísticas demasiadamente atrofiadas” – textos saídos de formas, reducionistas,

resultados de uma prática reduzida à técnica. Para Resende, refletir sobre a narrativa é

encarar o ato jornalístico como prática discursiva, o que permite pensar o Jornalismo

como um campo, onde sujeitos narram a outros sujeitos. É justamente o oposto do que

propôs a construção histórica do discurso jornalístico, que suprimia a figura do narrador.

Prevalece o sujeito da enunciação (que já nem mais sabe se é jornalista ou a empresa em que trabalha), alguém que escreve, mas não fala. Como no romance realista do século XVIII, em que o autor “comporta-se, por vezes, como um deus sem corpo e sem culto e autoritariamente exige fé no seu testemunho”. Nas narrativas jornalísticas traçadas pelo texto das lógicas, somos privados do contato com o sujeito do enunciado. Como mostra a história do romance, esse fator impõe a condição de se aceitar a onisciência do sujeito da enunciação, o que, no caso do discurso jornalístico, é uma imposição raramente possível de se acatar, devido mesmo às questões ideológicas e políticas amplamente vistas e estudadas no campo do Jornalismo. A privação cria o paradoxo: como acreditar na onisciência de quem, na verdade, é destituído da fala?

Se há narrativas atrofiadas no Jornalismo, também existem as que Resende

qualifica de “resistência”. Esses relatos servem de “provas” de que o narrador-jornalista

“é um lugar possível através do qual se pode pensar na existência de jornalistas (reais)

70 Empresto a metáfora dos mil platôs de Deleuze & Guattari (1995).

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que possam e saibam construir narrativas”. Esse narrador que abre mão das fórmulas

para narrar numa outra perspectiva é o que me interessa aqui. Ele não só lança um olhar

diferenciado para o fato, mas também recebe sua imagem e tece-lhe uma trama com

novos pontos e nós. Como se faz um autor no Jornalismo? De que maneira a autoria se

manifesta na reportagem? Em que circunstâncias a narrativa da contemporaneidade se

efetiva? Estas são questões que passo a perseguir agora.

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5.7 Condições para uma autoria na reportagem

“Como eu escreveria bem se não existisse! Se entre a folha branca e a efervescência das palavras

e das histórias que tomam forma e se desvanecem sem que ninguém as escreva não se interpusesse o incômodo tabique

que é minha pessoa! O estilo, o gosto, a filosofia, a subjetividade , a formação cultural, a experiência de vida, a psicologia, o talento,

os truques do ofício: todos os elementos que tornam reconhecível como meu aquilo que escrevo me parecem uma jaula

que limita minhas possibilidades. Se eu fosse apenas uma mão decepada que empunha a pena e escreve... Mas o que moveria essa mão?”

Ítalo Calvino – Se um viajante numa noite de inverno

A autoria é uma função da posição de sujeito. Quer dizer, não há um sujeito

centrado, monolítico, bem como a figura do autor não corresponde necessariamente à da

pessoa cujo nome assina a obra. Mais do que uma coisa em si, o sujeito é uma posição

de discurso a ser ocupada, um lugar de onde se diz (se escreve) algo. Como há

movimento nas mais diversas discursividades, os sujeitos são posições dinâmicas,

móveis, deslocadoras. Uma das funções ativas na condição de sujeito é a de autor, de

criador. Assim, para ser autor, é necessário mobilizar uma série de elementos que

propiciem os requisitos necessários – internos e externos ao sujeito – para ser tratado e

entendido como autor.

No Jornalismo, as condições para o exercício de uma autoria não são as mesmas

para a literatura ou qualquer outra atividade. Isso porque o Jornalismo dispõe de uma

natureza própria, de características, valores e conceitos constituintes que o tornam algo

distinto de qualquer outro campo de entendimento, atuação e tradução da realidade.

Entretanto, tal como na literatura, a autoria surge no Jornalismo (e assim se

mantém) como uma instância jurídica, um conjunto articulado para a identificação e

responsabilização dos pontos de partida de certos textos. Assim, quando alguém assina

um livro ou uma matéria de jornal, a sociedade tem a evidência de quem deve responder

por possíveis conseqüências da divulgação daquelas idéias, conceitos, versões. Ao

nominar o autor, tem-se não apenas o reconhecimento de sua condição de fonte da obra,

mas também a sinalização de quem deve receber posteriores contestações e queixas. A

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assinatura é reconhecimento, é atribuição, mas também traz o ônus da responsabilidade

sobre a obra.

Uma metáfora sempre foi exaustivamente usada quando o assunto é autoria: o

autor tem a paternidade da obra, e como tal, deve zelar por seu fruto filial, deve se

responsabilizar por ele. O autor arca com as conseqüências de sua criação. Sejam

dividendos da exploração do objeto criado ou sanções e penalidades advindas da ampla

difusão de algo ofensivo. No Jornalismo, a preocupação com a repercussão da

divulgação de certos textos ou imagens é sempre manifestada, surtindo inclusive em

reprimendas judiciais ao veículo de comunicação ou mesmo aos profissionais

envolvidos. Assim, uma primeira característica da autoria no Jornalismo: ela é

entendida primeiro como indicador de responsabilidades. Um texto assinado

identifica com mais facilidade sobre quem devem recair cobranças e compensações

sobre prováveis litígios.

É evidente que – diferente de outras atividades de criação intelectual – o

Jornalismo é um campo de trabalho coletivo. Uma reportagem nasce pelo esforço de

diversos profissionais, do pauteiro ao editor, passando por repórteres, redatores,

ilustradores, fotógrafos e diagramadores. O resultado final é um complexo mosaico da

interferência de distintos sujeitos, em maior ou menor escala. Entretanto, convencionou-

se o entendimento de que a paternidade da reportagem é do repórter ou do redator com

quem dividiu a tessitura do texto. A natureza complexa e coletiva do trabalho

jornalístico dificulta a clara identificação de quem realmente é o autor da reportagem.

Em 1995, um ano antes de morrer, Perseu Abramo já manifestava preocupação com o

tema: “É tão grande a variedade de fatores e circunstâncias presentes na atividade

jornalística que a plena e cristalina identificação da autoria do que é divulgado constitui

a exceção, não a regra” (1997: 331).

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Para analisar a questão, Abramo exorta que é preciso levar em conta as

diferenças entre o Jornalismo impresso e o feito para radiodifusão; que é necessário

atentar para as condições e o alcance da empresa para qual se está trabalhando e mesmo

os métodos que caracterizam o processo produtivo dentro da empresa. Para tanto,

Abramo faz uma criteriosa descrição das alterações que o produto jornalístico sofre

dentro do processo que antecede a sua publicização. Apesar dos empecilhos inerentes à

função, não se deve usar o caráter coletivo e difuso como “biombo para escamotear ou

dissolver responsabilidades pessoais e individuais”, reitera (op.cit.: 334). É

precisamente neste trecho que se percebe que a grande preocupação de Perseu Abramo

é a da responsabilidade pessoal sobre o trabalho jornalístico e suas implicações jurídicas

e éticas. Atento às tensões entre capital e trabalho, Abramo defende a tese da

responsabilidade pessoal no trabalho jornalístico a despeito da responsabilidade

sucessiva, que vigora atualmente nos andamentos processuais.

A autoria, então, é vista como um sistema de identificação e responsabilização.

A assinatura da reportagem não é a garantia do direito inalienável do jornalista-autor de

ter seu trabalho reconhecido. Pode funcionar mais como denúncia, como delação de

quem deve assumir os riscos do que foi escrito abaixo71.

Uma segunda característica da autoria jornalística é que ela se dá não na criação

intensiva, maciça, totalizante, como na literatura. Na ficção, o autor cria personagens,

situações, contextos, conflitos, cenários, profundidades psicológicas, sentimentos e

pensamentos. Se assim quiser, nada escapa ao autor na trama. Ele tem o seu domínio,

seu alcance é ilimitado, o tempo é contado pelos seus ponteiros. No Jornalismo, os

compromissos são mais rígidos e o controle não é total. Por conta de suas atribuições

71 Não estou eximindo a responsabilidade do autor sobre a obra. Pelo contrário: reafirmo isso. Porém, a autoria não acarreta apenas ônus pelo seu exercício. E o que se percebe é que esta dimensão – a da responsabilização – se mostra hipertrofiada em detrimento da que vê na autoria um reconhecimento, atribuição de paternidade criativa. O assento jurídico da autoria é reforçado inclusive no inciso IV do artigo 5º da Constituição Federal: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.

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sociais, o jornalista se ocupa de relatar acontecimentos, narrar fatos mais proximamente

de como eles se deram. Não deve fazer ficção, pois o Jornalismo mantém um

comprometimento mais firme com o que se convenciona entender por verdade factual.

Neste sentido, o jornalista faz uma antificção, e tenta apreender o real, tocar o fato e

traduzi-lo da maneira mais clara, fiel e confiável ao seu público. O jornalista atua como

mediador entre os acontecimentos noticiáveis e os cidadãos que se interessam por

aqueles relatos.

Neste sentido, a autoria no Jornalismo se dá na mediação, nas complexas

operações profissionais de destacar elementos e versões importantes para a narração do

fato e na sua costura coerente, cujo resultado possibilite uma leitura daquele fragmento

de realidade. O repórter vai às ruas, colhe depoimentos e se cerca de condições que

atestem a ocorrência do fato. Apura, checa as informações, confronta falas, seleciona o

que julga indispensável para o entendimento geral da situação e tece uma trama que dê

conta dela. Na medida do possível. É justamente aí, nesta mediação, que se dá a autoria.

Em alguns casos, essa autoria fica mais nítida, mais aparente; em outros, não salta aos

sentidos. O que vai diferenciar uma matéria “mais autoral” do que outra é a emergência

mais clara de índices da mediação: sejam marcas discursivas próprias de um sujeito

(pronomes, elementos estruturantes de uma certa formação discursiva, etc.), seja a

impressão de um estilo de escrita (sustentado por algumas construções frasais ou

recorrendo a outros recursos estilísticos) ou ainda outras formas de identificação, que

veremos a seguir. De maneira grosseira, poderíamos dizer que o jornalista pode se

colocar mais ou menos numa reportagem, dependendo da autonomia que tenha em seu

trabalho, da adequação aos objetivos que conduziram a elaboração daquela matéria, do

contexto histórico-social. Se na literatura a criação é uma atitude poética, no Jornalismo,

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o ato criador é diminuto, sutil, crivado e subsistente na mediação de que o profissional

se ocupa para transmitir da melhor maneira a informação.

Essas limitações a que o profissional se submete acabam atingindo também a

própria configuração da autoria como tal. Isto é, se a autoria depende de um exercício

de estilo, no caso do Jornalismo, serão precisos dois estilos: um que atenda às demandas

do Jornalismo em si e outro que possa ser atribuído àquele autor em especial. Eis mais

uma característica da autoria no Jornalismo: para ser autor na reportagem, é

necessário atender a dois estilos, um estrutural do Jornalismo e outro, pessoal.

Assim, o autor segue as orientações que as gramáticas jornalísticas indicam para se

fazer um texto de reportagem e, paralelamente, insere elementos que lhe são próprios,

singulares. Como se a mediação ocorresse em dois estágios, um mais amplo e outro

mais profundo.

Os compromissos advindos da função social jornalística e as conseqüentes

limitações à criação no texto fazem com que o repórter não se descuide do fato por

esmero do estilo, da forma. Não. Na atividade jornalística, tem preponderância o estilo

jornalístico sobre o pessoal. É necessário que o repórter atenda ao primeiro para que

possa permitir a emergência do segundo. Assim, na autoria jornalística, o exercício do

estilo não se desvia de seu objeto (narrar), mas sutilmente permite uma revelação do seu

narrador, o jornalista-autor. Por conseguinte, a autoria jornalística se dá num ponto

periférico, no estágio de exercício do segundo estilo, o pessoal, não no primeiro, já

que este é plano de imanência na narrativa jornalística.

É curioso observar que a marcação de um estilo em terreno jornalístico fez com

que muitos pensassem que o que se estava fazendo era literatura e não reportagem. Em

determinados casos, a escrita é tão esmerada que torna embaçadas as fronteiras entre um

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país e outro. Os limites podem estar confusos, mas mesmo que sejam porosos, eles

existem. A tentação de considerar textos jornalísticos bem escritos e com estilo como

literatura parece ser uma forma de reacomodar cada esfera: deixar o Jornalismo com

uma suposta frieza no relato e dar à literatura tudo aquilo que não se confirma no

minifúndio das reportagens72. Contribuem para esse embaralhamento os muitos casos de

dupla militância, onde jornalistas tornaram-se escritores e onde grandes autores da

literatura foram forjados nas redações73. Nesta tese, estou tratando o estilo jornalístico

na sua forma no texto escrito, no conjunto de características estilísticas visíveis na

superfície textual, e não nas técnicas de apuração, por exemplo. Quer dizer, o estilo no

Jornalismo poderia ser observado também na etapa de investigação e coleta das

informações. Para destacar estilos nas técnicas de apuração, poderíamos recorrer ao

Gonzo Journalism, de Hunter S. Thompson, que transcende o ato de narrar e mescla o

próprio narrador ao seu processo74 (inclusive alterado pelo uso e abuso de drogas), ou

mesmo ao estilo do alemão Günter Wallraff, que faz do disfarce seu passaporte para a

notícia75.

Mas se o assunto é autoria, um termo da equação não pode ser ignorado: a obra.

Sim, porque, afinal, há autor sem obra? Não. Um autor só se credencia enquanto tal se é

público o resultado de sua criação, seja um quadro, um livro ou um crime. Existe

homicídio sem cadáver? Há assassinato sem vítima?

72 Dois exemplos apenas: em As religiões do Rio, João do Rio não é o cronista, mas o repórter que, numa intensa série de reportagens publicada na Gazeta de Notícias em 1904, faz um inventário da fé na então capital da República. Classificado como obra literária, ensaística e até sociológica, Os sertões é escrita a partir do trabalho do correspondente Euclides da Cunha para o jornal O Estado de S.Paulo. 73 Alguns escritores que foram jornalistas: Edgar Allan Poe, Walt Whitman, Mark Twain, Jack London, Sinclair Lewis, Edmund Wilson, Ernest Hemingway, Gabriel García Márquez, John Reed, Rodolfo Walsh, José Saramago, Carlos Heitor Cony, Antonio Callado, Eric Nepumeno, e a lista vai longe. Uma saborosa discussão sobre o tema pode ser encontrada em “Quanto a literatura Americana deve ao bom Jornalismo”, artigo de Luiz Carlos Lisboa na revista Jornal dos Jornais, nº 7, outubro de 1999, pp.17 a 19. 74 No Brasil, há um seguidor desta corrente: Arthur Veríssimo, da revista Trip, que vai muito além do que freqüentemente iria um repórter convencional. 75 Foi assim que o repórter se infiltrou no Bild Zeitung para denunciar a invenção de notícias em Fábrica de Mentiras; e foi assim que passou dois anos como o turco Ali Sinirlioglu, operário em situação degradante de

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Neste sentido, para se definir o que é um autor no Jornalismo, é preciso tornar

claro o que é uma obra neste campo, como se forma a sua unidade e o que determina a

sua coesão. Detendo-se no terreno artístico, Michel Guérin (1995) estabelece uma

distinção entre obra e trabalho, opondo os dois termos. Para ele, a obra, entre outros

atributos, tem nobreza, é uma atividade desinteressada do espírito, diferentemente do

embrutecimento que cerca o trabalho. É claro que a obra também custa trabalho, mas

nem todo trabalho se conclui como obra. Eles não são sinônimos, mas mantêm

parentescos interessantes. O trabalho esgota as forças do homem. A obra imortaliza o

homem na medida em que interioriza o trabalho. “Se em certos pontos, a obra enquanto

tal se opõe ao trabalho, em outros aspectos ela vem a se confundir com ele. Existe

trabalho na obra; existe um trabalho da obra” (op.cit.: 24).

No Jornalismo, fica fácil distinguir que o trabalho preenche a rotina ordinária do

repórter e só mesmo uma parcela dos seus resultados – textos, imagens, sentidos – vai

se converter em obra. As numerosas atividades diárias de coleta de dados, entrevistas,

edições e escrituras, escolhas e descartes, hierarquizações e organizações de materiais

fazem parte do trabalho jornalístico. Não são as obras dele. Os frutos, os produtos

resultantes – um documentário, uma reportagem, um artigo, um conjunto de fotos, entre

outros -, esses sim, podem ser considerados obras jornalísticas. Isso se funcionarem

como peças que constituam unidades mais ou menos delimitadas e se satisfizerem

expectativas jornalísticas. Explicando melhor: embora atenda a demandas jornalísticas,

um bloco de notícias não constitui uma unidade porque é parte integrante de um todo

mais coeso e coerente que é a edição inteira do telejornal ou do radiojornal. Assim, este

segmento não pode ser considerado uma obra, uma peça em si. Uma fotografia pode ser

entendida como uma obra jornalística bem como um conjunto de fotos seguindo uma

sobrevivência, de discriminação e humilhação humana em Cabeça de Turco (ambos os títulos lançados no Brasil pela Editora Globo).

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mesma temática numa dada cobertura. O mesmo se aplica a uma reportagem isolada e a

série que forma com suas suítes. É por essa razão que escrevi há pouco que as obras

devem se comportar como “peças que constituam unidades mais ou menos delimitadas”.

Intentando descrever o direito autoral no Jornalismo, Manoel Joaquim Pereira

dos Santos vai perseguir uma conceituação de obra jornalística:

É a coexistência dos quatro caracteres fundamentais do Jornalismo, ou sejam, a atualidade, a universalidade, a oportunidade e a difusão coletiva, que caracteriza a obra jornalística como tal, distinguindo-a das demais modalidades de comunicação coletiva, e das diversas formas de transmissão de informações. (...) Desta constatação decorre que nem toda produção intelectual constante de um veículo, onde predominantemente são transmitidas mensagens jornalísticas, constitui uma obra jornalística. Como tal será considerada apenas aquela em que concorrem os quatro atributos básicos acima mencionados. (1981:8)

Atendo-se aos conceitos da área, Santos ainda dirá que a obra jornalística é

factual, “já que tem nos fatos sua condicionante, distinta da obra de ficção, onde atua a

imaginação do autor” (op.cit.:173).

É necessário perceber ainda que a obra jornalística – para além de ter estatuto de

unidade e de submeter-se às gramáticas jornalísticas – não transborda em si qualquer

aura sacralizante como nas obras de arte. São reportagens, fotos, charges, programas

jornalísticos, apenas. Quando deixam de sê-los para se tornarem fetiches – como a

edição de Realidade que traz a reportagem de José Hamilton Ribeiro sobre a Guerra do

Vietnã, por exemplo -, convertem-se em algo a mais do que uma obra jornalística,

alcançando status de um clássico do gênero, operação que não me interessa aqui.

A obra jornalística, então, não sobrevive da própria sacralização, e não necessita

de um tempo maior de permanência. Como o Jornalismo vive o tempo de maneira muito

imediata e opera reiteradamente em atualização, a perenidade não importa para a obra

jornalística. Seu tempo é extremamente perecível, sua vida é volátil, de frágil duração.

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Uma autoria no Jornalismo depende de uma compreensão diferenciada da obra76:

ela é mais ordinária, não é cercada de aura, sua permanência é ínfima.

Para exercer uma autoria é necessário reunir em si alguma legitimidade,

características que autorizem o indivíduo a apresentar-se na qualidade de autor,

destacando-se do relevo comum do anonimato. Do ponto de vista do jornalista, essa

legitimidade é a primeira condição a ser satisfeita para uma efetiva vivência

autoral na reportagem. Isto é, no momento em que o repórter atende a essa condição –

legitimidade – demarca-se um lugar institucional a partir do qual se pode narrar, de

onde se pode reportar os fatos. Esse lugar institucional é a instância de onde se diz, de

que ponto se conta os acontecimentos. Dessa forma, para termos uma autoria na

narrativa da contemporaneidade, é preciso um lugar de fala, um ponto de partida do

discurso.

A legitimidade vai poder assinalar no jornalista uma qualidade de narrador e um

vínculo institucional no campo do Jornalismo. Assim, para ser autor, é necessário ser

jornalista, repórter e estar desempenhando tal função profissional para algum veículo de

comunicação ou qualquer forma de difusão pública do objeto narrável: sou o repórter da

revista Veja, ele é o jornalista do The Times, etc...

A condição da legitimidade de um autor só é saciada em dois momentos:

primeiramente quando o narrador se manifesta como jornalista na qualidade de repórter

do acontecimento; e depois quando vincula a sua atividade a um veículo, entidade,

empresa ou empreitada jornalística. O primeiro momento coloca o narrador numa

posição social específica, esperada e autorizada a narrar: a do jornalista. O segundo

76 Uma distinção é necessária. Foucault vincula a obra ao autor, enquanto que Eni Orlandi atrela a obra ao escritor e o texto ao autor. Segundo Orlandi, não se pode tomar como sinônimos os termos e essa razão já instauraria a necessidade de uma distinção. Entendo a justificativa, mas não tenho a preocupação de preservar o conceito de obra, com a aura que lhe competiria, a exemplo de Orlandi. Penso que o caráter ordinário do Jornalismo ajuda a flexibilizar essa noção, e é sobre esses patamares que trabalho aqui.

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momento é igualmente importante porque ele evidencia a intenção e o objetivo de dar

publicidade ao fato, de difundi-lo publicamente. Essa disseminação – o ato de tornar

comum, público – é uma essencial característica da obra jornalística e do próprio

processo jornalístico.

A necessidade de atender a esses dois momentos – o lugar profissional e o

institucional – satisfazem a primeira condição da autoria na reportagem, a que confere

legitimidade ao narrador. De forma prática, quando se lê uma matéria num jornal ou um

livro-reportagem, e se tem a identificação de um jornalista àquilo vinculado, temos a

fundação de um ponto legítimo de narrativa jornalística, um lugar de onde se pode (e se

aceita) narrar.

Em 11 de abril de 2001, os leitores do caderno Cotidiano da Folha de S.Paulo

depararam-se com um texto diferente em meio às notas que estão acostumados a

encontrar naquela seção de geral: a matéria contava quem era e como vivia o pedreiro

anônimo que teria subido numa torre de alta tensão no interior paulista para sabotar o

sistema energético. Na matéria, o repórter faz uma breve descrição da situação,

revelando que o personagem era um suicida potencial, depois de perder o emprego e a

namorada, e que não atentava contra o serviço público, apesar de ainda estar preso por

isso – artigo 265 do Código Penal. O repórter viajou a Sorocaba para entrevistar o

pedreiro e os demais envolvidos no caso, mas nada teria extraído dos seus depoentes se

não se apresentasse enquanto repórter e não dissesse a que empresa jornalística estava

vinculado.

O leitor, por sua vez, não aceitaria aquele relato como jornalístico se não o

tivesse lido num órgão de imprensa, se não tivesse encontrado aquela narrativa nas

páginas de noticiário e se não lesse logo abaixo do título “Ricardo Kotscho – Especial

para a Folha”. Esses índices é que ajudaram a credenciar tal texto como um relato

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jornalístico, descrevendo certo fato, sendo legítimo narrador daquela situação. Eles é

que conferiram legitimidade à reportagem.

É evidente que não apenas isso torna a matéria um relato de autor. No caso, o

texto envolvente, o enlace final e todo o olhar dilacerante que Kotscho dirige ao

personagem engendram uma arquitetura discursiva diferente na página, distinta naquele

mar de notas breves e superficiais. A qualidade do texto e a perspectiva da narração dão

forma a uma outra condição necessária para a autoria: a capacidade.

Enquanto a legitimidade é algo que está fundado na lei, na razão ou na justiça, a

capacidade é uma habilidade, uma aptidão. Atributos que se revelam no exercício de um

estilo nas reportagens, pela originalidade, singularidade ou autenticidade que se

desempenha nos textos. A capacidade é uma segunda condição necessária para a

autoria, já que vai sinalizar elementos para além de um lugar autorizado de fala. Assim,

se o repórter demarca um ponto de partida do discurso jornalístico, ele aí sim pode

colocar uma voz, um timbre àquelas frases. Escrever um texto mais elaborado ou não,

estruturar de maneira criativa a matéria, lançar mão de recursos de outros gêneros

textuais, enfim, tudo isso e o que mais se inventar está a cargo do repórter, depende

dele, de sua capacidade.

A capacidade é uma condição para a autoria que privilegia a diferença e não a

repetição. Em termos estilísticos, o relato do repórter irá se diferenciar dos seus

concorrentes e semelhantes, buscando uma angulação nova, uma abordagem distinta,

um encadeamento outro. É importante frisar que a diferença aqui é na forma, no

envolvimento e no tratamento das unidades informativas, e não propriamente no

conteúdo. Isto é, não se espera um furo jornalístico, mas um novo texto sobre o mesmo

fato contado por outros narradores.

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Para além de carecer de legitimidade, a autoria no Jornalismo pode se

apoiar ainda na capacidade/competência de bem narrar, de seduzir os leitores,

envolvê-los e convencê-los com os relatos apresentados.

Um exemplo no telejornalismo brasileiro: em fevereiro de 2001, o repórter

William Waack foi a Palmeira dos Índios, pequeno município alagoano que teve como

prefeito por dois anos o escritor Graciliano Ramos. Além de tentar resolver os

problemas de sua administração, o prefeito produzia extensos relatórios para o

governador, refletindo sobre a sua condição, suas dificuldades e a própria natureza da

governança pública. Bem capacitado, Waack vai exercer sua autoria na reportagem

quando pega esses documentos e faz um paralelo entre as preocupações do prefeito

Graciliano com as imposições da atual Lei de Responsabilidade Fiscal. Passados setenta

anos entre uma coisa e outra, o repórter costura os assuntos durante um bloco inteiro do

Jornal Nacional num dia de semana ordinário. O tema não é gratuito, ele está na pauta

do noticiário brasileiro, mas a abordagem é que faz a diferença, que deixa uma

assinatura, imprime marcas que são as da autoria.

Num artigo apresentado durante o Congresso da Associación Latinoamericana

de Investigadores de la Comunicación (Alaic) em abril de 2000, em Santiago (Chile), a

pesquisadora Roseméri Laurindo vai se preocupar com a rarefação da autoria no

Jornalismo brasileiro. Sob o título “Noção de autoria no Jornalismo esvai-se com

determinismo dos estudos”, o trabalho se refere a uma pesquisa maior que enfocou o

desempenho de alguns jornalistas e suas condições de produção profissional durante a

cobertura dos fatos que culminaram com o afastamento de Fernando Collor da

presidência da república. O trabalho do repórter Bob Fernandes, na época na revista Isto

É, mereceu atenção da pesquisadora porque foi diferenciado em comparação ao de seus

colegas de trabalho.

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Essa capacidade de costurar as informações, de elaborar textos diferenciados, de

mostrar outros lados e outros ângulos é sinal de amadurecimento, segundo a

pesquisadora. Ela considera um “apagamento do sujeito como mecanismo de

desresponsabilização do jornalista”, mas pode haver algo mais ali:

No Jornalismo esta consideração poderia apresentar outros contornos (...), pois o repórter abraça ou não sua condição de sujeito, independentemente da realidade da inscrição desse estatuto. Não que a autoria seja exclusiva condição de responsabilidade, mas pode revelar certo grau de maioridade. Como se quem assinasse o texto ‘se mostrasse’ ou ‘desejasse’ ser mais responsável por aquilo que escreve. Outros permaneceriam escondidos sob anonimato, evidenciando uma autoria difusa. (2000:11)

Essa disposição depende de uma certa autonomia de ação do repórter, condição

confortável, mas nem sempre existente77. É trabalhando com autonomia que o jornalista

consegue ter uma margem um pouco maior de manobra para operar textos mais

pessoais, exercendo um estilo mais próprio. Como já disse anteriormente, isso não o

exime de satisfazer o que se convencionou chamar de estilo jornalístico. Não. O repórter

deve atendê-lo alcançando assim condições extras para deixar suas digitais autorais na

reportagem. Autoria requer certo grau de autonomia do repórter. Isso pode ser

conseguido com a passagem do tempo de atuação do profissional, com o aumento do

grau de confiança dos superiores hierárquicos, com a apresentação de um trabalho de

qualidade que atenda às expectativas da empresa e que se traduza em maior gradiente de

liberdade de ação do jornalista.

De maneira geral, o que se percebe é que os jornalistas que atuam como autores

parecem se inscrever num outro setor do reportariado, que inclusive aparenta ser uma

77 Deusa Maria de Souza (1999) discute o regime de autonomia do autor de livros didáticos. Segundo afirma, tal autoria “está associada, predominantemente, ao sujeito escritor, considerado autor desde que sua autoridade seja legitimada pela editora que o valida.” (28). De acordo com a pesquisadora, a autoria no livro didático estaria ligada ao que chama de “ilusão de autoria”. Assim, o autor “é destituído de autonomia,

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célula de privilegiados. Em boa parte dos casos, são os chamados repórteres especiais,

alguns nomes mais conhecidos do mercado ou estrelas da profissão. Entretanto, esse

diagnóstico não está totalmente certo. Há casos de repórteres mais anônimos que

conseguem fazer um trabalho autoral em termos de reportagem, desviando-se das

dificuldades diárias e abrindo espaços para que seus colegas passem a atuar de forma

mais pró-ativa. Veremos um desses casos mais adiante.

A autonomia é uma credencial conquistável, importante para a efetivação de um

ambiente onde possam conviver jornalistas-autores. Essa credencial pode ser obtida

inclusive por lances de ousadia que se dão não só na superfície do texto, mas também

nos procedimentos de coleta e apuração das informações. Um exemplo recente na

imprensa brasileira é Arthur Veríssimo, repórter da revista Trip. Suas matérias se

diferenciam não apenas pelos temas abordados, mas também pela condução dos

assuntos e pela própria forma de como o repórter se envolve nas situações descritas. Os

textos são sempre bem-humorados e fazem questão de evidenciar a presença do

narrador, seja pelo uso de marcas discursivas (como o uso da primeira pessoa ou a

intervenção direta do repórter na fala das fontes) ou mesmo pela conversão do jornalista

em personagem da reportagem. Essas características acabam dando contornos autorais

ao trabalho de Arthur Veríssimo.

Na Trip nº 86, de fevereiro de 2001, por exemplo, o repórter vai à Holanda para

cobrir a 13ª Hight Times Cannabis Cup, o campeonato mundial da maconha que

acontece em Amsterdã. Sob o título “No carnaval da cannabis”, a matéria traz o

jornalista acompanhando, de um ponto a outro da cidade, as provas da competição. Na

página de abertura, logo abaixo de uma foto que reúne o repórter e um dos participantes,

uma irônica legenda dá o tom de Veríssimo: “Sempre circunspecto em sua busca pela

pois, para existir no interior do aparato editorial, precisa estar em conformidade com seus padrões, além de ter de ocupar o ‘lugar’ que lhe cabe, ou seja, o de fazer concessões” (31).

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objetividade jornalística, característica que lhe é inata, Arthur abraça o eminente

congressista Ali Babá, o homem das 40 bongadas, orgulhoso de sua plantinha na

abertura da Cannabis Cup”. Nos créditos da matéria, o repórter assina como Arthur

“Cheech & Chong” Veríssimo em alusão à dupla de atores cômicos Cheech Marin &

Tommy Chong que ficou conhecida por filmes como “Queimando tudo” e por uma

postura de apologia à maconha. A postura do repórter na matéria é típica do Gonzo

Journalism, surgido a partir do trabalho de Hunter S. Thompson, que não só conta o que

vê, mas se envolve pessoalmente com o objeto narrável. O humor deliberado78, a ironia

grosseira, a atitude assumida de “aparecer” na matéria e a encarnação de um

personagem na história são elementos que evidenciam uma autoria nas matérias de

Arthur Veríssimo.

A brincadeira com o próprio nome é um recurso freqüentemente usado pelo

jornalista. Na edição 102 da revista, de julho de 2002, ele assina a matéria “Bat

Macumba” com o pai-de-santo Bita do Barão como Arthur Veríssimo de Ogum. Em

abril de 2003, no número 111 da Trip, ele é Arthur “Pica-Pau” Veríssimo na reportagem

“Pau de índio”, em que mostra o ritual dos habitantes da ilha indonésia de Papua de

amarrar os próprios pênis em lanças. Antes disso, em setembro de 2002 (Trip nº 104), o

repórter não só se assina diferente - Arthur “ThuThu” Veríssimo – como cede parte do

nome para o título da matéria sobre tatuagens tribais em Borneo: “Tattoo Veríssimo”.

É evidente que esse exemplo não é o único a atestar o exercício de uma autoria

na reportagem da imprensa brasileira. Entretanto, a sua menção mostra que a autoria

pode se dar em publicações menos massivas e mais dirigidas – a Trip é voltada para um

público mais jovem – e que a autoria não se dá apenas na construção de um bom texto

78 O humor aparece não só em forma de gags, mas também como trocadilhos. Na edição da Trip de nº 107, de dezembro de 2002, o título da reportagem em caixa alta cria um jogo de palavras sonoro: ARTHUR PROCURA SERGUEI. A linha de apoio reforça o auto-deboche: “Um encontro histórico. Frente a frente a Dercy Gonçalves do Rock e o Bozó do Jornalismo. Tire as crianças da sala. E não tente fazer isso em casa”

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ou na profundidade de uma investigação jornalística. O caso de Arthur Veríssimo realça

muito mais a ousadia do repórter do que propriamente a sua perícia jornalística. Sua

postura despreocupada com a objetividade e a isenção pode até ser reprovada pelos

gramáticos do Jornalismo, mas a personalidade e a criatividade de suas reportagens não

podem ser ignoradas. O caso Veríssimo é um exemplo que ratifica o fato de que a

autoria na reportagem não só depende de autonomia por parte do jornalista como

também de certa dose de ousadia em sua prática.

Para se efetivar, a autoria no Jornalismo deve ser constituída à base de duas

condições. A primeira é a legitimidade, que atesta os lugares de fala institucional e

profissional do jornalista. A segunda condição pode ser a capacidade, que certifica

habilidades ou aptidão para bem narrar, ou ainda uma outra: a autoridade, que é

atribuída a alguém por um ou mais fatores que o colocam em vantagem.

Se a primeira condição legitima o narrador, e a capacidade atesta sua habilidade

para tanto, a autoridade credencia a fala do repórter na medida em que ele ocupa uma

posição privilegiada de discurso. Não se dá ouvidos àquele que não respeitamos, que

não reconhecemos como sujeito autorizado a dizer, com autoridade para tal. Em pelo

menos duas ocasiões da prática jornalística o repórter se reveste de uma autoridade de

fala que o distancia de seus colegas: na qualidade de especialista ou na de testemunha

do fato.

O primeiro caso pode ser vivido quando o jornalista domina um não tão

conhecido idioma numa viagem internacional ou quando tem conhecimentos técnicos

sólidos que o igualam a sua fonte de informação, por exemplo. Com isso, o repórter não

apenas narra o que ouve, mas também entende o comentário de escárnio do premiê

sueco frente a diplomatas de outros países, detalhe que dá novo contexto para as

declarações oficiais. Com isso, o repórter pode inclusive corrigir ou desmentir sua fonte

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de informação, desmascarando sua fala com argumentos e minúcias técnicas. Esses dois

exemplos ajudam a visualizar situações em que o jornalista não é apenas uma voz que

conta, mas configura também um timbre com autoridade e que deve ser ouvido.

Legitimado e autorizado, o repórter tem fortes condições para efetivar ali uma autoria

em seu trabalho.

Um segundo caso que coloca o profissional num patamar diferenciado de

autoridade de fala é o lugar do testemunho. Nele, o jornalista é espectador privilegiado,

testemunha ocular de um acontecimento e por isso está autorizado a dizer o que captou

com seus sentidos. Ele é o nosso homem lá no ponto de emergência do fato, pronto para

relatar, e nós ficamos aqui prontos para ouvi-lo. Porque consideramos aquela voz

legítima e autorizada, calamo-nos e o jornalista passa a narrar.

Em alguns episódios, essa condição de autoridade é tão acatada pela comunidade

discursiva – jornalistas e público – que a voz autorizada se descola das demais

alcançando um nível diferente de todos. Foi o que aconteceu em 1991, quando Peter

Arnett subiu ao terraço do Hotel al-Rashid em Bagdá para fazer as transmissões

televisivas da Guerra do Golfo para a CNN. Foi o que aconteceu com as reportagens de

Sérgio Dávila e Juca Varella para a Folha de S.Paulo em março de 2003 durante a

invasão anglo-americana ao Iraque. Os repórteres eram os únicos da imprensa brasileira

a acompanhar o início da guerra no centro dos bombardeios.

A força do relato abaixo79 dá a exata medida da autoridade do seu narrador:

A seqüência é de uma rotina assustadora e de uma lógica insuportável, emprestada dos trovões e dos raios. Primeiro, um clarão que deixa toda a cidade iluminada, acompanhado da saraivada da bateria antiaérea, que pode muito pouco contra ele. Então, uma grande explosão – o maior e mais inesquecível som já ouvido pelo repórter até hoje -, seguida do deslocamento de ar correspondente, que vem e volta com quase a mesma intensidade. Pequeno silêncio. Um fogo começa a subir ao céu em grandes línguas. Cede apenas para a fumaça preta, espessa.

79 “Som do ‘Big One’ é inesquecível” – Folha de S.Paulo, 22 de março de 2003, p. A15

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Por fim, o grande silêncio insuportável, só quebrado pela próxima seqüência, idêntica. Foi assim o primeiro dia do “Big One”, a mãe de todos os ataques, que começou na noite de ontem e promete deixar Bagdá de joelhos. Nem bem nos acalmávamos de uma explosão, vinha outra ainda maior, em lugar diferente. Enquanto escrevo este texto, são sete os lugares identificados como atingidos. Confinados no hotel, os colegas mudamos de quartos em busca da melhor visão, enquanto outros correm para abrigos antibombas. Desta vez, o deslocamento de ar dos bombardeios, um deles entre 500 e 1000 metros do local em que estamos, quebra vidros no caminho e deixa os cachorros e as pombas desesperados, aqueles correndo no meio das ruas vazias, estas voando até o topo dos edifícios, como se a medida realmente fosse dar mais segurança. Duas mulheres, uma vestida de preto e outra de branco, ganham as calçadas rezando alto e mexendo a cabeça. Alarmes de carro disparados vão e voltam... Clarão, explosão Durante o primeiro estouro, passado o susto inicial, o repórter Juca Varella lembra de colocarmos os coletes antibalas e os capacetes. Nos corredores, encontramos outros jornalistas que fizeram o mesmo. Logo, somos obrigados a entrar de volta no quarto e trancar as portas: oficiais da polícia secreta de Saddam Hussein, que ficam 24 horas por dia no saguão, começam a invadir alguns apartamentos selecionados ao acaso e levar embora câmeras fotográficas e de TV com imagens dos ataques. Fazem isso no quarto ao lado e no da frente. Batem na nossa porta. De luzes apagadas, ficamos quietos. Mais três tentativas, e desistem. Lá fora, no alto, acaba de passar o que parece ser um caça, o primeiro desde que o conflito começou, não sabemos se de bandeira iraquiana ou norte-americana. Soa bem próximo e o barulho e o clarão (e o medo) levam o repórter ao chão. Depois que some no horizonte, o suposto avião deixa um rastro claro que demora para ir embora. Temos de ir. São 22h50 e acaba de passar o segundo caça. Começa então a nova seqüência: clarão, explosão...

Frente a um texto como o acima – transcrito na íntegra -, questões

jornalisticamente relevantes como precisão, isenção e objetividade perdem-se diante da

intensidade viva da narrativa do testemunho. Assim, pouco importa se o repórter diz não

saber se o jato é invasor ou não; pouco interessa se o jornalista se mantém frio – não, ele

deixa escapar que está com medo. Vale mais descrever em termos imagináveis para o

leitor o que se sente quando um ataque daqueles se dá sobre a cidade. Quais são os sons,

as imagens, as reações das pessoas e animais frente aquilo. Cabe até fazer pequenas

confissões, como a de que o barulho da explosão foi o maior já ouvido até então pelo

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repórter. Esses elementos dão outro tom ao texto: o caráter autoral, de relato de uma

experiência pessoal que pode ser partilhada com os leitores80.

Na reportagem, a autoridade é uma condição que ajuda a credenciar o

discurso do jornalista, abrindo brechas para a efetivação de uma autoria. Ela pode

se apresentar tanto por um lugar de especialidade ou de testemunho. Mas como a

capacidade, a autoridade é uma segunda condição a ser atendida para um exercício

autoral na reportagem. São necessárias duas condições pessoais para que um

repórter possa se inscrever enquanto autor. A primeira – a legitimidade – sempre

deve ser satisfeita. Num segundo momento, o profissional e a circunstância vão

determinar que segunda condição será atendida: a que atesta a capacidade e

competência do repórter de bem narrar ou a que dá a sua voz um timbre

autorizado a narrar.

De maneira resumida, o que se percebe é que o regime que regula a autoria no

Jornalismo se assenta em algumas regras que estão condicionadas à própria natureza de

constituição do Jornalismo enquanto prática social. Uma atividade prática coletiva, o

Jornalismo é um campo onde nem sempre a autoria é discernível. Como reflete os fatos

(ou tenta fazê-lo), e eles não têm dono, pode-se falar em autoria jornalística quando

preenchidas algumas condições de exercício de estilo e reposicionamento do sujeito do

discurso jornalístico.

Neste sentido, a autoria funciona primeiro como indicador de responsabilidades.

Ela se dá na mediação e não na criação livre como na literatura. Para ser autor na

reportagem, é necessário atender a dois estilos, um estrutural do Jornalismo e outro,

mais pessoal. A autoria jornalística se dá num ponto periférico, no estágio de exercício

80 Na cobertura da guerra do Iraque, além de oferecer o noticiário editado das agências internacionais de notícia em generosas páginas de seus principais cadernos, a Folha de S.Paulo trazia textos e fotos da dupla de repórteres e um “Diário de Bagdá”, página especial encimada por fotos dos jornalistas vestidos para a guerra com reportagens que traduziam o cotidiano do país em meio ao conflito. Despretensiosamente

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do segundo estilo, o pessoal, não no primeiro, já que este é plano de imanência na

narrativa jornalística. Uma autoria no Jornalismo depende também de uma compreensão

diferenciada da obra jornalística.

São necessárias duas condições pessoais para que um repórter possa ser autor. A

primeira – a legitimidade – sempre deve ser satisfeita, pois é a que funda o lugar

institucional de fala. Num segundo momento, o profissional e a circunstância vão

determinar que segunda condição será atendida: a que atesta a capacidade do repórter de

bem narrar ou a que dá a sua voz um timbre autorizado a narrar.

No Jornalismo contemporâneo, é possível exercer uma autoria em estruturas

jornalísticas cada vez mais hierarquizadas, industrializadas e complexas na medida em

que se constroem condições de autonomia do repórter e o profissional alimenta sua

atuação com doses de ousadia e consciência de sua função social. A margem de

manobra é estreita, e muitos profissionais ou não enxergam o espaço em que podem se

movimentar ou preferem não correr riscos de frustrar seus intentos.

Ser autor é - antes de tudo - uma função a ser encarnada e por isso depende de

vontade e de ação. A diferença entre jornalista e jornalista-autor parece ser semelhante à

existente entre escritor e escrivão.

objetivas, as matérias eram perfis de anônimos, repercussões diretas da guerra à vida social e econômica dos iraquianos e notas breves que davam conta da confusão e desinformação reinantes em Bagdá.

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CAPÍTULO 6

Em busca de uma autoria na reportagem

“A transgressão é um gesto relativo ao limite: é aí, na tênue espessura da linha, que se manifesta o fulgor da sua passagem, mas talvez também sua trajetória na

totalidade, sua própria origem. A linha que ela cruza poderia também ser todo o seu espaço”

Michel Foucault – Prefácio à Transgressão

autoria no Jornalismo é uma questão que envolve o exercício de um estilo

que vai além do institucional, do consagrado pelas regras jornalísticas. Para

ser autor na reportagem, é necessário não só seguir as normas do Jornalismo,

mas também imprimir um estilo pessoal, deixar marcas, impressões digitais. A autoria

no Jornalismo pressupõe exercício consciente da subjetividade.

Esta tese trata não apenas de Jornalismo, mas de sujeitos-jornalistas, daqueles

que exercem a profissão tentando se desautomatizar das gramáticas (dogmáticas),

buscando uma prática criativa no ato de reportar. Se a projeção de qualquer traço de

subjetividade é tão polêmica na escritura de textos informativos, não é menos discutível,

num trabalho científico, empregar o EU e debruçar-se sobre a própria produção para

investigar aspectos do tema proposto.

Eu faço isso nas páginas a seguir.

E penso que – para manter a coerência - não poderia ser diferente. Se minha

preocupação maior aqui foi delimitar as condições para uma autoria na reportagem, esta

tese não poderia limitar-se aos aspectos teóricos do assunto: é necessário ainda destacar

um caso que exemplifique as tentativas desta inscrição. Nenhum laboratório seria mais

oportuno do que minha própria experiência de repórter. Afinal, ao fazer de mim mesmo

a cobaia desta tese, poderia testar minhas convicções sobre a autoria e, de alguma

forma, contribuir para a reflexão sobre o tema. A opção de fazer um laboratório de si

mesmo pode ser discutível, mas não é ilegítimo ou inválido.

A

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Esta tese explora o terreno da autoria, expressão marcada da subjetividade, e não

há aqui nenhum temor em empregar a primeira pessoa do singular. Escolher a mim

mesmo como campo de provas atende a um propósito: articular teoria e prática. Isto é,

não só refletir sobre a autoria, mas aproveitar o ensejo da pesquisa para realizar

experimentações acerca das condições que possibilitem textos com marcas autorais no

Jornalismo. Aí a legitimidade da opção.

Por outro lado, não há receio também de que a investigação se perca em

subjetivismos. O caso de que trataremos a seguir é um exemplo, uma experiência que

ilustra as proposições do capítulo anterior. Se elas se aplicam a mim, podem ser

reproduzidos por outros atores em outros ambientes e em condições semelhantes. Aí a

validade de minha escolha.

Que a validade, a legitimidade e a consistência de meu raciocínio saldem o alto

tributo que hão de me cobrar por mais esta transgressão aos ditames científicos.

6.1 O pesquisador como cobaia

“Usarei a mim mesmo como autor de dois romances (e, portanto, como cobaia) para analisar casos em que

se verificou uma dessas duas possibilidades” Umberto Eco – Os limites da interpretação

Sou jornalista desde 1991, há treze anos, portanto. De lá para cá, atuei em

jornais e revistas, bem como em assessorias de imprensa. Passei pelas editorias de

Cultura, Polícia, Política, Geral e Economia. Trabalhei para órgãos de imprensa do

interior de São Paulo, do Paraná e de Santa Catarina. Fui revisor, repórter, free-lancer e

editor, mas me considero mesmo um rato de redação. Há cinco anos, divido-me entre a

reportagem e a docência, experiências tão distantes quanto complementares. Na

Universidade do Vale do Itajaí (Univali), em Santa Catarina, respondo pelas disciplinas

de Legislação e Ética em Jornalismo e Técnica de Reportagem, Entrevista e Pesquisa

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Jornalística, mas já ministrei as de Redação Jornalística VII, Estética e Cultura de

Massa, e Teoria e Método de Pesquisa.

Na Univali, coordeno ainda um site de análise e crítica da imprensa local, o

Monitor de Mídia (http://www.cehcom.univali.br/monitordemidia), projeto

iniciado em agosto de 2001. Junto às revistas Fluxo e Carga & Cia, ambas editadas

pela Foco Editorial em Curitiba (PR), sou repórter especial, encarregado de enviar

reportagens sobre transporte, logística e infra-estrutura. É na produção de algumas

destas matérias que tentei alargar os limites para a impressão de uma autoria, como

veremos a seguir.

Além desses afazeres, atendo pela vice-presidência do Sindicato dos Jornalistas

de Santa Catarina e “cometo” alguns textos teatrais, por meio de minha participação na

Persona Cia de Teatro, de Florianópolis (SC). Já foram montados “Toda Vontade Mora

Num Útero” (2001), “F.” (2001-2002), “Chata, Fria e Sem Recheio” (2002) e “Castelo

de Cartas” (2004); estão em fase de produção “Urano Quer Mudar” e “O Escultor”,

todas com previsão de estréia em 2004.

(Mas por que essas informações interessam? Porque ajudam a apresentar o

repórter, resumem sua trajetória e evidenciam alguns de seus assuntos de interesse.

Essas podem ser pistas que sinalizem os esforços para a inscrição de uma autoria).

Na academia, a área preponderante de meus trabalhos é a da Ética Jornalística.

Meus interesses acerca do assunto já renderam artigos opinativos, trabalhos científicos e

um livro que se concentra sobre as preocupações com os desvios éticos no estado em

que milito: Monitores de Mídia – como o jornalismo catarinense percebe seus deslizes

éticos (Editoras da UFSC e Univali, 2003).

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Na política sindical, minhas maiores preocupações estão nas condições de

trabalho do jornalista, sua condição social e a natureza de sua formação. Isto é, como

se pode ser jornalista hoje no Brasil, numa conjuntura social desigual, num mercado de

Comunicações em crise, num ambiente de homogeneização das culturas e de

desinteresse pelas iniciativas de emancipação.

No teatro, diversas vezes, não consegui fugir de histórias onde os personagens

lutam para se definir enquanto sujeitos de suas ações. Em “Toda Vontade Mora Num

Útero”81, duas prisioneiras aguardam a transferência para um novo presídio e, para

administrar seus desejos e não enlouquecer, criam novas personalidades, duplicando-se.

A subjetividade se clivava, distendia-se num mesmo corpo. Na segunda montagem,

“F”82, decidi reunir vontades e subjetividades distintas. As gêmeas siamesas Maria e

Glauss dão carnadura a esse desejo criativo. Em “Castelo de Cartas”83, um personagem

se apossa do nome, da vontade e até mesmo da voz de sua esposa, mas ela tenta resistir.

Em “Urano Quer Mudar”84, um homem estimula sua amada a deixar uma tradição para

viver sua vida, desprendida de qualquer maldição ou sina. Em todos esses casos, uma

temática se repete, se reedita: a da afirmação do individual, do sujeito.

Seria demais dizer que canalizei esses vetores (a ética jornalística, a preocupação

com as condições de trabalho do jornalista e a afirmação do sujeito) para a minha

produção de repórter nos últimos anos em Carga & Cia e Fluxo. Não se deve afirmar

isso, mas também não se pode ignorar que estes aspectos estão ligados ao meu fazer

81 Com Anamaria Vincenzi e Maria da Graça Albino. Direção de Maria Paula Bonilha. A peça teve curtas temporadas no SESC-Florianópolis e na Udesc em agosto e setembro de 2001, além de ter sido selecionada para a Mostra Paralela do Festival Nacional de Teatro Isnard Azevedo. 82 No elenco, Igor Lima, Gláucia Grígolo, Maria Paula Bonilha e Malcon Jean Bauer. Direção de Jefferson Bittencourt. A produção circulou por 13 cidades catarinenses, teve curta temporada em São Paulo e foi a festivais em Pindamonhangaba, Blumenau, Passo Fundo e Curitiba. Conquistou oito prêmios e foi vista por mais de 3 mil espectadores. 83 Com Malcon Jean Bauer, Gláucia Grígolo e Igor Lima. Direção de Jefferson Bittencourt. O espetáculo estreou na Mostra de Teatro de Passo Fundo (RS) em maio deste ano. 84 Protagonizam Paula Braun e Fábio Hostert. Direção de Pepe Sedrez. Estréia em julho durante o Festival Universitário de Teatro de Blumenau. Em 2003, o texto teve leitura dramática de Margarida Baird e José Ronaldo Faleiro no mesmo evento.

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jornalístico, já que não posso cindir-me quando vou para a prática cotidiana. Como

sujeito multifacetado, sou o mosaico que contempla essas personas e outras mais. Os

vetores de interesse podem não ter determinado minha forma de escrever

jornalisticamente, mas têm grande chance de me influenciarem nesses momentos. É

preciso admitir operações mentais inconscientes, acasos e incertezas no complexo

processo de criação e escritura. Nem tudo é claro e transparente. Nem tudo está sob

controle e é visível.

Em termos metodológicos, esta tese pode ser classificada como uma pesquisa-

experiência inserida numa epistemologia pragmática, pois pretende delinear o que

constitui os fenômenos do olhar e da autoria na reportagem, tendo como base também

experiências de convívio do próprio pesquisador. Assim, a tese se preocupa com a

descrição, o registro, a análise e a interpretação dos processos atuais, vinculando-os

sempre com a prática profissional exercida em ambiente profissional.

Num primeiro momento, realizei um mergulho na bibliografia sobre Jornalismo

(sua constituição e seus procedimentos operacionais), sobre Epistemologia (as questões

da objetividade e da subjetividade no processo de constituição do conhecimento) e sobre

Autoria (principalmente a constituição dela e questões colaterais como a do estilo). A

seguir, analisarei parte da minha experiência como repórter em duas revistas de

circulação dirigida, editadas nacionalmente. As publicações são as revistas Carga & Cia

e Fluxo, voltadas para as áreas de logística, infra-estrutura e transportes. Desde 2000,

faço reportagens para esses veículos, e desde então venho empreendendo algumas

experiências no campo do texto, testando-me para tornar as matérias cada vez mais

autorais, cada vez mais distintas do padrão rígido de publicações do gênero.

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Por se voltarem a assuntos muito específicos e públicos tão qualificados, revistas

deste ramo trazem reportagens “mais duras”, com textos menos fluentes, específicas a

iniciados nos temas. Minha experiência como repórter especial tem permitido ver que,

mesmo nesse terreno estreito, há espaço para a criatividade, a leveza e a originalidade.

Tais aspectos auxiliam na visualização de uma autoria. Minhas reportagens são

publicadas (com pouquíssimas alterações de edição) e preenchem espaços razoáveis nas

revistas.

Desde 2001, decidi estabelecer uma programática de pesquisa: avançar nas

experiências textuais e ver até onde se pode ir com a autoria dos textos. Com isso,

passei a cumprir pautas nas revistas, elaborando textos intencionalmente autorais. Os

editores nunca souberam deste meu propósito, nem nunca quis causar suspeita dele. As

matérias eram enviadas de Florianópolis à redação – em Curitiba - e editadas por lá, sem

qualquer interferência minha. Tal qual foram publicadas, serão analisadas.

Metodologicamente, faço um recorte em minha produção desde 2000. Das matérias

publicadas, selecionei dez para a comparação do conteúdo veiculado com os arquivos

originais do autor, e para a indicação dos traços que possibilitam ler ali um exercício de

autoria no jornalismo. Títulos, características e critérios da escolha serão detalhados a

seguir, na seção que descreve os testes desta pesquisa.

Por fim, para contrapor os resultados da análise, apresento os pontos-de-vista de

quem editou tais reportagens: o diretor editorial das publicações, a chefe de redação e a

chefe de reportagem. Durante todo o período analisado, os três foram os primeiros

leitores das matérias e constituíram a instância de decisão sobre suas publicações ou

não. Nas entrevistas, abordo informações relativas aos critérios de edição de uma

reportagem em detrimento de outra, bem como suas posições acerca da autoria nos

textos jornalísticos. Evidentemente, em nenhum momento, foram revelados aos editores

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o objetivo da pesquisa e a prática do repórter nas matérias. Na verdade, as entrevistas

com os editores funcionam como filtros da pesquisa e devem ser cruzadas com a análise

das reportagens e com as diretrizes teóricas esboçadas no Capítulo 5. O que se quer com

esse cruzamento é o delineamento dos critérios jornalísticos que permitiram a

emergência de uma autoria nas reportagens escolhidas.

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6.2. O ambiente do laboratório e as condições de trabalho do repórter

“Pergunta-se pelo futuro dos jornalistas. Eles estão em vias de extinção. O sistema não quer mais saber deles”

Ignácio Ramonet – A tirania da comunicação

“Eu sempre quis ser jornalista – fuçar, descobrir as coisas, as coisas que estão por trás das coisas, falar com as pessoas

que admiro, com outras que desprezo, conhecer as que eu nunca imaginei. E depois sentar e escrever a história do jeito mais interessante possível, do tamanho pedido e no

prazo que o jornal precisa” Sérgio Dávila – Nova York antes e depois do atentado

Estávamos no final de 1999, quando tocou o celular. Do outro lado da linha, uma

repórter da sucursal catarinense da Gazeta Mercantil fazia um convite: queria me

indicar como repórter free-lancer para uma revista paranaense da área de transportes.

Havia pouco eu saíra da Editoria de Economia do jornal A Notícia, e a jornalista da

Gazeta estava deixando de mandar matérias para a tal revista. “É pra ser frila fixo e

estou meio sem tempo para eles, entende?”. Sei. Tentei saber um pouco mais da

publicação, mas jornalista sempre tem tanta pressa... Foi o tempo de apanhar o número

da revista e um contato. Foi assim - totalmente por acaso - que começou minha relação

com a Foco Editorial, que tem hoje três títulos no mercado, dois para quem ainda hoje

escrevo – mesmo que bissextamente.

Como não podia ser diferente, a Foco Editorial é uma empresa de comunicação

que vai surgir de olho num precioso filão de mercado.

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6.2.1 As revistas

Na segunda metade dos anos 90, a região metropolitana de Curitiba (PR) vai se

converter num terreno fértil para o setor de Transportes, alargando tentáculos para área

adjacentes como a de Logística e de Infra-estrutura. Um conjunto de fatores geográfico-

econômicos contribui para tornar o Paraná um importante pólo nacional de logística:

• A forte industrialização na década de 90 com a vinda de diversas

indústrias de peso, nos ramos alimentício, metal-mecânico e automotivo,

principalmente;

• Os maciços investimentos estatais em obras de infra-estrutura,

notadamente em estradas, acessos e portos. O governo Jaime Lerner

alardeia que aplicou R$ 12 bilhões no setor entre injeções diretas e

renúncias fiscais;

• A privilegiada localização: o Paraná está colado a São Paulo – o maior

mercado produtivo e consumidor do país – e é porta de escoamento para

os estados do Sul e países do Mercosul;

• A disponibilidade de um pujante porto, o de Paranaguá, que conseguiu

atrair empresas especializadas em soluções logísticas, armazenagem e

transporte.

Esses fatores agregados a outros resultaram num cenário que coloca o estado

como responsável por 25% das operações logísticas nacionais e num mercado que tem 2

mil transportadoras, só para citar dois indicadores.

Grandes empresas, grandes anunciantes. Em março de 1999, a Foco Editorial

lançou a Carga & Cia, que já se autodenominava a “sucessora da revista Transporte”,

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uma publicação editada pelo Sindicato das Empresas Transportadoras de Cargas do

Estado do Paraná (Setcepar) e pela Tempo Editorial. Na verdade, a Transporte era uma

revista que não tratava de Logística e Infra-estrutura, assuntos que a nova Carga & Cia

passaria a cobrir e só circulava naquele estado, conforme explicou Rui Cichella,

presidente do Conselho Editorial e também presidente do Setcepar85:

“Mais do que uma simples mudança de nome, trata-se de uma profunda mexida no projeto gráfico e editorial da publicação. (...) Carga & Cia também passa, a partir das próximas edições, a ser vendida em bancas de revistas e a ser distribuída nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, além da tradicional presença em todo o Paraná”.

A Transporte era uma publicação que circulava com mais dificuldade. Marcelo

Motta Vieira era assessor de imprensa do Setcepar e convenceu o sindicato a lançar uma

revista mensal que não tratasse apenas do setor transportador. “Eu era colunista político

na época, no Jornal do Estado, e acabei demitido. Como já conhecia o setor e via nele

um bom filão, criei a Foco Editorial”, conta o jornalista86. Carga & Cia surgiu como

resultado de uma parceria entre a editora e o sindicato. O acordo durou apenas uma

edição. “Quando eles viram quanto custava editar uma revista, a parceria acabou”,

explica Motta Vieira.

A publicação é uma exceção no mercado: é uma das poucas que é produzida fora

de São Paulo, mantém sua periodicidade desde o surgimento e se pauta pela amplidão

na cobertura editorial, não só cobrindo as transportadoras, mas os demais elos da cadeia

de distribuição. “Tratamos de infra-estrutura e isso acarreta em falar de política. Muitos

concorrentes evitam de fazer isso. A gente não abre mão”, diferencia. Para uma

descrição mais efetiva: a Carga & Cia é editada mensalmente, num formato de 21 cm X

28 cm, toda impressa em quadricromia em papel couché fosco. De início, vinha com 48

85 Mudando para melhor, editorial da Carga & Cia de nº 1, de março de 1999. 86 Entrevista ao autor em 23 de abril de 2004, na sede da editora em Curitiba (PR).

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páginas, reunida num miolo com adição de grampos. A partir do nº 34, de março de

2002, adotou novo projeto gráfico, mais seções fixas, uma nova versão eletrônica na

internet (http://www.cargaecia.com.br) e encadernação com lombada americana. Essas

modificações marcaram os três anos de circulação da revista – que chega a sair com 72

páginas na edição nº 43, por exemplo, mas mantém-se numa média de 60 páginas.

A tiragem inicial foi de 2 mil exemplares, voltados basicamente para as

transportadoras do Paraná. Hoje, com um público leitor mais consolidado, a publicação

tira mensalmente 7 mil exemplares (não auditados) e só circula restritamente ao trade,

mas seu alcance é nacional. A distribuição é feita pela própria editora, mas houve

experiências com a OESP e com a disponibilização do título em bancas de São Paulo e

Rio de Janeiro. Tais opções alcançaram bons resultados, mas eles foram considerados

equivocados pela empresa na estratégia de fixação do título no mercado. “Temos, hoje,

assinantes em todo o país, do sul ao norte, e até mesmo fora do país. Nossa mailling list

é tem uma boa cobertura do setor”, avalia o diretor editorial da Foco.

Entre os anunciantes da Carga & Cia, estão a Ford, a Goodyear, a Volkswagen,

a Autotrac, a Marcopolo, a Busscar, a Volvo, a Scania, a Agrale e a Mercedes-Benz.

Do seu surgimento até abril de 2002, Carga & Cia manteve-se concentrada em

três eixos de cobertura: Transportes (nos diversos modais), Logística (com ênfase nas

soluções adotadas por empresas para problemas cotidianos) e Infra-estrutura

(salientando investimentos e diagnósticos de eficiência). Mesmo com as alterações

feitas ao longo do tempo, a revista se equilibrou entre seções fixas com notas

informativas, artigos analíticos de especialistas e autoridades, matérias sobre

lançamentos no setor automotivo, entrevistas e reportagens mais aprofundadas. Amplo,

o arco de interesse da publicação possibilitava a cobertura das pautas mais díspares: do

alto custo de embarques nos portos brasileiros aos pedágios nas estradas; do escoamento

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e circulação de produtos às privatizações no sistema elétrico e de transportes; da

automatização na indústria automotiva às fusões de companhias aéreas, de inovações

tecnológicas às descargas de poluentes dos veículos automotores...

Em maio de 2002, Carga & Cia muda mais uma vez. Passa a cobrir apenas

Transportes e Infra-estrutura, e a Foco Editorial lança a Fluxo: “Primeiro filhote da

Carga & Cia (...), a Fluxo chega ao mercado para tratar de temas ligados a Logística,

Armazenagem, Movimentação de Materiais e Tecnologia de Informação”, explicou o

diretor editorial Marcelo Motta Vieira no primeiro editorial da publicação.

Com as mesmas dimensões e formato de Carga & Cia, a Fluxo saiu com tiragem

inicial de 5 mil exemplares, 48 páginas coloridas em papel couché e encadernação com

lombada americana. Circulação nacional, distribuição dirigida, as mesmas instalações

de produção e o mesmo corpo editorial da primeira revista da empresa.

Com a experiência bem-sucedida da Carga & Cia, a Foco Editorial provou o

mercado e percebeu brecha para crescer, segmentando ainda mais os próximos

produtos87. Pela Fluxo, por exemplo, desfilam matérias sobre redução de custos de

operação, casos de logística integrada, soluções para distribuição de cargas perigosas e

perecíveis, estratégias de armazenagem, etiquetagem eletrônica e novidades no campo

da Tecnologia da Informação (TI)... A cada mês, a publicação traz reportagens, seções

fixas, notas, entrevistas e um suplemento especial (Expertise) com artigos de fundo

escritos por consultores do mercado e especialistas acadêmicos. A segmentação se

observa também nos anunciantes da Fluxo: Associação Brasileira de Logística, Iveco,

Águia Sistemas de Armazenagem, Vaspex, Renault, TransTec, América Latina

Logística, Mitsubishi Empilhadeiras...

87 Esta tendência teria mais um episódio em abril de 2003, quando seria lançada a Fórmula Brasil, mais voltada ao automobilismo e às muitas categorias competitivas que cercam os esportes sobre rodas. A recessão de 2003 afugentou os anunciantes e a revista deixou de circular em dezembro, com nove números lançados.

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Não há estatísticas consolidadas nem tampouco perfis confiáveis do segmento

mercadológico que abrange Fluxo e Carga & Cia. Nota-se, no entanto, que há diversos

títulos disputando os leitores brasileiros e que existe grande diversidade entre os

patamares de qualidade dos produtos, os nichos que exploram e a própria longevidade

dessas publicações. A Revista Ferroviária, por exemplo, é editada há 64 anos pela

Empresa Jornalística dos Transportes Ltda, do Rio de Janeiro. É a mais antiga do setor,

mas já teve concorrentes que circularam pouco, como a Revista Ferrovia, editada pela

Associação dos Engenheiros da Estrada de Ferro Santos à Jundiaí (AEEFSJ) nas

décadas de 80 e 90. Há exemplos que atendem a outros modais, como é o caso da

Revista do Ônibus, da recente Transurbana, da Frota, da AutoData, da Carga Pesada e

da Conexão Marítima, que é bimensal, circula no sul-sudeste e países do Mercosul,

concentrando-se em comércio exterior e no sistema portuário.

O mercado do setor não é fácil. O diretor da Foco Editorial, Marcelo Motta

Vieira, qualifica de “drásticas” as medidas que tomou no início do ano, com a

interrupção na circulação da recente Fórmula Brasil (que durou só nove edições) e com

as mudanças na distribuição de Carga & Cia e Fluxo. “Elas passam a chegar juntas aos

assinantes. São dois títulos diferentes, mas serão distribuídas num pacote. Isso porque

percebemos que estava acontecendo sobreposição de áreas”88. Embora cubram áreas

distintas, a avaliação é de que as revistas se complementam. “Percebemos que a

tendência das transportadoras é se tornar operadoras logísticas”.

Como não há definição clara desse mercado, faltam bases que possam sustentar

análises comparativas entre os títulos. Tal carência não inviabiliza a pesquisa que

apresento aqui, já que ela enfoca uma experiência realizada em veículo dirigido pouco

importando dados mais específicos. Nas páginas que se seguem, interessa mais perceber

como uma certa experimentação teve lugar e que condições a permitiram.

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6.2.2 A rotina do repórter

As condições de produção do repórter, sim, interessam a esta experiência. É

relevante saber que circunstâncias cercaram o pesquisador-cobaia durante a realização

dos testes.

O material noticioso é editado na redação das revistas, na sede da Foco Editorial,

em Curitiba (PR). Atuo como repórter especial das publicações em Florianópolis (SC), e

prioritariamente cubro assuntos circunscritos nos limites catarinenses, muito embora já

tenha produzido reportagens em São Paulo e no Rio Grande do Sul. Essa distância me

desvincula de uma rotina convencional de empresa jornalística. Isto é, não acompanho

as reuniões de pauta, o trabalho de edição, os fechamentos e a chegada da revista da

gráfica. O que não significa dizer que fico alheio aos deadlines. Entretanto, não

comungo de uma visão global da edição que se está produzindo, pouco converso com os

editores durante a confecção das matérias e não tenho nenhum acesso às páginas

editadas e diagramadas antes de sua ida e retorno da impressão.

As pautas são me passadas pelos editores, mas houve diversos casos em que

sugeri os assuntos e tive a liberação para cobri-los. Faço entrevistas pessoalmente ou

por telefone, viajo quando necessário e escrevo os textos em casa, enviando-os por e-

mail à redação. Mantenho pouco contato com os editores, atendo-me apenas ao

necessário sobre esclarecimentos da pauta e alargamento de prazos. Quase sempre por

telefone. Os prazos para envio das matérias variam de duas semanas até dois meses,

sempre dependendo da programação dos editores e das dificuldades que os temas

reservam. Essas condições permitem-me uma dose de autonomia de trabalho por um

lado e um certo alheamento do processo total de produção de uma revista.

88 Marcelo Motta Vieira, em entrevista ao autor. Curitiba, 23 de abril de 2004.

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Minha rotina de trabalho é atípica e as contribuições às revistas são espaçadas.

Isso se explica pelo acúmulo de funções e compromissos (que me impede de trabalhar

mais para a Foco Editorial) e pela própria gestão interna das pautas enviadas aos

repórteres (na grande maioria, free-lancers). De fevereiro de 2000 a abril de 2004, eu

havia produzido vinte reportagens para a editora, sendo 14 para a Carga & Cia e seis

para a revista Fluxo. Foram três matérias enviadas em 2000, duas em 2001, dez em

2002 e cinco em 2003.

A seguir a relação completa das reportagens e suas referências:

De volta ao banco escolar Carga & Cia - Nº 11, Fevereiro/2000

Muito além do just-in-time Carga & Cia - Nº 14, Maio/2000

Mar de novidades Carga & Cia - Nº 15, Junho/2000

Sinal Vermelho Carga & Cia - Nº 23, Março/2001

Os alquimistas estão chegando Carga & Cia - Nº 23, Março/2001

O perigo está no ar Carga & Cia - Nº 31, Novembro/2001

É lixo só! Carga & Cia - Nº 35, Abril/2002

Contêiner de surpresas Fluxo - Nº 01, Maio/2002

Transportar é uma arte Carga & Cia - Nº 36, Maio/2002

Suando a camisa Fluxo - Nº 02, Junho2002

Sempre cabe mais um Carga & Cia - Nº 38, Julho/2002

Fora com o carimbo Fluxo - Nº 03, Julho/2002

Um porto que se move Fluxo - Nº 03, Julho/2002

Volante e giz Carga & Cia - Nº 39, Agosto/2002

Mais peso para a carga Carga & Cia - Nº 39, Agosto/2002

Altos negócios, baixos calados Fluxo - Nº 07, Novembro/2002

Socorro à vista Carga & Cia - Nº 44, Fevereiro e Março/2003

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Integrado e complicado Carga & Cia - Nº 49, Agosto/2003

As vinhas na mira Fluxo - Nº 14, Agosto/2003

O salário do medo Carga & Cia - Nº 52, Novembro/2003

Evidentemente, farei um recorte na produção, pinçando alguns casos

significativos no que tange o esforço de inscrição de uma autoria na reportagem, algo

que detalharei na próxima seção.

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6.2.3 O recorte

Do conjunto de reportagens produzidas para Carga & Cia e Fluxo, selecionei

uma parte para que pudesse aprofundar uma reflexão acerca das tentativas de inscrição

de uma assinatura jornalística. Estabeleci alguns critérios para contribuir nas condições

de verificação.

O primeiro foi a abrangência da amostra dos textos. A seleção deveria dar conta

da extensão de tempo de minha experiência como repórter das revistas. Essa

preocupação visava não trabalhar sobre textos concentrados num único ano ou outro, a

ponto de causar a impressão de que a autoria fosse ali um fenômeno datado, circunscrito

numa fase.

Um segundo critério para seleção do corpus de análise foi a proporcionalidade.

Isto é, eu precisava contemplar textos das duas revistas em número proporcional à

minha contribuição a elas e ao tempo de sua existência no mercado. Assim, o corpus

deveria conter mais matérias publicadas em Carga & Cia do que em Fluxo, já que a

primeira circula desde 1999 e para ela escrevi 14 dos 20 textos no período. Este segundo

critério estabeleceu proporções mais ou menos fixas para cada subconjunto de

reportagens.

Aliado a isso, decidi aplicar um filtro na seleção. Desprezei o primeiro e o

último ano de minha contribuição para a editora. Com isso, criei uma espécie de janela

de eventualidade, dentro da qual teríamos textos que não estivessem sob a influência do

começo de minha relação com a empresa, nem sob a influência da escritura desta tese.

Este foi um critério que priorizou a distância.

Em seguida, passei a reler as reportagens, atendo-me às características textuais

que mais facilmente evidenciassem uma unidade estilística, critério que tem como foco

a pertinência dos objetos de observação com a temática do estudo. Quer dizer,

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destaquei as matérias onde se pudesse perceber que eu mais tivesse experimentado

textualmente. É evidente que este critério se reveste de muita subjetividade, fator que

poderia interferir decisivamente sobre os resultados da minha análise. Para reduzir essa

possibilidade, resolvi trabalhar com uma amostragem grande frente ao conjunto total

dos textos. Por isso, escolhi dez exemplos dos vinte produzidos – 50% - para dar mais

condições de aleatoriedade e legitimidade. A expressiva amostragem deve funcionar

como mais um filtro de seleção.

Definidos esses critérios, cheguei à seguinte composição do corpus de análise:

dois textos publicados em 2001, cinco em 2002 e três em 2003. Dos quais, seis

circularam nas páginas de Carga & Cia e quatro nas de Fluxo. As unidades de análise,

por ordem de veiculação, são:

Título da reportagem Referências_________________________ Os alquimistas estão chegando Carga & Cia - Nº 23, Março/2001

O perigo está no ar Carga & Cia - Nº 31, Novembro/2001

É lixo só! Carga & Cia - Nº 35, Abril/2002

Sempre cabe mais um Carga & Cia - Nº 38, Julho/2002

Fora com o carimbo Fluxo - Nº 03, Julho/2002

Um porto que se move Fluxo - Nº 03, Julho/2002

Altos negócios, baixos calados Fluxo - Nº 07, Novembro/2002

Socorro à vista Carga & Cia - Nº 44, Fevereiro e Março/2003

As vinhas na mira Fluxo - Nº 14, Agosto/2003

O salário do medo Carga & Cia - Nº 52, Novembro/2003

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Para haver clareza metodológica, é preciso que se diga que, neste tempo todo de

reportagem para as revistas, meus originais sempre foram muito pouco alterados no

processo de edição. Para além das qualidades intrínsecas do material enviado à redação,

quero com esta menção ressaltar o rigor e o respeito com os quais trabalharam os

profissionais que editaram tais reportagens. As análises que procederei mais adiante

serão feitas sobre os textos publicados e, portanto, já revisados e ajustados aos formatos

técnicos das publicações. Os elementos estilísticos e as características autorais passaram

pelo crivo dos editores e estão sedimentados no espírito das reportagens.

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6.3. As tentativas de inscrição de uma assinatura

“Era como ler uma vida paralela à minha, e ao falar na primeira pessoa, por um personagem

paralelo a mim, eu gaguejava. Mas depois que aprendi a tomar distância do eu do livro, minha leitura fluiu.”

Chico Buarque, Budapeste

Foucault inicia o seu A ordem do discurso, dizendo que gostaria de se “insinuar

sub-repticiamente no discurso” de sua aula inaugural no Collège de France, no começo

de dezembro de 1970. Como ele, eu gostaria muito de iniciar esta seção da tese,

deixando de lado todo traço de cabotinismo, e mais alguns vestígios de arrogância,

egocentrismo e presunção. Sei que ao optar pelo caminho de ser cobaia de mim mesmo,

corro os riscos que a interpretação impõe num processo de leitura. Não ignoro o fato de

que os leitores possam considerar minha atitude – analisar o próprio texto para

referendar minhas proposições – um tanto suspeita; que possam ver nisso um exercício

fácil e pretensioso; que vejam aqui um contra-senso aos procedimentos científicos.

Entendo isso, mas absorvo tais críticas em nome da opção metodológica que fiz.

Analisar minhas matérias jornalísticas em busca de uma autoria na reportagem

foi a maneira mais coerente que encontrei para fazê-lo. Remexer nas próprias vísceras

permitiu-me não apenas retornar à prática do repórter que sou, mas ainda refletir sobre o

profissional que pretendo continuar construindo ao longo do tempo. Voltar meu olhar

para o próprio umbigo possibilitou ainda tecer uma crítica aos procedimentos que adoto

e separar inconsistências e recursos descartáveis. Os exemplos que apresento a seguir e

os comentários que os acompanham tentam mapear alguns esforços no sentido de um

exercício autoral na reportagem. Por isso, os dez casos relatados nas próximas páginas

não se colocam servem mais de exemplo de como tentei inscrever uma assinatura

jornalística do que como fórmulas e procedimentos padrões para esse exercício. Nas

matérias que apresento, manifesto mais testemunhos que lições, mais marcas que

carimbos, mais exemplos que modelos.

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Para além do caminho teórico que os leitores percorreram comigo nas quase

duzentas páginas anteriores, proponho um resto de fôlego para um mergulho da minha

prática na reportagem. Julgo que as tentativas na inscrição de uma assinatura, no

exercício de uma autoria, foram bem sucedidas. Mas não bastam apenas as minhas

intuições. Por isso, ofereço meus exemplos. Ser cobaia de si mesmo pode parecer

confortável, mas traz em si muitos perigos também. Um deles: deixar-se cortar na

própria carne.

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Carga & Cia. Nº 23. Março de 2001. pp.42-3

Os alquimistas estão chegando

Sem dinheiro para modernizar as unidades, o governo catarinense repassa para a iniciativa privada a operação de terminais em São Francisco e Itajaí

Na década de 80, era comum a idéia, entre empresas e usuários, de que só um

passe de mágica poderia salvar o sistema portuário brasileiro. Equipamentos obsoletos,

logística inoperante e custos altos faziam dos portos o centro das reclamações de

quem importava e exportava por navio. O cenário começou a mudar em 1993,

quando o governo federal acenou com um sopro de esperança ao publicar a Lei de

Modernização dos Portos, que permitiu uma maior abertura do setor.

Se não produziu milagres, a lei teve o mérito de criar oportunidades para alguns

“magos” se apresentarem. As primeiras modificações se deram nas relações de

trabalho entre operadores portuários e as diversas categorias envolvidas nos negócios.

Nos últimos três anos, as mudanças estão acontecendo na própria exploração dos

negócios nos portos, com a chegada da iniciativa privada e a conquista de parcelas

importantes da movimentação de cargas no país. Em Santa Catarina não é diferente.

Nos dois maiores portos catarinenses – Itajaí e São Francisco do Sul – a iniciativa

privada vem conquistando espaço nos terminais do Estado porque os administradores

(a prefeitura e o governo estadual, respectivamente) não têm caixa para promover as

melhorias exigidas pela modernização do segmento. Como dinheiro não surge na

cartola, a saída foi apelar para o empresariado.

Nas urnas - A idéia de arrendar o Terminal de Contêineres do Porto de Itajaí (Teconvi),

por exemplo, até gerou polêmica durante a campanha eleitoral do ano passado,

concentrando a atenção dos candidatos a prefeito. Os três representantes da

oposição eram contrários à proposta, defendida candidato à reeleição – que acabou

vitorioso – com o argumento de que só a transferência da concessão à iniciativa

privada salvaria o porto, injetando ali R$ 80 milhões em novos investimentos.

Longe de qualquer disputa, seja econômica ou eleitoral, outro porto de Santa

Catarina, o de São Francisco do Sul, deve estar inaugurando mais um terminal neste

ano, com exploração exclusiva pela iniciativa privada. Quem vai administrar o novo

atracadouro é a Terminais Portuários São Francisco do Sul S/A (Terfran), empresa

formada com capital da Cejen Engenharia e dos fundos de pensão Portus (dos

portuários) e Cellos (dos eletricitários). As obras para a construção do novo píer de 255

metros, dragagem e alargamento do canal devem estar totalmente concluídas no

final de 2001, mas, comercialmente, as operações podem começar já a partir deste

mês. “Estamos no final da fase de dragagem”, informa o administrador do terminal,

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José Carlos Mello Rego.

Hoje, quatro operadores portuários - o consórcio WR, a Litoral, a Ocean Trade e

a Portobello – fazem todo o trabalho em São Francisco do Sul. O diretor financeiro do

porto, João Alberto Ramos Pfeilsteicker, calcula que o novo terminal aumente em 25%

a movimentação total de cargas no porto. Inicialmente, serão 300 mil toneladas a

mais, chegando a 1 milhão de toneladas no final do ano que vem. “Temos quatro

berços, hoje, e a concessão deste novo terminal vale por 25 anos, podendo ser

prorrogada por mais uma vez”, completa Pfeilsteicker. Em dois anos, o consórcio

empresarial vai investir US$ 50 milhões em obras e equipamentos para carregamento e

descarregamento de grãos e outras cargas sólidas. Três navios poderão atracar no

novo terminal simultaneamente.

No Sul do Estado, no Porto de Imbituba, totalmente privado, a administradora

Companhia Docas (CDI) negocia com empresas estrangeiras a criação de um pólo

de concentração de cargas congeladas para serem enviadas ao Porto de Antuérpia,

na Bélgica. As operações seriam no sistema porta-a-porta e significariam a atração de

investimentos de até US$ 5 milhões. Se as expectativas de salto na qualidade dos

serviços dos portos brasileiros serão alcançadas ou não, é pura futurologia. Mas, de

lado a lado, usuários e governo torcem para que a mágica esperada não se mostre

apenas uma mera ilusão.

A pauta desta matéria me pedia um diagnóstico dos portos no Estado. Da

redação da revista em Curitiba, o editor queria um texto “não muito longo” que pudesse

dar conta dos novos investimentos feitos nos terminais e que servisse de uma pequena

radiografia do sistema portuário catarinense, oito anos depois do surgimento da

legislação que pretendia modernizá-lo.

Concentrei-me na produção de um texto que fosse ao mesmo tempo leve e

informativo, amplo mas ancorado em informações atuais e consistentes. A leitura da Lei

de Modernização dos Portos deu-me a impressão de que, se tudo aquilo ocorresse

mesmo, teríamos uma profunda modificação no sistema. Teríamos um milagre, uma

mágica. Vi nisso o mote que poderia conduzir meu texto. E busquei um símbolo que

pudesse sintetizar uma transformação da água para o vinho ou do metal barato em ouro:

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o alquimista. Esta imagem serviria para dar um fio condutor ao texto, de forma que o

perpassasse por inteiro e desembocasse no seu final.

Para dar unidade à idéia e conferisse força a ela, eu precisava de um título que

contivesse essa metáfora e que facilitasse a direção de leitura que eu almejava. Apelei

para dois recursos que, a princípio, parecem contraditórios, mas que na reportagem

funcionaram complementarmente: espanto e reconhecimento. O título deveria chamar a

atenção por ser muito distinto da maioria dos encontrados na revista, despertando a

atenção do leitor e convidando-o à leitura da matéria. O elemento-surpresa deveria

servir de chamariz para a leitura e permitir um reconhecimento de um outro texto em

que o título teria se inspirado. A intertextualidade deveria, então, ser um recurso para a

construção do título da reportagem. A intertextualidade é a conexão de um texto com

outros tantos, cenário-mosaico de citações e absorções, paródias, apropriações e

montagens. Como o sistema de funcionamento da língua não admite pureza, tais

combinações são previsíveis e ajudam a constituir o infinito das construções textuais.

O que vai permitir o reconhecimento de um texto noutro é o que se denomina

interdiscurso, isto é, uma memória discursiva (cf. Orlandi, 1999). Há uma ligação entre

os discursos com algo que já se disse e que é transformado pela história. É a

historicidade que vai permitir que a paráfrase, que a citação transforme os sentidos

repetidos em novos. Assim, ao eleger o alquimista como síntese da transformação que

eu ligava aos portos, pincei o título da canção de Jorge Ben, do disco A tábua de

esmeralda, de 1974.

O interdiscurso é o que vai possibilitar que o leitor – que tem memória

discursiva para tal – reconheça o título do compositor e possa reatribuir sentidos após a

leitura da matéria. Em outras palavras: o leitor chega à página da matéria, depara-se

com um título estranho para uma publicação como aquela, reconhece a origem daquele

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título e fica intrigado, tentando entender a conexão entre a cartola “Portos” e a canção.

A leitura da matéria permitirá uma reacomodação de sentidos por parte do leitor. Os

alquimistas deixam de ser as misteriosas figuras da Idade Média e passam a vestir

outros trajes na contemporaneidade. O anúncio de Jorge Ben não perde a força nem o

entusiasmo, renovando a esperança da mudança.

A interdiscursividade não foi um recurso usado exclusivamente por mim naquela

edição da Carga e Cia. O repórter Ewaldo Oliveira tratou de telefonia por satélite num

texto cujo título se apoiava na mesma estratégia: “Longe é um lugar que não existe”. A

diferença entre os casos é a combinação com outros dois recursos de estilo: o

desconcerto e a circularidade. O primeiro “deslocou” o texto dos demais editados na

revista por meio de um título aparentemente alienígena: o que teria em comum Jorge

Ben e a modernização dos portos?

A circularidade, por sua vez, foi construída com base no título, na abertura e na

conclusão da matéria. A metáfora apresentada em “Os alquimistas estão chegando”

perpassa o texto do começo ao final, e a presença nas duas pontas da aparente

linearidade do texto dão uma sensação circular, de retorno ao começo. O recurso dá

unidade ao texto e reforça a idéia que alimenta a metáfora.

Tanto a circularidade, quanto a intertextualidade e o desconcerto são recursos

que serão observados e reconhecidos em outros casos, mais adiante.

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Carga & Cia. Nº 31. Novembro de 2001. pp.18-9

O perigo está no ar

Controle de emissão de poluentes consegue bons resultados, mas Estados não fazem inspeção

Imagine 29 milhões de escapamentos lançando milhares de toneladas de

poluentes na atmosfera. Imagine que isso ocorre todos os dias. E que essa massa de

substâncias tóxicas demora para se dissipar, causando irritação e doenças nas

pessoas. Uma câmara de gás? Não, este é o cenário atual da poluição veicular nas

cidades brasileiras. Só na região metropolitana de São Paulo são 12,4 mil toneladas

anuais de fumaça preta (partículas e fuligem), despejados por ônibus, caminhões e

caminhonetes. Apenas em 1996, a Associação Nacional de Transportes Públicos

(ANTP) registrou 7% dos dias do ano com índices alarmantes de concentração de

poluentes, provocando rodízios e transtornos.

A emissão desses gases por veículos automotores é a maior fonte poluidora da

atmosfera, o equivalente a 40% da poluição do ar. São substâncias como monóxido e

dióxido de carbono, óxido de nitrogênio, dióxido de enxofre, chumbo e derivados de

hidrocarbonetos. Nos grandes centros, o quadro se agrava no inverno com a inversão

térmica, quando uma camada de ar frio forma uma redoma na alta atmosfera,

aprisionando o ar quente e impedindo a dispersão dos poluentes. Funciona como

uma estufa venenosa.

Na área automotiva, a preocupação com os gases emitidos pelos carros

ganhou corpo em 1986, quando o governo federal criou o Programa de Controle da

Poluição do Ar por Veículos Automotores (Proconve) para reduzir os níveis de emissão,

além de incentivar o desenvolvimento tecnológico, tanto na engenharia automotiva

como em métodos e equipamentos para a realização de ensaios e medições de

poluentes. Entre os resultados alcançados, houve redução de até 98% da emissão de

monóxido de carbono, hidrocarbonetos, óxidos de nitrogênio, e de aldeídos por

veículos leves.

Os culpados – De acordo com os especialistas, não há um tipo de veículo que

polua mais. Cada um – caminhão, automóvel ou picape – contribui com seu conjunto

de poluentes, o que acaba compondo nuvens de alta toxicidade. “Mas não há

dúvidas de que um veículo com motor gerenciado eletronicamente polui menos”,

atesta o engenheiro Manoel Paulo de Toledo, da Companhia de Tecnologia e

Saneamento Ambiental (Cetesb).

Ele cita dois dados para a comparação: “Hoje, 25% da frota mecânica já é

responsável pela metade das emissões. Há 15 anos, um veículo pesava 600 kg, fazia 8

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quilômetros com um litro e emitia 54 gramas de monóxido de carbono por quilômetro

rodado. Hoje, o peso é o dobro, roda-se pelo menos 10 km com a mesma quantidade

de combustível, mas a emissão caiu para 2 gramas”.

Segundo a lei, todos os veículos – nacionais ou importados – precisam de uma

licença do IBAMA para ser comercializados no país, e só a Cetesb pode avaliar a

configuração do motor dos modelos, liberando-os para o mercado interno. A adoção

do programa produziu sensíveis modificações na indústria, desde a adoção de

catalisadores e injeção eletrônica à instalação de linhas de produção de sistemas

para absorção de vapores de combustível. Equipamentos de medição e laboratórios

para acompanhamento de emissão também foram implantados. A Petrobrás vem

retirando gradativamente o chumbo da gasolina e o teor de enxofre no óleo diesel,

além de adicionar álcool à gasolina. A aplicação de novas tecnologias e sistemas

também melhoraram o funcionamento dos motores, proporcionando uma queima

mais efetiva do combustível.

Inspeção necessário - Mas isso não basta. É necessário que seja colocado em

prática a Inspeção Técnica Veicular, um processo que engatinha lentamente no país.

A idéia era implementar uma operação sistemática que vistoriaria todos os veículos,

apontando quem está dentro da lei ou não, tirando das ruas as chaminés ambulantes.

Em São Paulo, apenas na capital, parte dela deve ser feita pela prefeitura a partir de

março de 2002. Trata-se, porém, de uma exceção no país.

“As vistorias devem ser feitas no momento do licenciamento, e serão retirados

também os veículos com problemas de segurança”, adianta o engenheiro Antonio

Paulo de Toledo. No interior do estado, o cronograma deve atrasar, já que há pouco

tempo para todo o trâmite burocrático.

No Rio de Janeiro, a inspeção de emissões já vem sendo feita, mas não é

obrigatória, deixando uma brecha para os espertalhões. “Os demais estados não

implantaram o programa. Já a parte principal, que consiste na inspeção de

segurança veicular, ainda está no Ministério da Justiça para aprovação, e não tem

prazo ainda para sua implementação”, informa o presidente da Associação de

Engenharia Automotiva (AEA), José Edison Parro.

Acompanhamento - O Proconve atua com rigor na indústria, ditando normas e

especificações e também no monitoramento do ar em algumas cidades. Em São

Paulo, a Cetesb fiscaliza fontes poluidoras e observa a qualidade do ar na capital e

grandes centros do interior. A preocupação é a fumaça preta produzida por motores

a diesel, que além de trazer problemas de saúde à população, reduz a visibilidade nas

ruas e estradas.

Para se ter uma idéia, de 1994 a junho deste ano, a fiscalização a ônibus,

caminhões e picapes cresceu 352%. Os caça-fumaça comparam a cor das descargas

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dos escapamentos com uma escala internacional, que aponta a concentração dos

poluentes. Desde 1988, mais de 350 mil veículos a diesel foram vistoriados, e só em

1997, 25% dos que trafegam na região metropolitana foram autuados. O dado revela

uma realidade: a frota é velha e não recebe a manutenção necessária.

Desgastes de peças, reparos mal feitos e muita negligência aumentam as

possibilidades dos motores não renderem o esperado e poluírem além do permitido.

Como a inspeção veicular ainda não é uma realidade e os proprietários nem sempre

tomam os cuidados necessários, o Proconve perde o fôlego na redução das emissões.

Operação oxigênio - Em Minas Gerais, também acontece o monitoramento do

ar em três cidades da região metropolitana de Belo Horizonte. Os técnicos realizam

também a Operação Oxigênio, criada para controlar mais de perto a emissão de

fumaça preta dos veículos movidos a óleo diesel.

Nas ruas há três anos, a operação já vistoriou mais de 50 mil veículos,

colocando selos de advertência nos irregulares, aplicando multas de até R$ 4351,05 e

tirando de circulação os reincidentes. Os resultados? A renovação da frota dos

pesados na região metropolitana é um deles. Hoje, 80% dos caminhões e ônibus são

veículos turbinados em substituição aos de motor aspirado. Outra mudança: a

Petrobrás está distribuindo o “diesel metropolitano”, que tem menos enxofre do que o

comum, e é comercializado sob o mesmo preço nos postos.

Mas a poluição veicular não preocupa só os órgãos ambientais. A Associação

de Engenharia Automotiva (AEA) também atua na área. A entidade existe desde

1984, e reúne engenheiros e técnicos da indústria, de institutos de pesquisa e

universidades. São estes profissionais que elaboram diagnósticos e recomendações

para o estabelecimento de normas e especificações, promovem seminários e

discussões sobre o tema.

Como se não bastassem as nuvens tóxicas, outro tipo de poluição veicular já

tira o sono de muita gente: a sonora. Desde 1993 existe um programa nacional de

controle de ruído veicular, mas as ações ainda são muito incipientes. A Cetesb

encaminhou proposta de regulamentação para o controle da frota em uso, mas entre

as preocupações e as mudanças reais há uma grossa cortina de fumaça.

O título original desta matéria era “Câmara de gás”, o que reforçava a imagem

criada na abertura do texto. Como a pauta se referia a um tema mais difícil de ser

visualizado – poluição do ar e sonora -, pensei em lançar mão de uma abertura que

desse concretude ao assunto.

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Desta forma, apelei para uma abertura imagética, convidando o leitor a imaginar

o que era o conjunto de todos os canos de descarga dos automóveis no país despejando

toxicidade na atmosfera. A construção da figura da câmara de gás – cuja memória

discursiva nos leva aos horrores do Holocausto – foi alicerçada por trechos que

reavivavam o tema, como “funciona como uma estufa venenosa”, “...o Proconve perde

o fôlego na redução das emissões” e “mas entre as preocupações e as mudanças reais há

uma grossa cortina de fumaça”89. A realimentação da metáfora causa uma sensação de

unidade no texto, conduzindo o leitor para os sentidos pretendidos. No texto em

questão, o recurso ajuda também a construir um movimento de leitura circular.

O mesmo expediente de construção de imagens numa abertura de textos foi

usado no exemplo a seguir, como um recurso de estilo.

89 A expressão “cortina de fumaça” pode remeter o leitor à memória discursiva de uma “cortina de ferro”, decorrência do final da Segunda Guerra Mundial e da polaridade de forças no mundo.

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Carga & Cia. Nº 35. Abril de 2002. pp.48-9

É lixo só

Além de pedágios caros, da sinalização precária e dos buracos, as estradas servem de depósito de lixo para motoristas nada educados

Latinhas de cerveja, sacos plásticos, pedaços de papel, restos de pneus. Grãos

de cereais, sujeira doméstica, garrafas e pontas de cigarro. Parafusos, tábuas, fraldas

descartáveis e até colchões. Quem pensa que se está falando de um aterro sanitário,

engana-se: isso é só uma amostra do que é recolhido diariamente ao longo das

rodovias pela Polícia Rodoviária e por equipes de limpeza e conservação. O volume

de lixo encontrado é tão grande que em alguns trechos as margens das pistas mais se

parecem com depósitos a céu aberto. E a impressão que se tem é de que o motorista

não está nem um pouco preocupado com a conservação da estrada, atirando pela

janela tudo aquilo que não quer mais no interior do veículo.

“Este é um problema complexo, que envolve educação e conscientização”,

define Humberto de Souza Gomes, gerente de Engenharia da Ecovia, concessionária

de rodovias no Paraná. A empresa responde por trechos que atravessam perímetros

urbanos, onde a população, muitas vezes, deposita o lixo doméstico nas margens das

estradas. Quem passa pelas rodovias que cortam a região pode conferir isso de perto.

Sem contar os detritos lançados pelos turistas que passam por ali. “Achamos de tudo:

papel, latas, tambores de freio, parafusos, partes de carrocerias. Para se ter uma idéia,

um pino de ferro que se solta de um caminhão e vem na direção de um carro é uma

verdadeira arma!”, alerta o engenheiro da Ecovia.

Não bastasse isso, há outras preocupações para as equipes de limpeza da

concessionária: como o trecho serve de interligação com o Porto de Paranaguá,

muitas cargas são de grãos, que acabam em boa parte, despejados ao longo do

caminho. Dependendo da quantidade, podem entupir os bueiros e as caixas

coletoras, prejudicando o sistema de drenagem da rodovia, causando alagamentos

nas partes mais baixas. “Mas tem outra coisa: o grão de soja que é derramado na

pista, quando esmagado, libera um óleo que reage quimicamente com o asfalto,

ajudando a dissolver mais rapidamente a capa da pista”, explica Humberto.

Campanhas – No interior do Paraná, a Rodonorte, que administra estradas na

região de Ponta Grossa, recolhe 8 toneladas de lixo por mês. Se a quantidade não

parece alarmante, o volume é. Imagine 8 mil quilos de papel, latinhas de refrigerante e

sacos plásticos. Há ainda a ressolagem de pneus de caminhões que se solta e que

fica, muitas vezes, no meio da pista, servindo de obstáculo e armadilha para outros

motoristas. A concessionária tem uma equipe de 637 funcionários que fazem a limpeza

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diariamente, e um programa de conscientização do usuário, o Rodeverde, com

coletores seletivos de lixo nas bases de atendimento e postos da Polícia, e placas

educativas ao longo da pista.

Na ligação entre Rio de Janeiro e São Paulo, a Nova Dutra retira diariamente

objetos de grande porte das pistas. São pedaços de madeira, metais e borracha que

dificultam o fluxo normal dos veículos. A cada 24 horas, também são recolhidos dois

caminhões de sujeira miúda, como recibos de pedágio, terra, latas e pequenos

detritos.

A concessionária conta com o programa Dutra Limpa, que já distribuiu 300 mil

folhetos e sacos de lixo nas praças de pedágio. Resta saber se o motorista se sensibiliza

com a campanha ou se atira o panfleto pela janela na primeira oportunidade. Como

o inverno está próximo, e a estiagem também, outra preocupação passa a ser a

incidência de focos de incêndio causados por pontas de cigarro acesas.

Achados e perdidos - No interior de São Paulo, a concessionária Triângulo do

Sol também registra o recolhimento de lixo e de outros objetos nas estradas em que é

responsável. Os mais comuns são mochilas e bolsas, mas não fica só nisso. As equipes

de inspeção de tráfego já encontraram, inclusive, colchões que haviam caído das

carrocerias enquanto estavam sendo transportados. Até onde se sabe, quem deixou a

carga para trás não perdeu uma noite de sono sequer.

A Viapar, que administra um lote do Anel de Integração do Paraná, informa

que já encontrou diversos objetos inusitados na pista. Sapatos, documentos e roupas,

telefones celulares, talões de cheque, carrinhos de bebê e até bicicletas. É difícil saber

se os objetos foram esquecidos ou deixados de propósito pelos proprietários. Há casos

em que estes pertences caem das carrocerias, mas em outros, são jogados por

crianças sem que os pais percebam. Quando se trata de telefones celulares, o

esquecimento se dá, na maioria das vezes, da seguinte forma: o proprietário pára no

acostamento para checar algum defeito, faz uma ligação telefônica e deixa o

aparelho em cima do veículo. Resolvido o defeito, parte sem recolher o objeto que

acaba caindo na pista...

De acordo com o chefe do Departamento de Tráfego da Viapar, Luciano

Ricardo Mendes, tudo o que é recolhido fica sob custódia da empresa por seis meses.

Desde 1998, quando a Viapar começou a operar naquele trecho, 40% do que foi

encontrado voltou para as mãos dos seus proprietários. O resto, considerado perdido e

de origem ignorada, foi doado para entidades assistenciais.

Geralmente, quando documentos são recolhidos nas estradas, o primeiro

destino é a Polícia Rodoviária. Carteiras de identidade, fotografias e cartões de

crédito são esquecidos em postos policiais ou mesmo em postos de combustível. Não

existem estatísticas oficiais sobre documentos perdidos, mas na maioria das vezes, eles

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retornam aos seus titulares. “É relativamente fácil identificar os proprietários, quando se

trata de documentos. Aí, tentamos localizá-los para entregar o que foi perdido”, conta

o chefe da seção de Policiamento e Fiscalização da Polícia Rodoviária Federal em

Santa Catarina, Gilberto Durigon Freitas.

O título “É lixo só” recorre à mesma estratégia lingüística de “Os alquimistas

estão chegando”, pois parafraseia o título de uma conhecida canção de Ary Barroso e

Luiz Peixoto: “É luxo só”, gravada por João Gilberto. Entretanto, é preciso que se diga

que este não é o título que dei à matéria. O original – “Porcos no volante” – foi bem

substituído pelos editores, que repetiram o expediente da intertextualidade.

É evidente que o recurso estilístico não é exclusivo dos textos do repórter, mas

este título em particular não pode ser atribuído a ele, nem tampouco figurar

estatisticamente como um caso em que conseguiu deixar alguma marca mais autoral no

rol dos textos.

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Carga & Cia. Nº 38. Julho de 2002. pp.16-8

Sempre cabe mais um

De iates e estátuas a animais vivos, há cargas que desafiam a imaginação e a eficiência dos transportadores em todo o mundo

Mamãe, como é que vêm os bebês? A incômoda pergunta já foi respondida

milhares de vezes com a cegonha levando a culpa. Pois é mais ou menos assim que se

pode pensar quando o assunto é a remessa de cargas incomuns. Como despachar 17

Ferraris da Bélgica para um salão de automóveis nos Estados Unidos? Como os museus

recebem o conjunto de obras para uma megaexposição de arte?

Bem, eles recorrem a cegonhas modernas, empresas especializadas no

transporte de qualquer carga. Mas não são apenas eles. Superstars como Michael

Jackson, o ex-Pink Floyd Roger Waters ou Madonna costumam enviar por via aérea

toneladas de cenários, acessórios e equipamentos de suas turnês mundiais. A

agilidade na entrega também pode salvar vidas. Não fosse o transporte ultra-rápido

de uma perfuratriz de alto impacto de 4 toneladas, a pequena Jéssica McClure não

teria sobrevivido. A garotinha de um ano e meio caiu num poço no Texas, em 1987, e

só foi salva quando o equipamento chegou de avião.

O transporte de cargas incomuns, muito numerosas ou pesando toneladas

envolve uma rede extensa de agentes logísticos, planejamento e conhecimento das

dificuldades operacionais. No mundo, poucos se aventuram a atuar nesse ramo,

dominado por gigantes. No Brasil, o caso mais célebre é o dos Correios, estatal que

efetivamente cobre todo o país e consegue integrar de forma eficiente um território

de dimensões continentais.

Bip-Bip! - O brasileiro se acostumou a identificar na figura do Papa-Léguas o

serviço de entregas rápidas dos Correios, o Sedex. Marcado pela rapidez, o

personagem dos desenhos animados vencia grandes distâncias em pouquíssimo

tempo. Tem gente que leva isso tão a sério que recorre ao Sedex para despachar as

cargas mais inusitadas. A mãe preocupada envia remédio ao filho, o vizinho discreto

recebe a fita de vídeo pornô, o namorado remete um celular para a namorada.

Embora o serviço trabalhe com cargas de até 30 quilos, 80% das encomendas

do Sedex têm até dois quilos. Na maioria das vezes, são documentos, CDs, softwares,

livros, utilidades domésticas. Tem gente que até envia cartão de crédito, talão de

cheques e até dinheiro, embora seja proibido. As máquinas de Raios X triam os

pacotes e separam objetos pontiagudos, materiais explosivos e outros que oferecem

algum risco aos entregadores. Animais vivos e plantas também não são permitidos. Em

2000, foram entregues 85,5 milhões de encomendas pelo Sedex, número que deve

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chegar a 103 milhões neste ano. O sucesso dessas operações está na logística. Os

correios têm 12.212 agências para captar as encomendas, investiu US$ 32 milhões na

automação dos serviços de tratamento das remessas e tem um verdadeiro exército

nas ruas, composto por 38 mil carteiros. “Nossa especialidade é entregar muita coisa

ao mesmo tempo e em locais muito distantes. Temos agências em todos os 5.561

municípios brasileiros”, informa de Brasília o gerente do Programa de Encomendas dos

Correios, Everton Luiz Machado.

Com uma frota própria de 9,5 mil motos, 4,5 mil veículos leves e 500 pesados, os

Correios transportam pequenas cargas para todos os pontos do planeta, por meio de

conexões e parcerias com a União Postal Universal, que congrega correios de 189

países. Para vencer as distâncias continentais dentro do território brasileiro, o Sedex

contrata nada menos do que 28 linhas aéreas. Diariamente, os aviões a serviço dos

Correios voam 60 mil quilômetros pelo Brasil, levando 740 toneladas de pequenas

encomendas. O que o Papa-léguas estatal faz é de deixar qualquer cegonha com

inveja...

Peso-pesado - Mas se a remessa é maior do que os 30 quilos admitidos pelos

Correios, o cliente pode dispor de empresas especializadas em entregas rápidas. A

FedEx, considerada a líder mundial de transporte aéreo expresso, é uma delas. Os

operadores logísticos da FedEx já precisaram, por exemplo, embarcar um moinho de

vento que vinha da Dinamarca. Talvez até seja uma tarefa simples para quem já

despachou uma bola de neve gigante de Wisconsin para uma criança de Mênfis

(EUA) e para quem já transportou um satélite de 5 toneladas dos EUA para um ponto

perdido na China.

Em alguns casos, é preciso que a transportadora atue como uma cegonheira.

Foi o que aconteceu quando o governo japonês encomendou aos EUA um

helicóptero Sikorsky Black Hawk, de 5 toneladas, que chegou ao aeroporto de Narita

dentro de outra aeronave. Ou quando um iate de competição seguiu de avião da

costa leste americana para a Austrália, durante as Paraolimpíadas de 2000. Na mesma

época, a Rede Globo despachava do Rio de Janeiro toneladas de equipamentos

para a cobertura televisiva dos jogos. A Marco Polo embarca carrocerias de

caminhões por avião, e deve ser assim que chegará ao mercado chinês nos próximos

meses.

Quando a carga é incomum, quatro fatores são levados em conta. O cliente

tem pressa? Se ele quer rapidez, apela-se para os mais eficientes meios de transporte,

as rotas mais curtas, desviando de escalas e entraves. Qual a natureza da carga? O

pacote pode ser radioativo, inflamável, frágil ou ainda estar vivo. As características

vão determinar os cuidados com a embalagem. Qual o peso? Este aspecto diz

respeito à capacidade de transporte dos meios condutores, e pode – muitas vezes –

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inviabilizar uma estratégia multimodal. Que tamanho tem a remessa? Última

preocupação antes do embarque, mas que determina etapas de toda a operação

de despacho. “Aqui no Brasil nós podemos transportar até 50 toneladas, pois dispomos

de um DC-10 que opera a partir de Viracopos”, explica Guilherme Gatti, diretor de

marketing da FedEx para o Mercosul.

Tem cada uma... – Atualmente, mandar um pacote de até 70 quilos para

qualquer parte do mundo em até 48 horas é tão fácil quanto mandar uma carta

comum. A coisa complica quando a mercadoria é rara, pesada e precisa vencer

milhares de quilômetros. Diante deste desafio, os funcionários da FedEx embarcaram

uma daquelas esculturas da Ilha de Páscoa, de 12 metros de altura e seis toneladas,

do Chile para uma exposição nos Estados Unidos.

Pela América do Sul, não foram poucas as vezes em que conjuntos hípicos

viajaram de um país a outro para participar de grandes prêmios. Jóquei e cavalo vão

confortavelmente instalados no avião, cada um no seu compartimento, e se

reencontram no saguão do aeroporto. Mas este não é o único caso de cargas vivas.

“Há alguns anos, quando nossos aviões retornavam a Menphis, paravam em Manaus.

Lá, eram embarcados peixes ornamentais, que eram levados vivos para lá”, conta.

Atualmente, essas remessas não se repetem. Mas outras são freqüentes, e precisam de

refrigeração exata, nenhum contato manual e total segurança: são amostras de

sangue, de sêmen e outros materiais biológicos. Até testes de paternidade por DNA

são transportados para o exterior. A história da cegonha se repete.

A reportagem acima foi originalmente pautada para a revista Fluxo, sendo

publicada na íntegra na edição de maio de 2002, na estréia da publicação (“Contêiner de

surpresas”). Além do texto acima, havia um box intitulado “Todos a bordo”, que

descrevia os procedimentos e as burocracias no envio de plantas, animais vivos e no

próprio despacho, traslado e desembaraço de cadáveres nos pontos de chegada. Entre as

duas versões, a única diferença foi o descarte do box para a Carga & Cia, já que o

complemento era mais adequado à revista que cobre operações logísticas.

Mais uma vez, lancei mão dos recursos da reportagem “Os alquimistas estão

chegando”: desconcerto e circularidade. Como a pauta previa o deslocamento rápido de

cargas em grandes distâncias e como o símbolo dos Correios – um dos casos a serem

relatados – era uma ave, fundi as duas idéias na conhecida lenda da cegonha que

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percorre longos caminhos carregando mercadorias bem preciosas. Essa seria a metáfora

que preencheria todo o texto, de forma a dar unidade às suas dispersões. A característica

da circularidade ficou mesmo assegurada quando uma das fontes se referiu a um serviço

especial de transporte de líquidos e materiais biológicos, de sangue a sêmen e até

mesmo exames que atestem paternidade. Encontrado o gancho da matéria e o fio

condutor do texto, parti para um desafio pessoal: criar uma abertura incomum, fora de

qualquer expectativa que uma matéria sobre transporte de cargas poderia conter. O que

seria tão desconexo, desconcertante, inusual? Para reforçar a idéia da cegonha, trouxe

ao texto quem mais – supostamente – acredita na história: imaginei uma criança

perguntando como surgem os bebês. Pode não ser a melhor abertura, mas é criativa e

inusitada, totalmente inesperada para uma matéria sobre logística de embalagem e

circulação de mercadorias90.

Na reportagem a seguir, tentei me ater a um estilo mais frio, mais preso aos

números e às informações apuradas. Afora a frase de abertura – que constrói um

raciocínio tortuoso e aparentemente contraditório -, todo o texto é propositalmente mais

“duro”, se comparado aos já citados. Em meio à aridez dos números, seria possível tecer

uma narrativa mais fluída e leve, mas a opção foi construir um texto pesado,

burocrático, em contraponto com a desburocratização prevista na matéria.

90 Fiz algo semelhante outras vezes. Vale citar uma em particular: “Mar de novidades”, publicada em Carga & Cia, nº 15, junho de 2000, começava com um verso do poeta Fernando Pessoa, para quem todo cais é uma saudade de pedra. Expediente inesperado numa matéria sobre a evolução dos portos catarinenses.

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Fluxo. Nº 03. Julho de 2002. pp.20-1 Fora com o carimbo

Ministério dos Transportes agiliza cobrança eletrônica de tributo para renovação da

marinha mercante. Até outubro, portos do Sul e Sudeste devem se interligar ao sistema

O governo não sabe o tamanho do gargalo, mas sente que o rombo não é

nada pequeno. Alguns técnicos do Ministério dos Transportes estimam que se percam

anualmente alguns milhões de reais com fraudes sobre o Adicional ao Frete para

Renovação da Marinha Mercante (ARFMM), cobrado de navios na movimentação de

cargas importadas nos portos brasileiros. O tributo é recolhido e vai para o Fundo da

Marinha Mercante, voltado para construções e reparos na frota naval. O fundo foi

criado em 1958 e, desde então, o recolhimento do adicional era manual, com guias e

carimbos, hoje facilmente fraudáveis com impressoras domésticas cada vez mais

sofisticadas e softwares gráficos específicos. “Precisávamos virar esta página,

deixando de lado a papelada e os carimbos”, comenta o diretor do Departamento

de Marinha Mercante do Ministério dos Transportes, Vitorino Domenech, responsável

pela implantação do novo sistema de arrecadação, agora eletrônica.

O programa já contempla os portos de Paranaguá, Porto Alegre, Rio Grande,

Itajaí e Vitória e, em breve, deve alcançar São Sebastião, Rio de Janeiro, São

Francisco do Sul, Imbituba e Santos. “Deixaremos Santos por último, para outubro,

porque é o maior porto da América Latina, e precisamos antes ver como se ajusta

com os menore”, justifica Domenech. Interligados ao sistema de cobrança eletrônica,

os portos das regiões sul e sudeste devem logo se conectar ao Siscomex. O objetivo é

implantar o sistema nos 21 portos brasileiros até 2005, mesmo nos do norte e nordeste,

que atualmente contam com isenção na contribuição, amparados em legislação

para o incremento das economias regionais.

Mais agilidade - Mas o que muda com a cobrança eletrônica? Atualmente, o

agente marítimo tem dez dias para recolher a taxa. Além do prazo longo para

receber, o governo corre o risco de fraudes, já que o sistema é manual. Conforme

dados oficiais, as fraudes mais freqüentes se dão em Paranaguá, Santos e Rio de

Janeiro.

Com o novo sistema, o importador tem que enviar eletronicamente os dados

da remessa em até 48 horas antes do navio chegar ao porto, fazer a transação

bancária e, só depois disso, sua carga poderá ser liberada. “O Mercante, que é como

chamamos o novo programa de arrecadação, é importante porque vai possibilitar

dados estatísticos mais reais para tomadas de decisão mais acertadas”, avalia o

secretário executivo do Ministério dos Transportes, Paulo Sérgio de Oliveira Passos. “O

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que queremos é eliminar a burocracia, dar agilidade à tramitação e implicar os

negócios no recolhimento. Este processo coloca o governo numa posição atualizada,

contemporânea, já que precisamos de mecanismos mais confiáveis e seguros no

comércio exterior”.

Para o setor privado, além da desburocratização e agilização dos

procedimentos para a liberação das cargas importadas, o Mercante permite o registro

do Conhecimento de Embarque em tempo real, e possibilita acesso on-line 24 horas

por dia, sete dias na semana, sem deslocamento físico a qualquer órgão do Ministério.

O Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (ARFMM) tem alíquota

de 25% sobre o valor do frete e, segundo projeções, deve implicar num impacto de

0,82% sobre o preço free-on-board (FOB) das mercadorias importadas por meio

marítimo.

Dependência externa - Segundo as expectativas do governo federal, com a

contenção das fraudes na arrecadação da contribuição para-fiscal, será possível que

os estaleiros recebam mais encomendas, gerem novos empregos e aumentem sua

escala de produção, além de reduzir o nível de dependência externa no balanço de

fretes. Para se ter uma idéia do ocaso do setor, anualmente o Brasil perde até US$ 6

bilhões em afretamento externo. Ou seja: se depende muito dos navios de fora para

trazer as importações encomendadas. Na ponta do lápis, as empresas nacionais não

respondem nem por 40% dos negócios da área, e esta insuficiência de fretes

internacionais é o responsável pelo segundo maior volume de remessas para o

exterior, nas contas do governo. Para quem já teve a segunda indústria naval do

mundo, os números pesam. Hoje, o país ocupa a 16ª posição no ranking, com 5,8

milhões de toneladas de peso bruto (TPB), com uma frota de 126 navios envelhecida

em pelo menos 15 anos. Em 1990, eram 9,5 milhões de TPB e 380 navios. “Por isso, é

preciso retomar o setor, renovando a frota, modernizando os navios e construindo

novos para operar nos nossos portos. É com isso que também reduzimos o chamado

Custo Brasil, que é, na verdade, o custo da ineficiência”, acredita Oliveira Passos.

Em 1999, o Fundo da Marinha Mercante arrecadou R$ 428 milhões, valor que

subiu ligeiramente para R$ 500 milhões no ano seguinte e que alcançou R$ 696 milhões

em 2001. Para este ano, mesmo com a perspectiva de queda no volume das

importações, o governo espera recolher cerca de R$ 700 milhões. Quando o Mercante

estiver operando em toda a malha portuária, o bolo deve crescer em 30%, estimam os

técnicos do Ministério dos Transportes. Em dezembro de 2001, o saldo do fundo era de

R$ 1,33 bilhão.

Próprias pernas – Mas, embora o governo esteja radiante com os mecanismos

que vêm adotando para conter o gargalo, há quem torça o nariz. Na verdade,

setores do mercado defendem a desvinculação entre a indústria naval e a marinha

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mercante, divórcio que estimularia a iniciativa privada a avançar com a força de suas

próprias hélices. Domenech discorda deste ponto de vista: “Durante o últimos 20 anos,

o país foi perdendo posições e os armadores de fora foram se instalando e ganhando

terreno. Já temos um tributo que vem de uma lei federal, e isso nos propicia recursos

num fundo específico para a renovação da frota”. Ele cita o programa Navega Brasil,

lançado pelo governo federal em 2000, para flexibilizar as condições para

financiamento no setor. Se antes cobria 85% do valor total, hoje o programa atinge

90%, cobrando juros caíram de 4% (e não mais 6%), com prazo de amortização de 20

anos mais 4 de carência. “O BNDES tem linha específica para a indústria naval, e a

preocupação do governo foi manifestada na inclusão deste programa no Plano

Plurianual”, completa.

No exemplo a seguir, retomo duas estratégias textuais usadas anteriormente:

desconcerto e abertura imagética. O primeiro está expresso no contra-senso que construí

no título. Como os números do porto em questão eram muito positivos e como a

evolução dos índices era inegável, cheguei à idéia de que “aquele porto não parava de

crescer”. Na frase-idéia, chamou-me a atenção a locução verbal que continha em si um

tremendo conflito repouso-movimento. Quis aproveitar a mesma contradição trazendo o

porto para o título e fazendo aquele cenário que se coloca como um ponto de segurança,

algo que se movimente.

Criado o desconcerto de “Um porto que se move”, parti para uma abertura que

descrevesse um cenário sobre o qual pudesse ampliar a contradição: trouxe à cena

confusão, sujeira, inoperância. Para depois, negá-los, construindo a lógica definitiva do

texto. No caso desta matéria, os recursos funcionaram combinados: o contra-senso

apoiou o título e a abertura imagética construiu um contexto que seria contestado,

negado, estabelecendo uma nova direção para a narrativa.

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Fluxo. Nº 03. Julho de 2002. pp.30-1

Um porto que se move

Itajaí se moderniza, cresce a taxas de 30% ao ano e quer ser reconhecido como o mais eficiente do sul e do Mercosul até 2005

Para muita gente, a idéia de porto está diretamente associada a um local

insalubre, cheio de estivadores musculosos e rudes, confuso e desordenado.

Entretanto, este conceito caminha cada vez mais para o folclore coletivo. Pelo menos

é assim com o Porto de Itajaí, em Santa Catarina, que vem se modernizando,

acumulando bons resultados e se destacando no cenário nacional. Para se ter uma

idéia, desde 1991, o volume movimentado setuplicou, passando de 32,4 mil para 243,5

mil contêineres por ano.

Em todos os anos, exceto em 1995, o porto viu crescer seus resultados, e entre

2000 e 2001 contabilizou os melhores números de sua história: 38% a mais de

contêineres movimentados, consolidando 2,7 milhões de toneladas (crescimento de

31%) e 18% a mais de navios atracados. De acordo com a Associação Brasileira de

Terminais Portuários (ABTP), Itajaí é o porto que vem apresentando melhor

performance no ramo de contêineres, fato que o coloca como o segundo no Brasil

nas exportações de contêineres cheios, devendo ficar atrás apenas de Santos em

2002.

O bom desempenho do porto faz parte da estratégia para alcançar uma meta

ousada: ser reconhecido como o mais eficiente do sul e do Mercosul até 2005. O

desafio está estampado em cada sala da administração do terminal em pôsteres e

quadros, visível aos visitantes e ostensivo aos funcionários, como se fosse um chamado

aos brios. Para ser o mais eficiente na região, Itajaí briga de frente com seus vizinhos

catarinenses – São Francisco do Sul e Imbituba – e com Paranaguá (PR) e Rio Grande

(RS). “Temos investido em obras e em novos procedimentos para agilizar o trabalho e

dar mais eficiência ao porto. Além disso, desde 1996 as tarifas estão intocadas”, relata

o diretor comercial, Héder Moritz.

Parcerias - Único porto municipalizado do país, Itajaí tem conseguido reunir

uma gestão moderna com parcerias estratégicas com o setor privado. No ano

passado, por exemplo, o terminal arrendou área para a construção de um terminal de

contêineres que deve fortalecer ainda mais a movimentação local. Comprou novos

equipamentos de terra e implementou um sistema de qualidade total nas suas

dependências.

Neste momento, está contratando obras de dragagem para o alargamento da

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bacia de evolução do terminal, que passará de 270 para 300 metros de diâmetro. Os

trabalhos devem ser concluídos ainda neste ano, e com as novas dimensões será

possível a atracação de navios de até 270 metros de comprimento. Cargueiros

maiores também devem lançar seus cabos ao cais quando o calado de 9,9 metros for

aumentado a 11 metros até o final deste ano.

Responsável por 60% do PIB exportado catarinense (US$ 1,5 bilhão), Itajaí

responde por 3,35% das exportações brasileiras, ficando na 9ª posição no ranking

nacional. Em arrecadação de impostos, é o 10º colocado, tendo arrecadado R$ 290,8

milhões em 2001. Com uma cais que não chega a um quilômetro de extensão e 82%

de ocupação média de seus berços de atracação, o porto é o que tem a maior

produtividade nacional. E se Itajaí não é lá um grande porto – como Santos ou Rio de

Janeiro - onde mora o segredo deste sucesso?

Vocação exportadora - Três fatores vêm garantindo este desempenho: a

vinculação do porto à economia catarinense (a 7ª do país), a vocação exportadora

do porto e o segmento em que se especializou, o de contêineres. Em 2001, por

exemplo, enquanto o país mal crescia 2%, Santa Catarina alcançou 3,7%,

desbancando Paraná (3,2%) e São Paulo (2,5%), habituais campeões de expansão

econômica. Como Itajaí escoa boa parte dos negócios catarinenses, o porto pegou

carona nos bons ventos locais. Esta vinculação, entretanto não explica sozinha o

superávit do porto.

É aí que entram outras duas características que colocaram Itajaí em destaque:

seu perfil exportador e o tipo de negócio a que está habituado. Em 2001, as

exportações catarinenses cresceram 11,68%, o que ajudou o saldo da balança

comercial subir 23,53% no mesmo período. Como Itajaí é uma das principais portas de

saída de produtos locais para o mundo – 81% dos volumes das cargas é tipo

exportação, a autoridade portuária tem sorrido sem parar.

“Itajaí vem apostando num segmento muito importante: a carga

conteinerizada, o filé mignon do setor”, avalia o secretário executivo do Ministério dos

Transportes, Paulo Sérgio de Oliveira Passos. De todo o volume movimentado, 84%

seguem para outras localidades em contêineres. “A maioria dos navios que aqui

atracam – 59% - é do tipo full-contêiner”, informa o gerente de negócios, Leônidas

Gomes Ferreira.

Especialização - Numa análise geral, Itajaí não é um porto grande, mas é um

entreposto especializado, voltado a determinados negócios. Prova disso é a sua

condição de dispor do maior número de tomadas para contêineres reefers do país,

próprios para cargas congeladas. Até o final do ano, serão 3,5 mil tomadas, contando

o porto e seu entorno.

Esta especialidade atrai os operadores logísticos, como a Link Sul Logística e

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Armazéns, de Joinville, que se instalou a dois quilômetros do porto, de olho no

crescimento das exportações de carnes. A empresa já é a que dispõe de maior

número de tomadas para atender aos principais frigoríficos da região. É bom lembrar

que as líderes do mercado – Sadia e Perdigão – têm grandes unidades no território

catarinense, e que as safras sulistas de maçã são todas exportadas por Itajaí.

Atípico na administração e no segmento logístico, o Porto de Itajaí pouco

movimenta em termos graneleiros. O maior produto neste ramo é o trigo que vem da

província de Rosário, na Argentina. “A carga chega para abastecer um moinho

vizinho ao porto, e se ele não estivesse instalado por aqui, penso que não

trabalharíamos com granéis”, comenta o gerente de negócios.

Entusiasmo – Se as estatísticas têm deixado os administradores do porto

sorridentes, o desânimo parece não estar mesmo no horizonte deles. No primeiro

trimestre deste ano, o movimento foi 40% maior do que no mesmo período de 2001. Em

abril passado, novo recorde: 302 mil toneladas passaram pelos pátios do porto. Nunca

um mês foi tão intenso.

Apenas nos primeiros cinco meses deste ano – com a movimentação de 1,35

milhão de toneladas – o volume já supera toda a movimentação do ano de 1995.

“Este ano deve ser melhor ainda”, estima o diretor comercial, Héder Moritz. O porto

vem mantendo uma faixa de 24 mil contêineres por mês, e se tudo der certo,

encerrará o ano com crescimento de 30 a 35%.

Entre os novos negócios à frente, há o início de operação de uma linha

específica para o Extremo Oriente, rota que se soma às direcionadas aos EUA, Europa,

Ásia, América Central e África.

Os recursos estilísticos usados na matéria acima repetem-se na abaixo: o título é

desconcertante, apoiado num paralelismo de opostos, e a abertura desenha uma

seqüência de imagens que será desconstruída no parágrafo seguinte (“A história poderia

ter sido esta, mas não foi”). Se em “Um porto que se move”, apelou-se para o

imaginário coletivo, em “Altos negócios, baixos calados”, a abertura é uma autêntica e

confessada peça de ficção, inserida no início da matéria para ser desmentida por ele,

para ser negada e restabelecer uma nova ordem de sentidos.

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Fluxo. Nº 7. Novembro de 2002. pp.22-3

Altos negócios, baixos calados

Maior companhia de navegação privada do país investe pesado no transporte por cabotagem. Barcaças cruzam a costa brasileira com madeira e bobinas de aço

No final de uma tarde exaustiva de reuniões, um dos executivos da Aracruz

Celulose voltou seu olhar para a janela e mirou o horizonte de forma interrogativa.

Como transportar matéria-prima da Bahia para o Espírito Santo sem passar pela

congestionada BR-101? De repente, de frente para o mar azul, veio a luz: Por que não

usar a costa brasileira, lançando mão da navegação de cabotagem? No escritório da

Aracruz, todos sorriram e cumprimentaram o executivo pela solução brilhante,

aplaudindo a iniciativa.

A história poderia ter sido esta, mas não foi. Na verdade, embora muitas vezes

a resposta esteja sob o nariz de todos, o óbvio nem sempre é a primeira opção. No

caso da Aracruz, o impasse era real e a solução logística só poderia ser customizada.

Em 1998, a Norsul, maior empresa de navegação privada do país, foi acionada para

um estudo de viabilidade e três anos depois – após consultorias com duas gigantes

escandinavas do ramo – havia um projeto para desenvolvimento de sistema de

transporte. Para levar a madeira extraída do sul baiano, deveria ser construído um

terminal de embarque de cargas na cidade de Caravelas, e a carga contornaria a

costa em barcaças oceânicas, ligadas a empurradores. Este sistema de comboios já

funcionava no Mar Báltico, de onde também se transporta madeira de um país a

outro.

No caso da Aracruz, o sistema prevê uma frota de quatro barcaças e dois

empurradores, sistema que suporta transporte de 5,2 mil toneladas por viagem, com

velocidade média de 12,5 nós num calado de quatro metros. No Espírito Santo, as

toras de madeira vão desembarcar no terminal de Portocel, próximo às instalações da

empresa de celulose. “A indústria queria crescer, mas sofria com o gargalo rodoviário.

Só mesmo este sistema de escoamento de matéria-prima poderia permitir isso. Foi uma

solução com a cara do Brasil”, qualifica o diretor de Desenvolvimento de Negócios da

Norsul, Luiz Philippe Figueiredo. “Isso porque contamos com uma costa imensa, e o

sistema é economicamente mais barato porque os custos operacional, de

manutenção e de investimento são menores que qualquer outra opção”. Além da

viabilidade financeira, a solução logística se apóia também em vantagens técnicas:

operando com barcaças, o embarcador pode fazer mais viagens por semana,

trafegando por trechos com baixo calado e atracando em instalações relativamente

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simples. O sistema de comboio é mais versátil, fácil de manobrar e não exige

modernos equipamentos nos ancoradouros.

Cifras – O projeto Aracruz já tem sinal verde para começar a funcionar. Neste

mês, o estaleiro carioca Eisa entrega três das quatro barcaças e um dos empurradores

encomendados. O resto do pedido sai do forno até o final de 2004. Num primeiro

momento, a Norsul poderá carregar 1,5 milhão de metros cúbicos de madeira por

ano, volume que deve chegar a 3,4 milhões quando a frota estiver completa.

Para se ter uma idéia, esta carga equivale a 63 mil viagens de caminhões

ultrapesados de 54m3, algo como um caminhão a cada oito minutos, 24 horas por dia,

365 dias por ano. O projeto de construção dos terminais e das barcaças está orçado

em US$ 30 milhões, e conta com financiamento de 85% do BNDES com recursos do

Fundo da Marinha Mercante. A Norsul deve injetar capital próprio para fechar a

conta. Mas este negócio não inaugura a parceria entre Aracruz e Norsul.

As gigantes já trabalham juntas desde 1986, quando a empresa de navegação

começou a operar linhas internacionais de carga geral. Desde então, os fardos de

celulose da Aracruz são levados pelos navios do tipo Open Hatch, e hoje, o volume

transportado anualmente chega a 600 mil toneladas. Além disso, há uma proximidade

corporativa entre as parceiras: a Norsul é controlada pelo grupo norueguês Lorentzen,

que detém participações em diversas empresas, inclusive na Aracruz.

Grandes negócios - No Brasil há 49 anos, o grupo é a ponte entre a maior

produtora de celulose branqueada do mundo – 2 milhões de toneladas/ano – e a

maior companhia de navegação privada do país – 8 milhões de toneladas de cargas

transportadas anualmente em 28 navios e faturamento de US$ 140 milhões. A maioria

dos negócios da Norsul está na área de granel, onde são feitas 70% das operações da

empresa, com transporte de papel, celulose, produtos siderúrgicos e madeira. Sem

contar o ramo petrolífero, o armador responde por grossa fatia do mercado de

cabotagem nacional, e 35% das exportações de celulose de Brasil e Argentina para

Europa e Estados Unidos.

Operando também em linhas de longo curso, a Norsul enxergou nas águas

brasileiras a oportunidade de novos negócios. O desenvolvimento de novas rotas de

transporte de matéria-prima para a Aracruz é só um dos grandes contratos da

navegadora. “Estamos há quase 40 anos sempre voltados à cabotagem, no entanto,

atuando com a maioria de cargas em granel sólido. A operação com contêineres é

recente, e percebemos que o segmento, nos últimos anos, vinha ficando cada vez

mais competitivo. Partimos, então, para operar também num modal diferente: as

barcaças oceânicas transportando em distâncias menores e uma freqüência maior de

viagens”, explica o diretor da Norsul, Luiz Phillipe Figueiredo.

Paralelo ao projeto Aracruz, a Norsul já engatilha investimentos de US$ 40

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milhões numa solução para o grupo francês Usinor, que desembarca em Santa

Catarina com a Vega do Sul. Neste caso, o trabalho é transportar bobinas de aço da

Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST) do Espírito Santo para São Paulo e Santa

Catarina. Segundo a Norsul, um protocolo já foi assinado prevendo ainda a escoagem

de matéria-prima da Usinor para São Francisco do Sul, onde a multinacional constrói a

sua unidade no sul do país. Com isso, logo que a indústria estiver em funcionamento,

parte da sua produção seguirá pelas barcaças da Norsul para São Paulo, de onde

será distribuída. A Vega do Sul deve beneficiar 1 milhão de toneladas de aço

laminado ao ano, e a previsão é de que o transporte desta carga só comece em

2005.

A circularidade é uma característica estilística bastante presente no rol de textos

apresentados nesta tese. A seguir, mais um exemplo de como este recurso contribui para

inscrever uma assinatura na reportagem.

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Carga & Cia. Nº 44. Fevereiro e Março de 2003. pp.18-9

Socorro à vista Busscar aguarda o aval do BNDES para concluir a sua integralização acionária e iniciar

a reestruturação das dívidas, que alcançam cerca de R$ 200 milhões

A segunda maior fabricante de carrocerias de ônibus do Brasil torce para que

o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) volte a assumir o

papel de “hospital” defendido pelo seu novo presidente, o economista Carlos Lessa.

Há um ano, a Busscar pediu um empréstimo para a sua reestruturação financeira, que

consiste no pagamento de credores, integralização das ações nas mãos da família

Nielson e obtenção de capital de giro. Passado tanto tempo, o acordo com o BNDES

está na iminência de ser oficializado. A assessoria de imprensa do banco não informa

detalhes da operação, mas a informação que se tem é de que o financiamento beira

os R$ 100 milhões.

Em janeiro, a empresa enviou carta aos credores informando os termos do

documento. As novas condições são de que o BNDES suspende temporariamente a

liquidação dos saldos vencidos e estipula um prazo de carência com os bancos

credores de 12 meses para o início do pagamento do saldo. Trata-se de um respiro

para atender aos fornecedores, que foram classificados em três grupos: os que

receberão em 24 parcelas, os com prazo de 12 meses e os que receberão em seis

meses. O acordo diz ainda que esses fornecedores só poderão emitir novas faturas

com prazo de 45 dias para o seu vencimento. Socorrida pelo BNDES, a Busscar deve

ainda se livrar dos protestos e ações de cobrança que vem recebendo nos últimos

meses. É que o acordo com o banco condiciona os pagamentos aos credores à

retirada dos protestos.

Na empresa, em Joinville (SC), ninguém fala sobre o assunto. A recomendação

é não atender a imprensa e não se manifestar sobre quaisquer aspectos do acordo. A

assessoria de comunicação da Busscar garante que pretende anunciar a conclusão

do acordo com o BNDES tão logo ele se concretize. Este anúncio deveria ter ocorrido

no segundo semestre do ano passado, mas, ao que tudo indica, os entraves

burocráticos frearam a iniciativa. As finanças da Busscar não andam bem das pernas

desde o ano passado e a demora do BNDES só piorou a situação. Entre encargos

sociais e outros passivos, calcula-se que as dívidas cheguem a R$ 200 milhões. Para se

ter uma idéia, em dezembro passado, a empresa chegou a dispensar seus

funcionários por um dia por falta de alimentação, já que a fornecedora – a Embrasa –

havia cortado o abastecimento depois de ficar 45 dias sem receber. No dia seguinte,

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tudo foi normalizado após a negociação da dívida de R$ 350 mil.

Evitando tragédia - É clássico o tema da disputa pelo poder dentro de uma

família. Em geral, depois de muita intriga, ninguém sobrevive e o negócio vai parar na

mão de terceiros. Muito possivelmente, a presidenta Rosita Nielson não quis repetir a

tragédia na segunda maior encarroçadora de ônibus do país, a Busscar. Há anos, a

empresa sofria com a disputa interna pelo poder, o que poderia abalar a situação

promissora da empresa. Enxergando apenas uma saída, a matriarca abriu a bolsa em

janeiro de 2002, e optou por comprar as ações dos sócios minoritários.

Até então, a viúva de Harold Nielson e os filhos Fábio e Cláudio detinham 56,8%

das ações. Com a aquisição, dois sócios foram afastados do controle: o irmão do ex-

presidente, Valdir Nielson, e o cunhado, Randolfo Raiter. Ambos ainda ocupam cargos

importantes no grupo: o primeiro responde pela HVR Equipamentos Industriais, unidade

que adapta projetos de chassis, e o segundo dirige a Tecnofibras, empresa de

materiais plásticos do grupo. Os dois braços ajudam a sustentar o sucesso da Busscar

dentro e fora do país, que se traduziu em negócios de R$ 520 milhões em 2001.

Com 100% das ações da empresa, Rosita Nielson concentrou ainda mais o

poder do clã na escalada da Busscar. A operação de integralização dependeu de

muita negociação interna e infindáveis reuniões. Parece contraditório, mas ao mesmo

tempo em que Rosita Nielson trazia a Busscar mais para dentro de casa, quem foi

designado para chefiar a empresa nem é da família. A razão é simples: confiança no

vice-presidente, Edson Andrade, que já passou com sucesso por outras multinacionais.

Na montadora há cinco anos, o executivo reverteu números negativos, racionalizou a

gestão e vem liderando o processo de internacionalização. Em setembro de 1998, o

então presidente Harold Nielson contratou Andrade para modernizar a empresa.

Apenas 48 dias depois, um acidente aéreo abalou a empresa, matando o empresário.

Na época, não houve disputa pelo poder no grupo, e todos confiaram a direção a

Andrade. A empresa fechou o ano com um prejuízo líquido de US$ 1,9 milhão, mas em

2000, já buzinava com lucro de US$ 10 milhões. De 1999 a 2001, a Busscar comprou

fábricas no México, em Cuba, na Colômbia, na Venezuela e na Dinamarca.

Atualmente, tem parcerias na Ásia e EUA.

Esperando, esperando – Fora dos muros da empresa, o mercado aguarda

informações e manifestações concretas de restabelecimento da saúde financeira da

Busscar. Não se teme notícias piores, mas há apreensão. O volume de negócios da

empresa é grande, suas exportações pesam na balança e a fatia de mercado é

expressiva. Entre as encarroçadoras, a Busscar é a quinta do mundo e só em 2001

vendeu 5.726 unidades, 35,1% delas para o exterior. De acordo com o balanço anual

da empresa, 2001 foi o melhor período da história da Busscar. As vendas alcançaram

R$ 544,6 milhões, confirmando um crescimento de 27% com relação a 2000. Mesmo

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aumentando exportações e vendendo para 50 países, a Busscar está no foco do

mercado.

O analista de mercado João da Costa Marques, da Sudameris Corretora,

acompanha o setor automotivo e considera que talvez o salto da Busscar tenha sido

maior que as pernas. “Acredito que a empresa entrou numa guerra de preços para

ganhar fatia de mercado e acabou prejudicando o seu desempenho. No ramo das

encarroçadoras, a margem de lucro é muito estreita e qualquer perda no preço final

se traduz em prejuízo real para a empresa”. Segundo o analista, o segmento depende

de mão-de-obra intensiva e automação, o que demanda custos altos. Daí trabalhar

com margem pequena de lucro. “A Busscar até conquistou mais mercado, mas

acabou se endividando”, avalia.

Costa Marques compara a estratégia da empresa catarinense com a da

concorrente Marcopolo, de Caxias do Sul (RS). A líder do mercado nacional optou por

diferenciar suas receitas, buscando também o mercado internacional, mas protegeu-

se lançando ações na Bolsa de Valores de São Paulo. Foram negociados 37% do

antigo capital da empresa, que detém mais da metade do mercado brasileiro, e uma

fatia planetária de 6% dos negócios do ramo. “A oferta na Bovespa foi um sucesso, o

que funcionou como um colchão financeiro para a Marcopolo. Isso a deixou mais

confortável com relação a créditos”. Na época, as dívidas estavam próximas do

patrimônio líquido, e isso costuma assustar os bancos que ficam mais renitentes para

conceder empréstimos.

A Busscar tenta a sua saída. Esta não é a primeira vez que a montadora de

Joinville recorre ao BNDES. No final do ano passado, ela conseguiu financiamento

federal de US$ 26,8 milhões para exportar carrocerias e chassis de ônibus para Cuba.

Desta vez, é diferente: o empréstimo não tem apenas caráter de fomento. O caso

lembra a velha discussão sobre o papel do BNDES, que ganhou corpo com o governo

Lula. O ministro do Desenvolvimento, Luiz Fernando Furlan, quer que o BNDES

mantenha o seu papel de banco de investimento, de fomento, mas o próprio

presidente do banco, Carlos Lessa, acena com a possibilidade de o órgão atuar em

alguns casos como salvador da pátria de algumas empresas. É esperar para ver.

No exemplo acima, o título não é o original sugerido pelo repórter. Na primeira

versão, ele era “Ainda na UTI” e remetia à discussão sobre a vocação do BNDES como

um banco que socorre empresas em dificuldades. Mesmo trocado por um título melhor

(“Socorro à vista”), o gancho se mantém na reportagem, reforçado pela abertura e pela

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conclusão, que retoma a discussão. Mais uma vez, recorro a uma estrutura circular de

texto, formato que torna as narrativas jornalísticas mais fechadas em si mesmas, de

modo que se apresentem como episódios mais bem acabados.

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Fluxo. Nº 14. Agosto de 2003. pp. 24-6

As vinhas na mira

Sem deixar a romântica tradição no cultivo da uva, vinícolas investem em alta tecnologia e soluções logísticas.E se precisar, técnicos fazem até chover...

Conta a lenda que, quando as águas baixaram, Noé deixou a arca e plantou

uma videira nas terras lavadas pelo grande dilúvio. O ato era um símbolo de que o

homem novamente se ligava à terra para viver. A muda prosperou e se espalhou pelo

mundo. Passados milhares de anos, numa outra latitude, algumas famílias também

tentavam recomeçar. Vindas da Itália, encontraram na serra gaúcha o clima e as

condições necessárias para se fixar, e foi a partir dali que passaram a produzir os

melhores vinhos do país.

Quase 130 anos depois, os vinhedos daquela região parecem os mesmos, mas

a infra-estrutura por trás deles mudou muito. Embora ainda sejam mantidas algumas

tradições – como a colheita manual e o toque familiar na condução dos negócios -,

as vinícolas perceberam que era mais do que necessário buscar soluções na

tecnologia. Por isso, hoje, as principais produtoras de vinho não dispensam o

acompanhamento de especialistas, a engenharia genética e até mesmo modernas

técnicas para garantir o melhor clima para o desenvolvimento das uvas.

Como as frutas são sensíveis, ventos fortes e granizo fazem muitos produtores

perderem mais do que o sono. Não é à toa que anualmente é gasto muito dinheiro

com foguetes anti-granizo no Vale dos Vinhedos, no entorno de Bento Gonçalves (RS).

Quando os técnicos percebem formações perigosas no céu, eles disparam foguetes

que dissolvem os blocos de gelo nas nuvens, provocando chuvas mais amenas,

salvando a lavoura, literalmente.

Vinhoduto – Como a qualidade dos vinhos depende do bom desenvolvimento

da matéria-prima, a atenção com as uvas começa bem antes: na escolha das

sementes e sua adequação às condições de solo e clima. Na Vinícola Aurora, a maior

do país, por exemplo, dois centros tecnológicos de viticultura importam mudas e as

reproduzem em suas estufas. Os engenheiros agrônomos desenvolvem variedades de

uva isentas de viroses e totalmente ambientadas à região. Só depois disso é que as

novas mudas são distribuídas aos produtores.

Nesses mesmos laboratórios, testes são feitos com enzimas e leveduras em

busca de vinhos melhores. Este departamento de pesquisa funciona como uma

unidade de vinificação e está integrado aos centros tecnológicos por um complexo

de tubulações especialmente projetadas para a planta da vinícola.

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O vinhoduto de mais de 4,5 km de extensão foi a solução logística perfeita

para a empresa (veja box). Trouxe economia porque substituiu o transporte por

caminhões-pipa e garantiu mais cuidado na movimentação do vinho: subterrâneo, o

vinhoduto transporta os líquidos sem qualquer alteração de temperatura, o que

assegura fidelidade na cor, no aroma e no sabor.

Negócio familiar – É comum o produto levar no rótulo o nome da família

produtora. Mas este não é o único indicador do apego dos clãs ao negócio do vinho.

A terceira e quarta gerações já dominam o mercado e continuam tocando a

produção na serra gaúcha. Na Casa Valduga, é Luiz – neto dos fundadores da

vinícola – quem acompanha todos os detalhes. Na Miolo, netos e bisnetos do

patriarca Giuseppe, tomam as decisões, mas cercam-se de padrões de gestão

profissional. Para se ter uma idéia, a vinícola desenvolveu um planejamento

estratégico para os próximos dez anos. Se hoje detém 8% do mercado doméstico de

vinhos finos – a sua especialidade -, a Miolo deve produzir neste ano 5 milhões de litros

e faturar R$ 48 milhões. Em 2012, pretende alcançar 12 milhões de litros, um terço disso

para exportação.

Na Vinícola Aurora, toda uva que entra no parque fabril é cultivada em regime

familiar. Aliás, a empresa é uma imensa cooperativa que reúne 1300 produtores de

nove municípios da serra gaúcha. Mas como eles mantêm o mesmo padrão da

matéria-prima? A empresa fornece as mudas, acompanha o cultivo e dá orientação

técnica especializada. Com isso, tudo fica sob controle, e o desvio é mínimo. Na

época da colheita, os produtores chegam a contratar trabalhadores temporários, e é

a vez de outras famílias migrarem para a serra gaúcha no início de janeiro. Colhidos

manualmente, os delicados cachos de uva são depositados em tachos plásticos que

se empilham nos caminhões. A partir dali e até tornarem-se vinho, ninguém mais tem

contato manual com as uvas. Quando os carregamentos chegam aos portões da

vinícola, os tachos se enfileiram nas esteiras mecânicas e seguem direto para a linha

de produção.

Por contrato, os cooperativados produzem exclusivamente para a vinícola, que

tem o compromisso de garantir a compra de toda a matéria-prima. Entretanto, o

termo de exclusividade não impede que concorrentes desleais assediem os

viticultores. Desesperadas por uvas de qualidade, algumas vinícolas chegam a

oferecer preços melhores pelos carregamentos. Quem cede à tentação de um lucro

maior, acaba pagando por descumprir o acertado com a Aurora. “Já houve casos,

sim. Mas, como prevê o contrato, o produtor que fizer isso é automaticamente

excluído do quadro cooperativo”, afirma o diretor operacional da Aurora, Carlos

Zanotto. Esse negócio familiar gera anualmente 46 milhões de quilos de uva que se

convertem em 35 milhões de litros de vinho. Embora a produção seja familiar, ela

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contrasta com o profissionalismo na gestão que se quer imprimir no Vale dos Vinhedos,

região de 81 quilômetros quadrados que está sob a supervisão da Associação dos

Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos (Aprovale), desde 1995. A

organização zela pela qualidade dos produtos e, no ano passado, criou o primeiro

selo de indicação de procedência de vinhos do país.

Pelo mundo - Tal como acontece com outros produtos certificados – como o

café - o selo marca uma nova etapa no padrão de qualidade na produção e

comercialização dos vinhos no mercado doméstico. Segundo a Aprovale, os vinhos

que trazem o indicador de procedência têm aumentado seus valores agregados,

colocam-se com mais facilidade no mercado e têm mais saída, já que o consumidor

cria uma confiança maior em produtos certificados.

O vinho com sotaque brasileiro, aliás, já chega às mesas mais exigentes do

planeta. Os espumantes, por exemplo, têm nível de competição no primeiro escalão

internacional, e os demais alcançam quatro continentes. Curioso é perceber que o

maior exportador uruguaio de vinho é brasileiro. “O Tanat uruguaio sempre teve um

bom conceito entre os vinhos sul-americanos. Fomos atrás desta qualidade e

adquirimos uma unidade de produção naquele país. Hoje, somos os maiores

vendedores de vinho de lá”, comemora Carlos Zanotto, da Aurora. A vinícola produz

lá as variedades Tanat e Cabernet Sauvignon da linha Marcus James, que chegam ao

Brasil devidamente envasados e rotulados para o mercado nacional.

Compensa colocar nas gôndolas daqui um produto importado que tem know-

how brasileiro? O consumo maciço nesta faixa demonstra que sim. Além do mais, não

poderia ser diferente: a legislação impede que vinhos entrem no país a granel. O

produto precisa estar rotulado, envasado e vedado. Afora esta operação

“brasiguaia”, a Aurora já enche taças nos Estados Unidos, Japão e Finlândia. Cerca de

5% dos negócios são em exportação, faixa que quer chegar a 20% nos próximos cinco

anos, alardeia a empresa. Dentro do país, a distribuição se dá por meio de

representantes em todos os Estados e de centros de distribuição.

A Miolo exporta para Canadá e Estados Unidos, mas os negócios com o

exterior ainda estão se firmando. De todo o faturamento, a fatia estrangeira é de

apenas 1%. “Estamos tendo uma boa recepção lá fora e queremos atingir 4 milhões

de litros exportados anualmente em dez anos”, projeta Carlos Eduardo Correa

Nogueira, gerente da área. As cargas saem prontinhas da empresa para desembarcar

na América do Norte. Os contêineres que partem do porto de Rio Grande (RS) são

inclusive estofados para que não haja perigo às garrafas. “Vinhos são produtos muito

sensíveis e para que não haja muita oscilação no transporte nem variação de

temperatura, colocamos os contêineres no navio, abaixo da linha d´água”, completa

Nogueira. Se há milhares de anos Noé embarcou pessoas e animais, hoje, são garrafas

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de vinho que cortam os mares para chegar a novas terras. Pensando bem, muita

coisa mudou desde a primeira muda...

BOX

Vinho pela torneira

Para reduzir custos operacionais e diminuir o risco de perdas, a Vinícola Aurora

optou por uma solução logística limpa e barata. Tendo que fazer diariamente o

transporte da produção entre três unidades distantes, a empresa resolveu aposentar

os caminhões-pipa que circulavam pela região de Bento Gonçalves (RS) e instalou um

complexo de encanamentos entre os pontos desejados.

Funcionando desde 1995, o vinhoduto tem 4,3 km de extensão e é composto

por três linhas de dutos, por onde correm 25 milhões de litros de vinho por ano.

Independentes, cada cano é responsável pelo transporte de um líquido, seja vinho,

resíduo industrial ou resíduo tratado. O sistema foi especialmente projetado para a

empresa, e o material sintético usado foi desenvolvido para suportar a pressão do

bombeamento, além de não oxidar nem liberar toxinas que alterem sabor, cor ou

perfume. O encanamento é subterrâneo – o que conserva a temperatura do vinho e

preserva suas características – e fica a uma profundidade que varia de dois a doze

metros, dependendo do trecho.

Há sistemas específicos de bombeamento para cada cano, além de

controladores de pressão e velocidade. Funcionam como corações, impulsionando

um líquido igualmente rubro por baixo da terra. Para acompanhar o tráfego, os

técnicos observam os medidores de vazão, instalados em pontos-chave, onde podem

ser identificados perdas ou qualquer tipo de desvio. Como a carga que por ali passa é

delicada e requer muita assepsia, o vinhoduto tem manutenção diária, à base de

água quente e material de limpeza.

O projeto de construção do vinhoduto levou em conta a necessidade da

empresa de centralizar o volume de efluentes numa única estação de tratamento. Se

conseguisse isso, cortaria custos não só de manejo, mas também na eliminação do

frete dos caminhões-pipa. A idéia bem sucedida livrou o trânsito da cidade dos

veículos, reduziu a emissão de gases poluentes e trouxe mais tranqüilidade a quem

cuida da qualidade do vinho. É que, evitando os sacolejos comuns ao transporte

rodoviário, a vinícola mantém o seu produto mais “descansado” e mais seguro. A idéia

de fazer um vinhoduto veio a calhar, ainda mais numa região como a do Vale dos

Vinhedos. Nesse caso, até a topografia ajudou.

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A matéria acima foi produzida em dois momentos, e eles são facilmente

percebidos na espessura do texto. Eu soube que havia uma vinícola que trazia vinho do

Uruguai para o Brasil, aplicando nele seus rótulos em português e dando ao produto a

sua marca. Fiquei intrigado com a operação , questionando-me se aquilo valia a pena

logisticamente. Produzi uma pauta em cima da informação e apresentei à Fluxo,

argumentando que teríamos ali um bom caso a ser contado, ainda mais num clima de

inverno. A sugestão foi recebida e passei a cumprir minha pauta.

A primeira versão do texto já trazia destacados os três recursos estilísticos mais

presentes na minha produção jornalística para aquelas publicações: a intertextualidade, a

abertura imagética e a estrutura circular do texto. A primeira característica estava

expressa no título da matéria, uma paráfrase ao famoso romance de John Steinbeck (“As

vinhas da ira”); mas também se manifestava na alusão ao conhecido episódio da Arca de

Noé, na Bíblia.

A abertura do texto – descritiva e sintética - conta um fragmento de como teria

sido o final da história do Dilúvio, apegando-se a um detalhe que serviria de gancho

para todo o texto: uma muda de videira estava ligada ao começo de um novo tempo,

cheio de esperança e de prosperidade. A conclusão retoma a abertura, fechando a

história, como um conto em círculo, a exemplo de outros casos já relatados

anteriormente. Após a primeira versão do texto, os editores pediram texto complementar

que detalhasse a natureza e o funcionamento do vinhoduto, sistema da Vinícola Aurora.

Como eu já havia fechado a história em si mesma e tinha a confirmação de que o

complemento seria um box à matéria, destacado do conjunto anterior, produzi um texto

num tom diferenciado, alheio à primeira narrativa. No box, propositalmente, não se

aplicam as características antes evidenciadas já que se busca um caráter mais técnico

que detalhe o funcionamento do sistema hidráulico de bombeamento do vinho.

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Carga & Cia. Nº 52. Novembro de 2003. pp. 16-7

O salário do medo

Setor de Transportes é o que mais causa mortes em acidentes de trabalho. Enquanto

especialistas alertam para o perigo, segmento arca com prejuízos e perdas humanas

Pressionados pelo desespero, os motoristas aceitam o frete: levar um delicado

carregamento de explosivos por precárias estradas até um poço de petróleo. A cada

solavanco, a certeza de ter a insegurança como companheira na boléia. A situação

está em O salário do medo, filme clássico francês da década de 50, mas o drama dos

motoristas não é exclusivo do roteiro cinematográfico. Atualmente, trabalhar cruzando

ruas e rodovias brasileiras é tão perigoso quanto transportar nitroglicerina.

Levantamento feito junto ao Ministério do Trabalho e à Previdência Social aponta que

o setor de transportes é o que mais mata em serviço. A categoria dos motoristas é a

maior vítima e está envolvida em um a cada cinco acidentes de trabalho fatais.

Metade dessas mortes se dá em vias públicas.

Durante muitos anos, a grande vilã dos acidentes de trabalho era a construção

civil. Entretanto, embora ainda cause muitas vítimas, o setor vem reduzindo muitos dos

seus índices graças ao aumento das fiscalizações, à adoção de equipamentos e

procedimentos de segurança e às modificações nos ambientes de trabalho. “Nos

canteiros de obras, os pequenos acidentes vêm diminuindo. Em compensação, as

vítimas estão aumentando no trânsito, já que é sempre muito difícil intervir no cotidiano

desses trabalhadores”, explica Roberto Cláudio Lodetti, chefe do setor de Segurança

da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) de Santa Catarina. “O fiscal visita a

transportadora e percebe que lá as condições de trabalho são até aceitáveis, mas o

local de trabalho do motorista é mesmo a estrada. Lá, o ambiente e a rotina são

outros, e é isso que faz a diferença”.

Em 2001, só em Santa Catarina, foram registradas 14 mortes em acidentes de

trabalho no transporte terrestre contra 12 na construção civil. Em São Paulo, foram 85,

no Rio, 23, e no Paraná, 26. É preciso lembrar ainda que a massa trabalhadora

empregada na construção é maior que a nos transportes.

O roteiro desse filme é claro: o país é continental, mais de 60% da produção

seguem por rodovias, as estradas têm má conservação e os prazos de entrega estão

cada vez mais curtos. Assim, o caminhoneiro tem que vencer grandes distâncias em

menos tempo e, com isso, abusa da velocidade, exagera na jornada de trabalho,

dorme menos e, por isso, se arrisca mais em serviço. O resultado: se em 2002, o país

contabilizou 387 mil acidentes de trabalho, mais de 20 mil se deram nas áreas de

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transporte e armazenagem. A fatia de 5% do total parece pequena, mas é preciso

lembrar que esses são os dados notificados, os oficiais.

Informalidade – Muitos dos acidentes de trabalho nos transportes não são

lançados na conta total. Isso porque há muitos trabalhadores autônomos no

segmento e milhares de casos são registrados apenas como acidentes de trânsito.

Uma pesquisa da Fundação Seade, de São Paulo, revelou a subnotificação de

acidentes de trabalho. Cruzando dados de atestados de óbitos e da Previdência

Social, percebeu-se que em apenas 26,5% dos casos o médico que assinava os laudos

relacionava a morte às condições de trabalho.

Mesmo os números do trânsito são pouco transparentes. De acordo com o

Denatran, no ano 2000, morreram 45 mil pessoas nas vias brasileiras. Entretanto, essas

são apenas as vítimas nos locais. Estima-se que mais um terço desse número morra no

prazo de uma semana por decorrência dos desastres. Esses elementos transformam o

drama que é a vida do trabalhador das estradas num filme de terror. E o que é pior:

não é ficção.

A informalidade ajuda a mascarar a realidade perigosa. Técnicos do governo

brasileiro acreditam que apenas um terço da massa trabalhadora tenha registro em

carteira e, portanto, notifique acidentes e receba benefícios que cubram essas

eventualidades.

Se antes eram autônomos apenas os caminhoneiros que pescavam fretes pelo

país, agora um exército de motoboys e mototaxistas ajuda a aumentar o grupo de

risco. Em Brasília, por exemplo, a cada quatro mortes no trânsito, uma atinge um

motoboy. Na cidade de São Paulo, morre um motociclista por dia. “Não basta apenas

que usem o capacete. A necessidade de realizar mais entregas por dia faz com que

se arrisquem mais. No caso dos caminhoneiros, não é raro que acumulem funções, já

que carregam e descarregam quando chegam aos seus destinos”, relata Lodetti.

Disparidades - Com tese de doutorado sobre acidentes de trânsito, a socióloga

Michele Catherine Henrique alerta para a distância entre os números alardeados e a

situação real. “Questiono as campanhas e os programas na área porque as

estatísticas estão muito aquém do que ocorre por aí. Os acidentes têm sido tratados

como fatos isolados, mas na verdade há uma rede de relações que se estabelece a

partir deles”, critica. Segundo a pesquisadora, as condições de risco de quem

trabalha com transportes têm feito com que, na média, os indivíduos deixem de viver

metade do que poderiam ter vivido. Se a expectativa de vida tem aumentado no

país, a guerra no trânsito tem freado muitas vidas por aí.

Os acidentes de trabalho no ramo de Transportes e Armazenagem têm um

perfil bem definido: atingem mais homens, provocando lesões na coluna e nos

membros, além de problemas ósteo-musculares e estresse. Os acidentes se dão mais

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no começo da manhã, quando o motorista já está cansado de dirigir a noite toda, e

no da tarde, logo após o almoço quando o sono alcança os trabalhadores que

dormiram menos.

Um outro traço caracteriza a maioria dos casos: tanto empregadores como

funcionários encaram acidentes como inerentes à atividade de trabalho. Esta

complacência deseduca os profissionais para uma cultura de prevenção.

Em qualquer atividade profissional, imperícia, imprudência e desconhecimento

das condições de trabalho respondem por até 80% dos acidentes graves e fatais.

Campanhas informativas e cumprimento ideal de jornadas de trabalho poderiam

modificar o quadro. “Exames médicos devem ser feitos com mais freqüência,

diminuindo riscos. Empregados e patrões precisam se educar. Só assim, vão mudar o

perfil do setor. Se somarmos esforços, tenho certeza de que em um ano derrubamos

em 20% esses números”, aposta o chefe da Segurança no Trabalho em Santa

Catarina, Cláudio Lodetti.

Prejuízos – Vidas não têm preço, mas outros custos também pesam quando o

assunto é acidente de trabalho. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)

calcula que se gaste em torno de US$ 76 bilhões em toda a América Latina com isso.

Só em acidentes de trânsito, o Banco Mundial projeta um ralo de US$ 10 bilhões em

todo o planeta. Aliás, em tempos de reformas, esta é uma área que vem chamando

muito a atenção. O INSS concede 55 mil aposentadorias por mês, das quais apenas

21% são por tempo de serviço. O resto atende casos de acidente, aposentadoria e

invalidez.

“Recebemos muita gente aqui que é vítima de acidentes de trabalho, seja em

cadeiras de roda ou mesmo profissionais mutilados nas estradas”, conta o presidente

do Sindicato dos Rodoviários de Florianópolis e Região, Sidinei Medeiros. Mas o

sindicato alerta que os trabalhadores do setor sofrem não só com os acidentes de

trabalho, mas também com um encurtamento da vida profissional. “O motorista que

tem mais de 45 anos não consegue mais ser encaixado. As empresas acham que ele

não rende mais porque pode não agüentar longas jornadas”, queixa-se Medeiros. As

condições dos trabalhadores do setor vêm preocupando as autoridades, mas

modificar a situação é processo a médio e longo prazos. Se O Salário do Medo, o

filme, ganhou a Palma de Ouro em Cannes, a rotina de mortes no trânsito tem rendido

ao Brasil a medalha de campeão mundial de acidentes. Mas não é vantagem

nenhuma ser protagonista desse filme...

Na reportagem acima, tornam a aparecer a intertextualidade, apoiada por uma

abertura imagética e dando suporte a uma estrutura circular de texto.

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O título é referência explícita ao filme, confessada no início da história, e

repetido tanto na abertura como na conclusão da reportagem. A matéria (uma narrativa

não-ficcional) se ampara na descrição de uma história inventada (a do filme já citado)

para criar um gancho – o filme - que possa ser retomado em trechos como: “mas o

drama dos motoristas não é exclusivo do roteiro cinematográfico”, “a grande vilã dos

acidentes de trabalho era a construção civil”, “o roteiro desse filme é claro” e “não é

vantagem nenhuma ser protagonista desse filme”. A construção do texto revela uma

estrutura circular, que delimita as fronteiras da história que se propôs narrar. É evidente

que o texto – como qualquer outro – é poroso e contém pontos de fuga, e de entrada.

Entretanto, a circularidade, observada em outros exemplos, é uma característica que se

reedita neste exemplo, contribuindo para os esforços para marcar uma assinatura

jornalística na prática cotidiana.

Concluída a análise do corpus, temos sedimentadas quatro características

recorrentes nas matérias: a intertextualidade, o apoio em aberturas imagéticas, o

recurso a elementos que causem desconcerto/surpresa/curiosidade e a engenharia de

uma estrutura circular de texto.

A intertextualidade mostrou-se um recurso que busca outras referências para

enriquecer os textos, promovendo autêntico cruzamento de áreas, já que sempre se

procurava contemplar saberes exteriores ao Transporte e à Logística, focos das

publicações. No corpus analisado, era um expediente que funcionava como ponto de

fuga, apontando para outros campos, contribuindo para a experiência da leitura. Recurso

estético, mas que auxilia tecnicamente a costura do texto jornalístico.

As aberturas descritivas, que compunham seqüências de imagens ou cenários,

foram usadas como estratégia de atração e sedução dos leitores, suavizando a narrativa

de assuntos difíceis (administração portuária e redução de poluentes, por exemplo) ou

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delicados (como acidentes de trânsito e socorro a empresas endividadas). Com forte

acento estético, as aberturas lançam as bases para a montagem de uma estrutura circular

do texto. Esta circularidade dá unidade ao todo, fortalecendo a narrativa e marcando

bem o ritmo da história. Os episódios apresentam-se ao leitor mais bem acabados,

fechados em unidades definidas.

Dos recursos observados, o desconcerto é o menos usado, o que não retira sua

importância como elemento estilístico. No conjunto das características, ele ajuda a atrair

a leitura, quebrando a lógica narrativa ou mesmo criando a sensação de que algo é

contraditório, desconexo, desconcertante.

A ocorrência dessas quatro características em pelo menos dez das vinte matérias

produzidas para Carga & Cia e Fluxo desde o ano 2000 imprimem-se como tentativas

bem sucedidas na busca de uma autoria jornalística em reportagem. Bem sucedidas

porque as experiências de confecção de textos mais leves e soltos para publicações

dirigidas a setores mais austeros passaram pelo crivo dos editores e ganharam as bancas.

Bem sucedidas porque não sofreram modificações que desfigurassem os originais

enviados aos editores. Bem sucedidas porque não implicaram em perdas nos conteúdos

informativos em nome da estética textual ou do mero exercício estilístico manifesto

como beletrismo.

O corpus e as características encontradas

Título da Matéria Publicada em Recursos Estilísticos Os alquimistas estão chegando

Carga & Cia, nº 23 Intertextualidade Estrutura circular de texto Desconcerto

O perigo está no ar Carga & Cia, nº 31 Abertura imagética Intertextualidade Estrutura circular de texto

É lixo só Carga & Cia, nº 35 Abertura imagética Sempre cabe mais um Carga & Cia, nº 38 Desconcerto

Estrutura circular de texto Fora com o carimbo Fluxo, nº 03 Desconcerto Um porto que se move Fluxo, nº 03 Desconcerto

Abertura imagética

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Altos negócios, baixos calados Fluxo, nº 07 Desconcerto Abertura imagética

Socorro à vista Carga & Cia, nº 44 Estrutura circular de texto As vinhas na mira Fluxo, nº 14 Intertextualidade

Estrutura circular de texto Abertura imagética

O salário do medo Carga & Cia, nº 52 Intertextualidade Estrutura circular de texto Abertura imagética

Houve um esforço para imprimir um estilo nos textos em questão? É preciso

confessar que, em alguns momentos, sim. Mas, na grande maioria das vezes, esses

recursos foram se colocando no texto de maneira natural, entre o instintivo e o racional,

para garantir o bem-estar estético e qualidade técnica jornalística. Até as edições de nº

49 de Carga & Cia e de nº 14 de Fluxo, ambas de agosto de 2003, eu ainda não havia

dissecado os textos em busca de características comuns a fim de categorizá-las. O que

significa que as duas últimas reportagens foram produzidas e redigidas com a

consciência de recursos estilísticos comuns; e que tais matérias tentaram aprofundar

esses expedientes. Mais ainda, isso mostra que – para além de mera experimentação

estilística – a aprovação das matérias pelas instâncias de edição e suas publicações

atestam que há possibilidades concretas do exercício de autoria na reportagem.

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6.4. O que os editores têm a dizer

“Um editor de jornal é alguém que separa o joio do trigo. E imprime o joio” Adlai Stevenson, político norte-americano

“A carreira de um bom repórter, em geral, é abortada prematuramente pelo oferecimento

de um cargo de chefia, e, dali, para fora do jornalismo. Um bom editor demora anos para fazer-se mas,

quando fica pronto, um infernal rodízio leva-o para outra área ou outra empresa”.

Alberto Dines, jornalista brasileiro

Os editores são os primeiros leitores dos repórteres. Recebem o material,

revisam, cortam, alteram, renomeam, ajustam à linha editorial, quando isso é necessário.

Seus olhos são os primeiros a escanear a superfície difusa dos textos produzidos;

escarafuncham, buscam sentidos, analisam se o que têm ali pode ir a público, se deve

chegar ao leitor. Funcionam como primeiro filtro dos textos candidatos a matérias.

Por essas razões, é preciso ouvir os editores. Mais ainda: ao conhecer as bases

em que se apóiam seus critérios de edição, é possível traçar conclusões sobre a validade

ou não das proposições do Capítulo 5 desta tese.

No final de abril de 2004, entrevistei o diretor editorial da Foco, Marcelo Motta

Vieira, e a chefe de reportagem, Adriana Ferronatto, responsáveis pelo trabalho de

edição nas publicações. Todos os textos passam por eles, e é a partir dali que os

números das revistas vão se desenhando antes de chegar aos assinantes. Na mesma

ocasião, conversei ainda com o jornalista Júlio Malhadas Neto, que editou a já extinta

Fórmula Brasil e agora atua como repórter de Carga & Cia e Fluxo. As fontes foram

escolhidas porque estão diretamente envolvidas com aqueles projetos editoriais,

freqüentam a redação e vivem a rotina da editora.

As entrevistas aconteceram no mesmo dia, na redação da Foco Editorial, em

Curitiba (PR). Conversei separadamente com cada um deles, embora os demais

tivessem condições para interferir em respostas, complementando informações, negando

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ou confirmando versões. Para que as entrevistas fluíssem, não utilizei gravadores,

tomando apenas notas de pontos mais importantes de suas falas. A exemplo de todo o

tempo anterior, não mencionei minhas experiências textuais com nenhuma das fontes, e

também não me coloquei na condição de um colega de redação. Concentrei as perguntas

num único eixo: os critérios dos editores no tratamento das matérias que chegam à

redação. Este aspecto foi desdobrado em três perguntas que se repetiram:

• Quais são os critérios que você utiliza para editar um texto para Carga &

Cia e/ou Fluxo?

• Para você, o que é um texto bom, passível de sair nas revistas?

• Que tipo de texto não entraria em Carga & Cia e/ou Fluxo se você as

tivesse editando?

As questões tentam extrair respostas que tratem da qualidade textual das

reportagens, observando se há margem para experiências mais autorais, com emprego

de estilo ou se existe uma norma ou padrão a ser seguido. Adiante, os principais trechos

dos depoimentos dos editores:

Marcelo Motta Vieira, diretor da Foco Editorial

“Olha, para mim, só há dois tipos de texto: o bom e o ruim. Aqui, na Foco,

seguimos um funcionamento parecido com o da Editora Abril. Há alguém que analisa

toda a edição e se preocupa com a qualidade dos textos veiculados. Tenta dar uma

padronização, mas isso não quer dizer que os vôos textuais dos repórteres não sejam

permitidos. Muito pelo contrário, eles são muito bem-vindos. Tentamos nos espelhar em

fórmulas consagradas de boas revistas como a Veja e a Exame, mas voltando-nos para

os segmentos que atendemos”.

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“Eu penso que a Folha de S.Paulo influenciou muito a nossa geração. Eu tenho

40 anos e senti isso também. A Folha veio com um esquema industrial pesado, de

planejar a edição, de estabelecer espaços para as matérias, de condicioná-las ao

planejamento da página. Aí, o que aconteceu? Os textos acabaram mecânicos demais,

chatos, quase feitos por robôs. O que a Folha fez? Deu mais espaço para os colunistas.

Ali, a Folha podia se permitir ter estilo, escrever bem (risos). O que eu percebo, de uma

maneira geral, é que os jornalistas que mais escrevem bem são aqueles que mais lêem.

Em termos de informação, eu penso que os textos que publicamos estão num patamar

mais básico, não há lá muita exclusividade, mas temos um bom texto”.

“Não tenho qualquer restrição em termos de texto. Se o repórter fizer uma

reportagem bem feita, com informação, boas fontes e estiver em versos, por exemplo,

eu publico. Não tenho restrição a formatos”.

“Recebemos muitos elogios dos assinantes, e eles se concentram em dois pontos

basicamente: o planejamento gráfico das revistas e a amplitude nas coberturas. Neste

tempo todo, recebi dois ou três elogios apenas à qualidade do texto. Acho que o leitor

não se importa muito com isso. Acho que chama mais a atenção do próprio repórter, do

jornalista”.

“Essa coisa do jornalismo é curiosa mesmo. Tive uma noção mais clara de como

fazer revista quando trabalhei na Veja. Lá na Abril, há o entendimento de que uma

revista precisa de cerca de quatro anos para se consolidar. É claro que existem exceções

e a própria Veja é uma delas. Demorou mais que isso, mas era o carro-chefe da editora e

uma aposta pessoal dos Civita. Embora já contássemos com alguma experiência de

produção da Carga & Cia, também cometemos erros com a Fluxo. Ao fazer a Carga,

vimos que a área da Logística era maior ainda que a de Transportes, por isso criamos

um novo título. Entretanto, descobrimos que essa área não está acostumada a investir

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em publicidade nem tampouco habituada com jornalismo. Então, não foram poucas as

vezes em que um anunciante meu me ligava dizendo: Pó, Marcelo! Eu anuncio contigo

e é o meu concorrente que sai na capa? Não vou mais anunciar! O cara não entendia que

quem saiu na capa era notícia, tinha assunto e ele não. Outra coisa: há publicações na

área de Logística que mais se parecem com catálogos. São 90% de publicidade

travestida de matéria e 10% de jornalismo de verdade. Nós fazemos diferente, e

pagamos por isso”.

Adriana Ferronatto, chefe de reportagem de Carga & Cia e Fluxo

“Os critérios de edição são os do jornalismo mesmo. Não se foge muito disso.

Para mim, um texto bom começa pela correção gramatical, por um bom português. É

preciso também que seja fluente, sem tropeços, que seja bom de ser lido, gostoso. Não é

porque trabalhamos em revistas segmentadas que devemos fazer textos engessados,

maçantes. É preciso fazer revistas que mantenham o padrão da informação sem serem

chatas. Sabemos para quem escrevemos, mas não precisamos escrever no jargão deles,

com a mesma linguagem das transportadoras, dos caminhoneiros. Escrevemos de uma

maneira que possa ser inteligível para nossos assinantes e outras pessoas que possam se

tornar nossos leitores”.

“Embora a edição fique a cargo de uma única pessoal, recebemos os textos já

previamente editados pelos repórteres. Eles nos enviam o material contendo não só o

texto da matéria, mas sugestão de título, de legenda, fotos, intertítulos e olho. Isso

facilita”.

“Que texto não entra? Ah! O factual não dá. Somos revistas mensais e não

podemos ficar com esse compromisso de jornal diário. Outra coisa: não dá para tolerar

texto sem nexo, sem ligação, que só traz partes que não se conectam, como num

relatório. Matéria em primeira pessoa? Pode passar, sim. Se estiver bem escrita e for

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adequado, por que não? A revista tem espaço para brincar, para ter um texto mais

informal. Então, o repórter pode fazer uma abertura de texto com mais estilo, ou ainda

com referências a outras áreas, quem sabe. Eu acho que por ser revista, até se exige uma

certa flexibilidade. O que tem é que enriquecer mesmo. Criatividade é essencial. Há

espaço para estilo até pela própria característica do meio”.

Júlio Malhadas Neto, repórter de Carga & Cia e Fluxo, e auxiliar na revisão

“Para mim, um texto ruim é aquele que tem cara de press-release. Não que não

existam releases bem escritos, mas texto de reportagem precisa ser diferente. Não pode

ser cheio de adjetivos, não pode ter um só ponto de vista. Tem que estar correto

gramaticalmente, ter fontes, ter falas que importem para o assunto. O texto bom tem que

estar recheado de fontes qualificadas, conter falas conflitantes para que o leitor julgue e

tome o seu partido. O texto bom também não pode ser uma novela. Tem que ser conciso

sem ser do tipo que a gente na Folha de S.Paulo: telegráfico, moldado, em fórmula”.

“Acho que o bom texto tem que ter um pouco de literatura também. Não pode

ser maçante. Por ser revista, tem que ter um molho, pode-se fazer metáforas, joguinhos

de palavras. Na verdade, acho que o repórter tem que fazer isso: tornar o texto mais

atraente”.

As falas dos editores de Carga & Cia e Fluxo demonstram flexibilidade no trato

com os textos. Mesmo servindo mercados bem delimitados, as publicações permitem

reportagens mais fluentes, textos mais soltos, matérias mais informais. Os editores

garantem que isso não afeta o conteúdo informativo ou a credibilidade das publicações.

Pelo contrário, pode atrair outros leitores. Um pouco dessa flexibilidade é atribuída ao

próprio meio de comunicação que a revista impressa se consolidou.

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Entretanto, apesar disso, há exemplos nas bancas e nas salas de espera dos

consultórios médicos em que não se vê “literatura”, “informalidade”, “estilo” – para

tomar as palavras das bocas dos editores. O que se percebe é que, entre os editores de

Carga & Cia e Fluxo, vigora um conjunto de critérios de edição que coloca o conteúdo

informativo das matérias sobre o formato como elas se apresentam. Isto é, se as matérias

produzidas contemplarem as demandas jornalísticas, suas formas pouco importarão.

Não há restrição a exercício de estilo nem a experimentações textuais. Essa flexibilidade

resulta em uma liberdade maior por parte dos repórteres na escritura de seus trabalhos.

A flexibilidade dos editores garante autonomia de quem realiza as coberturas. Parece

caber aos repórteres “vôos” mais altos.

É preciso que se diga que, durante as entrevistas, nenhum dos consultados

referiu-se à autoria. Não há entre eles uma reflexão mais aprofundada disso, o que se

traduz numa preocupação menor com relação ao exercício de um estilo ou à

competência textual que aponte para essa direção. Em nenhum momento também os

editores distinguiram o trabalho de um repórter de outro nas revistas da editora. Nem

tampouco apontaram para outros jornalistas-autores de veículos nacionais ou

internacionais. As referências se deram apenas no plano institucional das empresas,

como se elas se configurassem escolas ou correntes jornalísticas.

De maneira geral, o que observei é que a autoria é um assunto que ainda não

atrai tanta atenção e energia dos editores quando se discute qualidade do texto

jornalístico. Embora, ela possa estar impressa nas páginas das revistas que editam, não

há um olhar tão detido sobre essa matéria.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um jornalismo com impressões digitais

“O jornalismo é o exercício diário da inteligência e a prática cotidiana do caráter”.

Cláudio Abramo, jornalista brasileiro

“O conceito de objetividade tem sido tão desfigurado que hoje é usado para descrever o próprio problema

que deveria corrigir” Bill Kovach & Tom Rosenstiel, jornalistas norte-americanos

“Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”

Carlos Drummond de Andrade – No meio do caminho

O Jornalismo que se arvora no objetivismo é tão diáfano quanto a permanência

dos fatos. No mundo exterior às redações, os acontecimentos se sucedem, repetem-se,

superam-se, desmentem-se. O tempo passa, as coisas acontecem e os jornalistas correm

como loucos na tentativa de congelar a vida em manchetes ou anúncios. Autêntico

trabalho de Sísifo, o Jornalismo alimenta a ilusão de que possa refletir o real, que seja

capaz de manejar fragmentos da realidade sem interferir em suas formas e sentidos.

Iludem-se os profissionais ali envolvidos e parte do público que ainda crê no Jornalismo

como espelho do mundo.

Mas o Jornalismo é também vitrine e janela para a vida. Entre o público e a

paisagem, há um anteparo: transparente, limpo, quase invisível. Mesmo assim,

pensamos que nosso olhar toca a paisagem, esquecendo-nos de que há algo no meio do

caminho que pode distorcer nossa visão, dando a impressão de que a paisagem não está

tanto distante quanto efetivamente está, por exemplo. Usamos vidros nas janelas. Há

vidros nas vitrines. Carregamos lentes apoiadas em nossos narizes. E cotidianamente

nos esquecemos desta inaparente existência; convivemos com ela, como se a ignorando,

como se essas placas de vidro não fizessem o seu papel, como se não interferissem.

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O Jornalismo ajuda a enxergar o mundo. Funciona como janela, como vitrine;

funciona como lente, como prisma. É tão familiar que quase nos esquecemos dele; e aí,

o que recebemos dos meios de comunicação é absorvido como o fato-em-si, como se

não houvesse mediação. Mas a luz que ilumina a paisagem não chega aos nossos olhos

sem antes passar por lentes, sem antes sofrer refração. Talvez seja proposital esquecer

disso, talvez seja inadvertidamente. Mas a mediação está ali.

O Jornalismo é uma atividade desenvolvida por e para humanos. E concebê-la

isenta de sujeitos é alimentar a ilusão de que os fatos falem por si mesmos, que os

relatos sejam feitos sem nenhuma voz. Neste sentido, sobra pouco espaço para

considerar a objetividade da forma como as gramáticas jornalísticas construíram no

último século. A objetividade – como aquela qualidade de isentar-se completamente de

si para trazer à tona o objeto – sobrevive apenas na boca e na mente dos que crêem nela.

Sua permanência enquanto coisa se dá no pensamento e no discurso. Efeito de

linguagem, dogma profissional ou imperativo ético, a objetividade reside na debilidade

de seu conceito. É claro que se pode tentar apagar as marcas dos sujeitos que realizam o

Jornalismo. Na superfície da língua, tudo é possível: “Veja ouviu o ministro tal”,

“fulano recebeu a Folha de S.Paulo em seu escritório”. Mas os vestígios humanos

permanecem. Alguém já disse, certa vez, que não é possível fazer Jornalismo sem sujar

as mãos. E entre a objetividade dogmatizada e o exercício subjetivo do jornalista há

muita coisa. É evidente que não defendo aqui um Jornalismo individual, pessoal e

isolado. Esta é uma atividade social, coletiva. Também não me refiro a um Jornalismo

impressionista, onde adjetivos inapreensíveis e relatos egocêntricos sustentem as

narrativas do cotidiano. É preciso dialogar, tornar comum, compartilhar.

Não defendo um Jornalismo impressionista, mas um Jornalismo onde as

impressões digitais dos sujeitos que o fazem sejam visíveis, aparentes. Um Jornalismo

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onde as marcas autorais não sejam soterradas por projetos editoriais pretensamente

objetivos, presumidamente universais. Aponto a necessidade de um Jornalismo que

restitua os narradores como sujeitos do processo, em conjunto com os sujeitos do

público, destinatários da informação. A leitura do mundo pelos meios de comunicação é

um processo complexo de atribuição de sentidos que contribui sobremaneira para a

conversão de indivíduos em sujeitos. No outro extremo, a autoria também se coloca

como um conjunto de operações que funciona na mesma direção: o narrador pode ser

escrivão ou escritor, autor ou mero repetidor de versões.

Nas 265 páginas anteriores, sublinhei que o Jornalismo é uma atividade prática

coletiva, e que nem sempre a autoria numa obra jornalística é discernível. O Jornalismo

reflete/refrata os fatos (ou tenta fazê-lo), e eles não têm dono. Neste contexto, pode-se

falar em autoria jornalística quando preenchidas algumas condições de exercício de

estilo e reposicionamento do sujeito do discurso jornalístico. Neste cenário, a autoria é

entendida primeiro como indicador de responsabilidades, mas ela se efetiva mesmo no

Jornalismo na órbita da mediação.

Assim, para ser autor na reportagem, é necessário atender a dois estilos, um

estrutural do Jornalismo e outro, pessoal. A autoria jornalística se dá num ponto

periférico, no estágio de exercício do segundo estilo (o pessoal), não no primeiro, já que

este é plano de imanência na narrativa jornalística. Uma autoria no Jornalismo depende

de uma compreensão diferenciada da obra jornalística, e por isso não vigoram as

mesmas regras que valem para a obra literária ou artística, por exemplo.

No Jornalismo, para ser autor, é preciso legitimidade. Ela é a primeira condição

a ser satisfeita para uma efetiva vivência autoral na reportagem. Para além disso, a

autoria pode se apoiar ainda na capacidade/competência de bem narrar. Mais ainda:

autoria requer certo grau de autonomia do repórter, flexibilidade das instituições

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jornalísticas que abrigam esse profissional. Autonomia do repórter e sua correspondente

ousadia na prática cotidiana. Outra condição: a autoridade de quem é especialista ou

testemunha do acontecido, fator que ajuda a credenciar o discurso do jornalista.

Portanto, é possível exercer autoria em estruturas jornalísticas cada vez mais

hierarquizadas, industrializadas e complexas na medida em que se constroem condições

de autonomia do repórter e o profissional alimenta sua atuação com doses de ousadia e

consciência de sua função social.

No Jornalismo impresso, por exemplo, os autores poderiam estar mais evidentes.

E a primeira medida neste sentido é garantir a assinatura do trabalho. Os repórteres

fotográficos já têm assegurado este direito, e recebem seus devidos créditos. Penso que

isso poderia ser estendido aos repórteres, redatores e editores. Penso que deveriam

figurar nas páginas dos jornais e revistas os nomes dos jornalistas que estiveram

envolvidos naqueles relatos. Então, em todos os textos, os leitores veriam nomeados

seus autores e responsáveis. Essa proposição acarreta numa mudança não só como

medida que assegura o direito inalienável de um autor de ser evocado frente a sua obra,

mas também como respeito aos leitores no conhecimento dos efetivos autores dos

textos. A evidência, a proposta da assinatura maciça dos textos nos meios impressos,

permite uma outra coisa: visualizar com mais nitidez a polifonia que vigora nas páginas

da imprensa, as muitas vozes ali no jornal e na revista.

É possível que esta proposta não seja bem recebida nas redações, e possa ainda

ser questionada por setores da academia como algo que redunde na banalização das

assinaturas. Mas independente de qualquer polêmica que alimente, a vocalização desta

proposta se sustenta por um argumento facilmente assimilável: a assinatura de um

trabalho de espírito não é prêmio. Trata-se de crédito devido a quem produz. Assinatura

é reconhecimento, é direito. Inalienável.

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Há uma premissa que escora a recomendação da assinatura maciça nos trabalhos

jornalísticos: todo discurso tem uma voz que o emite, e ela parte de um sujeito, de um

autor. Mesmo no anonimato das matérias não assinadas, mesmo nas reportagens

televisivas onde não há passagem. Os fatos não falam por si mesmos; eles são contados.

Entre os teóricos da Educação e da Lingüística, há o entendimento de que é através da

aquisição da escrita que o sujeito deixa a posição de enunciador para ocupar a de autor.

Comungo com esta compreensão do processo. E para ser autor, é preciso se colocar

como um princípio de aglutinação, agrupamento. A autoria é ponto de convergência, é

para onde se atraem os sentidos dispersos e se passa a organizá-los. A autoria é ponto de

coerência discursiva, onde são articuladas as mais diversas possibilidades de atribuição

de sentido, selecionando e formatando novas versões. A autoria é ponto de unidade, é

vórtice. Ela está na mesma instância de onde se dispara o olhar. Não é ela quem

determina a medida do olhar, já que ela é a própria distância que separa sujeitos de

objetos e de outros sujeitos.

Funcionando como ponto de reunião e organização de sentidos, a autoria se

materializa na ocupação do espaço que resta entre o sujeito narrador e o narrável. O

domínio desta distância, o preenchimento desta espessura desenha os dois extremos da

complexa operação do olhar: um sujeito-autor e o seu entorno em constante movimento.

A autoria não é o olhar, mas dele depende. Para ser autor, é preciso firmar esse olhar,

manifestá-lo com intensidade e consciência. Duvidar também das próprias retinas

(muitas vezes, fatigadas), lembrar-se da arguta ocorrência de ilusões ópticas. Então, não

basta apenas abrir os olhos – como quem abre janelas - e ver o mundo. Isso é só o meio

do caminho. É necessário se posicionar como sujeito que está mergulhado na realidade e

nas cenas narráveis e lançar um olhar agudo, como quem procura sentidos no livro da

vida.

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ANEXOS As reportagens analisadas