A MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAMENTO: análise ...

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2º CICLO DE ESTUDOS CRIMINOLOGIA A MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAMENTO: análise qualitativa acerca da experiência de privação de liberdade do adolescente em conflito com a lei Cecilia Roxo Bruno M 2020

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2º CICLO DE ESTUDOS

CRIMINOLOGIA

A MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAMENTO:

análise qualitativa acerca da experiência de privação de liberdade do

adolescente em conflito com a lei

Cecilia Roxo Bruno

M 2020

M.FDUP 2020

Cecilia Roxo Bruno

A MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAMENTO:

análise qualitativa acerca da experiência de privação de liberdade do

adolescente em conflito com a lei

Trabalho realizado sob a orientação da Professora Doutora

Maria Alexandra Gomes Machado Leandro

FACULDADE DE DIREITO

RESUMO

A presente dissertação consiste num estudo exploratório e qualitativo, no campo da

delinquência juvenil, pelo qual buscámos refletir sobre o contexto social do adolescente

até a chegada no internamento socioeducativo, a experiência de internamento do

adolescente em conflito com a lei numa unidade socioeducativa do Rio de Janeiro, bem

como conhecer os seus objetivos de vida após o internamento. Para este objetivo,

utilizamos os métodos da observação participante e da entrevista semiestruturada, que

contou com a participação de 8 adolescentes internos no Departamento Geral de Ações

Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro (DEGASE). A entrevista foi dividida

conforme 4 grupos temáticos, a saber, A: conhecendo o adolescente, B: experiência de

internamento, C: experiência delinquencial e D: objetivos futuros, pelos quais

analisamos o sentido que os adolescentes dão às suas experiências e, por seu turno, as

maneiras pelas quais o contexto social mais amplo condiciona tais significados. Os

resultados obtidos confrontam os aspetos repressivos e socioeducativos da experiência

de internamento, bem como demonstram as relações de poder, que se estabelecem

socialmente e que são transportadas para o âmbito da instituição. A pesquisa abre

caminho para uma compreensão acerca dos conflitos vivenciados pelos adolescentes,

antes e durante o internamento, de modo que se possa refletir sobre os mecanismos de

exclusão do indivíduo, visando o desenvolvimento das práticas de socioeducação.

Palavras-chave: adolescente em conflito com a lei; socioeducação; medida

socioeducativa; internamento.

ABSTRACT

The present dissertation consists of an exploratory and qualitative study, in the field of

juvenile delinquency, through which we sought to reflect on the social context of the

adolescent until arrival at the socio-educational internment, the experience of

internment of the adolescent in conflict with the law in a socio-educational unit in Rio

de Janeiro, as well as knowing your life goals after the internment. For this purpose, we

used the methods of participant observation and semi-structured interview, which

included the participation of 8 in-house teenagers in the General Department of Socio-

Educational Actions of the State of Rio de Janeiro (DEGASE). The interview was

divided according to 4 thematic groups, namely, A: knowing the adolescent, B:

internment experience, C: delinquent experience and D: future objectives, by which we

analyze the meaning that adolescents give to their experiences and, in turn, the ways in

which the broader social context conditions these meanings. The results obtained

confront the repressive and socio-educational aspects of the internment experience, as

well as demonstrate the power relationships, which are socially established and are

transported to the institution. The research opens the way for an understanding about the

conflicts experienced by adolescents, before and during internment, so that one can

reflect on the individual's exclusion mechanisms, aiming at the development of socio-

educational practices.

Keywords: teenager in conflict with the law; socio-education; socio-educational

measure; internment.

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço à minha orientadora, Profa. Dra. Maria Alexandra

Leandro, pelos conhecimentos transmitidos, pelo excelente trabalho de orientação, por

toda a dedicação e pela paciência ao longo deste percurso, que sucedeu à distância. As

correções detalhadas, as instruções, indicações bibliográficas e sugestões foram

essenciais para a construção deste trabalho. Cada resposta por e-mail significou um

marco de força e encorajamento para continuar. Desde um dia após a aula, no qual

conversamos sobre sermos humanos e não máquinas, admiro a Profa. pela imensa

sensibilidade. Muito obrigada, a Profa. é uma referência, uma inspiração.

Às professoras e professores da Escola de Criminologia da FDUP, que

contribuíram tanto para a minha formação acadêmica e humana. Tive o privilégio de

assistir a aulas que me inspiraram, aguçaram o senso crítico, trouxeram novas

compreensões de mundo e, por vezes, até me emocionaram, pela qualidade dos

conhecimentos e pelas reflexões tão profundas no campo das humanidades.

À Escola de Gestão do DEGASE e aos profissionais da instituição de

internamento, por me terem recebido e concedido a oportunidade de realizar esta

pesquisa. Aos adolescentes participantes, muito obrigada pelas conversas, pela relação

de confiança, pela troca durante as entrevistas. Vocês me olharam nos olhos, confiaram-

me questões tão sensíveis, viram-me como igual, mesmo num contexto de sofrimento e

de saudade. Vocês me ensinaram muito.

À minha mãe, Maria do Rosário, por ser um exemplo de coragem, pelas suas

palavras de fé e de incentivo. Sua força é a minha força. Obrigada por estar sempre ao

meu lado, me apoiando com o seu amor em todas as etapas deste percurso. Ao meu pai,

Sebastião Bruno, por todo o suporte emocional e financeiro, pelas conversas que me

tranquilizaram, pelo cuidado, pela proteção e amorosidade em cada gesto. Somos

verdadeiros amigos. À minha irmã, Raquel Roxo. Sá, como é bom ter uma melhor

amiga e irmã. Nossa conexão não é deste mundo. Obrigada pela sua doçura, por ser

exatamente a menina espontânea, cheia de energia e de ideias que sempre foi. Seremos

sempre nós.

Aos amigos, em Portugal e no Brasil, que fizeram parte desta caminhada. Aos

mais antigos e aos que chegaram nos últimos 3 anos: eu amo compartilhar a minha vida

e tantas experiências incríveis com vocês, as “minhas” pessoas.

ÍNDICE

INTRODUÇÃO………………………………………………………………………..7

CAPÍTULO I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO: PERSPETIVAS SOBRE OS

EFEITOS DO ENCARCERAMENTO………………………………………………...10

1.1 Teoria da Associação Diferencial e Teoria da Aprendizagem Social (Differential

Association Theory & Social Learning Theory)……………………………………….12

1.2 Teoria da Tensão Geral e Teoria da Coerção (General Strain Theory & Coercion

Theory)…………………………………………………………………………………13

1.3 Teoria da Etiquetagem (Labeling Theory)……………………………………...17

CAPÍTULO II – A JUSTIÇA JUVENIL NO BRASIL………………………………..19

2.1 O dever ser: o Paradigma da Proteção Integral…………………………………19

2.2 O ato infracional e a responsabilidade penal do adolescente…………………...22

2.3 DEGASE: o sistema socioeducativo na cidade do Rio de Janeiro……………..25

CAPÍTULO III – DESENHO DA PESQUISA E PROCESSO METODOLÓGICO….28

3.1 Objetivos e questões de pesquisa……………………………………………….28

3.2 Abordagem e processo metodológicos…………………………………………30

3.2.1 Método de Observação Participante……………………………………………30

3.2.2 Método de Entrevista Semiestruturada…………………………………………31

3.2.3 Acesso ao terreno e desenvolvimento da recolha de dados…………………….33

3.2.4 Amostra………………………………………………………………………...34

3.2.5 Instrumentos de recolha de dados: grelha de observação e guião de entrevista.36

3.2.6 Procedimentos de análise dos dados: criação de um sistema de categorias…...38

CAPÍTULO IV – RESULTADOS……………………………………………………..41

4.1 Conhecendo o adolescente: contextos de vida antes do internamento…………41

4.2 A experiência de internamento segundo o olhar do adolescente……………….48

4.3 Experiência delinquencial………………………………………………………70

4.4 Objetivos futuros………………………………………………………………..84

CAPÍTULO V — DISCUSSÃO DOS RESULTADOS……………………………….89

CONCLUSÕES………………………………………………………………………...94

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………………………………………96

ANEXOS……………………………………………………………………………...101

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INTRODUÇÃO

“Muita gente o tinha odiado. E ele odiara a todos. Apanhara na polícia, um homem ria

quando o surravam. Para ele é este homem que corre em sua perseguição na figura dos

guardas. Se o levarem, o homem rirá de novo. Não o levarão. Vêm em seus calcanhares,

mas não o levarão. Pensam que ele vai parar junto ao grande elevador. Mas Sem-Pernas

não para. Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri

com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os

braços, se atira de costas no espaço como se fosse um trapezista de circo.”

Jorge Amado, Capitães da Areia

A presente dissertação, elaborada no âmbito do Mestrado em Criminologia da

Faculdade de Direito da Universidade do Porto, inscreve-se na temática de delinquência

juvenil, procurando analisar a experiência de privação de liberdade dos adolescentes que

cumprem medida socioeducativa de internamento na cidade do Rio de Janeiro, a sua

experiência social e as práticas delinquenciais, bem como os seus objetivos futuros,

após o internamento. A escolha deste objeto de pesquisa parte do interesse da

pesquisadora em compreender as circunstâncias que envolvem a delinquência juvenil no

Rio de Janeiro, considerando-se o cenário brasileiro de extrema desigualdade social, no

qual vigora uma política de criminalização das camadas mais pobres e mais vulneráveis

da sociedade. Este interesse tem início na graduação da pesquisadora, no curso de

direito da Universidade Federal Fluminense, a partir do estudo das disciplinas de

criminologia e de direito penal, pelas quais muito discutia-se, em sala de aula, os

processos de itensa seletividade do sistema de justiça, segundo a pobreza e segundo

características que conferem ao indivíduo o estereótipo de “criminoso”. Neste sentido, a

escolha do tema se justifica pela tentativa de compreender as relações que perpessam

pela delinquência juvenil, segundo o olhar dos adolescentes, que residem nas

comunidades pobres da cidade, sendo estes os principais alvos do sistema de justiça.

Para tanto, apresentamos, no primeiro capítulo, as teorias criminológicas

relativas aos efeitos do encarceramento, com base nas quais buscámos refletir sobre os

possíveis desdobramentos da privação de liberdade e do contacto com o sistema de

justiça sobre os indivíduos. Neste sentido, abordamos duas principais vertentes

criminológicas, quais sejam, aquela que entende o encarceramento como forma de

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dissuasão e, em seguida, as teorias que procuram pensar o encarceramento como uma

experiência criminógena.

No segundo capítulo, apresentamos o tratamento jurídico que é conferido ao

adolescente pela legislação especial brasileira, com o intuito de fornecer uma melhor

compreensão acerca do funcionamento do sistema socioeducativo e do discurso

normativo, no qual se fundamenta a implementação da medida de internamento. Apesar

de se tratar de uma medida privativa de liberdade, a resposta punitiva voltada para os

adolescentes se dá no âmbito de um sistema próprio e envolve aspetos pedagógicos

previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), diferindo da pena destinada

aos adultos.

No terceiro capítulo, tratamos da metodologia escolhida para a realização dos

objetivos desta pesquisa, que contou com os métodos da observação participante e da

entrevista semiestruturada. Através da observação participante, foi possível acessar o

ambiente de internamento, e compreender o quotidiano de atividades e as relações que

se estabelecem na unidade onde sucedeu a investigação. À medida que íamos

desenvolvendo uma melhor percepção acerca da rotina institucional, realizámos as

entrevistas com oito adolescentes. A elaboração do guião de entrevista se deu a partir

dos aspetos apresentados pelas teorias, somando-se a isto as particularidades que se

verificaram no internamento socioeducativo durante a observação. As entrevistas

constituíram-se como longas conversas, pelas quais conhecemos a perspetiva e a

realidade social dos adolescentes, quanto à trajetória nas práticas delinquenciais e

quanto à experiência de internamento, para além de suas expectativas para o futuro,

após a privação de liberdade.

No quarto capítulo, organizamos os dados desta investigação, conforme quatro

grupos temáticos, a saber, A - conhecendo o adolescente, B - experiência de

internamento, C - experiência infracional e D - objetivos futuros, dos quais constam as

categorias extraídas das entrevistas. Assim, realizamos um procedimento de análise

temática, sendo este um método contextualista, que nos permitiu compreender as

maneiras pelas quais os adolescentes dão sentido às suas experiências e, por seu turno,

as maneiras pelas quais o contexto social mais amplo condiciona tais significados

(Braun & Clarke, 2006).

No quinto capítulo, passámos à discussão dos resultados, relacionando e

comparando os aspetos verificados a partir dos dados, e cruzando com as

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concetualizações teóricas. As análises realizadas neste estudo nos conduzem a refletir

sobre a condição de vulnerabilidade dos adolescentes em conflito com a lei, os conflitos

sociais e individuais que perpassam pela prática delinquencial destes jovens, até a

chegada ao internamento, relativamente ao qual, também, identificamos relações de

tensão, bem como contradições entre as iniciativas socioeducativas e as estratégias

coercitivas que se reúnem nesta experiência.

Por fim, espera-se, com este trabalho, contribuir para uma melhor compreensão

acerca da realidade no Rio de Janeiro e das relações de conflito social no seu entorno,

com vistas a reconhecer possíveis aspetos criminógenos e, possivelmente, pensar sobre

novas formas de intervenção social, em favor daqueles mais vulneráveis. Relativamente

à experiência de internamento, esperamos que, com os relatos dos adolescentes,

destinatários da medida, possamos contribuir para o fortalecimento das práticas

socioeducativas e, por conseguinte, para a erradicação de aspetos repressivos,

degradantes da pessoa humana, que ainda vigoram no contexto institucional. Sobretudo,

esperamos trazer à luz as complexidades das relações de poder que interferem e violam

o desenvolvimento de uma juventude autónoma nas comunidades mais pobres, poder

este que “sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do

outro; (que) não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui”

(Foucault, 1979, p. 75).

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CAPÍTULO I – ENQUADRAMENTO TEÓRICO: PERSPETIVAS SOBRE OS

EFEITOS DO ENCARCERAMENTO

Neste capítulo, trabalharemos com as teorias criminológicas relativas aos efeitos

do encarceramento, com vista a enquadrar o nosso questionamento em torno das

experiências dos adolescentes em conflito com a lei, que cumprem medida de

internamento no Brasil. As teorias consultadas permitem perceber que existe uma

questão à qual diferentes investigadores têm procurado responder: O encarceramento

funciona como forma de dissuasão e prevenção da reincidência ou como experiência

criminógena?

A primeira perspetiva acerca dos efeitos do encarceramento – o encarceramento

como forma de dissuasão – baseia-se no pensamento da Escola Clássica de

Criminologia, segundo o qual os indivíduos buscam situações que lhes proporcionam

prazer e utilidade, ao passo que evitam a dor e o desprazer (Beccaria, [1775], 1983, cit.

em Jonson, 2013, p. 675). Argumenta-se, deste modo, que o delito é resultado de uma

decisão racional, pela qual o indivíduo calcula os custos e os benefícios associados ao

comportamento delinquente (Jonson, 2013). De acordo com esta teoria, a prisão não é

concebida como uma experiência social vivenciada pelos encarcerados, mas reduzida à

ideia de fator, de custo, a ser ponderado pelo indivíduo, diante da escolha racional do

comportamento delinquente. Assim, se a dor ou o custo associados ao cometimento do

delito forem calculados como sendo mais severos do que o prazer ou os benefícios que

dele decorrem, o indivíduo será dissuadido de realizar esse comportamento (Jonson,

2013, p. 675). A prisão resultaria, portanto, na diminuição do comportamento

delinquente.

Becker (1995) filia-se a este pensamento e afirma que o indivíduo escolhe o

delito racionalmente, tendo em conta os custos e os benefícios éticos, físicos e

económicos (Becker, 1995, p. 5). Neste sentido, para este autor, a certeza da punição é

um custo a ser ponderado e um fator dissuasivo do comportamento delinquente e da

reincidência. No que diz respeito aos adolescentes, Becker (1995) compreende que o

aumento deste comportamento pode estar associado aos baixos ganhos económicos, ou

seja, à carência de recursos e à falta de oportunidades nas camadas mais pobres da

sociedade. Além disso, o custo da punição pelo delito é visto pelos adolescentes como

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uma consequência futura e longínqua, motivo pelo qual a possibilidade de punição não

surte efeitos tão dissuasivos entre os jovens (Becker, 1995, p. 5).

A política criminal baseada na ideia de dissuasão implica um processo de

endurecimento da punição, que deverá ser severa o suficiente para que o indivíduo seja

desencorajado a cometer um delito em função do custo a sofrer. Isto é, políticas públicas

pautadas pela dissuasão especial procuram maximizar o custo do ato infracional, através

do aumento do uso da prisão como resposta punitiva e do prolongamento do tempo de

pena (Jonson, 2013, p. 675). Entretanto, este movimento de endurecimento, que

fundamentou a política criminal nos Estados Unidos e em outros países nos últimos 40

anos, não encontrou base empírica para demonstrar que as penas de prisão, sejam elas

em condições mais severas ou duradouras, produzem o efeito de dissuasão do

comportamento delinquente (Clear Rose, Waring & Scully, 2003; Garland 2013;

Cullen & Jonson, 2012).

Ao analisar estudos empíricos sobre o possível efeito dissuasivo do

encarceramento, Jonson (2013) aponta que a prisão não possui a habilidade de dissuadir

o indivíduo quanto à prática de delitos, e que, inversamente, o encarceramento está

associado ao aumento da reincidência, quando comparado às penas não prisionais. Um

estudo publicado por Jonson, em 2010, indica que as penas prisionais mais longas não

produzem efeitos dissuasivos na reincidência e que as penas prisionais em condições

mais severas estão, na realidade, associadas ao aumento do comportamento delinquente

após o emprisionamento (Jonson, 2013, p. 681).

A linha teórica que reflete sobre o encarceramento como experiência

criminógena filia-se na ideia de que a prisão altera substancialmente as relações sociais

do indivíduo ao inseri-lo num ambiente institucionalizado, na medida em que expõe o

indivíduo a uma série de fatores criminógenos, que levam ao aumento do

comportamento delinquente, tais como subculturas opositivas, associação com outros

ofensores, e a perda dos laços familiares, sociais, de trabalho ou quaisquer outros

pertencentes à vida civil. Há que considerar, ainda, o facto de que, ao sair da prisão, o

indivíduo encontrará dificuldades de reinserção social, em razão do estigma de

criminoso, que cria mais um obstáculo para a obtenção de emprego e para a construção

de novas relações em sociedade (Jonson, 2013).

O efeito danoso da experiência prisional é, deste modo, discutido pelos teóricos

da criminologia mediante a análise de diferentes fatores de risco aos quais o indivíduo é

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exposto durante o encarceramento. Apresentaremos, de seguida, as principais teorias

que entendem a prisão como uma experiência criminógena, e, portanto, capaz de

aumentar o caminho para a delinquência quando o indivíduo é posto em liberdade.

1.1 Teoria da Associação Diferencial e Teoria da Aprendizagem Social

(Differential Association Theory & Social Learning Theory)

As teorias da Associação Diferencial, desenvolvida por Sutherland, e da

Aprendizagem Social (Akers, 1977) fundamentam-se na ideia de que o comportamento

delinquente é resultado de um processo de aprendizagem, que decorre das relações

sociais, tal como qualquer outro comportamento.

De acordo com a Teoria da Associação Diferencial, os indivíduos que convivem

com pessoas mais favoráveis ao comportamento delinquente terão maiores

probabilidades de desenvolver atitudes igualmente mais favoráveis à delinquência. O

processo de aprendizagem não ocorre apenas em relação às habilidades consideradas

necessárias ao cometimento de uma ofensa, mas, principalmente, com a incorporação de

atitudes e valores morais que validam o comportamento desviante.

Sob o mesmo raciocínio, Akers, Krohn, Lanza-Kaduce & Radosevich (1979)

desenvolvem a Teoria da Aprendizagem Social, segundo a qual o comportamento social

é adquirido por condicionamento direto, por imitação ou modelagem do comportamento

de outros. Para Akers et. al (1979), o indivíduo aprende a classificar como certo ou

errado um determinado comportamento, através da interação com grupos significativos

na sua vida, e com base em normas e atitudes. Além disso, na conceção destes autores, o

comportamento é fortalecido pela recompensa — reforço positivo — e pelo evitar da

punição — reforço negativo —, ou enfraquecido por estímulos aversivos — punição

positiva — e pela perda de recompensa — punição negativa. Este processo é

denominado por Akers et. al (1979) como “reforço diferencial”. Para estes autores, a

permanência de um comportamento na vida do indivíduo depende, desta forma, das

recompensas e punições que lhe estão associadas, além das recompensas e punições

associadas ao comportamento considerado como alternativo. Assim, quantas mais

pessoas definirem um comportamento como positivo — definição positiva — ou

justificado — definição neutralizante —, maior a probabilidade de se envolverem neste

comportamento (Akers et al., 1979, p. 638).

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Os principais efeitos sobre o comportamento decorrem, de facto, das interações

sociais com certos grupos, que controlam as principais fontes de reforço e punição na

vida do indivíduo, expondo-o a determinados modelos comportamentais. Tais grupos

são, principalmente, os amigos e a família, bem como a escola, a comunidade religiosa e

outras fontes de autoridade. A escolha do comportamento, seja ele desviante ou

conforme, resulta de um equilíbrio entre os reforços positivos, neutralizantes e

negativos, por meio das relações sociais (Akers et. al, 1979, p. 638).

A partir das teorias da Associação Diferencial e da Aprendizagem Social alguns

autores procuraram perceber em que medida o ambiente prisional é propício para a

aprendizagem e reforço do comportamento criminoso, em função das interações sociais

que se estabelecem entre os indivíduos encarcerados. A prisão seria, portanto, uma

instituição onde tendências, valores e comportamentos são aprendidos, fortalecidos e

solidificados pelo processo de aprendizagem, conduzindo o indivíduo à manutenção do

comportamento antissocial após a liberdade (Bayer, Hjalmarsson & Pozen, 2009).

1.2 Teoria da Tensão Geral e Teoria da Coerção (General Strain Theory &

Coercion Theory)

O efeito criminógeno da prisão também é delineado pela General Strain Theory

(Agnew, 1992) e pela Coertion Theory (Colvin, Cullen & Ven, 2002). Agnew (1992)

desenvolve a General Strain Theory, a partir do modelo da anomia de Merton (1938),

segundo o qual o comportamento desviante resulta de uma desproporção entre os

objetivos de bem-estar e de capacidade económica, e as possibilidades que o indivíduo

possui de alcançar tais fins, conforme a sua posição na estrutura social. Para Merton

(1938), numa perspetiva macro, o comportamento desviante advém de uma crise

estrutural entre os fins culturais e os meios institucionais.

Agnew (1992) amplia esta teorização ao focalizar no indivíduo e no seu

ambiente social imediato, propondo uma análise da delinquência pautada pelas relações

negativas, nas quais o indivíduo não é tratado do modo como gostaria, e que, em larga

medida, o impedem de alcançar positivamente os seus objetivos (Agnew, 1992, p. 48-

49). Assim, segundo este autor, existem tensões nas relações com o meio social, que

podem ocorrer quando outras pessoas (i) impedem que o indivíduo alcance objetivos

positivamente valorizados, (ii) removem ou ameaçam remover estímulos positivamente

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valorizados que o indivíduo possua ou (iii) apresentam ou ameaçam apresentar ao

indivíduo estímulos nocivos ou negativamente valorados (Agnew, 1992, p. 50). Esta

tipologia consiste numa síntese de categorias ideais que visam abarcar, empiricamente,

todos os eventos sociais aptos a produzir a tensão (“strain”) na vida do indivíduo. Cada

espécie de tensão faz com que o indivíduo experimente um estado de emoções

negativas, que pode ser caracterizado por frustração, depressão, medo, mas,

principalmente, pelo sentimento de raiva. Em síntese, a experiência de frustração e raiva

gerada por contínuas relações sociais negativas faz com que o indivíduo se sinta

injustiçado, podendo aumentar a tendência para o comportamento agressivo e

delinquente (Agnew, 1992, p. 61).

Por seu turno, Colvin, Cullen & Ven (2002) desenvolvem a Teoria da Coerção,

analisando os efeitos da coerção e do suporte social sobre o indivíduo. Os autores

relacionam a teorização de Agnew, em torno dos estímulos nocivos das relações sociais

negativas, com as instâncias que podem ser caracterizadas como coercitivas. Colvin et

al. apontam algumas situações geradoras de tensão e também de coerção, a saber,

adolescentes “colocados em situações aversivas, das quais eles não podem escapar

legalmente” e “rejeição parental, disciplina injusta ou inconsistente, conflito parental,

experiências escolares adversas ou negativas e relações insatisfatórias com os pares”

(Colvin et al., 2002, p. 21-22).

Para Colvin et. al (2002), as relações interpessoais coercitivas constituem-se

como forças que podem ser particularmente negativas sobre a vida dos indivíduos, pois

são relações capazes de gerar um forte sentimento de raiva, principalmente quando o

tratamento de coerção é considerado injusto ou arbitrário. Em vez de produzir

conformidade, o tratamento coercitivo pode criar maiores possibilidades de desafio à

autoridade (Sherman, 1993).

Colvin et al. (2002) teorizam que a coerção possui duas dimensões: a coerção

poderá ser (i) errática, relativamente ao peso da força coercitiva exercida, desde nula a

muito forte, ou, ainda, (ii) consistente, de acordo com a frequência com que é aplicada e

experimentada. Estas duas dimensões são fundamentais para a compreensão dos efeitos

sociais e psicológicos gerados pela relação de coerção. Uma prática errática de coerção

ensina aos indivíduos que não é possível controlar as consequências das suas ações,

porque os estímulos negativos parecem ocorrer arbitrariamente, de uma forma ou de

outra, e não como resultados previsíveis do seu comportamento (Colvin et al., 2002, p.

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22). A resposta coercitiva errática, desproporcional, deixa de ser justificável como

consequência da ação perpetrada pelo indivíduo, produzindo sobre ele um sentimento de

raiva e de injustiça, perante o agente que atua coercitivamente.

Outro aspeto relevante da teorização de Colvin et al. é que a experiência

negativa de coerção, nas relações interpessoais e impessoais, pode afastar o indivíduo

das possibilidades de suporte social. A coerção interpessoal surge nas relações entre os

indivíduos, e envolve, por exemplo, o uso de ameaça, força física e intimidação para

criar conformidade. Já a coerção impessoal é caracterizada pelas pressões exercidas

pelas estruturas sociais, tais como a pobreza ou o desemprego, por exemplo (Colvin et

al., 2002, p. 23). Por outro lado, a ideia de suporte social tem por base os trabalhos da

Escola de Chicago, que demonstraram que redes organizadas de relações sociais podem

atender as pessoas nas suas necessidades expressivas e instrumentais e, desse modo,

prevenir o envolvimento em atividades ilícitas (Colvin et al., 2002, p. 24).

Este tema é desenvolvido por Cullen (1994, 1999), que define o suporte social

como sendo qualquer espécie de provisão de recursos, sejam estes afetivos ou materiais.

É o processo de transmissão de capital social, material, cultural e humano, que pode

ocorrer em vários níveis da vida em sociedade, desde os relacionamentos imediatos,

como a família e os amigos, até às relações formais — escolas, local de trabalho,

agências governamentais, entre outros —, envolvendo redes amplas, como bairros,

comunidades e nações (Cullen, 1999, p. 190). Assim, para Cullen, o suporte social,

tanto no que se refere às relações pessoais quanto às unidades macrossociais, reduz o

impacto das tensões e fornece recursos aos indivíduos para que possam lidar com as

adversidades através de meios não criminais. Além disso, o suporte social cria contextos

nos quais laços fortes e duradouros em sociedade podem emergir, já que a relação de

assistência exige a confiança mútua entre os indivíduos (Cullen, 1994, p. 541).

Cabe ressaltar, contudo, que o suporte social pode vir, não apenas de fontes

cumpridoras da lei, cuja assistência promove conformidade, mas, também, de fontes

ilegítimas, que fomentam o comportamento criminoso e podem encorajar a participação

persistente e organizada em práticas delinquenciais (Colvin et al., 2002). Quando não há

suporte social legítimo, os indivíduos podem buscar apoio nas redes ilícitas, obtendo

auxílio para o desenvolvimento de habilidades, conexões, modelos, status social e

sensação de pertencimento voltados para a prática delinquencial (Colvin et al., 2002, p.

25).

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Conforme teorizam Colvin et al., coerção e suporte social são variáveis distintas,

que costumam estar inversamente relacionadas com o comportamento delinquente; o

suporte social pode reduzir a experiência de coerção, enquanto que a coerção pode

minar o suporte social. De modo geral, o suporte social de fontes legítimas tende a ter

um efeito oposto à delinquência, enquanto que a coerção promove (Colvin et al., 2002,

p. 26). Neste sentido, os autores propõem uma política voltada para o reforço das fontes

legítimas de suporte social, com programas de prevenção da delinquência e de

reabilitação dos ofensores, bem como para a redução da abordagem excessivamente

coercitiva no sistema de justiça (Colvin et al., 2002, p. 33-34).

Unnever, Colvin & Cullen (2004) testaram empiricamente a Teoria da Coerção,

proposta por Colvin et al. (2002), para averiguar se os efeitos sociopsicológicos do

ambiente coercitivo sobre os indivíduos aumentam a probabilidade do envolvimento em

comportamentos delinquentes. O estudo contou com uma amostra de 2472 estudantes

do ensino fundamental e partiu da seguinte premissa: quanto mais prolongada a

experiência do jovem com o ambiente coercitivo, maior a probabilidade de

envolvimento em práticas delinquenciais. Foram analisados diferentes contextos sociais

que produzem relações coercitivas, a saber, o contexto dos pais, dos amigos, da escola e

da vizinhança, para medir déficits considerados sociopsicológicos associados à ideação

coercitiva. Os resultados do estudo dão suporte à teoria proposta por Colvin et al.

(2002), no sentido de que diferentes tipos de experiências coercitivas estão

positivamente relacionados com o comportamento delinquente e que os efeitos da

coerção são mediados, pelo menos em parte, por déficits sociopsicológicos (Unnever,

Colvin & Cullen, 2004, p. 256-261).

Embora a análise da prisão, como experiência coercitiva, não tenha sido

realizada no referido estudo, esta discussão é relevante para a presente dissertação. A

prisão expõe os reclusos a um ambiente stressante, onde se desenvolvem relações de

tensão e coerção que, tal como demonstrado por Agnew (1992) e Colvin et al. (2002),

proporcionam emoções negativas e favorecem a associação do indivíduo a trajetórias

delinquentes. Mais do que isso, a prisão retira os indivíduos do convívio social e

comunitário, para inseri-los, por vezes, por longos períodos, num local de controlo

autoritário, onde experiências de violência, vitimação e apagamento da individualidade

são comuns (Jonson, 2013). O encarceramento também interrompe o estabelecimento de

17

laços positivos em sociedade, capazes de proporcionar ao indivíduo o suporte social

necessário para uma vida normativa.

1.3 Teoria da Etiquetagem (Labeling Theory)

A Teoria da Etiquetagem apresenta uma outra abordagem acerca do efeito

criminógeno do aprisionamento. De acordo com esta teoria, a intervenção do sistema de

justiça sobre o indivíduo pode resultar num processo de internalização da identidade de

criminoso e provocar o aumento do comportamento delinquente, principalmente quando

esta intervenção se dá de modo estigmatizante (Jonson, 2013, p. 678), causando impacto

sobre o status social do indivíduo e motivando a construção de um padrão estável do

comportamento ilícito (Bernburg & Krohn, 2003, p. 1288).

Segundo Klein (1986), a Teoria da Etiquetagem sugere que a perpetuação do

comportamento delinquente depende significativamente da reação social. É a reação

social, perante determinadas condutas criminais, que identifica e sanciona tais condutas,

num processo no qual o indivíduo é conduzido a experimentar uma série de eventos,

percepções e identificações associados ao ato, que estimulam ainda mais o vínculo ao

rótulo de delinquente. Trata-se de um processo cíclico, onde o indivíduo desenvolve

uma visão sobre si mesmo como criminoso e passa a agir conforme a identidade que lhe

é atribuída pelos outros (Klein, 1986, 48-49).

Bernburg & Krohn (2003) abordam a etiquetagem segundo a perspetiva voltada

para os aspetos materiais da estrutura social. Nesta vertente, o desvio estabiliza-se

através da exclusão social de certos grupos mais vulneráveis, que não conseguem aceder

a determinados recursos e oportunidades convencionais. O estigma criado pelo rótulo de

delinquente isola o indivíduo e funciona como um bloqueio às atividades e

relacionamentos pró-sociais. O aprisionamento pode comprometer as oportunidades

educacionais, que, por sua vez, moldam as oportunidades de emprego na vida adulta.

Igualmente, o rótulo de delinquente impede a obtenção de emprego, já que

empregadores podem evitar a contratação de pessoas cujo comportamento desviante é

conhecido, além de que a própria pessoa pode temer ser rejeitada nos meios sociais

convencionais, o que inclui o receio de se candidatar a um emprego. Os resultados deste

estudo sugerem uma relação entre a intervenção oficial durante a adolescência e o

envolvimento delinquencial até ao início da idade adulta, quando os indivíduos já se

18

encontram consideravelmente afetados por oportunidades de vida bloqueadas. Com o

tempo, a marginalização, causada pelo estigma do rótulo de desviante, aumenta as

possibilidades de envolvimento em atividades delinquentes de maneira ainda mais

estável (Bernburg & Krohn, 2003, p. 1290).

Estes autores ressaltam, ainda, dois aspetos teóricos relevantes para estudos

futuros sobre o processo de etiquetagem na perspetiva estrutural. Sugerem que a

localização do indivíduo numa posição mais elevada na estrutura social é capaz de

fornecer os recursos e o comprometimento necessários às atividades convencionais,

podendo o indivíduo resistir à rotulagem desviante quando confrontado com a

intervenção oficial (Bernburg & Krohn, 2003, p. 1290). Além disso, o rótulo de

desviante pode ser mais facilmente desencadeado quando jovens empobrecidos e

afrodescendentes são alvo da intervenção da polícia e do sistema de justiça juvenil, uma

vez que estes grupos, e os indivíduos que os integram, já estão associados a estereótipos

negativos na cultura dominante (Bernburg & Krohn, 2003, p. 1314).

A Teoria da Etiquetagem permite-nos avaliar se a intervenção oficial do sistema

de justiça socioeducativo reforça o rótulo de delinquente na identidade do adolescente.

Ao experimentar o contacto com o internamento, ou mesmo com outros atos

procedimentais da justiça juvenil (encaminhamento à delegacia, audiência e

interrogatório, por exemplo), o adolescente poderá visualizar-se sob a ótica do

tratamento que lhe é conferido institucionalmente, isto é, de criminoso. Conforme

observado na teorização de Bernburg & Krohn (2003), o estigma da delinquência pode

recair sobre o adolescente antes mesmo do contacto com o sistema de justiça, em função

de suas características pessoais, étnicas ou de status social e, neste sentido, a

intervenção oficial pode atuar como um reforço do rótulo pré-existente.

Por último, uma controvérsia importante para o presente trabalho é pontuada por

Klein (1986) e reside no facto de que, mesmo quando a abordagem do sistema de justiça

é mais terapêutica do que punitiva, a intervenção oficial pode oferecer um conjunto

alternativo de rótulos relacionados com deficiências psicológicas e pessoais. Klein

questiona se o encaminhamento de adolescentes para as agências de aconselhamento,

nos EUA, contribui para a rotulagem de delinquência ou, simplesmente, para a ideia de

que o jovem “precisa de terapia” (Klein, 1986, p. 50).

19

CAPÍTULO II – A JUSTIÇA JUVENIL NO BRASIL

Neste capítulo, abordaremos como o sistema jurídico brasileiro determina,

através das leis e da doutrina, o tratamento que deve ser conferido pelo Estado ao

adolescente, bem como os princípios e perspetivas do discurso que fundamenta o

modelo socioeducativo atual, com vista a melhor enquadrar o objeto da pesquisa.

2.1 O dever ser: o Paradigma da Proteção Integral

O tratamento dado à criança e ao adolescente no Brasil é regulado pela

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pelo Estatuto da Criança e do

Adolescente (Lei 8.069/1990) e pela Lei 12.594/2012, conhecida como lei do SINASE1.

Em seu artigo 227, a Constituição estabelece o princípio da proteção integral, segundo o

qual é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e

ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,

ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à

convivência familiar e comunitária, bem como protegê-los de toda a forma de

negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão2.

O princípio da proteção integral norteia o ordenamento jurídico brasileiro,

reconhecendo crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, em fase de

desenvolvimento, cuja proteção deve ser maximizada com absoluta prioridade em

relação aos adultos (Nucci, 2014). Do mesmo modo, decorre do artigo 227 da

Constituição o princípio do melhor interesse ou da absoluta prioridade da criança e do

adolescente, que determina que o Estado, em todas as esferas de poder, deve priorizar o

amparo dos mais jovens, que são naturalmente mais frágeis e desprotegidos,

privilegiando-os no atendimento, na alocação de recursos e na elaboração de políticas

públicas.

O paradigma da proteção integral surge no ordenamento jurídico interno em

conformidade com os direitos humanos, como manifestação da própria dignidade

humana, que é o princípio base do Estado Democrático de Direito brasileiro (Sposato,

1 A Lei 12.594 de 2012 institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) e

regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que pratiquem ato

infracional (Lei 12.594, 2012, artigo 1º). 2 Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, artigo 227.

20

2013). A introdução de um novo direito da criança e do adolescente no Brasil

acompanhou um movimento, no plano internacional, de valorização dos direitos

humanos, sob o qual foram inaugurados novos instrumentos de proteção das liberdades

jus-fundamentais, para conferir maior proteção às pessoas e grupos mais vulneráveis

(Queiroz, 2013).

Neste processo de mudança de paradigma, a ONU adotou, em 1959, a

Declaração dos Direitos da Criança, e, posteriormente, em 1989, a Convenção das

Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, estabelecendo igualdade jurídica entre

todas as crianças e adolescentes, que, a partir deste instrumento, passaram a ter os seus

direitos fundamentais reconhecidos, independentemente da posição social que ocupam.

A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança de 1989 reiterou

orientações da declaração internacional anterior e inovou, ao apresentar mecanismos de

efetivação da cidadania infanto-juvenil, consolidando um corpo de diplomas legislativos

internacionais3, que, articulados, constituem a “Doutrina das Nações Unidas de Proteção

Integral da Infância” (Sposato, 2013).

O Brasil adequou a legislação nacional aos referidos tratados internacionais,

elegendo os princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança como base

do tratamento jurídico instituído a todas as pessoas menores de 18 anos de idade,

conforme a previsão expressa do artigo 227 da Constituição.

No âmbito nacional, a incorporação do paradigma da proteção integral está

associada ao processo de redemocratização do Brasil, que culminou na promulgação da

Constituição de 1988. Com participação intensa da sociedade civil, a Constituição

democrática foi elaborada segundo preceitos garantistas acerca da responsabilização

penal dos menores de idade, a fim de zelar pelas garantias fundamentais nos

procedimentos e execuções de medidas judiciais ou administrativas. A Constituição

brasileira de 1988 seguiu o modelo dirigista de Constituição-social4, voltado para o

3 A “Doutrina das Nações Unidas de Proteção Integral da Infância” é composta pela Convenção das

Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, pelas Regras Mínimas das Nações Unidas para a

Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing), pelas Regras Mínimas das

Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade e pelas Diretrizes das Nações Unidas

para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riard) (Sposato, 2013). 4 O constitucionalismo social é um movimento no direito constitucional que propõe a valorização de

direitos ligados à promoção de igualdade material e, por conseguinte, a ampliação das tarefas a serem

desempenhadas pelo Estado nos planos económico e social. A noção de dirigismo constitucional, ou de

Constituição dirigente, reafirma esta tendência, com a “pretensão de impor ao legislador e ao

administrador certos deveres de atuação positiva, com a consequente redução do campo reservado à

deliberação política majoritária” (Barroso, 2011, p. 107-108).

21

bem-estar da sociedade, que estabelece obrigações positivas, no sentido de reduzir as

desigualdades materiais presentes, historicamente, na sociedade brasileira (Sposato,

2013).

Segundo Sposato (2013), a Constituição de 1988 possibilitou a elevação dos

direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes ao patamar constitucional,

exigindo a adequação da legislação infraconstitucional à própria Constituição e aos

tratados internacionais de direitos humanos. Sob este compromisso com a reformulação

de suas normas, o Brasil instrumentalizou a proteção integral ao implementar o Estatuto

da Criança e do Adolescente em 1990 (Lei 8.069, 1990), regulamentando os direitos das

crianças e dos adolescentes em prol do melhor interesse e desenvolvimento da pessoa

em fase de formação.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) surge em substituição do antigo

Código de Menores de 1979, que, por seu turno, propunha o modelo da “situação

irregular”, baseado no binómio carência-delinquência, onde as crianças e os

adolescentes abandonados, vítimas de violência familiar, privados de saúde e de

educação ou que cometiam atos ilícitos eram vistos como objeto de tutela do Estado e

não necessariamente como sujeitos de direitos (Zapata, Frasseto e Gomes, 2016, p. 18-

19). Isto significava que o Estado devia proteger os menores de idade, ainda que, para

tanto, fosse necessário suprimir as suas garantias individuais (Amin, 2010, p. 6, cit. em

Zapata, Frasseto e Gomes, 2016). Com a sistemática da proteção integral proposta pelo

ECA, a responsabilidade pela situação irregular passou a recair sobre os pais ou outros

responsáveis legais, caso não cumpram os deveres educativos decorrentes, e sobre o

Estado, quando este não oferece políticas públicas capazes de materializar os direitos

infanto-juvenis garantidos na Constituição (Sposato, 2013).

O antigo código pautava-se pela vigilância, e tolerava a supressão de direitos

fundamentais em nome da tutela da menoridade (Zapata, Frasseto e Gomes, 2016). A

constitucionalização do direito da criança e do adolescente permitiu que as garantias

processuais e os princípios constitucionais5, voltados para a proteção da liberdade

5 São exemplos os incisos III, XXXIX, LIV, LV e LVII do artigo 5º da Constituição de 1988: “III -

ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; XXXIX - não há crime

sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal; LIV - ninguém será privado da

liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; LV - aos litigantes, em processo judicial ou

administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e

recursos a ela inerentes; LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos; LVII -

ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

22

individual, fossem transportados para as ações direcionadas à infância e juventude,

impondo limites legais ao poder punitivo do Estado sobre adolescentes autores de

infração penal (Sposato, 2013). O próprio termo “menor” passou a ser objeto de

resistência no novo modelo da proteção integral, em função da sua carga estigmatizante

e depreciativa, a remeter para a ideia de criminalização da infância pobre (Nucci, 2014;

Sposato, 2013; Amin, 2010, cit. em Zapata, Frasseto e Gomes, 2016). A substituição,

em 1990, do Código de Menores de 1979, pelo ECA, representou, deste modo, uma

revolução paradigmática no plano jurídico, que alterou a Justiça da Infância e

Juventude, a começar pela superação da ideia de menoridade como subcategoria da

cidadania (Sposato, 2013).

A proteção integral deve ser, deste modo, entendida como a doutrina jurídica

base do modelo de justiça destinado à criança e ao adolescente, com o objetivo máximo

de resguardar as suas necessidades específicas, que decorrem da condição peculiar de

pessoa em fase de desenvolvimento.

2.2 O ato infracional e a responsabilidade penal do adolescente

O modelo proposto pelo ECA trouxe repercussões normativas significativas no

tocante à responsabilização penal, a começar pela regra do artigo 2º, que classifica como

criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos e adolescente aquela entre 12 e 18

anos de idade (Lei 8.069, 1990, artigo 2º), delimitando os efeitos da responsabilidade

penal juvenil, já que os menores de 18 anos de idade são inimputáveis perante a lei

penal (Lei 8.069, 1990, artigo 104; Decreto-Lei 2.848, 1940, artigo 27) e as crianças,

menores de 12 anos, são absolutamente isentas de responsabilidade.

A prática de ato infracional é regulada pelos artigos 103 e seguintes do ECA e a

sua definição corresponde à tipificação penal comum, destinada aos adultos. Nos termos

do artigo 103, considera-se ato infracional qualquer conduta descrita como crime ou

contravenção penal, quando praticada por menores de 18 anos de idade (Lei 8.069,

1990, artigo 103). Segundo Sposato (2013, p. 62), o ECA filia-se ao modelo da

responsabilidade para os adolescentes, a partir do pressuposto de que possuem

capacidade valorativa para discernir o que é ilícito ou não, e, portanto, devem responder

por seus atos na medida da sua culpabilidade (dolo e culpa). Isto é, enquanto às crianças

se destinam apenas medidas de proteção, já que não possuem maturidade suficiente para

23

discernir os seus próprios atos, aos adolescentes será possível aplicar, outrossim,

medidas de socioeducação, pois entende-se que o adolescente possui responsabilidade

individual sobre as suas ações. Assim, a inimputabilidade penal etária dos adolescentes

não afasta a atribuição da autoria de atos infracionais e a consequente responsabilização

por meio das medidas socioeducativas, mas implica um Modelo de Responsabilidade

especial dos adolescentes com base na legislação específica, o ECA (Sposato, 2015, p.

7).

Diante do cometimento de um ato infracional, o Estado poderá responder à

conduta com a aplicação de medidas protetivas ou de medidas socioeducativas.

Independentemente da natureza do ato infracional, às crianças admite-se apenas a

aplicação de medidas protetivas, previstas no rol do artigo 101 do ECA, em razão de

não possuírem maturidade mental e emocional suficientes para discernir os próprios

atos6. As medidas protetivas7 (Lei 8.069, 1990, artigo 101), deverão ser aplicadas

quando houver violação dos direitos da criança e do adolescente, por parte do Estado, da

sociedade, da família, ou, igualmente, em função de sua própria conduta (Lei 8.069,

1990, artigo 98). A implementação da medida protetiva pretende romper com a

sistemática anterior da “situação irregular”. Isto significa que as situações de risco

pessoal ou social não recaem mais sobre a pessoa da criança ou do adolescente, mas sim

sobre a família e as autoridades públicas no cumprimento das suas obrigações.

Já no que se refere aos adolescentes, o entendimento acerca da responsabilização

pelo ato infracional é diverso, dado que, para além do rol de medidas protetivas, estes

estão sujeitos às medidas socioeducativas, elencadas no artigo 112 do ECA, a saber,

advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade

assistida, inserção em regime de semiliberdade e internamento em estabelecimento

educacional (Lei 8.069, 1990, artigo 112).

6 Este entendimento filia-se às Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça, da

Infância e da Juventude (Regras de Beijing). Ao tratar da responsabilidade penal, o protocolo orienta que:

“Nos sistemas jurídicos que reconheçam o conceito de responsabilidade penal para jovens, seu começo

não deverá fixar-se numa idade demasiado precoce, levando-se em conta as circunstâncias que

acompanham a maturidade emocional, mental e intelectual” (UNICEF, 2012). 7 Art. 101 da Lei 8.069 de 1990: Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade

competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: I - encaminhamento aos pais ou

responsável, mediante termo de responsabilidade; II - orientação, apoio e acompanhamento temporários;

III - matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; IV - inclusão

em serviços e programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, da criança e

do adolescente; V - requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar

ou ambulatorial; VI - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a

alcoólatras e toxicómanos; VII - acolhimento institucional; VIII - inclusão em programa de acolhimento

familiar; IX - colocação em família substituta.

24

As medidas socioeducativas diferenciam-se das demais medidas devido ao seu

caráter sancionatório, cuja condição de existência deriva da prática anterior de uma

conduta definida como ato infracional. Conforme define Sposato (2013), as medidas

socioeducativas possuem natureza penal e representam o exercício do poder coercitivo

do Estado sobre os adolescentes, originando, necessariamente, uma restrição de direitos

ou liberdades (Sposato, 2013, p. 66).

Tal como as penas destinadas aos adultos, as medidas socioeducativas baseiam-

se na ideia de dissuasão da prática de novos atos infracionais. Contudo, ao contrário das

penas, e no que respeita ao princípio da condição peculiar da pessoa em

desenvolvimento, as medidas socioeducativas possuem um aspeto educativo e

pedagógico, com o objetivo de atender às necessidades pessoais, familiares e

comunitárias de cada adolescente. Este propósito deve ser alcançado pelo Estado por

meio de programas socioeducativos, pautados por um conjunto de serviços e políticas

sociais, que devem oferecer ao adolescente alternativas de reinserção social, afastando-o

da possibilidade de reincidência (Sposato, 2013).

Considerando-se este viés pedagógico, as medidas de internamento em

estabelecimento educacional e a de semiliberdade8 seguem o princípio da

excepcionalidade e possuem critérios mais rigorosos de aplicação, devendo ser

atribuídas em última hipótese, por se tratarem de medidas de caráter privativo de

liberdade. Na medida de semiliberdade9 o adolescente permanece na unidade de

internamento durante os dias de semana, sendo-lhe permitido passar os finais de semana

junto da família e da comunidade. A semiliberdade poderá ser aplicada desde o início da

execução da medida ou como forma de transição entre o internamento e o meio aberto.

Já a medida de internamento10, por ser a mais severa, só poderá ser imposta quando

houver uma das seguintes condições objetivas: (i) ato infracional cometido com grave

ameaça ou violência à pessoa; (ii) reiteração no cometimento de mais de 3 infrações

graves; (iii) por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente

imposta, circunstância na qual o internamento terá a duração máxima de 90 dias11.

A medida de internamento segue o princípio da brevidade, não podendo exceder

o prazo de três anos. Apesar do limite máximo estabelecido, o internamento não

8 Lei 8.069 de 1990, artigo 120. 9 Lei 8.069, 1990, artigo 120. 10 Lei 8.069, 1990, artigo 121. 11 Lei 8.069, 1990, artigo 122.

25

comporta prazo previamente determinado e o seu tempo de cumprimento dependerá da

reavaliação periódica do comportamento do adolescente, a ser realizada, a cada seis

meses, pelo setor técnico da unidade prisional. Para Sposato (2013), a indeterminação

do prazo para o cumprimento do internamento está alinhada com o princípio da

brevidade, posto que o tempo de execução da medida dependerá do desenvolvimento de

cada adolescente dentro da unidade, o que, para a autora, favorece o propósito de

ressocialização (p. 120). Se o adolescente recuperar de acordo com os critérios

definidos, deverá ser libertado o quanto antes, por forma a que a medida não se converta

em mero castigo.

De acordo com a lei brasileira, as medidas socioeducativas visam responsabilizar

e, ao mesmo tempo, recuperar o adolescente em conflito com a lei. Contudo, para

Sposato (2013) as medidas socioeducativas privativas de liberdade (regime de

semiliberdade e internamento) correspondem, efetivamente, a penas de prisão, devido

ao caráter de instituição total das unidades socioeducativas. Segundo Goffman (1957),

as instituições totais caracterizam-se, essencialmente, por reunirem, num único lugar,

todas as esferas de atividade da vida humana. Estas atividades são conduzidas por uma

mesma autoridade, em prol do objetivo oficial da instituição, sendo cada fase das

atividades diárias de um indivíduo realizada na companhia de um grande número de

outros indivíduos, todos tratados de maneira uniforme (p. 45). Além disso, as

características físicas do edificado, tais como muros altos, arames e grades, funcionam

como barreiras de contacto entre o institucionalizado e as relações sociais exteriores,

favorecendo esta orgânica. Ao concentrarem tais características, será possível refletir se

as unidades de internamento socioeducativo estão mais próximas de uma instituição

total, como a prisão, do que de um “estabelecimento educacional”, conforme orienta a

lei brasileira.

2.3 DEGASE: o sistema socioeducativo na cidade do Rio de Janeiro

O órgão responsável pela execução das medidas socioeducativas no estado do

Rio de Janeiro é o Departamento Geral de Ações Socioeducativas — DEGASE,

vinculado à Secretaria de Estado e Educação (Poder Executivo). O DEGASE é fruto de

um processo de descentralização político-administrativa, que ocorreu após a entrada em

vigor do ECA. A aplicação das medidas socioeducativas, cuja responsabilidade era do

26

governo federal, por meio do Centro Brasileiro para Infância e Adolescência – CBIA,

passou a ser integralmente gerenciada por cada estado federativo e suas respetivas

entidades competentes, em consonância com as diretrizes político-governamentais da

proteção integral12.

O objetivo do DEGASE é promover a socioeducação no estado do Rio de

Janeiro, mediante a função que lhe é atribuída: gerir e executar as medidas

socioeducativas determinadas pelo Poder Judiciário ao adolescente em conflito com a

lei, em conformidade com os princípios do ECA e do SINASE, que regem,

nacionalmente, o sistema socioeducativo.

No ano de 2011, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)13 realizou o “Programa

Justiça ao Jovem”, com o objetivo de fiscalizar, a nível nacional, a execução da medida

socioeducativa de internamento nas unidades de atendimento. De acordo com o relatório

final do programa, a maioria das unidades de internamento possuem instalações antigas,

que não seguem as normas arquitetónicas estabelecidas pelo Sistema Nacional de

Atendimento Socioeducativo (SINASE)14 e assemelham-se à estrutura carcerária das

prisões. Esta problemática estrutural dificulta a abordagem pedagógica da medida

socioeducativa e, por conseguinte, a efetiva proteção integral do adolescente que o ECA

visa alcançar (CNJ, 2011, p. 3). O relatório aponta, no entanto, que o serviço prestado

pelo DEGASE melhorou a execução da medida socioeducativa, ao dar ênfase a

atividades de educação formal e profissionalizante, além do atendimento à saúde física e

psíquica dos jovens nas unidades.

Apesar de se ter verificado algum progresso quanto à adequação do atendimento

socioeducativo aos critérios do ECA, o relatório do CNJ também ressaltou a

necessidade de aprimorar a capacitação dos agentes socioeducativos15 nas unidades,

tendo em conta os inúmeros relatos de uso de força física ou psíquica sobre os

12 http://www.degase.rj.gov.br, recuperado em 11 de setembro, 2019. 13 O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é um órgão de fiscalização do Poder Judiciário brasileiro, que

visa aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário, principalmente no que concerne ao controlo e à

transparência administrativa e processual (https://www.cnj.jus.br, recuperado em 11 de setembro, 2019). 14 O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) estabelece uma série de

condições que devem ser observadas pelas entidades e programas de atendimento, no que diz respeito à

estrutura física das unidades socioeducativas de internamento, em cumprimento ao projeto pedagógico

proposto pela lei do SINASE, tais como: condições adequadas de higiene e limpeza, espaços para a

realização de refeições, dormitórios adequados, salas para estudo e atividades coletivas, espaços para

visita íntima e familiar, salas de aula, espaços para a prática de lazer e desporto, entre outras.

(CONANDA, 2006, p. 50).

15 Os agentes socioeducativos são os profissionais responsáveis pela gestão e segurança das unidades de

atendimento.

27

adolescentes. Numa das maiores unidades socioeducativas do estado, a violência foi

apontada como método de trabalho entre os agentes, com a utilização, inclusive, de gás-

pimenta. Para além da violência institucional, esta unidade apresentou um quadro

preocupante de sobrelotação (271 adolescentes internados no ano de 2011 para 120

vagas na unidade), com camas insuficientes para todos os internos, e más condições de

alimentação. Nesta unidade socioeducativa, as atividades educacionais e

profissionalizantes, bem como as práticas de lazer ou desporto não foram

implementadas e, segundo o relatório, os adolescentes passam a maior parte do tempo

na ociosidade. As demais unidades, de acordo com o relatório, proporcionam condições

mínimas de dignidade para os jovens (CNJ, 2011, p. 6).

Outra questão considerada alarmante pelo CNJ é que, no Rio de Janeiro, a

distribuição dos adolescentes pelas unidades socioeducativas não se dá conforme a

idade, ou a gravidade do ato infracional praticado, mas sim em resultado da fação

criminosa ou da comunidade à qual o jovem pertence. Esta divisão conforme a fação

visa evitar confrontos entre grupos rivais, preservando-se a integridade física dos

adolescentes, mas, ao mesmo tempo, proporciona o aprofundamento das conexões entre

os membros da fação dentro das unidades socioeducativas, o que acaba por fortalecer o

vínculo dos adolescentes com as organizações criminosas (CNJ, 2011, p. 8). A

distribuição conforme a fação criminosa é mais uma reprodução do modelo

penitenciário destinado aos adultos, e, deste modo, sustenta a conceção teórica de que as

unidades socioeducativas em nada diferem dos estabelecimentos prisionais senão pelo

rótulo externo (Acosta, 1996, cit. em Sposato, 2013, p. 120).

Ainda assim, o CNJ concluiu, em seu relatório, que as unidades socioeducativas

têm uma preocupação com a legalidade do atendimento prestado, para conferir ao

jovem condições mínimas de desenvolvimento, principalmente no que concerne à

educação e à profissionalização. Esta característica indica que, a despeito dos relatos de

agressão perpetrados por agentes nas unidades, o sistema tem vindo a caminhar de uma

visão de contenção prisional para o modelo da socioeducação na forma do ECA e do

SINASE (CNJ, 2011, p. 10).

28

CAPÍTULO III – DESENHO DA PESQUISA E PROCESSO METODOLÓGICO

Neste capítulo serão apresentados os objetivos do trabalho e as opções

metodológicas com as quais a presente pesquisa foi sendo construída.

3.1 Objetivos e questões de pesquisa

Esta dissertação insere-se na temática mais abrangente da delinquência juvenil e

pretende compreender a experiência de internamento numa unidade socioeducativa do

Rio de Janeiro, segundo o olhar do adolescente. Procura-se, igualmente, conhecer o

contexto social e a trajetória do adolescente até a chegada no internamento, bem como

as suas expectativas após o internamento, considerando o objetivo de ressocialização da

instituição.

Buscámos analisar a relação entre o cumprimento da medida e a transformação

da identidade social do adolescente, conforme as teorias apresentadas anteriormente,

que apontam para o encarceramento como um fator de risco estigmatizante e

criminógeno. Por outro lado, observaremos se as atividades educacionais,

profissionalizantes e terapêuticas, oferecidas pelo sistema socioeducativo durante o

internamento, se constituem como abordagens preventivas e reparadoras, capazes de

fornecer ao adolescente novas perspetivas de vida.

Pretendemos realizar um estudo criminológico, que leve em conta a

complexidade das situações sociais, do contexto histórico e das diferentes visões de

mundo que permeiam a sociedade pós-moderna ou pós-colonial. Buscámos construir

conhecimento, procurando imergir na realidade do adolescente submetido à medida de

internamento e integrando diferentes perspetivas teóricas que possam cooperar para uma

melhor compreensão da questão estudada.

Conforme afirma Moita Lopes (2004) “as teorias por meio das quais

construímos o mundo mudaram e, portanto, devem mudar nossas abordagens de

compreendê-lo teórica e metodologicamente, ao nos localizarmos nas fronteiras onde

várias áreas de investigação se encontram” (Lopes, 2004, p. 165).

Assim, esta dissertação procura contribuir para a elaboração de um pensamento

criminológico preocupado em dar voz ao próprio adolescente que se encontra numa

conjuntura social, via de regra, de extrema marginalização e estigmatização, mesmo

29

antes da experiência de internamento no sistema socioeducativo, de modo que possamos

compreender os efeitos da medida socioeducativa sob o olhar daqueles que estão

submetidos a ela.

Os debates no Brasil acerca do tratamento penal conferido ao adolescente, da

ineficiência do sistema socioeducativo, ao tentar conter a delinquência juvenil, além do

clamor, por parte da opinião pública, pela redução da maioridade penal, levam a crer

que a preocupação em punir e encarcerar se sobrepõe à tentativa de compreender as

necessidades do outro, de repensar a estrutura social e de apresentar novas propostas,

que atendam às demandas dos adolescentes em condição de vulnerabilidade.

Procurar-se-á fazer dialogar os pressupostos teóricos identificados nos capítulos

anteriores com as experiências quotidianas de internamento, de maneira que as

teorizações acerca dos efeitos do aprisionamento “dialoguem com o mundo

contemporâneo, com as práticas sociais que as pessoas vivem” e “considerem

diretamente os interesses daqueles que trabalham, agem etc. no contexto de aplicação”

(Lopes, 2006, p. 23).

Outro ponto levantado por Moita Lopes (2004), que merece destaque neste

trabalho, concerne à ideia ilusória da neutralidade do pesquisador. Segundo o autor, a

pesquisa científica deve considerar que o pesquisador está “sempre posicionado no

mundo e imbricado no conhecimento que produz” (Lopes, 2004, p. 166). Neste sentido,

devemo-nos atentar para o facto de que não existe uma verdade científica universal ou

descontextualizada, e que o pesquisador é um agente social ativo, implicado no

conhecimento que visa produzir.

Tendo por base os preceitos éticos do processo científico, este trabalho constrói-

se a partir de uma troca entre a pesquisadora, os adolescentes e os agentes que atuam no

sistema socioeducativo, buscando-se conhecer esta realidade social a partir da

perspetiva do outro, mas também do olhar, da interpretação e da sensibilidade de quem

conduz a pesquisa.

3.2 Abordagem e processo metodológicos

Compreendendo o campo de pesquisa da delinquência juvenil como uma área

complexa, passível de problematizações, que envolve a vivência concreta de pessoas,

bem como a perspetiva destas pessoas sobre a sistemática em que estão inseridas,

30

optou-se pela abordagem exploratória e qualitativa, com o intuito de conhecer,

interpretar e dar visibilidade aos que vivenciam a experiência do internamento no

sistema socioeducativo do Rio de Janeiro.

Para Denzin e Lincoln (2006), a pesquisa qualitativa constitui-se como “uma

atividade situada que localiza o observador no mundo”, e que envolve explorar os

fenómenos “em seus cenários naturais, tentando entender, ou interpretar, os fenômenos

em termos dos significados que as pessoas a eles conferem” (Denzin e Lincoln, 2006, p.

17). Ao definirem uma pesquisa qualitativa, Denzin e Lincoln (2006, p. 17) apontam

para a diversidade e complementariedade de métodos e materiais empíricos.

Considerando esta noção, a presente dissertação cruzou os métodos da observação

participante e da entrevista semiestruturada, tendo em vista as potencialidades desta

combinação, que fez confluir o olhar dos entrevistados e o olhar da pesquisadora. A

observação participante permitiu a imersão da pesquisadora no ambiente institucional,

para a observação do dia a dia do internamento, enquanto através das entrevistas foi

possível conhecer o adolescente, o seu contexto de vida anterior à privação de liberdade

e a sua interpretação acerca da experiência de internamento.

3.2.1 Método de Observação Participante

Entre as possibilidades de métodos existentes na pesquisa qualitativa, a

observação participante constituiu-se como uma técnica indispensável para uma melhor

compreensão do fenómeno em pauta neste trabalho. Trata-se de um método que se

inscreve na abordagem etnográfica, pelo qual o pesquisador imerge num ambiente

social, por um período de tempo mais ou menos prolongado, observando

comportamentos, ouvindo o que é dito e colocando perguntas (Bryman, 2001, p. 714).

A observação participante exige que o pesquisador participe ativamente da

recolha de dados e que possua a capacidade de se adaptar às situações, para atribuir

significado às práticas e vivências humanas. Ou seja, “o investigador procura descobrir

e tornar acessíveis (no sentido de revelar) realidades e significados, que as pessoas

utilizam para nortear ou atribuir sentido às suas vidas” (Mónico, Alferes, Castro e

Parreira, 2017, p. 727).

Embora o tempo disponível para a realização da observação participante fosse

curto, considerou-se a relevância deste método para os propósitos da presente

31

dissertação, já que, por meio dele, a pesquisadora conheceu o ambiente socioeducativo

no qual os adolescentes estão inseridos, o quotidiano da experiência de internamento, as

práticas e hábitos vivenciados, as atividades realizadas, para além da possibilidade de

presenciar situações, de ouvir e dialogar com os professores e os funcionários, ou

mesmo com os próprios adolescentes fora do momento de entrevista.

O pesquisador, ao partilhar o contexto do grupo observado, encontra-se em

condições mais favoráveis para aceder a situações, factos e comportamentos comuns à

rotina do cenário de pesquisa. Foi, então, necessário, inicialmente, adentrarmo-nos no

contexto social para que pudéssemos obter um melhor conhecimento dos aspetos a

explorar no decorrer das entrevistas.

3.2.2 Método de Entrevista Semiestruturada

Através da entrevista semiestruturada, foi possível compreender a percepção dos

adolescentes acerca da medida socioeducativa de internamento, da experiência de

privação de liberdade e da prática delinquencial em seus diversos aspetos.

A entrevista semiestruturada é guiada por um roteiro de perguntas flexíveis, e o

entrevistador pode decidir pela melhor forma de procurar as respostas (Mattos, 2005, p.

824). Para Mattos (2005), a entrevista semiestruturada caracteriza-se por ser uma forma

especial de conversação, na qual “há sempre um significado de ação para além do

significado temático da conversação” (Mattos, 2005, p. 826). Trata-se de uma interação

linguística marcada por sinais e expressões, pela troca entre entrevistador e entrevistado,

que vai para além das perguntas e respostas.

Segundo Bryman (2001), é necessário que a entrevista seja conduzida com

flexibilidade e que permita avaliar a maneira como os entrevistados percebem o seu

mundo social (Bryman, 2001, p. 473). Ao refletir sobre o guião de entrevista, Bryman

(2001) explica que o investigador deve elaborar uma lista de questões ou tópicos

razoavelmente explicitados a serem cobertos, mas que estas questões podem não seguir

exatamente a sequência pré-definida, havendo margem para que o entrevistador solicite

novas perguntas, conforme capta o que é dito pelos entrevistados. Porém, de um modo

geral, todas as questões serão perguntadas e uma redação semelhante será utilizada em

cada entrevistado (Bryman, 2001, p. 514).

32

Mais ainda, Boni e Quaresma (2005) apontam a importância da entrevista

semiestruturada para a recolha de dados, tendo em vista que o método auxilia a análise

de aspetos afetivos e valorativos dos entrevistados, que estão associados aos

significados pessoais que aqueles atribuem aos seus comportamentos e às suas

experiências. De acordo com as autoras, a entrevista semiestruturada possibilita

respostas espontâneas e confere liberdade aos entrevistados, mediante uma conversa

detalhada, o que pode, inclusive, fazer com que surjam questões inesperadas (Boni e

Quaresma, 2005, p. 75).

Boni e Quaresma (2005) ressaltam que o pesquisador deve utilizar perguntas

abertas e fechadas, conduzindo a entrevista de maneira descontraída, sem, contudo, se

afastar do objetivo de pesquisa. Neste sentido, o entrevistador deve direcionar a

discussão para o assunto que o interessa, fazendo perguntas adicionais, a fim de elucidar

questões que não ficaram claras ou ajudar a recompor o contexto da entrevista, caso o

informante tenha dificuldades com o tema (Boni e Quaresma, 2005, p. 75).

Para os objetivos da presente dissertação, o método da entrevista semiestruturada

foi de extrema relevância, já que buscámos conhecer os significados que os

adolescentes atribuem à experiência de internamento no sistema socioeducativo do Rio

de Janeiro, observando possíveis efeitos desta experiência sobre as suas potencialidades

de vida.

Por se tratar de um tema complexo e delicado, a pesquisadora preocupou-se em

conduzir a entrevista sob um olhar de interesse, empatia e sensibilidade, de maneira que

fosse estabelecida uma relação de confiança, na qual o entrevistado se sentisse seguro

para responder. Neste sentido, Boni e Quaresma (2005) explicam a importância de se

estabelecer uma familiaridade entre o entrevistador e o entrevistado, proporcionando

melhores condições para que a entrevista flua como uma conversa amigável. Isto não

representa uma falta de rigor técnico na condução da entrevista, mas sim uma

preocupação em proporcionar ao entrevistado uma situação de bem-estar, onde ele seja

ouvido, apresente a sua experiência e construa o seu próprio ponto de vista sobre si

mesmo e sobre o mundo (Bourdieu, 1999).

Deve-se considerar que o discurso do entrevistado pode ser complexo e sensível

para si, mas, por outro lado, pode proporcionar uma sensação de alívio, já que o

indivíduo tem a possibilidade de se expressar e de refletir sobre assuntos melindrosos.

Além disso, durante as entrevistas, foi preciso considerar a linguagem utilizada e o

33

conhecimento acerca de determinadas questões sociais e culturais inerentes ao contexto

dos adolescentes, para que fosse estabelecida uma maior identificação e aproximação

entre entrevistadora e entrevistado. Igualmente, durante a entrevista foram reproduzidos

sinais de entendimento e de estímulo, gestos, olhares, incentivos, além da verbalização

de agradecimentos, de maneira que o entrevistado se sentisse escutado em sua narrativa.

3.2.3 Acesso ao terreno e desenvolvimento da recolha de dados

O acesso ao terreno institucional exigiu um primeiro contacto com a Diretora da

Escola de Gestão Socioeducativa Professor Paulo Freire (ESGSE), que é o núcleo do

Departamento Geral de Ações Socioeducativas – DEGASE, responsável pela produção

de trabalhos técnicos e científicos no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro. Este

contacto inicial foi realizado através de e-mail, pelo qual a ESGSE informou o rol de

documentos necessários para que fosse autorizada a pesquisa na unidade de

internamento. Como este trabalho utiliza o método de entrevista com os adolescentes,

menores de 18 anos, foi necessário, igualmente, obter uma autorização judicial, que foi

apresentada à direção da unidade de internamento antes de dar início à pesquisa.

Uma vez apresentados os documentos, e autorizada a investigação, acedemos à

unidade de internamento, onde os adolescentes cumprem a medida socioeducativa

definitiva, cabendo a escolha da unidade à Escola de Gestão (ESGSE) do DEGASE. A

utilização de aparelho gravador, para a recolha de dados durante a entrevista, não foi

autorizada pela instituição e, por este motivo, as respostas dos adolescentes foram

transcritas à mão, de forma mais fidedigna possível ao discurso e à expressividade do

participante. Devido a esta circunstância de registo escrito, foram necessários dois

encontros com cada adolescente para a realização da entrevista por completo, sendo

cada encontro com a duração média de quatro horas.

Assim, o percurso da recolha de dados se deu da seguinte maneira: iniciámos a

observação participante no primeiro dia, com a chegada da pesquisadora para conhecer

a unidade, e duas vezes na semana, no turno da manhã, durante as nove semanas

subsequentes. As entrevistas foram realizadas nestes mesmos dias, no turno da tarde,

conforme a disponibilidade de cada adolescente participante, numa sala onde estavam

presentes apenas a pesquisadora e o entrevistado.

34

A anuência dos adolescentes, no que concerne à participação e aos objetivos de

pesquisa, foi formalizada mediante a apresentação do Termo de Consentimento

Informado (Anexo III), cujo teor era lido pelo adolescente, bem como explicado pela

pesquisadora a cada entrevistado, antes de dar início à entrevista.

3.2.4. Amostra

A amostra desta investigação é composta por 8 adolescentes entrevistados, num

universo, à data de início da pesquisa, de 324 internos. Os participantes foram

selecionados pela direção da unidade, havendo, contudo, uma preocupação em escolher,

pelo menos, um adolescente de cada alojamento.

Na tabela abaixo (Tabela 1), apresentamos o quadro global de entrevistas,

contendo informações gerais sobre os sujeitos da amostra: idade, grau de escolaridade,

ato infracional praticado, o tempo de internamento cumprido, à data da entrevista dos

participantes na unidade onde foi realizada a pesquisa e o alojamento.

Tabela 1: Quadro global de entrevistas

Entrevistados Idade Grau de

Escolaridade

Ato

Infracional

praticado

Tempo de

internamento

na unidade

Alojamento

E1 15 7º ano EF tráfico de

drogas e

porte de

arma

1 ano e 4

meses

Módulo 1

E2 16 (não

mencionado)

Roubo 2 anos e 2

meses

Módulo

sem fação

E3 17 9º ano EF tráfico de

drogas

1 mês Módulo 1

E4 17 7º ano EF homicídio

doloso

1 ano e 9

meses

Módulo 2

E5 16 8º ano EF Roubo 8 meses Módulo 1

35

E6 18 5º ano EF Roubo 2 anos Módulo 1

E7 18 3º ano EM Roubo 2 meses e 12

dias

Módulo 1

E8 16 9º ano EF Roubo 23 dias Módulo

sem fação

Nota. EF: ensino fundamental. EM: ensino médio.

Conforme se depreende da Tabela 1, os adolescentes entrevistados têm idades

compreendidas entre os 15 e os 18 anos e, com exceção do E7, possuem grau de

escolaridade que não corresponde à respetiva faixa etária. Estes dados enunciam, já,

uma relação entre as práticas delinquenciais e o abandono escolar ou a não frequência

escolar.

As apreensões pelo sistema de justiça decorrem, majoritariamente, em razão da

prática de roubo (E2, E5, E6, E7 e E8), sendo esta uma atividade de maior risco para o

encontro do adolescente com a polícia, uma vez que é realizada fora do contexto das

comunidades, o que leva a uma maior exposição social. As apreensões por tráfico,

muitas vezes, exigem a incursão policial nos territórios dominados pelas fações, como é

o caso do E1 e do E3. Neste sentido, note-se que o E2, o E5 e o E6 também exerciam

funções no tráfico de drogas, mas foram apreendidos pela prática de roubo, enquanto o

E4 participou do tráfico por um período de 6 a 7 meses, mas foi apreendido em razão de

um homicídio, que não tinha relação com a primeira atividade.

O tempo de internamento dos entrevistados, à época da pesquisa, variou entre 23

dias (E8) e 2 anos e 2 meses (E2), sendo o período máximo de internamento previsto na

lei equivalente a 3 anos, a depender de avaliações de desempenho feitas pela equipa

técnica e, igualmente, de decisão judicial.

A divisão dos alojamentos na unidade (Tabela 2, Anexo IV) se dá conforme a

identificação ou não do adolescente com uma das fações criminosas que atuam no

tráfico de drogas no Estado do Rio de Janeiro, de maneira a evitar confrontos entre

grupos rivais dentro do internamento. Como as fações exercem domínio territorial nas

comunidades do Rio de Janeiro, a alocação dos adolescentes nos alojamentos pode se

36

estabelecer tanto segundo a participação nas práticas delinquenciais da fação, quanto

territorialmente, em função de o adolescente residir numa das comunidades.

Neste sentido, os alojamentos do Módulo 1 são designados para os adolescentes

que se identificam com uma das três fações atuantes no estado, sendo maioritário o

número de internos que residem nas áreas de domínio de uma destas fações. Os

alojamentos do Módulo 2 são destinados aos adolescentes que se identificam com uma

das outras duas fações, ou àqueles que residem em áreas dominadas pelas milícias16. Há,

ainda, o Módulo sem fação, alojamento destinado aos adolescentes que possuem bom

comportamento e que manifestam interesse em se desvincular da fação criminosa.

3.2.5. Instrumentos de recolha de dados: grelha de observação e guião de

entrevista

Para a persecução dos objetivos deste trabalho, utilizámos uma grelha de

observação de fim semiaberto (Anexo I), com a identificação de dimensões a serem

observadas durante a permanência da pesquisadora na unidade. Estas dimensões

serviram como norte no processo de observação participante, que teve como

componente fundamental a utilização de um diário de campo, contendo anotações e

descrições qualitativas, de tipo narrativo. Sobre as anotações, Mónico et al. (2017)

explica que “o observador participante vai recolher, ao mesmo tempo, dados objetivos e

sentimentos subjetivos”, sendo que este registo pode ser feito no momento da

observação ou, como acontece frequentemente, depois do investigador deixar o campo

de observação. (Mónico et al., 2017, p. 729).

Nesta perspetiva, ao mesmo tempo que pretendíamos focar a nossa atenção nas

percepções dos adolescentes sobre a experiência de internamento, foi preciso

compreender a dinâmica de grupo, em seu meio natural, desenvolvendo uma visão

holística sobre o ambiente social da unidade (Mónico et al., 2017), com observações

16 Segundo Zaluar e Conceição: “Atualmente, no Brasil, o termo milícia refere-se a policiais e ex-policiais

(principalmente militares), uns poucos bombeiros e uns poucos agentes penitenciários, todos com

treinamento militar e pertencentes a instituições do Estado, que tomam para si a função de proteger e dar

“segurança” em vizinhanças supostamente ameaçadas por traficantes predadores.” (Zaluar e Conceição,

2007, p. 90). Em nome de uma suposta venda de segurança, as milícias exercem cada vez mais controlo

territorial nos bairros e comunidades do Rio de Janeiro, impondo serviços e exigências aos moradores,

tais como a compra de mercadorias mais caras, a compra de sinal ilegal de TV por cabo, o pagamento de

taxas por cooperativas de transporte alternativo que circulam em seu território, o pagamento de altos

porcentuais para a compra, venda e aluguel de imóveis (Zaluar e Conceição, 2007, p. 91).

37

instrumentalizadas e registadas através do diário de campo. Assim, a pesquisadora

utilizou um caderno, no qual fazia anotações acerca dos diálogos testemunhados, das

características observadas, bem como dos sentimentos vivenciados durante a

permanência na unidade de internamento, e, ao final de cada dia, as anotações eram

transcritas e reformuladas num segundo momento de reflexão e memorização do que

fora escutado e observado.

Para a realização das entrevistas, utilizámos um guião de entrevista (Anexo II),

cuja elaboração se deu a partir das diferentes teorias revistas neste trabalho. Além disso,

com base na primeira etapa da observação participante, adaptámos e incorporámos

questões no guião, tendo-se em conta os aspetos verificados em sede de pesquisa de

campo, principalmente no que diz respeito aos aspetos socioeducativos do

internamento, já que estes elementos não são necessariamente abarcados pelas teorias.

Como a unidade de internamento, para além de ser um local de privação de

liberdade, conta com atividades e abordagens socioeducativas, foi preciso identificar

estes elementos, o que ocorreu mediante a permanência da pesquisadora na unidade.

Assim, para o melhor desenvolvimento das perguntas, foi necessário compreender

aspetos como, por exemplo, a divisão dos alojamentos, a organização do espaço físico e

das dependências internas da unidade, o funcionamento da escola e as modalidades de

atividades socioeducativas que são oferecidas pela instituição aos adolescentes. No final

deste processo, as perguntas do guião de entrevista (Anexo II) foram divididas e

agrupadas conforme os seguintes grupos temáticos: A: Conhecendo o adolescente, B:

Experiência de internamento, C: Experiência infracional e D: Objetivos futuros.

Cabe salientar que este trabalho se realiza sob a égide de princípios éticos,

segundo os quais o exercício da pesquisa deve valorizar a pessoa humana. De acordo

com Moita Lopes (2004), a ética que conduz a pesquisa científica deve excluir

abordagens que causem sofrimento humano e mal aos outros (Lopes, 2004, p. 168). O

exercício da pesquisa exige a responsabilidade ética perante os indivíduos envolvidos

no processo científico. À vista disso, nos preocupamos em transmitir sinais de empatia

durante as entrevistas, ouvir atentamente as falas dos adolescentes e estabelecer uma

relação de confiança, respeitando-se, de igual modo, o anonimato e a confidencialidade.

38

3.2.6. Procedimentos de análise dos dados: criação de um sistema de categorias

Após a recolha dos dados, iniciámos o processo de análise temática das

entrevistas. Segundo Braun & Clarke (2006), a análise temática consiste num método

para identificar, analisar e reportar padrões nos dados (p. 79). Igualmente, para estas

autoras, a análise temática pode funcionar como um método contextualista, que busca

compreender as maneiras pelas quais os indivíduos dão sentido à sua experiência e, por

seu turno, as maneiras pelas quais o contexto social mais amplo condiciona tais

significados (Braun & Clarke, 2006, p. 81). Assim, à medida que focámos nas

teorizações acerca dos efeitos da experiência de encarceramento para os indivíduos,

também foi possível realizar outras interpretações a partir dos dados. Vejamos o

caminho que percorremos para esta análise.

Realizadas todas as entrevistas, passámos à leitura reiterada do material

recolhido, comparando as respostas dos entrevistados relativamente a cada pergunta.

Em seguida, tendo as respostas organizadas comparativamente, procedemos à

codificação, com a criação de um sistema de categorias, que decorre dos temas

abordados no guião de entrevista. Braun & Clarke (2006) explicam que o processo de

codificação envolve um trabalho sistemático em todo o conjunto de dados, dando total e

igual atenção a cada item e identificando aspetos interessantes nos itens, que podem

formar a base de padrões repetidos (temas) dentro dos dados (p. 89).

A partir disso, buscámos refletir sobre os padrões e significados acerca dos

temas abordados nas entrevistas, bem como outros padrões que poderiam surgir da

narrativa dos adolescentes e que, numa interpretação mais ampla, seriam passíveis de

serem integrados. Este procedimento ocorreu manualmente, destacando-se os excertos

que seriam relevantes ou que ensejaram reflexões, sendo estas anotadas, conforme a

leitura e releitura dos dados.

A análise dos dados foi tanto no sentido de elucidar aspetos desenvolvidos nas

teorias, quanto de permitir o desencadear de outras interpretações. Logo, por exemplo,

as teorias da Associação Diferencial e da Aprendizagem Social (Akers, 1977) se voltam

para a análise do processo de aprendizagem do comportamento delinquente a partir da

interação entre os indivíduos, nos conduzindo à inclusão da pergunta número 10 do

guião de entrevista (Anexo II), a saber: “Como é a sua relação com os outros meninos?

Possui amigos aqui?”. Por meio desta pergunta, analisámos as narrativas dos

39

adolescentes acerca da relação com os seus pares no internamento, que, por

conseguinte, levou à construção da categoria “convívio entre os adolescentes” (Tabela

3, Anexo V).

Uma vez construídas as categorias, voltamos à leitura extensiva e intensiva das

entrevistas, procurando, em todo o conjunto de dados, os excertos associados a cada

categoria. Nesta etapa, há de se considerar que, algumas vezes, uma mesma fala de um

entrevistado pode conter elementos associados a categorias distintas ou, ainda, ensejar

mais de uma interpretação acerca de uma única categoria. Por este motivo, cabe frisar

que todo este percurso de imersão nos dados foi acompanhado pela anotação das

interpretações, reflexões e possíveis perspetivas acerca dos significados contidos nas

narrativas, para que estes fossem melhor articulados na análise e discussão dos

resultados.

Nesta última fase, continuámos a refletir sobre os aspetos verificados nas

categorias, fazendo novas relações entre cada categoria e o respetivo tema abrangente.

Isto significa que, para além dos significados contidos nos códigos, passámos a

questionar, por exemplo, o que o “convívio entre os adolescentes” (categoria) nos diz

sobre a “experiência de internamento” (tema abrangente), ou como o “lugar onde vivia

antes de ingressar na unidade” (categoria) nos permite “conhecer o adolescente” (tema

abrangente) antes do internamento.

Passemos à apresentação dos temas, dentro dos quais serão analisadas as

categorias (Tabela 3, Anexo V) neste estudo. Já a descrição das referidas categorias está

contida nas Tabelas 4, 5, 6 e 7 (Anexos VI, VII, VIII, IX) deste trabalho.

Tema A - Conhecendo o adolescente: do Tema A constam as categorias

relativas ao contexto de vida do adolescente, anterior ao internamento. Quem é o

adolescente, a despeito do internamento, em sua rotina comum? A elaboração deste

bloco de categorias decorre do momento inicial das entrevistas, no qual buscámos nos

familiarizar com o entrevistado, conhecendo a sua realidade e o seu dia a dia no lugar

onde vivia. Estas categorias são: Perspetiva sobre o lugar onde vivia antes do

internamento, Relação com a família, Relação com os amigos e Relação com a Escola.

Tema B - Experiência de internamento: do Tema B constam as categorias

relacionadas com a experiência de internamento do adolescente, como Quotidiano de

internamento, Atividades socioeducativas, Convívio entre os adolescentes, Relação com

a escola e Relação com os funcionários. Ressalta-se que a alusão dos adolescentes aos

40

“funcionários” diz respeito aos profissionais cujo cargo é o de agente socioeducativo.

No decorrer das entrevistas, as perguntas relativas aos “funcionários” ensejaram

respostas densas acerca da relação com os agentes, especificamente. Por este motivo, a

relação dos adolescentes com a equipa técnica e com os professores não está contida na

categoria “Relação com os agentes socioeducativos”. A relação entre os adolescentes e

os professores foi narrada no momento em que os entrevistados foram perguntados

acerca da escola e do decorrer das aulas durante o internamento. Já a relação com a

equipa técnica, basicamente composta por psicólogos, não foi desenvolvida o bastante

pelos entrevistados, de modo que pudéssemos categorizar as respostas.

Tema C - Experiência delinquencial: em relação ao Tema C, verificámos as

categorias concernentes à experiência de delinquência dos entrevistados, a saber

Motivações, Quotidiano na prática delinquencial, Experiência com a polícia,

Expectativa de apreensão policial e punição, Balanço da experiência delinquencial e

Perspetiva do adolescente sobre si próprio após a experiência delinquencial.

Tema D - Objetivos futuros: neste tema apresentamos as categorias relativas

às perspetivas de vida dos adolescentes, os sonhos e expectativas, após a experiência de

internamento. Estas categorias são: Continuidade na prática delinquencial,

Aproveitamento do internamento como aparato de ressocialização e Futuro almejado.

41

CAPÍTULO IV – RESULTADOS

4.1 Conhecendo o adolescente: contextos de vida antes do internamento

Quem são os adolescentes em conflito com a lei? Por meio das entrevistas

realizadas, procurámos compreender a realidade do adolescente antes do internamento,

conhecer o seu dia a dia no lugar onde vivia, bem como a sua percepção acerca da

relação com a família, com os amigos e com a escola. Os adolescentes entrevistados são

oriundos de comunidades, ou favelas, e regiões mais pobres do estado do Rio de

Janeiro, zonas que carregam as mazelas da falta de recursos e da estigmatização social

(Bernburg & Krohn, 2003).

Os dados recolhidos parecem corroborar o que afirma Malvasi (2011), no que

diz respeito ao adolescente a quem se destina a medida socioeducativa: “Os

adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas costumam viver em

territórios estigmatizados, onde há ostensiva presença policial. O aprisionamento dos

jovens moradores de zonas urbanas de baixa renda constitui política do Estado

brasileiro. É uma ação afirmativa carcerária (…) que compõe um amplo processo de

criminalização da pobreza (Malvasi, 2011, p. 161).

Vejamos, a este propósito, a fala de E1, indicativa de uma política de

encarceramento estigmatizante cujo alvo é o jovem que reside nas zonas urbanas mais

pobres: “Piraí/RJ… numa comunidade. (…). Teve muitas [abordagens policiais], onde

que eles me vê eles já queriam me abordar… até na frente da minha namorada já me

abordaram… tive que sair correndo” (E1, 15 anos).

Esta política se justifica pelo discurso difundido na sociedade de combate ao

tráfico de drogas, que exerce poder nestas regiões. Neste contexto, os adolescentes

incorporam os valores e as performances de um “estilo bandido” (Malvasi, 2011, p.

169), uma resposta de não submissão à lógica segregativa do Estado brasileiro, que

também se reproduz dentro do sistema socioeducativo: “(…) aqui é cada um por si e eu

sou um menor puro, mas aqui não dá pra ser tão puro assim. Se mostrar medo, os

menor (adolescentes) cresce em cima… (…). aí vira brinquedo na mão dos outros. (…)

Os da outra fação vão lá pra minha “chapa” (grade do alojamento) ficar rendendo pra

mim, falando pra eu fechar (me juntar) com eles (risos)… tem uns que se enquadra na

deles de bandido (adolescentes que mantêm a postura de “bandido”), dão o papo reto

42

na gente… (…). Qualquer coisa que precisar, se for um menor tranquilo, eles fortalece

a gente… aí fala: “não conta pra ninguém não, hein menor”… outros gostam de ficar

na instigação…(…) falando que vai me pegar, me atravessar (matar, bater) (…)” (E5,

16 anos)17.

Perspetiva sobre o lugar onde vivia antes do internamento

Compreendendo este contexto de insegurança social e económica, no qual os

adolescentes estão inseridos, encontramos narrativas indicativas de uma realidade

distinta, revestida pelas dificuldades estruturais.

Relativamente à categoria “Perspetiva sobre o lugar onde vivia”, reunimos

trechos dos relatos dos entrevistados sobre o dia a dia em suas respetivas comunidades.

Os adolescentes rememoram o quotidiano de suas experiências comuns à juventude:

lazer, desportos, festas, atividades recreativas. O sorriso acompanha a lembrança dos

“bons tempos”, como na fala do E1: “Era bom po… jogava futebol, tinha escolinha (…).

Tocava instrumento também… na escola de samba, tocava tamborim. Jogava bola

direto com os menor lá…” (E1, 15 anos).

Contudo, relativamente ao E2 e ao E6, verificamos os primeiros recortes de uma

adolescência abafada pelas responsabilidades inerentes às práticas delinquenciais. O E2

começou a praticar roubos aos 12 anos de idade e se mudou para uma das comunidades

do Rio de Janeiro, onde era responsável pela segurança do tráfico de drogas. Aos 14

anos de idade, já era pai de uma criança recém-nascida, morava com a sua esposa e

lidava com as adversidades de uma vida adulta: a relação de trabalho na condução das

práticas delinquenciais e o desafio de sustentar, emocionalmente, o relacionamento e a

paternidade, e, financeiramente, o lar. Neste cenário, observamos, nas narrativas do E2

que, paralelamente ao trabalho desempenhado no tráfico de drogas, os roubos e

“arrastões” na praia de Copacabana integram parte do seu divertimento e de seus

amigos: “Aí depois nós dava uma ‘marolada’ (curtir, descansar) lá na praia… e quando

17 O E5 explica que, no alojamento, é necessário manter uma postura de seriedade perante os demais

adolescentes, para, apesar das brincadeiras, não ceder às provocações. Conta que os adolescentes da outra

fação vão até a grade do alojamento dele para implicar, caçoar, ameaçar, mas que, alguns, aqueles que

mantém a postura de “bandido”, dão o “papo reto”, isto é, comunicam-se diretamente, com seriedade,

respeito, sem brincadeiras. Relata, ainda, que, quando precisa de algum utensílio emprestado, certos

adolescentes da fação rival lhe emprestam, ou lhe ajudam, mas sob o compromisso de não contar a

ninguém. Assim, não demonstram fraquejar na rivalidade entre as fações distintas, o que significaria

perder a “postura de bandido” diante dos outros.

43

dava umas 17h assim, que é o horário que as criança saía da praia, a gente ia roubar…

metia a porrada, fugia dos polícia. Tipo, depois nós dividia o roubo… vendia tudo e

dividia o produto do roubo. Era maneiro, eu gostava, adrenalina (risos)…” (E2, 16

anos).

Por seu turno, o E6, que também tem uma filha, decidiu se mudar da

comunidade onde vivia, e onde cresceu, em função das incumbências desempenhadas

no tráfico de drogas. Em seu discurso, o entrevistado se queixa do stress na relação com

o tráfico, motivo pelo qual passou a residir com a mãe de sua filha numa outra

comunidade. De lá, mudou-se pela segunda vez, devido às constantes guerras entre

fações naquela localidade. Aos 18 anos, à data da pesquisa, o E6 desenvolve uma

narrativa consciente acerca de suas responsabilidades perante o tráfico de drogas e a sua

família. Durante a entrevista, relatou que, apesar da idade, se considerava um

adolescente mais maduro, em função das experiências “sérias” que já havia vivenciado

a partir das práticas delinquenciais: “Imagina… um menor de 15 anos morando

sozinho? Com todo o respeito, a Sra. já viu isso já? Um menor de 15 anos já morar

sozinho? (…). (…) Aprendi muita coisa nessa vida… coisa certa, coisa errada, o certo e

o errado… vários “reflexo” também pra gente abrir o olho, pra ver quem tá do nosso

lado no dia a dia… não pode sair confiando em qualquer um. Mudou muita coisa no

jeito de eu ser, jeito de agir também.” (E6, 18 anos).

Os relatos recolhidos apontam para uma experiência de ambivalência vivenciada

pelos adolescentes em conflito com a lei: por um lado, reconhecemos a rotina que é

característica do “ser adolescente” (jogar bola, tocar instrumentos, ir às festas, brincar

com os amigos); por outro lado, percebemos que, com as práticas delinquenciais, alguns

adolescentes encontram a possibilidade de se afirmarem como indivíduos, ao

anteciparem o que consideram ser uma vida adulta, voltada para as responsabilidades

vivenciadas no tráfico e para as necessidades da família, deixando para trás a inocência

de menino.

Relação com a família

Nesta categoria verificamos os relatos dos adolescentes acerca da interação com

suas famílias. Em suas narrativas, os adolescentes descrevem a relação com os seus

familiares – mães, avós, irmãos, tias – que, segundo eles, é quase sempre “tranquila”.

44

Os relatos são carinhosos, saudosos, mas acompanhados por um sentimento de culpa

pela situação de internamento. A exemplo deste primeiro aspeto, vejamos a fala do E4,

que, mesmo demonstrando sentir falta da mãe e dos irmãos, afirma preferir que eles não

venham visita-lo: “(…) ainda bem que minha mãe não vem me visitar… eu até queria,

mas pelo menos, assim, ela não passa essa vergonha. (…) A técnica perguntou pra

mim: “por que tua mãe, teu pai, tua tia não vêm te visitar?”. Porque já fiz muita merda,

já fiz muito mal pra minha família. Então não quer vir e eu também não quero que eles

passe por isso aqui. Eu sou orgulhoso e minha mãe gosta de jogar na cara… qual mãe

não gosta né? Ninguém da minha família vem. Fala comigo? Só duas tias. Meus

irmãos, não vejo mais… minha mãe só veio me visitar mermo na minha primeira

passagem, mas não quero que venha não. O único ovelha negra da família sou eu, não

quero que meus irmãos fiquem igual a mim. Meus irmãos nunca conheceram uma

cadeia, só eu que tô preso. Acha que eu quero que eles conheça agora?” (E4, 17 anos).

A narrativa do E4 evidencia o sofrimento do adolescente por conta da falta de

visitação parental, bem como o sentimento de vergonha, a autodepreciação, em razão

das práticas delinquenciais que o conduziram ao internamento. Este entrevistado (E4)

justifica o esquecimento por parte de sua família, a partir da percepção sobre si mesmo

como não merecedor das visitas ou do afeto familiar. Também na narrativa do E5

percebemos esta manifestação de um “eu” envergonhado. Neste caso, mesmo recebendo

as visitas e a atenção da família no período do internamento, o adolescente não se sente

digno do esforço de sua mãe: “Ela [a mãe] vem sempre me visitar. Meu irmão fala que

ela não tem que vim, mas mermo assim ela fala: “eu vou andando, posso estar sem

dinheiro, mas eu vou, nem que seja andando”. Aí meu irmão menor fica falando: “vai

não, deixa ele aprender lá dentro”… e minha mãe: “quando tu ir pra lá, também não

vou te visitar, vou deixar você mofar pra você ver se é bom” (risos). Mas meu irmão

gosta muito de mim… é que ele sente falta. Aí eu falo pra minha mãe: “fala pra ele lá

que eu amo ele” (risos). (…) Aí toda vez que minha mãe vem me visitar ela pergunta:

“vai mudar de vida?”. Eu falo que vou pensar… tá maluco… só vergonha pra minha

“coroa” (mãe)… eu falo pra ela que não precisa vim não… mas ela vem.” (E5, 16

anos).

Percebemos, igualmente, que os entrevistados têm pouca ou nenhuma

convivência com a figura paterna, e, ao mesmo tempo, sustentam a ideia de que, por

serem homens, também são responsáveis pelo cuidado e pela proteção de seus

45

familiares. Assim, desde cedo os adolescentes buscam contribuir financeiramente com a

renda do lar, encontrando esta possibilidade através das práticas delinquenciais.

Vejamos as narrativas do E3 e do E5: “(…) tenho que ajudar minha família, já ‘de

maior’, homem, não dá pra depender de mamãe” (E3, 18 anos); “(…) eu sou o homem

da casa, sou o mais velho dos meus irmãos… tenho que proteger eles. (…) quero ter só

filho homem, pra ajudar a mãe deles.” (E5, 16 anos).

Relação com os amigos

No que diz respeito à “Relação com os amigos”, percebemos, no discurso dos

entrevistados, a construção de um pensamento sobre amizade pautado por uma postura

de desconfiança em relação aos outros, em função do papel desempenhado nas práticas

delinquenciais. As perguntas acerca dos amigos ensejaram, logo de início, uma espécie

de correção por parte dos adolescentes: amigos, não, no máximo, “parceiros”.

Na visão dos adolescentes, as práticas delinquenciais exigem uma postura de

frieza e perspicácia, perante todos, inclusive aqueles colegas mais próximos, com quem

o adolescente convive. O cuidado e a desconfiança perante os outros devem ser

redobrados, diante do alto risco das práticas delinquenciais (Mendonça, 1981, p. 109). O

adolescente tem o discernimento de que, caso confie erroneamente em alguém, poderá

ser traído e enfrentar situações cujo desfecho será danoso à própria vida. Vejamos a

questão levantada pelo E4: “Uma coisa que você tem que aprender… você não tem

amigo, tem parceiro… meu melhor amigo é Deus. Se um cara oferecer um milhão pra

te matar, você acha que teu amigo não vai aceitar?” (E4, 17 anos). A retórica do E4

evidencia o sentimento de desconfiança e o cuidado para não ser traído por aqueles que

se dizem próximos. Numa outra fala, o E4 relata a sua experiência de apreensão pela

polícia, resultante da denúncia de um colega: “O cara que andava comigo, que levou a

polícia lá em casa… falou pra todo mundo lá no (…) [comunidade] que eu que matei…

até a milícia ficou sabendo. E pra você ver… andava comigo, se dizia amigo” (E4, 17

anos).

Sob o mesmo ponto de vista, o E3 refere o seguinte: “Que amigo? (risos).

Ninguém tem amigo não… você acha que tem amigo? (…). Na vida que nós tava não

dava pra ter amigo não po… coração de vagabundo bate na sola do pé. Amigo é meu

46

pai e minha mãe, lá tinha só colega… mas amigo? Não tem amigo não. Dá pra confiar

não, na vida que nós vive.” (E3, 18 anos).

A desconfiança e o calculismo são características que, para além de serem

valorizadas nas narrativas dos adolescentes, constituem-se como estratégias emocionais

necessárias, diante do quotidiano de risco das práticas delinquenciais. Amigo, “apenas

Deus” ou “apenas a família”, pois, na relação com as práticas delinquenciais e com os

riscos inerentes, não há espaço para a ingenuidade.

Relação com a escola

A frequência escolar não é reconhecida pelos entrevistados como uma prática

capaz de viabilizar as suas expectativas de futuro ou de suprir as suas necessidades

imediatas. Na conceção dos adolescentes, este “futuro” é próximo, improrrogável, tendo

em vista que as suas necessidades e aspirações integram uma condição socioeconómica

de urgência. O E5 e o E7 são os entrevistados que frequentavam a escola ao tempo de

serem apreendidos pela polícia, porquanto interromperam os estudos em resultado das

passagens pelo sistema socioeducativo. O E5 relata que frequentava a escola por gosto,

ainda que o atrapalhasse na realização de outras atividades: “Eu tava indo pra escola,

sou um menor muito estudioso, mas é muito complicado, porque, às vezes, eu quero

fazer umas coisa e a escola me atrapalha. Mas eu ia na escola, era tranquilão (…) só ia

arrumado pra escola” (E5, 16 anos). Por sua vez, o E7 é o único entrevistado que

cursava o ano escolar respetivo à sua faixa etária até o momento da primeira apreensão:

“Ia, nunca deixei de ir. Quando eu fui preso a primeira vez, eu tava cursando o 3º ano

do ensino médio. Eu ia fazer o vestibular, tava fazendo curso preparatório…” (E7, 18

anos). Percebemos no discurso do E7 que o estudo representa a sua atividade principal,

enquanto os roubos praticados seriam atividades secundárias, não constitutivas do

projeto de vida que traçava.

Ao contrário dos demais entrevistados, o E7 constrói uma narrativa na qual a

escola é a sua prioridade, enquanto o ato infracional pode atrapalhar o seu percurso e as

suas aspirações: “E eu já tinha meus planos lá fora… sabia que eu corria o risco

fazendo essas coisas, mas sempre tive meus pensamentos do que eu queria fazer. Tinha

até medo do crime atrapalhar quando, sei lá… eu estivesse cursando faculdade, ser

pego, sei lá… aqui é meio que uma pausa só, pra eu parar de vez com as coisas erradas

47

que eu tava fazendo. (…) Quero pagar aqui o que eu devo, quero terminar o ensino

médio, fazer uma faculdade ou um curso técnico… (…) Se fosse faculdade, eu ia querer

fazer administração ou então engenharia mecânica…” (E7, 18 anos).

Vale ressaltar que, em sua narrativa, o E7 se distancia do “pessoal” (as pessoas)

do tráfico, demonstrando que não estabelecia um vínculo de atividades ou uma rotina

perante a fação dominante em sua comunidade. O adolescente precisava da autorização

da fação para a prática dos roubos, mas afirma que: “Mas eu mantinha a minha vida

normal… eu estudava, trabalhava. Era mais naquele horário que eu parava na rua até

tarde com a galera que já fazia isso… aí me chamavam e eu ia. (…). Mas nunca faltei

escola, nunca deixei de fazer minhas coisas normais. (…) Eu sabia separar as coisas…

(…).” (E7, 18 anos).

Já para os demais entrevistados, a escola é a atividade que, num dado momento,

começa a “atrapalhar” o percurso de dedicação ao trabalho ou às práticas

delinquenciais, tornando-se incompatível. Os adolescentes relatam as suas experiências

de abandono escolar, seja em razão do deslocamento (E8), do trabalho (E4) ou das

funções desempenhadas nas práticas delinquenciais, perante as quais o adolescente

também estabelece um vínculo de prioridade e responsabilidade, característico de uma

relação de trabalho (E1, E2, E3 e E6).

No contexto socioeconómico dos entrevistados, as necessidades são imediatas e,

por conseguinte, o trabalho é mais valorizado, em detrimento dos estudos. Nesta lógica,

as atividades associadas ao tráfico de drogas se apresentam como uma possibilidade de

trabalho bem remunerado, pelo qual o adolescente poderá ajudar a sua família, aceder a

bens de consumo, para além de ser reconhecido e respeitado em sua comunidade,

alicerçando-se como sujeito. Sobre este aspeto, destacamos as narrativas do E3: “(risos)

Fazer o que na escola? Nem aqui nós estuda, quanto mais na “pista” (na rua). (…)

Ficar dependendo dos outro é muito ruim. Tem que ir pra nossa luta, trabalhar… ainda

mais homem. Escola longe, eu querendo ter dinheiro, trabalhar, mas nunca tive

oportunidade… fui parar cedo no tráfico. Mas o que tiver que trabalhar eu trabalho, só

não gosto de vender bala, vender bala no sinal18, essas coisas assim… mas tem vários

trabalho” (E3, 18 anos).

18 A prática de vender balas, doces, água, etc. para os motoristas nos semáforos é muito comum no Rio de

Janeiro e noutros centros urbanos brasileiros. Igualmente, existem outras atividades informais junto aos

semáforos, como, por exemplo, realizar alguma performance circense ou a limpeza dos para-brisas dos

carros. Para o E3, “vender bala no sinal” pode representar uma prática desprestigiante, ou mesmo

48

O mesmo pensamento se depreende da narrativa do E6: “Depois que eu entrei

nessa vida, não dava pra ficar estudando e na boca (de fumo)19 … tinha que escolher

um destino. (…) Impedir não impedia não, mas eu também não tava adaptando muito

na escola… tava chato pra mim já. E no trato com a boca eu tinha que ter

responsabilidade.” (E6, 18 anos).

Verificamos que as práticas escolares não são valorizadas pelos adolescentes,

não porque desconsideram o estudo como algo relevante, mas porque, diante das

dificuldades estruturais e económicas, o trabalho se apresenta como um caminho

necessário, cuja retribuição financeira é imediata (Mendonça, 1981, p. 111). Deste

modo, a prática delinquencial é percebida como uma oportunidade de trabalho, capaz de

proporcionar prestígio e remuneração elevada, considerando-se que, na adolescência, o

indivíduo está nos primeiros passos do seu processo de formação educacional e,

portanto, as suas possibilidades de trabalho formal, muito provavelmente, terão baixa

remuneração.

Se o trabalho se constitui como um caminho necessário, as práticas

delinquenciais seriam uma espécie de “trabalho”, cujo caminho é mais curto e atrativo,

por meio do qual o adolescente poderá obter suporte para melhorar rapidamente as suas

circunstâncias de vida, além de adquirir respeito, apesar de todos os percalços de um

contexto de risco.

4.2 A experiência de internamento segundo o olhar do adolescente

Nas categorias do Tema B, discutiremos a experiência de internamento, segundo

a perspetiva dos adolescentes, bem como a execução da medida socioeducativa, na

persecução do objetivo de promover a cidadania e a educação, através de uma

pedagogia emancipatória, para que, sobretudo, o adolescente não reincida no ato

infracional (Malvasi, 2011, p. 160).

Aqui, refletimos no seguinte questionamento: O que prepondera na unidade de

internamento: o viés socioeducativo ou as práticas prisionais? A fala do E2 demonstra o

que parece ser o entendimento de todos os entrevistados a esse respeito: “Eles fala que

humilhante, se considerarmos que também é comum que os motoristas se sintam inseguros, intimidados,

desprezem ou não abram os vidros. 19 “Boca de fumo” é o nome do local onde é realizado o tráfico de drogas, a venda de drogas para o

público.

49

isso aqui é escola… mas é massacre. De manhã é escola, de noite é só amasso… a hora

que eles tem pra se divertir com nós.” (E2, 16 anos). As narrativas de perplexidade em

relação ao emprego do termo “escola” para identificar a unidade de internamento se

aferem em mais de uma entrevista neste estudo. Para os adolescentes, destinatários da

medida de internamento, a unidade não é escola, é cadeia: “Por que o nome disso aqui é

escola? Isso aqui não é escola… ‘bagulho doido’20” (E4, 17 anos); “Aqui o nome é

escola? Que engraçado… (risos). Imagina se alguém passa aqui na frente e fala “quero

matricular meu filho nessa escola” (risos). Vai ter que ficar aqui pelo menos 6 meses

trancado (risos)” (E8, 16 anos).

O que verificamos, a partir da imersão na unidade de internamento, no decorrer

da pesquisa de campo, é que, apesar da implementação de atividades que estão contidas

no modelo socioeducativo, a medida de internamento se constitui, essencialmente, como

uma medida prisional. A unidade de internamento concentra as características e as

práticas de uma instituição prisional, de modo que os aspetos punitivos da experiência

de internamento sobrepõem-se aos aspetos pedagógicos.

Quotidiano de internamento

Na categoria “Quotidiano de internamento”, reunimos as narrativas dos

adolescentes que descrevem o dia a dia habitual na unidade. O quotidiano se desenvolve

com atividades típicas de um contexto de privação de liberdade: ver televisão, ouvir

música, conversar com os colegas, orar pela família. Como não há espaço físico

adequado para refeitório, que comporte o número de internos presentes na unidade, os

adolescentes também realizam as refeições dentro dos alojamentos: “Eu acordo, tomo

café, fico conversando com os garotos do alojamento, até a hora de “pagar”21 o

almoço. Aí, depois do almoço, eu tomo um banho e fico só esperando chamar pra

escola. Aí volto e fico conversando, vejo televisão… assistir novela, lavar a roupa, a

manta que a gente deita. Essas coisas só… nada demais.” (E7, 18 anos).

A rotina monótona, inerente ao modelo prisional, é reproduzida no sistema

socioeducativo. Os adolescentes permanecem reclusos em seus alojamentos, até o

20 A expressão do E4 significa “que coisa doida”. 21 Hora de “pagar o almoço” significa o momento em que os agentes socioeducativos entregam o almoço

de cada adolescente dentro dos alojamentos. O termo “pagar”, neste caso, significa “entregar”,

“conceder”.

50

momento em que são encaminhados, pelos agentes, para a escola ou para as atividades

socioeducativas nas quais participam (cursos profissionalizantes, cursos educativos e

atividades recreativas).

Ainda assim, nem todos os adolescentes participam nestas atividades. À data de

início da pesquisa, a unidade, que possui capacidade para alojar 133 internos, contava

com mais de 300 adolescentes reclusos e apenas 12 agentes socioeducativos, para gerir

a segurança e administrar o ir e vir das atividades. Para além da sobrelotação e do défice

de funcionários, aspetos que, por si só, já comprometem a execução do modelo da

proteção integral, os alojamentos nos quais os adolescentes permanecem alocados são

sujos e degradados, o que evidencia a precariedade e o abandono do sistema

socioeducativo pelo estado do Rio de Janeiro, conforme verificado durante a pesquisa

de campo.

Outra questão preocupante diz respeito à falta do “banho de sol”22, período no

qual os internos são encaminhados para alguma dependência ao ar livre. O “banho de

sol” não é oferecido diariamente ou, sequer, semanalmente aos adolescentes na rotina da

unidade, direito este que deveria ser observado em qualquer espécie de estabelecimento

prisional, quanto mais no sistema socioeducativo, conforme determina a própria

Constituição brasileira23. A título de exemplo, apresentamos os relatos de E3 e E5: “O

certo era ter banho de sol todo domingo… nem banho de sol nós tem (…)” (E3, 17

anos); “Tô querendo participar na horta, pra tomar um banho de sol. Onde eu tô, não

tem banho de sol… lá no Módulo 2 tem. Quando tinha (banho de sol) na outra unidade,

eu ficava na moral lá…” (E5, 16 anos).

A permanência nos alojamentos fechados, húmidos, sem a luz solar, com

número excessivo de pessoas24, compromete a saúde física e o sistema imunológico dos

adolescentes, expondo-os à proliferação de doenças. À vista das más condições de

22 “Banho de sol” é o termo utilizado em referência ao período em que os presos são encaminhados para

alguma dependência ao ar livre nas unidades prisionais. A Lei de Execução Penal brasileira (Lei 7.210 de

1984, artigos 40, 41 e 52, inciso IV) determina que este período deve ser de, no mínimo, 2 horas por dia,

sendo este também o entendimento do Supremo Tribunal Federal (HC 172.136/SP, julgado em 01 de

julho de 2019), tendo em vista a própria Constituição brasileira, que proíbe, genericamente, os

tratamentos desumanos ou degradantes e penas cruéis (Constituição da República Federativa do Brasil de

1988, artigo 5º, incisos III e XLVII, alínea e), e, ainda, por regras internacionais que visam a garantir que

todos os países signatários se empenham em promover a execução penal dentro de condições mínimas de

dignidade humana (Cunha, 2019). 23 Art. 5º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: ninguém será submetido

a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. 24 Em média, são 9 adolescentes dentro de cada alojamento com 4 camas. Os adolescentes dividem as

camas de solteiro.

51

encarceramento, verificamos, durante a pesquisa de campo, que, com frequência, os

adolescentes organizam rebeliões nas unidades de internamento, o que se exemplifica na

fala de E3: “(…) tá vendo que lá no (…) eles tem banho de sol, por quê? Porque nós

botou fogo em tudo, reivindicou… e falamo na cara da juíza que botamo fogo por isso

mesmo” (E3, 17 anos).

Os adolescentes têm o discernimento de que o contexto de privação de liberdade

não autoriza a supressão de suas garantias individuais durante o cumprimento da

medida socioeducativa. Assim, é preciso considerar que, na prática, a medida de

internamento impõe, não apenas a restrição da liberdade, como também outras

penalidades ilegais sobre o corpo e sobre o psicológico dos adolescentes. Ao ser

entrevistado, E8 estendeu seus braços à mesa para mostrar à pesquisadora as suas

manchas e cicatrizes na pele: “Lá [noutra unidade socioeducativa] não tinha banho de

sol… essas marcas aqui25 (apontou para os braços) peguei tudo lá, porque você sabe

que se ficar sem pegar sol o corpo fica desidratado… lá o sol nem batia, lugar

fechado… pior que na de maior” (E8, 16 anos). Perceba-se que, com tais condições,

este entrevistado considera a unidade de internamento pior do que uma unidade

prisional de adultos, porque sabe que, em regra, os presos têm direito ao período de

banho de sol, sendo este um direito humano básico e essencial.

Relação com a escola e frequência escolar durante o internamento

A frequência escolar é obrigatória no sistema socioeducativo, porém, na prática,

verificamos que, tal como ocorre com as demais atividades, não há controlo por parte da

instituição quanto à assiduidade dos internos nas atividades escolares26.

Existem dois aspetos que comprometem a participação dos adolescentes nas

atividades escolares: em primeiro lugar, o conflito entre internos de fações distintas e a

tensão que decorre desta rivalidade na convivência entre os adolescentes, que obsta

tanto ao comparecimento na escola quanto ao próprio andamento das aulas, para aqueles

que cumprem a frequência escolar; em segundo lugar, para além da falta de controlo por

parte da instituição, no que diz respeito ao não comparecimento na escola por escolha

do próprio adolescente, percebemos que, por vezes, os agentes socioeducativos não

25 Manchas hipocrómicas nos membros superiores, de provável etiologia fúngica. 26 Na Tabela 9 (Anexo XI) apresentamos a relação de frequência escolar dos entrevistados.

52

encaminham os internos dos alojamentos para as atividades escolares. A exemplo disso,

vejamos as falas do E2 e do E4: “Eu vou em todas as aulas na escola, só que tava um

tempo sem me chamar…” (E2, 16 anos); “Quando chama… vou quando chama. Mais

ou menos umas quatro vezes por semana. Mas só vai quem quer… a maioria vai só pra

poder sair do alojamento.” (E4, 17 anos).

Estas duas problemáticas comprometem a função socioeducativa da escola na

unidade e, por conseguinte, o objetivo de que o adolescente desenvolva seus interesses e

aptidões através da educação, encontrando suporte para caminhos de vida alheios às

práticas delinquenciais.

Paralelamente a estes aspetos, no discurso do E6, temos exemplificado o

abandono escolar associado à descrença na instituição como fonte de suporte social

(Cullen, 1994, 1999; Colvin et al., 2002). O E6, que já cumpria a medida de

internamento há quase dois anos, e sabendo da proximidade da sua libertação,

expressava o sentimento de cansaço do contexto prisional, e, igualmente, o desgaste

quanto às práticas socioeducativas, que, para ele, são formas de manter as aparências e

ocultar outros aspetos de uma experiência de encarceramento: “Agora tô só esperando

minha resposta. Aqui, eu tava fazendo o 9º ano, fiz uma prova de aceleração. Mas

agora só tô dormindo mermo. Eles fala que é obrigado a descer, mas é “lorota”

(mentira) só pra fazer nós descer mermo. Mas agora só continuo na rua… aqui não vou

mais continuar descendo” (E6, 18 anos). O abandono escolar do E6 reflete o

esgotamento de suas forças, no sentido de se adequar às expectativas institucionais,

dentre as quais está a participação na escola. A escolha por aguardar simplesmente o

passar do tempo, somada à percepção do modelo socioeducativo como um modelo de

fachada, nos leva a crer que o adolescente não concebe o viés socioeducativo como

sendo capaz de possibilitar um caminho para a reconstrução de sua vida em sociedade.

O comparecimento dos adolescentes na escola também tem como principal

motivação a saída momentânea dos alojamentos, com o intuito de distração, somado ao

esforço de adequação, semelhantemente ao que ocorre com os cursos

profissionalizantes. A exemplo, vejamos a fala do E4: “Tem algumas [aulas] que eu não

gosto, mas me sacrifico a ficar… é igual a gente aqui… se tá tomando meu tempo?

Melhor ainda.” (E4, 17 anos).

Isto não significa que o adolescente não absorva conhecimento durante as aulas

ou que o facto de não gostar de uma determinada aula seja um aspeto determinante no

53

seu processo de aprendizado e de formação como cidadão. Contudo, ainda que subsista

a escola a operar dentro da unidade, as características prisionais da instituição, as

práticas repressivas e o conflito entre fações, que remetem à lógica da delinquência, são

aspetos dominantes na experiência de internamento do adolescente, refreando a função

pedagógica, tanto no que diz respeito ao aproveitamento escolar, quanto das demais

atividades socioeducativas (cursos profissionalizantes e atividades recreativas),

conforme refletiremos nas categorias seguintes.

Neste sentido, por mais que alguns entrevistados participem das aulas, num

esforço de corresponder à expectativa institucional de “reabilitação”, o discurso dos

adolescentes remete-nos para o sentimento de descrença na escola do internamento, bem

como ao baixo aproveitamento das aulas nas quais participam.

Torna-se problemática a tentativa de agenciar a transformação do sujeito através

da educação, num ambiente altamente coercitivo, no qual predomina o ideal punitivo.

Isto porque a realização de práticas excessivamente coercitivas na experiência de

internamento tem o condão de esvaziar o sentido e a efetividade das atividades escolares

e socioeducativas que são implementadas. Por esta razão, percebemos na análise destes

relatos, uma visão clara acerca do que, elementarmente, constitui a experiência na

unidade para os adolescentes entrevistados: trata-se de uma prisão onde está a funcionar

uma escola e não de uma escola sob um regime de internamento, o que sinaliza a

prevalência das práticas punitivas sobre as práticas socioeducativas.

Atividades socioeducativas

Na categoria “Atividades socioeducativas realizadas durante o internamento”

analisamos as narrativas dos adolescentes sobre o aproveitamento dos cursos

profissionalizantes, dos cursos educativos e das atividades recreativas (ida à piscina, à

quadra de futebol, à horta, à sala de ping-pong e matraquilhos, às aulas de artesanato, a

sessões de filmes, etc.).

Na Tabela 8 (Anexo X), apresentamos a participação dos adolescentes nos

cursos profissionalizantes27 e educativos28, de acordo com o tempo de internamento,

27 Os cursos profissionalizantes e educativos são oferecidos mediante parceria entre o DEGASE e

entidades privadas de iniciativa social, que submetem à instituição um projeto a ser implementado nas

unidades, em prol do desenvolvimento do modelo socioeducativo. São cursos de capacitação profissional,

que ocorrem 2 vezes na semana e têm duração de 10 a 12 meses, pelos quais o adolescente poderá retirar

54

segundo foi relatado nas entrevistas. Sobre este aspeto, é importante destacar que a

participação nos cursos profissionalizantes ou educativos não é uma garantia vinculada

à entrada do adolescente na unidade de internamento, diferentemente do que ocorre com

a escola. Ao chegar na unidade, o adolescente será matriculado e alocado numa das

classes da escola no internamento, conforme o ano em que está a cursar, tendo em vista

que a frequência escolar é obrigatória. Já a participação nos cursos dependerá do

número de vagas e das modalidades disponíveis, sendo que o adolescente deverá esperar

a possibilidade de ser chamado e manifestar o interesse em realizar. Além disso, deve

considerar-se o contexto de sobrelotação da unidade, que dificulta a implementação de

tais atividades, tendo em conta que não existe oferta de vagas para todos os internos.

Com as entrevistas, verificamos que os cursos educativos e profissionalizantes

são percebidos pelos adolescentes, sobretudo, como possibilidades de distração, de

alívio mental e movimentação, com a saída momentânea dos alojamentos nos horários

de cada curso. Como não há regularidade na realização das práticas socioeducativas, os

adolescentes manifestam interesse e mesmo suplicam pela participação em quaisquer

atividades externas, buscando preencher, de algum modo, o tempo vago, a mente e a

rotina prisional na unidade. É o que observamos através da fala do E5, por exemplo:

“Tipo assim, eu faço só atividade mesmo que me solta… mas os cara (funcionários) não

solta, quadra e piscina só de vez em quando… eu tô interessado em fazer qualquer

coisa aqui pra ficar melhor, pra ficar tranquilo. Se fizesse alguma correria, fizesse as

coisa, ia ficar mais tranquilo ainda. Tem menor que ajuda a entregar as quentinha

(embalagem do almoço) e suco nos alojamentos, que vão na horta… lá na outra

unidade eu ajudava a fazer faxina no alojamento. Qualquer coisa que ajude a mente”

(E5, 16 anos).

Além disso, o prazo de cumprimento da medida de internamento está

condicionado ao “bom comportamento” dos adolescentes, sendo a participação nas

atividades escolares e socioeducativas um dos meios de demonstrá-lo. Os adolescentes

têm o discernimento de que precisam ajustar-se às expectativas institucionais e

performar o comportamento de submissão às normas (Malvasi, 2011, p. 166), pois que,

a sua carteira de trabalho e receber uma quantia remuneratória ao final do internamento. Os entrevistados

que participaram do programa apontaram os seguintes cursos: lancheiro, pizzaiolo, técnico de vendas,

instalação de ar-condicionado e mecânica de automóveis. 28 Os cursos educativos são realizados através de uma ONG, que atua dentro da unidade de internamento.

São cursos de reforço escolar, ministrados por professores voluntários.

55

apenas através deste comportamento padrão, serão tidos como “ressocializados” e

prontos para retornar ao convívio social.

O E7, que cumpria a medida de internamento na unidade há 2 meses e 12 dias, à

data da pesquisa, não havia ainda sido integrado num dos cursos profissionalizantes ou

educativos. Durante a entrevista, este adolescente relatava um plano traçado para o seu

futuro, no sentido de dar continuidade à formação nos estudos após o internamento.

Contava que, com o apoio de seus pais, pretendia iniciar o ensino superior noutro país e

afirmava, seguramente, que as aulas na escola e as atividades socioeducativas do

internamento não lhe eram úteis à realização deste sonho. Mesmo assim, o entrevistado

(E7) almejava participar de quaisquer atividades, visando ocupar o tempo ocioso, mas,

acima de tudo, por entender que, ao cumprir o programa socioeducativo, estaria

correspondendo às expectativas institucionais, para que fosse considerado apto a

retornar à vida em sociedade o quanto antes. Em sua narrativa, o E7 afirma: “Não, ainda

não participei [cursos profissionalizantes ou educativos] (…). Qualquer um que tiver

aqui eu vou fazer, até pra ocupar um pouco a mente… mas até agora não me

chamaram.” (E7, 18 anos).

As narrativas do E7 demonstram uma verdadeira intenção de participação nas

atividades socioeducativas e de cumprimento das normas gerais do internamento, no

intuito de reduzir a experiência de reclusão ao mínimo. Isto porque, na perspetiva do

adolescente, o programa socioeducativo não é capaz de proporcionar o suporte social

(Cullen, 1994; Colvin et al., 2002, p. 24) necessário para reinseri-lo na sociedade com

novos recursos profissionais ou educacionais, mas, por outro lado, todo o esforço de

adequação às normas lhe será vantajoso, já que o período de institucionalização

significa a interrupção de seus sonhos, projetos pessoais e laços afetivos.

Assim, verificamos que a participação nos cursos educativos e

profissionalizantes é, de imediato, um modo de ocupação e distração, no sentido de ter

um escape à permanência nos alojamentos e ao modelo prisional na unidade. Em

segundo lugar, a participação nos cursos integra parte dos comportamentos

reproduzidos pelos adolescentes porque lhes são esperados, em correspondência às

regras veiculadas no internamento, o que evidencia uma relação de conformação dos

objetivos pessoais do adolescente aos objetivos institucionais.

De tal forma, durante as entrevistas, quando indagados acerca da possibilidade

de aproveitamento destas atividades numa trajetória profissional, as respostas dos

56

entrevistados eram precedidas por um instante de pausa e hesitação, revelando-nos uma

certa dificuldade de avaliar esta possibilidade. Contudo, alguns entrevistados (E2, E4,

E5 e E6) reconhecem o próprio aproveitamento nos cursos educativos e

profissionalizantes realizados, o que se manifesta a partir de uma reflexão do

adolescente, na qual este reforça os seus aprendizados com a experiência de

internamento como um todo, absorvendo e valorando os aspetos positivos deste período,

apesar das dificuldades. Quando, ao refletir na questão, o adolescente reconhece a

identificação e o aprendizado na atividade da qual participou, ele é capaz de visualizar

esta atividade como um recurso que pode ser empreendido para novas possibilidades de

atuação profissional ou, simplesmente, se orgulha por ter adquirido uma nova

habilidade, dando ênfase aos seus ganhos por entre os contrastes da experiência de

internamento. Neste sentido, consideremos os casos do E5 e do E4: o E5 tem interesse

por carros e percebe no curso de técnico de vendas uma oportunidade inicial de

trabalho, como vendedor de automóveis, enquanto o E4 relata que gostava de cozinhar,

que sua mãe o considera um bom cozinheiro, e que, portanto, tirou proveito do curso de

lancheiro, onde aprendeu técnicas de cozinha.

Em contrapartida, quando o adolescente não reconhece o aproveitamento dos

cursos, funcionando apenas como uma possibilidade de ocupação do tempo ocioso, a

reflexão sugere o sentimento oposto, de descrédito, desânimo quanto às possibilidades

profissionais e estudantis e a avaliação do período de internamento como um tempo

perdido. Sobre isto, vejamos a fala do E1: “Que nada, po… aprendi nada. (…) Já

perguntaram se eu queria aprender a montar e desmontar ar-condicionado… quero

nada. (…) Não. Não aprendo nada aqui. Essa escola aqui não ensina nada. –

(perguntei sobre os cursos profissionalizantes) – Tô há “mó” (um) tempão aqui e só fiz

um. Mesmo assim não ensina nada também.” (E1, 15 anos).

Atividades recreativas

Quanto às atividades recreativas ― ida à piscina, à quadra de futebol, à horta, à

sala de ping-pong e matraquilhos, às aulas de artesanato, às sessões de filmes, etc. ―

verificamos, por meio das entrevistas e da observação participante, que estas atividades

também não são uma prerrogativa da experiência de internamento, à vista do princípio

da proteção integral. Ao contrário, percebemos que a participação nestas atividades está

57

condicionada ao merecimento dos adolescentes ou, ainda, ao arbítrio dos funcionários.

Segundo relatado pelos entrevistados, o encaminhamento para as atividades recreativas

depende da boa vontade e da disponibilidade dos agentes em plantão na unidade,

considerando-se, ainda, o número reduzido de agentes socioeducativos em cada plantão

de segurança (12 agentes). Sobre este aspeto, vejamos as falas do E3, E6 e E7:

“Isso é tudo “facha”! É tudo “facha” (fachada, aparência), ô Cecilia… não tem

nada disso não. Piscina? Só vai aqueles “bundalelê”29 lá do Módulo 2, porque é grupo

pequeno… tira um, dois, de cada alojamento pra jogar bola na quadra… mas quando

eles querem, tudo quando eles querem, quem eles querem. O certo era ter banho de sol

todo domingo… nem banho de sol nós tem… aquela piscina lá é de enfeite po…” (E3,

17 anos).

“Futebol, só futebol, só. Campeonato já participei, já, na quadra. Mas é

raridade, muito difícil… horta é só pra quem fechar30 com eles [funcionários] mermo…

porque os cara [os internos] querem fugir de qualquer jeito, então não dá pra levar

qualquer um não” (E6, 18 anos).

“A não ser a escola… (pausa) não tem atividade. Às vezes domingo eles

chamam… três de cada alojamento pra jogar bola na quadra, ou dois de cada

alojamento pra ir na piscina. Só que, até agora, não me chamaram pra participar de

nenhuma não” (E7, 18 anos).

Na fala do E3 verificamos o sentimento de injustiça em relação aos internos das

fações rivais, pertencentes ao Módulo 2, que têm acesso à piscina, porque estão num

grupo menor e, assim, os funcionários exercem melhor controlo desta atividade. Já na

fala do E6, percebemos a relação de oposição entre os agentes socioeducativos,

representantes da instituição, e os adolescentes. Segundo o entrevistado, a participação

na horta é destinada apenas aos internos do Módulo sem fação, que, em sua perspetiva,

são aqueles que se aliaram aos funcionários e, por escolha, se afastaram dos colegas da

29 Adolescentes das fações 2 e 3, que ocupam os alojamentos do Módulo 2 na unidade de internamento. 30 O E6 quis dizer que a participação na horta é uma exclusividade dos adolescentes que são “amigos” dos

agentes socioeducativos, isto é, os adolescentes do Módulo sem fação.

58

fação. Além disso, o entrevistado (E6) ressalta a possibilidade de fuga no espaço

externo destinado à horta, porquanto exige-se uma relação de confiança mútua entre os

adolescentes participantes e os funcionários que supervisionam esta atividade.

Esta desigualdade na implementação das atividades recreativas é um fator que

acentua os conflitos preexistentes na experiência de internamento. Em primeiro lugar, o

conflito entre os próprios adolescentes, que pertencem a alojamentos e, por conseguinte,

fações diferentes, e se sentem preteridos uns em relação aos outros, fazendo aumentar o

sentimento de raiva, injustiça e a rivalidade entre as fações criminosas, que permeiam o

ambiente do internamento em toda a sua conjuntura. Em segundo lugar, o conflito entre

os adolescentes e os agentes socioeducativos, que assumem uma posição de

antagonismo em relação às fações e cuja relação com os internos já se estabelece com

desconfiança e hostilidade nas práticas prisionais.

Neste sentido, percebemos, no decorrer da investigação, que as atividades

recreativas são priorizadas para os adolescentes que compõem o Módulo sem fação, isto

é, os 9 adolescentes, à época, que estabeleceram um compromisso de bom

comportamento perante a instituição e manifestaram a intenção de abandonar o vínculo

com as suas respetivas fações criminosas. Enquanto os internos do Módulo sem fação

participam de atividades recreativas com frequência semanal, os demais adolescentes

(pertencentes ao Módulo 2 e ao Módulo 1) permanecem confinados dentro dos

alojamentos na maior parte do tempo, não havendo regularidade na prática destas

atividades.

Vale dizer que o compromisso assumido pelos adolescentes do Módulo sem

fação se dá, essencialmente, em função desta relação de troca: o adolescente abandona o

convívio junto aos colegas da mesma fação, renunciando aos valores compartilhados

por seus membros durante o internamento; como recompensa, terá maior liberdade na

rotina da unidade, com a participação frequente nas atividades recreativas. Contudo, isto

não significa que o adolescente queira, em seu íntimo, se desvincular da fação

criminosa, interromper as práticas delinquenciais ou que tenha renunciado aos valores

compartilhados pelos integrantes da fação. O que parece motivar o adolescente são os

benefícios concedidos durante o internamento, que reduzem o sofrimento na experiência

prisional, ainda que, para tanto, precise ceder ao interesse institucional, “traindo” as

regras e a relação de solidariedade entre os membros da fação no período de reclusão. A

exemplo disso, vejamos a narrativa do E2, que, à data da pesquisa, pertencia Módulo

59

sem fação: “Aí saí [do Módulo 1], tô lá no “sem fação”, eles fala que eu tô errado, que

tô traindo o movimento, bah… mas eu que falo pra eles: eu como na mesa, eles comem

trancado no alojamento… eu fico solto, eu vou na piscina…e eles lá? Ficam tudo

trancado, brigando. Eu sei que, quando eu voltar pra favela, eu vou ter que explicar

pro dono de lá… porquê que eu abandonei o convívio (com os internos da mesma

fação) (…)” (E2, 16 anos).

Igualmente, vejamos a fala do E8, também do Módulo sem fação, que corrobora

esta análise: “Aqui, se você tá aqui em cima, Fação 1, você é maluco. Aqui em cima se

você sai uma vez na semana é muito. No Módulo sem fação sai muito mais, muito

melhor… sai pra horta, vê filme, tem colchão novo, faz artesanato, aprendi vários

artesanato. Pra mim, todo mundo aqui de cima tinha que ir pro Módulo sem fação, mas

se bem que não cabe todo mundo né… e é só pra quem quer mudar de vida. Módulo

sem fação é limpo… aqui em cima é tudo sujo, nojento” (E8, 16 anos).

Nesta reflexão, percebemos que a maneira com que as atividades recreativas são

implementadas — isto é, segundo o comportamento de submissão às regras da

instituição, bem como o abandono do convívio junto aos colegas da mesma fação —

termina por reforçar a tensão no meio social imediato do internamento (Agnew, 1992;

Colvin et al., 2002): entre os internos, acentuando a rivalidade entre fações distintas e

produzindo o rótulo de “traidor” quanto àqueles que aderem ao módulo; entre os

adolescentes e a própria instituição, que, por seu turno, assume um papel de oposição às

fações das quais os adolescentes fazem parte, o que tem o condão de fortalecer ainda

mais o vínculo entre os adolescentes e suas respetivas fações. Se o adolescente sabe que

a participação nas atividades recreativas é uma prerrogativa do internamento, mas que

estas atividades, na prática, estão condicionadas à renúncia de um vínculo preexistente

com a sua fação criminosa, então a manutenção do vínculo e da união entre os membros

da fação passa a constituir uma forma de resistência à experiência prisional.

Desta forma, tendo como base a Teoria Geral da Anomia (Agnew, 1992) e a

Teoria da Coerção (Colvin, Cullen & Ven, 2002), encontramos, na execução das

atividades recreativas, outra relação de tensão, caracterizada por um tratamento

excessivamente coercitivo por parte da instituição. Tal como apontam estas teorias, os

recortes das entrevistas demonstram que a privação arbitrária das atividades recreativas

— estímulos positivamente valorizados na experiência de internamento — produz, nos

adolescentes, o sentimento de raiva e injustiça perante si mesmos, os demais internos e

60

a própria instituição, na figura de seus representantes (Agnew, 1992; Colvin et al.,

2002).

Em síntese, no que diz respeito aos cursos educativos e profissionalizantes,

temos uma relação de tensão entre os objetivos institucionais e os objetivos pessoais do

adolescente, enquanto nas atividades recreativas subsiste uma relação de tensão, que

decorre da coerção injusta, do tratamento distinto entre os adolescentes de diferentes

alojamentos e fações.

Convívio entre os adolescentes

Na categoria “Convívio entre os adolescentes” analisamos a relação entre os

adolescentes dentro da unidade, considerando-se a divisão dos alojamentos, segundo a

fação criminosa, bem como as regras impostas por estas fações, que são reproduzidas

pelos internos na experiência de internamento. Um aspeto particularmente relevante, já

anteriormente analisado a propósito da frequência escolar e da participação nas

atividades socioeducativas e recreativas, diz respeito ao conflito entre os internos de

fações rivais, que perpassa por toda a experiência de internamento e demarca a relação

entre os adolescentes. Sobre isto, vejamos as falas do E3 e do E5:

“(…) escola fui uns 2 dia, 3 dia… mas fazer o que na escola? Ouvir desaforo do

professor? Vagabundo só fica lá brigando, fazendo “fanfarronagem”… aí gera

problema, briga… pra gerar problema eu prefiro ficar no alojamento, tranquilo.

Mistura a aula com o pessoal do Módulo 2, que é outra fação… aí, pra ficar em

confusão, prefiro recuar” (E3, 17 anos).

“(…) na educação física nunca fui, por causa que a fação rival pode arrumar

briga e por causa que a minha fação não permite jogar com os menor de outra fação…

só se for contra, não pode ser do mesmo time não” (E5, 16 anos).

Com a imersão no dia a dia da unidade, percebemos que a convivência entre os

adolescentes é marcada pela iminência de conflito entre os que se identificam com

61

fações distintas, ou contra aqueles que ocupam o alojamento “sem fação”31, cuja decisão

de afastamento do convívio junto aos demais representa uma espécie de traição ao

“movimento”32. Isto se verifica no ir e vir dos adolescentes dentro da unidade e nas

práticas escolares e socioeducativas, sendo que a permanência no mesmo espaço físico

ou o simples esbarrar pelos corredores oportuniza situações de tensão entre os internos:

trocas de olhares, ameaças, intimidações. Esta relação de tensão constante entre os

grupos rivais é, por si só, um fator que reduz as possibilidades de aproveitamento do

programa socioeducativo, já que os adolescentes precisam de estar em contínuo estado

de alerta uns diante dos outros e, em razão disso, evitam frequentar as mesmas

atividades.

O conflito entre fações rivais é uma realidade da experiência social dos

adolescentes, no que concerne às práticas delinquenciais, sendo este conflito

transportado para dentro da unidade. A disputa territorial entre as fações e os valores

compartilhados por seus membros estão presentes no ambiente de internamento, de

modo que os adolescentes inimigos do lado de fora permanecem sendo inimigos no

período de internamento. Vejamos as narrativas do E7 e do E1: “Os da outra fação são

eles na dele e a gente na nossa. Não se mistura, não se fala… não é regra da cadeia em

si, mas regra de quem frequenta a cadeia” (E7, 18 anos); “(…) os menor lá debaixo são

tudo vacilão. Quando eu passo e vejo, falo: “vai morrer, menor, vai morrer”. Na aula

sai briga direto, direto… já “quebramo” cadeira… – (perguntei ao entrevistado se não

se falam durante as aulas) – Nada… falo nada” (E1, 15 anos).

Com efeito, a manutenção deste conflito no ambiente institucional revela-nos,

num plano maior, a força do próprio conflito social entre fações mas, igualmente, uma

normatividade internalizada pelos adolescentes, que decorre da interação com o grupo

nas práticas delinquenciais (Akers, 1979). Isto é, na relação com as fações, no meio

exterior, compartilham-se diversas definições da conduta a ser desempenhada por seus

correlatos, nomeadamente aquelas relativas aos comportamentos que devem ser

performados durante o período de reclusão, tais como não se relacionar com membros

de fações rivais, não cumprimentar com aperto de mão os agentes socioeducativos e

permanecer na convivência junto aos seus pares, ainda que as condições de

aprisionamento sejam adversas.

31 Termo empregue pelos adolescentes e pelos funcionários da unidade em referência ao Módulo sem

fação. 32 Termo utilizado pelos adolescentes em referência à fação.

62

Paralelamente às normas e às expectativas institucionais, o adolescente também

está submetido à normatividade e à coerção da fação no internamento. A fação exerce

poder sobre o comportamento dos adolescentes no ambiente institucional, mediante a

reprodução de uma orientação moral partilhada, que, apesar de construída no meio

social, se mantém no internamento através da própria convivência entre os internos. O

risco de ser preso, além de previsto, e mais do que simplesmente aceite, constitui-se

como uma etapa da “vida no crime” (Neri, 2011, p. 290), de modo que poder-se-ia dizer

que a instituição de internamento passa a ser parte inerente das práticas delinquenciais,

um período de adversidade no qual se espera do adolescente uma lealdade

inquestionável, que será valorada por seus pares como uma forma de resistência.

Também por esta razão, embora subsista a relação de companheirismo entre os

internos, há, em contrapartida, uma interação marcada pela vigilância mútua em torno

dos valores compartilhados coletivamente. Assim, num primeiro plano, temos, por um

lado, a relação de união e solidariedade entre os internos da mesma fação, que se dá a

partir da identificação que possuem uns com os outros, pois, para além de partilharem o

sentimento de pertença ao mesmo grupo, os adolescentes possuem trajetórias de vida e

origens similares, e, por outro lado, os adolescentes conservam o discurso da

desconfiança sobre as relações de amizade no ambiente da prisão (Almeida, 2013, p.

155), tal como ocorre no meio social, pré-existente ao internamento. Vejamos as

narrativas do E3 e do E6, que ilustram a manutenção desta relação de suspeita e

insegurança entre os adolescentes:

“Que amigos? Já falei que não existe isso de amigo, po… (risos). No

alojamento, onde eu tô, é tudo da mesma fação, então é tranquilo. Nós, aqui dentro da

cadeia, nós acorda junto, dorme junto, faz tudo junto… então vira irmão, dá a mão pra

quem tá caído no chão. A nossa é mais ajudar mermo, os caído, que fica triste, não

recebe visita” (E3, 17 anos).

“Relação tranquila [com os colegas da mesma fação] troco um papo… às vezes

dá briguinha (risos), mas nada de um encostar no outro não… é uma discussão. Falar

pra tu… amigo, amigo de verdade nós não tem não… mas tem amizade de parceiro

mesmo, de cadeia. Nem na pista (na rua) eu tava com negócio de amizade, amigo…

63

você não sabe em quem confia, quem tá do nosso lado, quem pode fazer uma maldade

pelas costas… ou até na sua frente, uma covardia” (E6, 18 anos).

Se, por um lado, a convivência junto aos membros da fação é fonte de uma

espécie de suporte social (Colvin et al., 2002, p. 25) no período de internamento, por

outro lado, esta convivência implica uma relação de controlo mútuo entre os

adolescentes, no que concerne aos valores comuns, às normas da fação e, por

conseguinte, à atitude a ser performada por cada um durante o internamento. Esta

vigilância não é necessariamente declarada ou consciente, mas consiste, inegavelmente,

num aspeto gerador de tensão, tendo em vista o risco de uma resposta coercitiva por

parte da liderança da fação, após a saída do adolescente do internamento. Recortemos a

fala do E2 acerca disso: “(…) porque se souberem que aqui na cadeia eu saí do …

[Fação 1] … eles me “passam” (fez um gesto de cortar o pescoço), mas eu sou bom no

desenrolo… vou chegar lá e vou falar, vou desenrolar. – (perguntei como isso

funcionava) – Ah, se eu chegar e falar que eu quero sair pra cuidar da minha filha, tá

tranquilo. Mas que eu saí do convívio aqui… eles me “passam”, po. Outra vez, lá no

alojamento, eram 4 pegando de porrada um menor do [Fação 2] … menor

pequenininho, covardia… não bati nele não, peguei eles de porrada também. Segui

minha mente, porque sou sujeito homem, sei que fiz certo. Mas quando eu voltar lá [na

comunidade], vou ter que explicar tudo… eles vão falar: “mas os cara [da fação rival]

vem aqui, mete bala, mata nossos irmão...”; “tem que matar”; (…) mas eu vou

desenrolar com eles” (E2, 16 anos).

Cabe ressaltar que, em regra, quaisquer práticas delinquenciais ocorrem segundo

a anuência da fação dominante numa respetiva comunidade, bastando que o indivíduo

resida na área de domínio da fação, para estar submetido à estrutura de poder

hierárquico exercido pela organização naquela localidade. É o que demonstra a narrativa

do E7, que, mesmo não sendo propriamente vinculado à fação, demonstra temeridade à

sistemática delinquencial, relativamente à escolha do alojamento: “Eu não honro

bandeira de fação nenhuma não, mas, como eu moro na área dessa fação, eu fico no

alojamento dessa fação. Até porque, se eu fosse pra outra, quando eu saísse eles iam

saber e iam me punir… sei lá, alguma coisa iam fazer” (E7, 18 anos).

Em conclusão, trazendo para a análise desenvolvida as teorias da Associação

Diferencial e da Aprendizagem Social (Akers, 1977), segundo as quais o processo de

64

aprendizagem do comportamento delinquente deriva das relações sociais, percebemos

que, tal como discutem estes autores, a convivência entre os adolescentes durante o

internamento reflete a incorporação de atitudes e valores morais compartilhados no dia a

dia das práticas delinquenciais, nas quais a fação é um forte referencial de autoridade.

Assim, o conflito entre as fações e os valores compartilhados na relação com o grupo

são transportados para o ambiente do internamento, de maneira que o sistema prisional

se insere na lógica do sistema criminal, tal como uma extensão ou, mais precisamente,

como um intervalo dificultoso na vida dos adolescentes, mas que é inerente às próprias

práticas delinquenciais.

Com base nos dados recolhidos, seria prematuro afirmar que o ambiente do

internamento reforça o processo de aprendizagem do comportamento delinquente, a

partir das interações entre os indivíduos encarcerados (Akers, 1977). Contudo, o que

podemos perceber é que a prisão é um espaço revelador de valores e comportamentos

que são previamente internalizados pelos adolescentes no meio social, em decorrência

da lógica delinquencial. Sobretudo, a prisão funciona como um espelho destes valores,

já estabelecidos socialmente, em torno das práticas delinquenciais e do conflito social,

tanto entre as fações, quanto entre as fações e o próprio Estado e as suas instituições.

Relação com os agentes socioeducativos

A questão que se repete ao longo deste trabalho — sobre o confronto entre

aspetos prisionais e pedagógicos no sistema socioeducativo (refletido a partir da

experiência e da visão de mundo dos adolescentes) — surge na análise desta categoria,

tendo como suporte o padrão de uma narrativa que é comum aos 8 adolescentes

entrevistados.

No que concerne à relação com os agentes socioeducativos, as entrevistas

revelam-nos o uso de práticas de violência para o controlo e punição dos internos, o que

corrobora a discussão desenvolvida neste estudo, segundo a qual as práticas penais

preponderam sobre as práticas pedagógicas e protetivas no sistema socioeducativo.

A temática da relação com os agentes carcerários suscitou diversos relatos sobre

experiências de vitimação dentro da unidade. Todos os entrevistados já sofreram ou

presenciaram formas de violência física, verbal e psicológica, que podem ser

65

classificadas como práticas de tortura33, utilizadas clandestinamente no sistema

socioeducativo para controlar e castigar os adolescentes, que, uma vez subjugados ao

aparato repressivo do ambiente institucional, também estão em condição de

vulnerabilidade perante as práticas ilegais intramuros. Muito além da privação de

liberdade, a prisão sujeita os internos a inúmeras táticas de violência e maus tratos, que

são produzidas e reproduzidas pelos agentes para a dominação dos corpos tutelados.

Estas constituem táticas que fogem aos olhos da sociedade e que, mesmo dentro do

contexto institucional, são ocultadas das autoridades diretivas, apesar de serem

frequentes no dia a dia da unidade.

A narrativa do E7 reúne diferentes aspetos a serem discutidos acerca da relação

entre os adolescentes e os agentes socioeducativos e será capaz de nos conduzir, numa

análise mais profunda, aos possíveis efeitos da experiência de internamento como um

todo, arrematando aspetos anteriormente referidos. Em primeiro lugar, verificamos, na

primeira parte da fala, a construção de um discurso que remete para a necessidade de

atenção redobrada, no sentido do interno se adequar às expectativas institucionais: “Eu

vejo, muitas vezes, o adolescente querendo impor coisas pra não obedecer aos

funcionários e isso só causa coisa pra funcionário mudar o jeito de agir com a gente,

agredir a gente, ou botar no alojamento de castigo, num lugar separado, isolado. Aí,

pra que isso não aconteça comigo, eu sigo as regras da casa, respeito os funcionários.

Não faço nada sem pedir, ando sempre com a mão pra trás, que é o que me

orientaram… que são as regras da casa, pra que não haja essas coisas todas que eles

fazem. Eu nunca vi funcionário agredir um garoto sem motivo… é sempre um

adolescente que faz algo que não é certo… aí o funcionário primeiro fala com voz alta,

até ofende, chama de bandido, ladrão… tenta repreender. Aí, se o adolescente

continua, aí vem a agressão” (E7, 18 anos).

33 O Brasil é signatário da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis,

Desumanos ou Degradantes da ONU, que estabelece em seu art. 1º: Para os fins da presente Convenção, o

termo "tortura" designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são

infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou

confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter

cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em

discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário

público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu

consentimento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam

consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram

(Decreto n. 40, 1991).

66

Muito mais do que a adequação do comportamento do adolescente à proposta

socioeducativa (com a participação na escola e nas atividades socioeducativas) — que

lhe permitirá uma possível antecipação do retorno à vida em sociedade — estamos a falar

de uma necessidade de adequação voltada para a sobrevivência no ambiente

institucional. A correspondência às expectativas institucionais (o cumprimento das

“regras da casa”) reflete o esforço do adolescente para sobreviver e para, sobretudo,

escapar dos métodos de castigo físico e de outras respostas punitivas. Não cumprir as

regras do internamento, reivindicar, e resistir, de algum modo, ao comportamento

submisso que é esperado significa se expor às práticas de violência implementadas no

quotidiano da unidade: “Eles agridem, mas não vejo como uma forma de ajudar…

nunca é uma agressão que precise, sempre agride covardemente… manda botar a mão

pra trás, aí dá tapa na cara, tapa no peito, tapa nas costas. Não acho que seja algo que

vá ajudar… só gera ódio no adolescente, que volta pro alojamento e fica pensando

naquilo, querendo se vingar de funcionário… não ressocializa nada. Se houvesse um

diálogo ou soubesse só explicar pra eles que não pode… porque, por exemplo, quando

eu cheguei aqui, eu não sabia que aqui era diferente o tratamento. Aqui eles veem o

adolescente como criança que faz malcriação e então tem que ser castigado, agredido.

Tipo, em … [presídio para adultos] não havia esse abuso de poder… funcionário só

fazia o trabalho dele normal… revista, alimentação… não implicava e nem batia nos

presos não. É a maioria dos funcionários, não são todos, mas a maioria é dessa forma”

(E7, 18 anos).

Percebemos que estas práticas de violência, ainda que não oficiais, consistem em

estratégias naturalizadas de controlo no contexto do internamento, tanto pelos agentes

quanto pelos adolescentes, o que conduz o próprio entrevistado (E7) a atribuir alguma

responsabilidade aos internos mais “rebeldes”, por darem causa às formas de agressão,

mesmo que reafirme discordar das respostas excessivamente coercitivas por parte dos

funcionários.

Contudo, ainda que as práticas de violências sejam naturalizadas, porque os

agentes socioeducativos figuram como autoridade no contexto prisional, e porque estas

práticas estão integradas na rotina da unidade, isto não significa que sejam aceites com

docilidade pelos internos. Os adolescentes têm a consciência de que a pena cuja

imposição lhes cabe é a de privação de liberdade e que as práticas de violência, maus

tratos e humilhações estão para além do que devem suportar no período de reclusão.

67

Neste sentido, os adolescentes encontram formas organizadas de sobreviver e resistir à

realidade do sistema prisional, ao se valerem de estratégias coletivas em função de um

propósito comum (instauração de rebeliões, por exemplo), bem como ao se fortalecerem

segundo o vínculo das fações, estreitando-se ainda mais, nesta filiação, como uma

forma de se protegerem dos agentes de punição. Vejamos a fala do E3 a esse respeito:

“Não pode apertar a mão deles, não pode dar “coé”34 pra eles… só o necessário…

respeitar eles, pra eles respeitar nós. Se eles der respeito pra nós, nós vai dar respeito

pra eles… mas nós não pode abaixar a cabeça pra eles… eles é homem igual nós e nós

tá aqui pra cumprir nossa cadeia e pronto. São covarde, eles… você olha o rosto e

pensa que é tranquilo… Hum. Tranquilo é nós… até certo ponto” (E3, 18 anos).

Tais práticas coercitivas de violência refletem o conflito social entre os

adolescentes e os agentes de autoridade (agentes em nome da lei), que, numa posição de

poder oficial, terminam por reforçar a identidade que o adolescente tem em relação à

fação. Através da fação, o adolescente encontra um referencial de poder, pelo qual

poderá se autoafirmar como indivíduo, como “homem”, encontrando um modo de

escapar da coerção marcada por diferentes níveis de violência. Assim, no contexto do

internamento, e fazendo um paralelo com o contexto social exterior à instituição, a

figura dos agentes socioeducativos se equipara à figura da polícia, tanto no que diz

respeito aos métodos de violência implementados, como na percepção dos adolescentes

sobre o policial como inimigo e seu perseguidor.

Na relação com os agentes socioeducativos não resta dúvida quanto ao efeito

criminógeno das práticas de violência que vigoram na experiência de internamento. As

agressões perpetradas pelos agentes socioeducativos não apenas fortalecem a

identificação do adolescente com a fação durante o internamento, mas também suscitam

no adolescente a revolta e o desejo de vingança após o período de reclusão, por se

configurarem como práticas injustas, arbitrárias e humilhantes, injustificáveis a partir

dos atos infracionais cometidos. Tratam-se de exemplos de coerções erráticas (Agnew,

1992; Colvin et al., 2002, p. 22), cuja vingança, sobre si e sobre os outros, só poderá ser

levada a cabo caso o adolescente retorne para as práticas delinquenciais. Vejamos, a

este propósito, a narrativa do E2: “Aqui os cara amassam mermo… não tem pena não.

Dão tapa na cara, chinelada na cara, spray de pimenta, madeirada, soco na costela…

34 Cumprimento, tal como “oi” ou “olá”.

68

depois, na maior cara de pau, vem pedir desculpa, quer apertar a mão… aí não chama

nós pra ir pra aula na escola, deixa trancado no alojamento até melhorar, pra ninguém

ver que apanhou. Eles fala que isso aqui é escola… mas é massacre. De manhã é

escola, de noite é só amasso… a hora que eles tem pra se divertir com nós. (…) Prefiro

esses, que dão tapa na cara (por comparação com os agentes socioeducativos que não

praticam agressões), porque aí posso pegar eles de porrada lá fora” (E2, 16 anos).

Ademais, as práticas de violência anulam o efeito potencial das práticas

efetivamente socioeducativas, desenvolvidas durante a experiência de internamento,

fazendo com que a instituição assuma um papel essencialmente repressivo (Cullen,

1994; Colvin et al., 2002). Os agentes atuam na condição de representantes do Estado e

da instituição e, desta forma, ambos são igualmente responsáveis pelos atos perpetrados

contra a vida, os interesses e a integridade física e psíquica dos adolescentes. Por mais

que a escola e outras práticas socioeducativas subsistam na experiência de internamento,

não há como conceber a medida socioeducativa como sendo capaz de agenciar a

transformação do sujeito — promovendo atitudes e conhecimentos para que,

principalmente, o adolescente não reincida no ato infracional (Malvasi, 2011, p. 160) —,

se as práticas punitivas, que se realizam mediante diferentes táticas de violência,

coexistirem e não forem abolidas desta mesma experiência.

Por último, compreendendo a experiência de internamento como uma

experiência criminógena, trazemos à reflexão a Teoria da Etiquetagem, segundo a qual a

intervenção do sistema de justiça sobre o indivíduo pode resultar num processo de

internalização da identidade de criminoso e provocar o aumento do comportamento

delinquente (Klein, 1986; Bernburg & Krohn, 2003). Conforme referido anteriormente,

os adolescentes em conflito com a lei são, em regra, excluídos socialmente. São, deste

modo, jovens inseridos num contexto de desvantagem estrutural, e cujas características

étnicas e origem pobre já estão associadas a estereótipos negativos que os tornam mais

vulneráveis ao sistema de justiça criminal (Bernburg & Krohn, 2003). Os adolescentes

já encontram dificuldades para aceder às oportunidades convencionais disponíveis no

meio social, além de que precisam empenhar muito mais esforços no processo de uma

formação de identidade não vinculada ao rótulo de “bandido”, que é o esperado pelos

outros. Contudo, para além do reforço da etiqueta de delinquente, que decorre do

próprio processo de institucionalização (Bernburg & Krohn, 2003), o adolescente

encontra, na experiência de internamento, uma conjuntura de violência quotidiana, pela

69

qual os rótulos de “bandido”, “ladrão” ou “traficante” são reforçados e até verbalizados

diariamente, através da relação com os agentes socioeducativos. Recordemos, a este

propósito, a narrativa do E7: “aí o funcionário primeiro fala com voz alta, até ofende,

chama de bandido, ladrão… tenta repreender. Aí, se o adolescente continua, aí vem a

agressão” (E7, 18 anos).

Numa rotina prisional marcada pela exposição a práticas de violência física e

psíquica constantes, o adolescente precisa esforçar-se muito para desvincular a

conceção que tem sobre si mesmo da etiqueta de delinquente, de jovem problemático ou

sem futuro, que lhe é imposta e lembrada a todo o tempo. Isto, somado ao sofrimento

que deriva da própria privação de liberdade, conduz o adolescente a duas possibilidades

de enfrentamento da experiência como um todo: a submissão completa, acompanhada

por um processo de desistência, que se aproxima de uma condição depressiva, e que

podemos perceber na narrativa de E2: “Tomo oito remédios pra dormir (…) não dá pra

ficar pensando muito não. Uma vez fui parar no hospital, porque tomei 30 [remédios]

de uma vez… eu tava muito “baleado”, com muita saudade da minha filha” (E2, 16

anos); a postura combativa de enfrentamento, que está associada à incorporação da

identidade delinquente, e pela qual o adolescente poderá se reafirmar como indivíduo,

encontrando amparo na lógica estabelecida pelas fações.

Na segunda hipótese, percebemos claramente, no discurso de alguns

entrevistados, o efeito criminógeno das práticas de violência realizadas pelos agentes

socioeducativos, bem como do ambiente altamente repressivo, que favorecem o retorno

de uma parte significativa dos adolescentes ao caminho da delinquência após o

internamento, sendo a escolha deste caminho uma expressão de revolta contra si

próprios, contra as pessoas que os maltrataram e contra as amarras de uma estrutura

social que não lhes permite mobilizarem-se socialmente. O apostar no caminho das

práticas delinquenciais é resultado de um processo intenso de etiquetagem, que faz com

que o adolescente não se perceba capaz de traçar uma vida voltada para outras

possibilidades.

Vejamos, a este propósito, a fala do E6, que ilustra um intenso sentimento de

conflito interno: o seu desejo de mudança de vida e a narrativa que remete para o

esforço de nutrir um pensamento de autoestima e otimismo sobre o seu próprio futuro.

A construção da narrativa é sucedida por um instante de pausa, quando o adolescente

refere que tenciona retornar às práticas delinquenciais, caminho este que se vislumbra

70

em função da revolta, mas que, ao mesmo tempo, significa a desistência de si mesmo:

“Tentar mudar, tentar fazer diferente… mudar meu jeito de ser também (…) pensando

em melhoria pro meu futuro, pro futuro da minha filha também. Sou novo, quero até ter

mais um [filho]. Tenho muito projeto na minha mente, quero mudar de vida… (pausou)

mas não dá não, já estou acostumado, se eu ficar aqui mais tempo… não vai dar não…

(hesitou) …fico revoltado (…). Destino certo eu já tenho35… lá na … [comunidade],

chegando lá vou ver o que vai dar né. O que eu quero fazer eu já tenho na mente… eu

quero tentar, vou tentar, só não sei se vou conseguir” (E6, 18 anos).

4.3 Experiência delinquencial

No Tema C, passámos à análise das categorias relativas à experiência dos

adolescentes nas práticas delinquenciais. A elaboração destas categorias decorre dos

relatos dos adolescentes acerca do dia a dia e das relações com as fações, as

experiências mais marcantes, sentimentos e percepções, quanto ao sistema criminal. Há

de se considerar que a experiência delinquencial de todos os entrevistados se desenvolve

a partir da relação com as fações, seja em maior ou menor grau, e que, tais

organizações, apesar de atuarem a partir de uma ampla rede, que perpassa por diferentes

atores e origens sociais, são detentoras de poder bélico, exercendo o monopólio da

violência nas comunidades onde os adolescentes residem (Zaluar e Barcellos, 2013).

Neste sentido, buscámos conhecer a realidade do adolescente acerca da sua

experiência em torno das práticas delinquenciais, cuja complexidade, seguindo o

pensamento de Zaluar (2012), possui: “pontes e passagens múltiplas, trocas contínuas e

redes entrecortadas que articulam e que tornam, por exemplo a fronteira entre o legal e o

ilegal, o público e o privado, sempre tão frágil num país como o Brasil em que a re-

pública nunca se instaurou de fato” (p. 7).

Motivações

Na categoria “Motivações” refletimos sobre os motivos pelos quais os

adolescentes iniciaram as práticas delinquenciais, considerando-se que tais práticas se

35 Ao relatar “Destino certo eu já tenho”, o E6 quis dizer que a prática delinquencial já é um caminho

garantido ao retornar para a sua comunidade. Uma oportunidade certa.

71

realizam a partir do agenciamento das fações e que, por conseguinte, as razões

apontadas pelos entrevistados ultrapassam a ideia de possíveis ganhos decorrentes do

ato infracional em si, mas tratam-se de fatores que também se depreendem da própria

relação estabelecida com as fações ou da integração dos adolescentes nas fações.

Seguindo a conceptualização de Sánchez-Jankowsk sobre a formação de

gangues urbanas, as fações consistem num fenômeno social de agenciamento humano

nas comunidades mais pobres, que é caracterizado pela (i) organização permanente, (ii)

pelo objetivo de dominação local e (iii) pelo papel multidimensional e institucionalizado

nas comunidades mais vulneráveis (Sánchez-Jankowsk, 2003). Partindo deste

pressuposto teórico, vejamos a narrativa do E2, que exemplifica como as fações, ao

exercerem o domínio das comunidades pobres, atraem os adolescentes para a

participação na fação: “É o que eles fazem [os traficantes] … eles pegam esses menor,

menorzão mesmo (muito pequenos), e fala: “coé menor, hoje você vai ser meu

segurança”; “pega esse fuzil aqui”. Aí dá fuzil pro menor no baile, bota ele do lado,

chama as meninas, dá dinheiro pros menor… aí fala: “quer ganhar mais menor, quer

entrar, quer entrar?” Aí apresenta até a família deles. Os menor se sente importante,

chama os amigos pra entrar… aí acaba que faz tudo mesmo.” (E2, 16 anos).

Em regra, o início das práticas delinquenciais está vinculado ao início de uma

relação com o tráfico de drogas; percebemos, com as entrevistas, um padrão nas

respostas dos entrevistados, acerca dos motivos que os conduziram para as práticas

delinquenciais e, junto a isto, para o envolvimento com as respetivas fações, a saber, a

possibilidade de obtenção de “dinheiro fácil” nas redes da organização, o retorno

financeiro alto e imediato, com o qual o adolescente poderá, mais rapidamente, aceder a

determinados bens de consumo, bem como ajudar a sua família. A exemplo disso,

vejamos as narrativas do E1, do E4, do E8 e do E5: “Ah… dinheiro. Dinheiro muito

fácil, né. Eu queria uma moto, em um mês eu comprava. Celular, roupa… ganhava

muito, muito mesmo. Até dava uma parte minha pro D. [amigo do entrevistado], porque

ele tem filho” (E1, 15 anos); “(…) era ganhar dinheiro com o mais fácil. Cada pessoa

que eu ‘picotava’ era 5 mil… onde que você ganha isso?” (E4, 17 anos); “(…) nem eu

sei, sabe… mas acho que o dinheiro fácil, sei lá… moto, carro, ter tudo que eu tinha…”

(E8, 16 anos); “(…) [o tráfico] dava dinheiro, minha ‘coroa’ (mãe) precisava de

dinheiro, já me pedia dinheiro, aí pensei: “vou logo arrumar dinheiro fácil”. Os menor

tudo de dinheiro no bolso, bem trajado, celular novo… aí falei: “ah, vou entrar pra

72

essa vida também”. Eu ganhava 250 por semana, dava 100 real pra minha mãe e, pra

mim, comprava uma roupa, um cordãozinho…” (E5, 16 anos).

Contudo, a facilidade para a obtenção de recursos ou, ainda, a condição

socioeconómica dos adolescentes não são aspetos que, por si só, expliquem a

participação nas práticas delinquenciais e, diante disso, também nos distanciamos de

perspetivas que associam a pobreza à criminalidade com base numa relação necessária.

Conforme teorizam Zaluar e Barcellos (2013), há de se ter em conta o fator

socioeconómico que, somado às falhas do Estado, dificultam a possibilidade de

ascensão social pelos meios convencionais. Todavia, a análise deve incluir outros

fatores relacionados com o espaço urbano e as “práticas sociais interiorizadas (etos) que

permitem a articulação entre o subjetivo e o objetivo” (Zaluar e Barcellos, 2013, p.

248). Assim, verificamos, igualmente, outras duas motivações no discurso dos

entrevistados: o status, com a possibilidade de “ostentação” dos frutos das práticas

delinquenciais no meio social; a sensação de poder, em razão do pertencimento de

grupo, uma vez que a fação detém a força e o monopólio das armas nas respetivas

comunidades.

O alto fluxo de recursos — dinheiro, armas e drogas — das práticas delinquenciais

possibilita que o adolescente obtenha e manifeste capacidade material, mediante a

exibição de bens de consumo e de armas, no contexto da comunidade, ou perante os

colegas, o que se configura como uma afirmação de status. Acerca disso, vejamos as

falas do E3, do E6 e do E8: “(…) via os cara (os amigos) portando fuzil, uma Glock

(arma), cordãozinho de ouro… vários “rolê” (passeios) de moto pela favela… pensava

que era maneiro” (E3, 17 anos); “Agora, nessa vida aí eu tinha tudo… tipo, roupa,

cordão de ouro, carro, moto… e nem sabia dirigir, tá ligado? Era mais pelo sucesso

mermo” (E6, 18 anos); “Acho que foi mais pela ostentação (…) queria comprar arma,

roupa… se quisesse ficava com a moto, com carro, era meu, ninguém podia meter a

mão… comprava uma Glock, uma carga…” (E8, 16 anos).

Além disso, há a sensação de poder, a capacidade de manifestação de poder e o

prestígio no meio social, que decorre deste poder, em função do porte de armas e do

pertencimento à fação, conforme se depreende das falas do E2 e do E6: “Ah, tinha uma

sensação de portar arma, fuzil, (…) revólver… eu gostava de portar… (…)” (E2, 16

anos); “As pessoa vê nós desse tamanho assim e desacredita… mas, lá na favela, se vê

73

nós portando pistola, fuzil, na “atividade”, já é outra cara, já é outro jeito da pessoa

tratar nós… já quer falar, apertar a mão, puxar saco36 …” (E6, 18 anos).

Seja através do dinheiro, do status ou do poder, percebemos que, por trás de cada

um destes aspetos, o adolescente busca, subjetivamente, a possibilidade de ser

respeitado, aceite e inserido socialmente, tal como qualquer indivíduo, segundo uma

noção de sucesso capitalista, que não é exclusivo do sistema criminal. A proposta do

sistema criminal, ainda que paralela e marginalizada, reproduz, de maneira acentuada,

porquanto sem o controlo do Estado, os valores convencionais de um paradigma

capitalista, apesar de se valer de outros meios de dominação e de práticas ilícitas. Para

os adolescentes, que estão em fase de desenvolvimento e numa condição de maior

vulnerabilidade, as práticas delinquenciais, ao estarem associadas às fações,

apresentam-se como um caminho tentador, desobstruído, para uma possível realização

individual pautada pelo desejo de pertencimento, de aceitação e de prestígio no meio

social. Vejamos a narrativa do E7, que corrobora esta reflexão: “Foi mais pelo sucesso

mesmo… lá onde eu moro é assim… tanto que eu não ligava muito pro dinheiro… claro

que usufruía do dinheiro, mas era mais pelo nome ser falado entre as pessoas, pelo

respeito… pessoal te olha diferente, era aceitado em outros grupos sociais de pessoas…

todo mundo queria parar contigo, sair contigo, andar do lado…” (E7, 18 anos).

Quotidiano na atividade delinquencial

Na categoria “Quotidiano na atividade delinquencial”, analisamos o dia a dia do

adolescente no contexto das práticas delinquenciais e, consequentemente, a interrelação

com as fações. Apesar de transcender amplamente os limites do contexto

socioeconómico dos adolescentes, o tráfico de drogas se estabelece no território das

comunidades, seguindo a lógica de um empreendimento, que é estruturado para as

vendas, o recebimento de cargas, a contagem de valores e os pagamentos ao final de

cada dia de comercialização, a segurança armada do local e todo o mais que for

necessário para o fluxo de capital e o controlo da localidade. Conforme teoriza Rafael

(2001), o tráfico de drogas no Rio de Janeiro opera a partir de uma forma-Estado, com

as suas leis, disciplina, vigilância e hierarquia, bem como por meio de um arranjo que se

assemelha às “organizações mundiais” capitalistas, naquilo que ultrapassa todo território

36 “puxar saco” significa bajular.

74

em nome do mercado ou dos “negócios”; e, por fim, “seus bandos - seus fenômenos de

multidão” (p. 174), havendo uma estrutura de funcionamento de grupos locais nas

comunidades, com ajustes segmentares entre estes grupos.

A rivalidade entre os comandos do tráfico, que disputam o mercado de drogas e

os territórios das favelas, resultou numa corrida a armamento, de forma a inibir

possíveis invasões das fações adversárias e também da polícia (Zaluar e Barcellos,

2013). Com o domínio armado do território, as fações exercem poder sobre as

comunidades e dirigem as atividades do tráfico, bem como outros atos infracionais

adjacentes, consoante a própria lei hierárquica, que é imposta a todos - membros da

organização e moradores.

As fações possuem uma moral própria, que se estabelece com a imposição de

regras, legitimando as práticas de determinados atos infracionais e da violência, quando

empregados de acordo com o senso de justiça da liderança. Os roubos, por exemplo,

mediante acordo com os líderes da fação, são permitidos, desde que sejam realizados

em outras localidades e não tragam problemas para dentro da comunidade. Do mesmo

modo, não é permitido roubar na presença de crianças ou de pessoas com deficiência

física, conforme relatam o E2, o E7 e o E8: “(…) aí, quando tem criança, nós não pode

fazer nada… não pode assaltar… é ordem lá de cima.” (E2, 16 anos); “(…) aí vimo que

tinha criança, pedimo desculpa, entramo no carro de volta e fomo embora” (E7, 18

anos); “É igual não roubar carro com criança ou deficiente físico… é regra, se fizer tá

arriscado tomar até um pau (sofrer agressão física). Lá na comunidade não pode matar

em assalto… só se for, assim, a sua vida ou a dele… apontar arma pra você… é regra.”

(E8, 16 anos).

Assim, no sistema “crime-negócio”, o quotidiano é organizado, com base em

regras e hierarquias, envolvendo, também, a atribuição de responsabilidades e funções a

serem desempenhadas, o que faz com que o adolescente permaneça vinculado às

atividades em torno do mercado do tráfico de drogas e das suas complexas articulações

de poder. Dito isto, vejamos as narrativas do E2 e do E5, acerca da rotina de trabalho

como integrantes das fações:

“Eu fazia a segurança da boca (de fumo) e os assaltos que o frente (líder) lá

pedia… eu fazia tudo. Se tivesse que cobrar eu cobrava, vagabundo que queria roubar,

75

ficava na frente da boca, cobrindo o “vapor” (vendedor)… ver quem podia e quem não

podia subir (na favela), se tivesse que matar eu matava, fazia tudo…” (E2, 16 anos).

“(…) aí pensei que eu ia ficar de “vapor”, vendendo droga, na atividade, mas o

mano (o líder) me botou de segurança da boca (de fumo), de “bico” (armado)… me deu

duas pistola, ele. (…) já fui “vapor”, que faz as vendas… já fui segurança da boca e já

fui segurança do mano (líder)… aí ele já deixava abusado, tranquilo, de fuzil. Aí já

comecei a ganhar mais… (…) várias pessoa querendo matar o mano (dono), aí se o

mano morrer, a culpa é do segurança dele. Os cara, se não me “desse um pau”

(espancassem), me passava (matava). Se ele rodasse (fosse preso) por culpa de alguém,

a gente morria também.” (E5, 16 anos).

Através destas narrativas, percebemos que o quotidiano nas práticas

delinquenciais é pautado pela relação de exploração do trabalho dos adolescentes, que

são atraídos pela ideia de sucesso e de respeito, e pela facilidade de se ganhar muito

dinheiro no tráfico de drogas. Contudo, os adolescentes não compreendem, de facto, a

realidade que os aguarda no sistema criminal. O discurso dos entrevistados demonstra a

surpresa, acerca do que pensava ser a participação no tráfico, frente à realidade da

situação de opressão, na qual o adolescente “faz tudo”, isto é, desempenha todo o tipo

de função e precisa estar à disposição para quaisquer serviços, até os mais cruéis, para

além do risco de ter que enfrentar conflitos armados com a polícia ou com outras fações.

Soma-se à exploração do trabalho e à exposição aos riscos de conflito armado, o

abuso psíquico dos adolescentes, no que concerne às práticas de violência. Na condição

de iniciantes e de soldados ao serviço do tráfico, os adolescentes obedecem, fielmente,

às ordens e aos interesses dos líderes do comando, para os quais a violência é

naturalizada como instrumento de poder. Nesta relação de dominação, a execução das

práticas de violência é imposta ao adolescente, em violação à sua dignidade humana,

degenerando a percepção que o sujeito tem sobre si mesmo. A exemplo disso, vejamos

o relato do E5:

“(…) uma vez pediram pra eu “passar” (matar) um menor que roubou uma

bicicleta de um morador [da comunidade]. Aí falei: “coé, cara, vi esse menor crescer”,

aí o cara (interlocutor): “coé, tá de piedade?”. Aí dei um pau (bati) nele, mostrei que

76

eu tava cheio de ódio, pra convencer… mas o cara falou: “coé, vai dar pau e não vai

matar?”. Aí matei, mas fiquei muito triste… tinha crescido com o menor, já tinha

parado do lado dele, já tinha fumado com ele… e o T. ainda falou pra todo mundo,

falou pro mano (líder) de mim: “ele quer ficar andando armado e não quer matar!”. Eu

não gostava de dar pau, não gosto de fazer mal a ninguém. Quando eu fazia, fazia

cheio de pena… bagulho foda, ficar matando as pessoa atoa. Mas aí, depois que viram

que eu matei mermo, me chamaram pra passar mais… já matei uns 5, mas nunca fui

pego na infração não. Aí já pensei: “não vou pro céu mermo, vou pro inferno”. Já fiz

tudo que o diabo gosta… matei, roubei, trafiquei. Já matava uma pessoa e ficava com

aquilo na mente… depois eu esquecia. Mas os caras ficava explanando (espalhando,

comentando) “ele que matou”… “ ‘pitbull’ é “bala”.” (E5, 16 anos).

A narrativa do E5 revela que a violência, instrumentalizada pelas fações, molda

a construção da identidade dos adolescentes, a partir de uma estreita associação entre

masculinidade e violência, ao serviço das práticas delinquenciais. A violência patente

no ato de matar um jovem, por um motivo fútil, é naturalizada pelos líderes da

organização, por forma a exercer o controlo da comunidade, e dos próprios

adolescentes, mas não é naturalizada pelo entrevistado. O ato de matar um amigo e,

ainda, a fama que o entrevistado adquire após ser coagido a matar representam ataques à

subjetividade do próprio agente, que, a partir do trauma, se percebe como sendo capaz

de cometer quaisquer outras práticas de violência, em prol da organização.

O E5 narra a sua tristeza, a sua vergonha, o que evidencia o conflito interno e a

desesperança do adolescente. Porém, neste processo de transformação da identidade, há

a subversão do olhar do entrevistado sobre si mesmo, para se amoldar à masculinidade

violenta que lhe é imposta no meio social. O aprendizado desta nova identidade

violenta, que se dá sob teste e ameaça, funciona como um mecanismo de controlo dos

adolescentes, levando-os ao conformismo de cometer novos atos brutais e,

paralelamente, impedindo-os de se projetar para o desenvolvimento de outros sonhos e

de outras capacidades.

Vejamos a narrativa do E4, que exemplifica, também, a transformação do

sujeito, a partir das práticas de violência nas práticas delinquenciais: “Entrei no tráfico

e, depois de duas semanas, o mano (líder) falou que eu tinha que passar no teste… aí

me mandou entregar um dinheiro numa casinha lá no alto da favela, que era a casa

77

onde ficava o “picotador”37. Cheguei lá, pra entregar o dinheiro pra um velho, cara de

cachaceiro… o velho era sinistro, você não dava nada por ele… nem andava armado,

mas andava escoltado. Quando cheguei tinha um cara morto, sem os dois braços e sem

as duas pernas. Aí quase vomitei, passei mal mermo (mesmo) e saí da casa. Quando

voltei pra falar com ele, já tinha uma mulher morta também! Tomei um susto…” (E4,17

anos). Ao responder à pergunta acerca do quotidiano no tráfico, o E4 narra a relação de

exploração no trabalho: “Era bom, tinha dias bom e dias ruim… minha função era

quase tudo, sério. O mano mandava eu entregar, eu entregava… já fui rádio, cruzeiro,

que é quem entrega tubo (bateria do rádio), tá ligado? Abastecedor… (…). Eu recebia

a carga do mano e abastecia a boca… depois fui pro picote e dessa não saí mais… era

ganhar dinheiro com o mais fácil. (…) eu era tipo o faxineiro, limpava a sujeira.

Aprendi com o “coroa” (idoso), com cara de cachaceiro. Nos primeiros dias fiquei com

medo, coração acelerado… depois passei a tomar uma “balinha” (ecstasy)… a pessoa

pra mim virava até um porco. – (perguntei ao entrevistado o que o levou a sair do

tráfico) – O mano (líder) morreu e entrou outro no lugar dele. Esse outro massacrava a

gente. Queria mais tempo da gente na pista (rua), tirou dia de folga, via alguém

dormindo, ao invés de conversar, queria dar porrada. Aí muitos saíram da boca (do

negócio) por causa dele. (…). (…) Nem quando eu matei agora eu fiquei com medo…

acho que já sabia que era meu destino (morrer ou ser preso).” (E4, 17 anos).

Experiência com a polícia e expectativa de punição

Nesta categoria analisámos os relatos dos entrevistados sobre as suas

experiências nas abordagens e nas apreensões policiais, bem como o sentimento diante

da possibilidade de aprisionamento.

Conforme teorizam Zaluar e Barcellos (2013, p. 20), o domínio armado do

tráfico de drogas nas comunidades não poderia se estabelecer sem estratégias eficazes

de corrupção de certos agentes da lei, que se beneficiam do jogo de poder do sistema

criminal. Assim, verificamos, com as entrevistas, que a presença da polícia nos

territórios das favelas costuma ser pautada pelo recebimento de pagamentos, em troca

da não intervenção no decurso das atividades do tráfico, ou, por exemplo, de

37 Segundo o entrevistado (E4), o “picotador” era a pessoa responsável pelo esquartejamento e descarte

dos corpos mortos pelo comando do tráfico.

78

informações, a respeito de futuras operações policiais: “(…) de vez em quando eles

“brota” (aparecem) na favela “de rolé” (à passeio), aí o “frente” (líder do tráfico)

deixa entrar, pra dar o “arrego” (pagamento). É pra pegar dinheiro que eles entra

mermo, mas vê a “boca” (local de venda de drogas) assim e não faz nada não… só faz

quando é operação [policial] explicar” (E5, 16 anos).

No conflito entre a polícia e as fações, os poderes se confrontam e, ao mesmo

tempo, se retroalimentam, numa dinâmica de tensão e de táticas de controlo mútuo,

sendo tais táticas realizadas de maneira que ambos sobrevivam e apenas interfiram um

sobre o outro na medida necessária para que a relação entre os sistemas, oficial e

criminal, mantenham os seus papéis e os seus espaços de poder. Vejamos a fala do E6, a

respeito das articulações de poder entre o tráfico e a polícia: “(…) dá pra pagar um

dinheiro pra eles, pra soltar… mas quando pega um plantão (policial) “mandado” (mal

intencionado, ruim) os cara não aceita dinheiro não… leva preso, mata… depende do

plantão da polícia. Mas nunca “rodei” (fui preso) pra eles não, nunca tive que pagar.

Eles nem entrava na favela, só quando tem operação… aí, quando é assim, o “frente”

(líder) já mandava recuar, não dar tiro. Polícia Civil e Polícia Militar não entra não,

nem tenta. Quando tinha operação, maioria das vez, a gente já sabia… os próprio

polícia do batalhão próximo da comunidade avisava pra gente… mas também ganhava

o dinheiro deles por isso. Pra pegar a gente de surpresa só quando é assim… o

Exército. Tipo, o “frente” (dono) da boca (local de venda de drogas) lá… os cara

pegaram [ele] já e pediram 25 mil pra soltar ele, só que nós não ia dar o dinheiro, aí o

parceiro (amigo) que é acima dele mandou nós dar, pra não trazer problema pra

favela… aí a gente teve que dar.” (E6, 18 anos).

Considerando esta relação de conflito e de intersecção entre os sistemas criminal

e oficial, percebemos que as experiências dos adolescentes com a polícia possuem

diversas variações, a depender do local do encontro ou do aparato policial, podendo

haver desde uma abordagem individual nas ruas, até uma incursão fortemente armada

na comunidade.

Dentre os 8 entrevistados, 5 (E1, E2, E3, E4 e E5) já haviam sido abordados pela

polícia antes da primeira apreensão. Apesar das diferenças quanto às circunstâncias das

abordagens, verificamos, no discurso dos adolescentes, a percepção do agente policial

como um perseguidor, não necessariamente em razão do ofício no cumprimento da lei,

mas como um inimigo à espreita, para prejudicar ou tirar vantagem, principalmente

79

diante da possibilidade de extorsão. Vejamos as narrativas dos entrevistados, que

corroboram esta reflexão acerca do policial como um perseguidor: “Teve muitas

[abordagens], onde que eles me vê eles já queriam me abordar…” (E1, 15 anos); “(…)

tipo se os polícia quiser me perturbar, me forjar, tipo, quiser tomar meu ouro quando

eu tiver usando na pista (rua), passeando na orla… se quiser pegar ‘arrego’

(pagamento em corrupção)… aí vou ter que dar continuidade no crime lá fora” (E2, 16

anos); “Só no tráfico mais de 10 [abordagens]… é porque o tráfico pagava os cara pra

me soltar. Já pagaram 50 mil pros polícia não me prenderem…” (E4, 17 anos); “Já fui

até parado, mas os cara me deixava passar… os polícia me via, eu falava ‘não tô com

nada não’. Sempre que os cara me enquadrava, eu não tava com nada” (E5, 16 anos);

Tudo covarde… polícia tá aqui, eu tô lá… faço o possível pra não ser abordado, mas já

fui abordado antes. Levaram minha moto, que era clonada, aí eles levaram… meu

cordão, meu dinheiro… me algemaram e me soltaram depois de ‘mó tempão’ (muito

tempo) pra eu ir pra casa (E3, 17 anos).

Nas hipóteses de apreensão do adolescente pela polícia, verificamos que é

comum o emprego da violência, seja física ou psicológica, o que manifesta o abuso da

força e da autoridade repressiva. Nestes casos, o adolescente já se encontra detido e a

violência policial é desnecessária, no sentido de oprimir e humilhar o indivíduo

capturado. No âmbito das apreensões, as práticas de violência policial são indicativas

desta disputa de poder na relação da polícia com o sistema criminal, que ultrapassa, em

muito, o estrito cumprimento do dever legal. No contexto da política de guerra contra o

tráfico de drogas, a polícia, tal como as fações, instrumentaliza a violência para

demarcar o seu espaço de poder, afastando-se do pressuposto de legalidade da

instituição como representante do Estado. Ao invés de coibir ou atuar para a interrupção

do conflito, a polícia passa a integrar-se como um dos atores do próprio conflito. Sobre

isto, vejamos as falas do E4, do E7 e do E8:

“(…) nas vezes que fui [apreendido], fui tratado tipo hotel de luxo… tomando

porrada, choque [elétrico]… na minha primeira passagem o policial pisou na minha

cara!” (E4, 17 anos)

“(…) Me tiraram do carro, me botaram no chão. Eu achei que esculacharam

(humilharam), porque eu não tentei fugir, não tentei nada e eles me algemaram,

80

botaram no chão… ficaram pisando na minha cara, esfregando a minha cara no

chão… e isso, assim, várias pessoas passando e eles falando alto: “esse aqui é

ladrão!”, perguntando onde tava a arma do roubo, falando que eu que roubei… aí falei

com eles que não tinha [arma]. Aí teve gente passando na rua que até falou: “ah, já

prendeu… leva logo pra delegacia”… mas eles nem quiseram saber, continuaram” (E7,

18 anos).

“(…) Nessa primeira [apreensão] não foi nada tranquilo, tomei tapa na cara, fui

esculachado (humilhado)… apanhei, spray de pimenta, chute (pontapé) na costela…

ih… foi nada legal a primeira passagem… falaram que ia me matar… fiquei com muita

raiva… se eu pudesse agredir ele né, mas não podia, apanhei quieto né, mas tá maluco,

isso não é vida pra ninguém não, tá repreendido!” (E8, 16 anos).

Conforme percebemos nestas narrativas, na atuação policial, a coerção errática e

arbitrária integra o conflito em torno das práticas delinquenciais, bem como reforça o

estigma do adolescente de “bandido” e de inimigo social. O adolescente tem a

consciência de que a apreensão e, mais ainda, a prisão consistem em respostas legítimas

do Estado aos atos ilícitos realizados. No entanto, as práticas de violência, sendo

injustas e ilegais, geram o sentimento de humilhação e, por conseguinte, o desejo de

vingança, conduzindo o indivíduo à continuidade delitiva, num eterno ciclo de

reafirmação de poder.

Além disso, no contexto de guerra armada entre as fações e a polícia, a

possibilidade de aprisionamento é tida pelos adolescentes como o menor dos males,

como parte do jogo em torno do sistema criminal. Mesmo porque há de se ter em conta

que os adolescentes conhecem a possibilidade de corrupção, já que certos agentes

policiais se articulam com o tráfico de drogas e, sendo assim, a presença da polícia nos

territórios dominados pelo tráfico não representa, necessariamente, uma ameaça de

apreensão. Em algumas entrevistas vemos que os adolescentes são temerosos à morte,

em razão das experiências traumáticas de confrontos armados, enquanto que a prisão é

absorvida como um dos percalços da própria lógica da delinquência:

81

“(…) não tinha medo não… até pensava, mas medo não tinha não. Eu já sabia

como que era o sistema… já tinha minhas passagens, então sabia que se eu fosse pego

ia ser internação” (E2, 16 anos);

“Medo, medo eu não tinha não, porque é melhor ir preso na mão deles do que

ser morto…” (E6, 18 anos);

“Eu fazia o máximo pra eles não me ver e eu não ver eles. Eles fizeram um

trabalho muito bem feito pra pegar a gente ali… mas eu não tinha medo de ser

apreendido. Tinha medo de perder minha vida… ser preso? Faz parte da vida” (E3, 17

anos);

“Não tinha medo não… eu sabia que os cara ia pagar pra mim sair. A única

coisa que me dava medo era polícia e ir pra guerra (confronto armado com a polícia ou

com outra facção criminosa). E depende dos polícia… só da CHOQUE e do BOPE…

Polícia Militar e Polícia Civil eu não tinha medo não” (E4, 17 anos).

Balanço da experiência delinquencial

Por fim, nesta análise do Tema C, passamos à categoria “Balanço da experiência

delinquencial”, pela qual buscámos conhecer o sentimento do adolescente acerca das

práticas de delinquência, confrontando os supostos benefícios e os prejuízos percebidos

pelos entrevistados. Além disso, considerando-se a complexidade dos aspetos refletidos

neste tema, buscámos conhecer como os entrevistados se veem, após as suas

experiências no sistema criminal.

Assim, em primeiro lugar, verificamos que alguns adolescentes não avaliam a

experiência delinquencial como benéfica (E1, E2, E3 e E6), e, mesmo quando

reconhecem algum benefício ou aprendizado (E4, E5, E7 e E8), estes não são vistos

como suficientes para compensar as suas experiências negativas, bem como o tempo

perdido no internamento. Os entrevistados afirmam, de maneira categórica, que as

experiências criminais lhes trouxeram muito mais prejuízos do que os possíveis

benefícios. A exemplo disso, vejamos as narrativas do E2, do E3, do E8 e do E6: “Não,

nada de bom não. Aprendizado só de crueldade mesmo, fazer maldade, mas, fora isso,

82

nada não…” (E2, 16 anos); “Benefício nenhum… só sujou meu nome, só prejuízo” (E3,

17 anos); “Trouxe coisas boas? Sim, conquistei uma moto, um telefone, um carro, mas

muitas coisas ruins também. E tô aqui, muito mal com a moto e um telefone.

Aprendizado nenhum, mudança de vida também nenhuma” (E8, 16 anos); “Benefício

não trouxe muito não, só tristeza. (…) Às vezes tinha vários stress na rua também…

vários amigo morrendo, minha filha recém nascida. Na minha mente já tinha o

pensamento de que ou eu ia morrer ou ser preso… e eu quase morri e fui preso. Valeu a

pena fazer o que eu tava fazendo? Valeu, mas também depois que ‘roda’ (é preso)

perde tudo.” (E6, 18 anos).

As narrativas corroboram a reflexão desenvolvida neste tema, acerca da

desilusão do adolescente e da disparidade entre o que este pensava ser o sistema

criminal e o que, de facto, é o sistema criminal. Percebemos que os entrevistados não

possuíam, efetivamente, a consciência sobre a magnitude dos riscos inerentes às práticas

delinquenciais ou, ainda, sobre como estes riscos poderiam interferir em outras áreas de

suas vidas. Não há qualquer demonstração de orgulho em relação aos atos praticados e

até mesmo os relatos acerca de possíveis aprendizados, a partir das práticas

delinquenciais, denotam a perda de inocência e o endurecimento do indivíduo, perante

as relações de risco que se estabelecem no âmbito destas atividades. Sobre este aspeto,

vejamos as narrativas do E4, do E7, do E1 e do E3:

“No tráfico aprendi quem tu pode considerar e quem não pode. Quem é falso e

quem não é… (…)” (E4, 17 anos);

“(…) consegui entender um pouco o mundo do crime… percebi que você só

serve pras pessoas se você tiver algo a oferecer pra elas… tipo o pessoal do tráfico. Se

não tiver algo pra oferecer você é descartável” (E7, 18 anos);

“Aprendizado nenhum. Só aprende a matar, torturar, esfaquear… não aprende

nada de bom, só matemática, matemática tem muita38. Também não tem amigo nenhum.

No tráfico sempre tem um querendo o seu lugar, te derrubar, ganhar mais que você.

Tem que ter cuidado com todo mundo, ninguém é amigo” (E1, 15 anos);

38 O entrevistado (E1) referiu-se aos cálculos que fazia para fechar as contas de compra e venda de drogas

nas atividades do tráfico.

83

“Antes de entrar eu era mais ‘de bobeira’… depois vi que a gente não tem

amigo. Amigo é só pai e mãe. (…) um querendo ser maior que o outro. Ali aprendi a ser

homem de verdade… não querer só brincadeira… não deixar os errado passar pela tua

vista e não falar nada, pessoa errada… mudei muito” (E3, 17 anos).

Para além de avaliarem, objetivamente, a experiência de delinquência como

prejudicial, os entrevistados reconhecem mudanças no próprio comportamento, o que

ratifica a reflexão no sentido de que a imposição de uma identidade masculina pautada

pela violência viola a subjetividade do próprio “ser” adolescente. Neste sentido,

vejamos as falas do E1, do E4 e do E5, que exemplificam a transformação do sujeito,

bem como um sentimento de desesperança dos entrevistados: “(…) antes eu era um

moleque tranquilo, falava com todo mundo, dava ‘oi’ pra todo mundo na favela…

depois fiquei como… fechadão, marrentão (mal encarado)… não falava com ninguém,

não confiava em ninguém…” (E1, 15 anos); “Antigamente, eu era um garoto doce…

depois virei um capeta (mal comportado). Minha mãe falou que eu tava mudado, que

meu jeito de olhar tava estranho, minhas mãos… falei: ‘coé, mãe, naquela vida lá eu fiz

muita coisa…” (E4, 17 anos); “Eu sou um menor tranquilo, não gosto de fazer mal pra

ninguém… aí você faz mal pra uma pessoa e já pensa: “vou fazer de novo”. Me deixou

sem coração, sem sentimento das pessoa que às vezes brigava comigo… parava de

falar com as pessoa. Hoje em dia, só tenho coração só pra minha família.” (E5, 16

anos).

Nestes trechos, os entrevistados identificam transformações na própria maneira

de ser e de agir, em decorrência das práticas delinquenciais, o que percebem como

aspetos negativos.

4.4 Objetivos futuros

No Tema D, iremos focar nas expectativas dos adolescentes quanto ao futuro,

após a experiência de internamento. Estas categorias são: Continuidade na atividade

delinquencial, Aproveitamento do internamento como aparato de ressocialização e

Futuro almejado.

84

Continuidade na prática delinquencial

Em primeiro lugar, percebemos que a eventual continuidade na prática

delinquencial após o internamento não integra o propósito ou o objetivo de futuro dos

entrevistados. A possibilidade de retorno às práticas delinquenciais é completamente

desconsiderada (E4, E7 e E8) ou vista como a última alternativa (E1, E2, E3, E5 e E6),

caso o adolescente não encontre oportunidades de trabalho, através dos meios

convencionais. A exemplo disso, vejamos as narrativas do E4, do E8, do E3 e do E6:

“Nem me dando o melhor dinheiro do mundo eu volto. Eu descobri duas coisas… que

eu não sirvo pra ser ladrão e não sirvo pra ser bandido. É dinheiro fácil, mas não é pra

mim…” (E4, 17 anos); “Não. Na verdade nem penso mais nisso, isso aí chega, segunda

passagem já…” (E8, 16 anos); “Eu penso positivo… se eu tiver oportunidade de

trabalhar, eu não quero voltar não. Insistir pra quê? Perder minha vida? Se eu

arrumar um trabalho, não volto não… mas se não arrumar…” (E3, 17 anos); “Passa

pela mente… mas só entra na vida consciente, se tu quiser. Eles vão falar, vão

perguntar, mas vou falar que tô tranquilo. Eu não fico pensando nisso não… tipo, é a

última opção, não tenho um pensamento de sair daqui e voltar direto” (E6, 18 anos).

Ademais, verificamos que o romper com as práticas delinquenciais possui uma

conotação mais profunda de “mudança de vida” cuja decisão pode implicar o

afastamento do adolescente de suas antigas companhias, de determinados lugares e

situações sociais ou, até mesmo, da comunidade. Vejamos a fala do E8, no que diz

respeito à mudança de residência, em razão das companhias e do tráfico na localidade,

bem como as falas do E6 e do E7, acerca da necessidade de limitação na relação com os

antigos colegas:

“Meu padrinho falou que é melhor pra mim não ir mais na comunidade C. Vou

respeitar ele, porque é ele que tá lado a lado comigo sempre. Não vou mais ter contacto

com o pessoal do C.” (E8, 16 anos);

“Se eu parar com eles, é certo de eles falar, parar do lado… se ele tiver “forte”

no crime ali, ele vai querer me deixar forte… já passamo várias coisas junto… é certo

de, se parar com eles, falar: “coé, vamo ali dar uma roubada”. Mas eles não vão

forçar o que eu não quero, fazer o que eu não quero… mas eles vão perguntar se eu vou

85

querer ficar na boca (venda de drogas), voltar… mas eu posso falar que vou ficar

tranquilo, vou ficar afastado, que eles vão entender. O foda é falar que vou ficar

tranquilo e ficar parando com eles em vão… não dá pra ficar só de morador parado

com eles. Tudo bandido! Aí “roda” (é preso), para com eles e morre em vão, porque tá

no meio. Não vou precisar me afastar, mas não vou ficar parando com eles toda hora”

(E6, 18 anos).

“Meus amigos antigos não me julgam pelo que eu fiz, diz que tão sempre comigo

apoiando, mesmo eu tendo feito coisa errada. Com certeza vai ser a mesma amizade.

Os outros eu quero evitar, me distanciar, pra não misturar de novo e dar chance de

fazer coisa errada. Até porque eles nem perguntam se eu tô bem… acho que não são

amigos assim.” (E7, 18 anos).

Além disso, o adolescente tem em conta que poderá deparar-se com dificuldades

estruturais ao buscar por oportunidades de trabalho convencional, considerando-se,

igualmente, a sua condição de ingresso no sistema socioeducativo, que obsta, ainda

mais, a obtenção de emprego: “O estudo que eu tive aqui pode me ajudar… o curso

Jovem Aprendiz que eu fiz também pode ajudar… tudo isso pode ajudar no futuro, mais

pra frente. Poder abrir porta, pode, mas… ham. Do jeito que a coisa tá séria lá na rua,

pra poder arrumar um trabalho… as coisa tão muito mudada. Acabei de sair da

cadeia… “os cara” (as pessoas) não dão emprego pra ex presidiário não!” (E6, 18

anos).

Enquanto a ruptura com as práticas delinquenciais representa o caminho incerto,

podendo exigir um esforço individual para a reorganização da vida dos adolescentes em

diversas áreas, a continuidade nas práticas delinquenciais, por outro lado, apresenta-se

como uma oportunidade garantida de ocupação após o internamento, sendo esta

oferecida com maiores benefícios e facilidades, por forma a recompensar o indivíduo

pelo tempo gasto na prisão. Neste cenário, ainda que as práticas delinquenciais não

correspondam à livre escolha dos entrevistados, percebemos um sentimento de conflito

e de insegurança, em relação às oportunidades de trabalho e aos meios para pôr em

prática este novo percurso de vida. Acerca disso, vejamos as narrativas do E1 e do E5,

que demonstram a aflição dos adolescentes, em relação ao desejo de mudança de vida,

86

frente ao facto de que as práticas delinquenciais serão ofertadas como um caminho

assegurado após o internamento:

“É dinheiro fácil (no tráfico), mas não dá pra ficar muito tempo… muitos

morrem. E po, imagina… ser preso no “de maior” (presídio)… não dá não… uma hora

tem que sair… sempre penso nisso, todo dia, se eu volto ou mudo de vida. (…) eu tenho

moral lá. E quem roda (é apreendido) defendendo a “boca” (o local de vendas) ganha

moral lá também… recebe mais quando volta. Mas minha mãe chora muito, não quer…

e fala pra eu mudar de vida, fala: “eu quero ver é lá fora”. Ela não gosta, quer que eu

more com a minha irmã por isso… também não quero fazer ela chorar não, mas não

sei.” (E1, 15 anos)

“Não sei… eu quero tocar a vida pra frente. Se Deus quiser, eu não volto não.

Mas o “mano” (líder) da minha favela pode vim com uma oportunidade boa… me

deixar de frente, de fuzil… só anotando o dinheiro do mano, sem me esforçar muito pra

nada. Aí, se o mano vem com uma oportunidade boa, vai me influenciar. Certo de

falarem pra mim lá: “qual vai ser? Vai “meter a mão” (participar) de novo? Tá com

medo?”. Igual na minha primeira passagem… e eu “meti a mão de novo” … fiquei

roubando e traficando. Acho que uma proposta boa me faria voltar… mas só se tiver

revoltado de novo, pra viver o crime de novo. Mas tô querendo seguir minha vida… dar

uma atenção maior pra minha mãe.” (E5, 16 anos)

Aproveitamento do internamento como aparato de ressocialização

Quanto ao “Aproveitamento do internamento como aparato de ressocialização”,

percebemos que, apesar das características prisionais e das práticas de violência

contidas na experiência de internamento, a maioria dos entrevistados (E2, E4, E5, E6 e

E8) reconhece o aproveitamento socioeducativo e os ganhos na própria experiência, seja

no que diz respeito aos cursos profissionalizantes, às aulas na escola ou, de modo geral,

às reflexões que o período de afastamento das práticas delinquenciais proporciona.

Assim, vejamos a narrativa do E8: “É, tipo, quando eu tava na rua eu não tinha essa

vontade toda de ser ator… aí vim pra cá, parei de roubar e agora quero mesmo ser

ator. É isso, aqui ajudou a mudar meu pensamento também. Se eu não tivesse a

87

segunda passagem eu ia tá roubando até hoje. Sei que tem pessoa aqui dentro que pode

me ajudar a achar um curso de teatro lá fora… isso aqui não é um lugar bom, mas pelo

menos voltei a sonhar né?” (E8, 16 anos).

Neste sentido, por mais que existam contradições e dificuldades na

implementação do modelo socioeducativo ou, ainda, que o caráter socioeducativo da

medida seja refreado pelas práticas coercitivas, o mínimo contacto com o viés

pedagógico no internamento permite que o indivíduo construa novos significados,

estabeleça outras relações humanas, seja desafiado a apreender novos conhecimentos,

podendo desenvolver visões de mundo diferentes, interesses e habilidades de trabalho,

para além do afastamento do contexto de guerra das fações. Vejamos a narrativa do E5,

que valoriza a participação nas práticas socioeducativas, mesmo com toda a condição de

sofrimento da privação de liberdade: “Claro! No curso eu aprendo… se Deus quiser vou

sair e vou estudar de novo, trabalhar. Tipo, meu pensamento é que tô tirando uma

etapa maneira aqui no sofrimento. Oito mês aqui, eu teria feito muita coisa lá fora.

Aprendi na escola, no alojamento… a ser um menor tranquilo, humilde. Aprendi no

curso e na escola coisa que eu não sabia, fazia errado ou tinha esquecido… mas a

professora explica, reforça a memória.” (E5, 16 anos).

Futuro almejado

Por conseguinte, relativamente à categoria “Futuro almejado”, notamos que, a

despeito do conflito do adolescente, que reside na incerteza sobre o seu futuro, sobre as

suas reais chances de criação de uma trajetória de vida distante das práticas

delinquenciais, há o desejo de construção de uma nova realidade, que pode vir a ser

orientado a partir das práticas socioeducativas realizadas durante o internamento.

Apesar da necessidade de considerarmos uma possível relação de desejabilidade social

no momento da entrevista (Paulhus, 1984), todos os relatos dos entrevistados, acerca do

futuro que esperam para si, consistem em representações de uma vida voltada para o

trabalho ou para o estudo, bem como para a constituição de uma família, num contexto

de tranquilidade, apesar das experiências difíceis e da violência experienciada.

Vejamos, a este propósito, os seguintes excertos: “Voltar a estudar, trabalhar de

‘camelô’ ou arrumar um emprego de carteira assinada. Conquistar minha casa…

minha, minha mermo. E construir uma família” (E4, 17anos); “Queria, quando eu tiver

88

trabalhando, carteira assinada, ficar trabalhando pra comprar as coisa que eu quero.

(…) Não quero morar em comunidade perto do tráfico, quero morar no campo, num

sítio” (E5, 16 anos); “Quero pagar aqui o que eu devo, quero terminar o ensino médio,

fazer uma faculdade ou um curso técnico…” (E7, 18 anos); “(…) ser ator. Fazer um

filme, quem sabe… comprar um carro, com dinheiro suado! E dar tudo pro meu filho

que eu não pude ter… que é o que? Um pai presente, uma mãe, uma casa… ah! Quero

aprender a falar inglês também!” (E8, 16 anos); “(…) quero ter minha casa própria,

conquistada com suor, trabalho, ter uma moto, botar minha filha numa escola boa,

paga, dar um futuro bom pra minha família… uma coisa que eu seria é eletricista…

coisa de eletricidade. Trabalho de eletricista eu gostaria de fazer… oportunidade tem,

só correr atrás. (…). Quero ter mais um filho, morar fora de comunidade…” (E6, 18

anos); “Penso em ter filho, ter casa, casar, ser feliz. Mas penso em duas coisa: eu gosto

de lutar e de cozinhar. Penso mais em trabalhar com comida, mas não sei nem por

onde começar…” (E4, 17 anos).

O esforço no trabalho e a ideia de conquista através do trabalho são aspetos

valorizados pelos entrevistados em suas narrativas, diferentemente do que se depreende

da relação com as práticas delinquenciais. Do mesmo modo, as relações de afeto, no que

diz respeito à constituição de família, ao casamento, aos filhos, demonstrando que, tal

como qualquer indivíduo, os adolescentes têm sonhos e projeções de futuro pautados na

dignidade e na cidadania, mas carecem de recursos e de uma verdadeira rede de apoio,

para o desenvolvimento deste percurso de vida.

89

CAPÍTULO V — DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A presente dissertação consistiu num estudo exploratório e qualitativo, tendo

como objetivo principal conhecer a experiência de internamento e a realidade social dos

adolescentes em conflito com a lei no estado do Rio de Janeiro, a partir dos métodos da

observação participante, pelo qual acedemos ao quotidiano da instituição onde os

adolescentes cumprem a medida socioeducativa de internamento, e da entrevista

semiestruturada, que permitiu-nos conhecer o próprio adolescente, a sua percepção

acerca da delinquência e a experiência de privação de liberdade. Para atingir este

objetivo, aplicamos uma entrevista a oito adolescentes, tendo como base os elementos

teóricos de estudos científicos que abordam o tema dos efeitos da privação de liberdade

sobre os indivíduos e o modelo socioeducativo proposto pelo ECA, que soma aspetos

pedagógicos à experiência de internamento, visando promover a cidadania para a

reinserção do adolescente no meio social.

A discussão dos resultados visa a articulação das teorias elencadas neste estudo

às temáticas desenvolvidas, a fim de refletir sobre os dados conjuntamente, tendo-se em

conta a complexidade dos aspetos analisados, bem como as suas relações.

Em primeiro lugar, os dados revelam que a realidade social dos adolescentes

escapa, em larga medida, à abordagem teórica da dissuasão especial, que se baseia num

paradigma pró-normativo acerca das noções de comportamento ilícito, de fonte de

autoridade e de poder de punição, tratando, linearmente, de uma relação entre custos e

benefícios, para a escolha do comportamento delinquente, conforme Becker refere

(1995). Para além de residirem em comunidades nas quais as fações representam o

referencial de poder e autoridade, as práticas delinquenciais se realizam a partir de um

sistema organizado e, em certa medida, articulado com o sistema oficial, tanto no que

diz respeito à relação com a polícia, quanto relativamente à ideia de que ser apreendido

e encaminhado para a instituição do internamento consiste numa etapa da carreira

delinquente. Estamos, deste modo, perante relações de poder e de coerção, que

decorrem de sistemas e atores diferentes, constantemente articulados (Foucault, 1973).

A experiência delinquencial é marcada por intensas relações de conflito social.

Tanto é assim que a competição entre fações subsiste dentro do internamento e que os

adolescentes devem satisfação aos líderes após o período de reclusão, podendo receber

recompensas ou respostas coercitivas em razão do comportamento desempenhado

90

durante o internamento. Neste sentido, se buscarmos analisar a relação entre o ato

infracional e a punição, segundo a perspetiva dos adolescentes, percebemos que não há

a construção de um pensamento de oposição, pelo qual o ato infracional gera a punição

ou o internamento é uma consequência direta do ato infracional. A relação que se

verifica vai no sentido de que os sistemas delinquencial e oficial interferem

constantemente um com o outro, e, sob a ótica delinquencial, a prisão termina por fazer

parte da trajetória de sobrevivência do indivíduo.

Além disso, a linha teórica da dissuasão especial pressupõe uma escolha racional

do indivíduo, desconsiderando os aspetos emocionais, não necessariamente refletidos,

que estão associados à participação dos adolescentes nas práticas delinquenciais. Assim,

há de se ter em conta a busca do adolescente, em plena idade de desenvolvimento, pela

aceitação, pela sensação de pertencimento de grupo, pelo respeito e pela autonomia,

numa condição de dificuldades estruturais, que contribui para que as práticas

delinquenciais simbolizem um caminho de aparente êxito. Com o domínio das fações no

contexto das comunidades, é possível questionar se os adolescentes possuem

consciência sobre a magnitude dos riscos e das consequências de violência que integram

a experiência delinquencial, para, efetivamente, realizar uma escolha calculada.

Relativamente às teorias da Associação Diferencial e da Aprendizagem Social

(Akers, 1977), os dados parecem corroborar o que afirmam estes autores, demonstrando

que as práticas delinquenciais são aceites e, em certa medida, valoradas entre os

indivíduos neste meio social. Assim, as fações podem funcionar como um referencial de

comportamento para a juventude no contexto das comunidades, porquanto são

detentoras de poder e de autoridade para reforçar ou punir certas condutas, conforme a

moral compartilhada por seus membros. Mais precisamente, a relação de aprendizado se

verifica no que diz respeito às práticas de violência, quando os adolescentes passam a

integrar as fações. Os entrevistados não demonstram qualquer orgulho quanto aos atos

de violência que praticaram, mas aprendem e se acostumam com este modelo, segundo

o comportamento que é imposto e exigido por seus líderes, ainda que isto constitua um

abuso de poder, e possa ter consequências traumáticas para o próprio sujeito.

Ao analisarmos a experiência de internamento, a partir da convivência entre os

adolescentes, percebemos que não é necessariamente o internamento que introduz o

indivíduo ao aprendizado de novos valores e comportamentos antissociais (Bayer,

Hjalmarsson & Pozen, 2009), mas, certamente, o ambiente estruturado, tal como uma

91

prisão, não é capaz de interromper o compartilhar desta moral previamente internalizada

entre os adolescentes de uma mesma fação (Neri, 2011, p. 274), bem como a dinâmica

do conflito social entre fações que se estabelece externamente e se reproduz

internamente. À luz destas teorias, a experiência de internamento pode ser considerada

criminógena, uma vez que os adolescentes permanecem reclusos num ambiente

stressante e de constante tensão, com poucos estímulos positivos, no qual a rivalidade

entre fações e a vigilância dos comportamentos conforme às regras das fações se

mantêm inalteradas e concentradas num mesmo espaço.

Passando à Teoria da Anomia, verificamos, através dos dados, que a trajetória

dos adolescentes perpassa por diversas relações de tensão, a começar pela posição

socioeconômica na estrutura social (Merton, 1938), havendo poucas oportunidades de

trabalho e pouco suporte social para que o indivíduo estabeleça e alcance seus fins de

bem-estar, pelos meios convencionais (Mendonça, 2011; Ferreira, 2008). Neste

contexto de extrema carência, a fação apresenta-se como uma fonte de apoio (Colvin et

al., 2002), oferecendo uma rede de conexões e relações de grupo, supostamente capazes

de suprir as necessidades afetivas dos adolescentes e de lhe conferirem status social e

um sentimento de pertença, para além da necessidade imediata de aumento da

capacidade material.

Além disso, é possível analisar as relações de tensão e de coerção que resultam

da experiência de internamento dos adolescentes, segundo as teorias desenvolvidas por

Agnew (1992) e Colvin et al. (2002). Durante o internamento, o adolescente é

confrontado com as expectativas institucionais, que partem do referencial de legalidade

do ECA, exigindo-se do sujeito um esforço de adequação às normas e à proposta

socioeducativa do internamento, para que seja considerado “recuperado” e apto ao

retorno à vida em sociedade. Pelo viés socioeducativo, espera-se do adolescente a

participação na escola e nas atividades, a submissão às regras e a demonstração de um

desejo de mudança, aspetos indicativos do seu aprendizado e da sua transformação, em

correspondência com o objetivo institucional. Contudo, subsiste, no internamento, uma

força (tensão) contrária, no que diz respeito aos parâmetros de conduta que são

esperados pelas fações, sendo estes também observados pelos adolescentes,

repercutindo num estado de alerta uns sobre os outros.

Verificamos, ainda, as relações de tensão que decorrem da necessidade de

sobrevivência dos adolescentes face ao aparato repressivo e às práticas arbitrárias que

92

são implementadas pelos agentes de segurança dentro da instituição. O tratamento

desigual no que concerne à proposição das atividades e, sobretudo, a instrumentalização

da violência para o controlo dos internos consistem em modalidades de coerção errática

(Colvin et al., 2002), podendo desencadear um efeito criminógeno e desvirtuando a

pretensão socioeducativa da experiência de internamento. Tais aspetos coercitivos

contribuem para o desenvolvimento de sentimentos negativos e de baixa autoestima

sobre os indivíduos, para a naturalização das respostas de violência, que já são uma

realidade no quotidiano da experiência delinquencial, bem como para o fortalecimento

da identidade dos adolescentes perante as suas fações, como forma de resistência aos

excessos e aos abusos de poder durante a privação de liberdade.

Por último, interpretando os dados a partir da abordagem da Teoria da

Etiquetagem (Klein, 1986; Bernburg & Krohn, 2003), percebemos que a trajetória dos

adolescentes, incluindo o período de internamento, é marcada por diversas experiências

de conflito e de violência na relação com atores que representam as instituições oficiais.

Enquanto a organização exerce uma autoridade imediata nas comunidades, assumindo

prerrogativas de uma forma-Estado (Rafael, 2001), as intervenções do sistema de justiça

no contexto social dos adolescentes são voltadas, majoritariamente, para a política de

combate ao tráfico de drogas, cujos procedimentos sinalizam um amplo processo de

criminalização da pobreza e, por conseguinte, o tratamento dos jovens que residem

nestas zonas como suspeitos, mesmo antes do envolvimento nas práticas delinquenciais.

As experiências dos adolescentes com a polícia são indicativas de um reforço da

etiqueta de delinquente, porquanto a política criminal que fundamenta as táticas

policiais decorre da reação social aos atos infracionais praticados por indivíduos já

estigmatizados em função da pobreza (Bernburg & Krohn, 2003). Por esta razão, as

entrevistas demonstram que as condutas policiais, por vezes, ultrapassam o

cumprimento do dever legal, convertendo-se em atos de coação, violência ou

humilhação do adolescente apreendido, que é tido como merecedor deste tratamento por

ser considerado um inimigo social (Foucault, 1973, p. 32-34). Se, de um lado, o

domínio das fações nas comunidades pode estimular as práticas delinquenciais, por ser

um referencial de poder no contexto local, por outro lado, a política de guerra

perpetrada pelo Estado brasileiro, através das suas instituições de segurança, tem o

condão de isolar e estigmatizar, ainda mais, os indivíduos que residem nestas zonas de

conflito.

93

Num segundo momento, é possível haver uma relação de reforço do rótulo de

delinquente após a apreensão do adolescente pelo sistema de justiça, pois, sob a ótica

institucional, exige-se a sua recuperação para o retorno à vida em sociedade, de modo

que a responsabilidade pela mudança de comportamento recai, essencialmente, sobre o

indivíduo, através do seu próprio esforço, e sem haver, contudo, um suporte social, ou

instrumentos que permitam que os fins de bem-estar sejam alcançados pelos meios

convencionais. O adolescente precisa de se esforçar para melhorar, e deixar de “ser” um

criminoso, pressuposto que desloca a delinquência para o plano da identidade

individual, reforçando a rotulagem. Soma-se a isto o emprego, por certos agentes

socioeducativos, de práticas de violência física, psicológica e verbal para o controlo dos

internos. Estas práticas reafirmam o rótulo de criminoso, para além de intensificarem o

estranhamento, as relações de tensão e de conflito já existentes entre os adolescentes e

as instituições oficiais.

Além disso, sob a ótica do sistema criminal, a prisão é tida como uma etapa de

sofrimento do que se entende como uma “vida de delinquência”. Portanto, o reforço do

rótulo de criminoso sobre o adolescente também pode advir das relações que se

estabelecem dentro do próprio sistema criminal, uma vez que, neste âmbito, o período

prisional será valorado pelos membros da fação e visto como um ato e sacrifício

heróicos.

A etiquetagem é, deste modo, atravessada por dois sistemas distintos, que

impõem ao adolescente o mesmo rótulo de delinquente, ainda que segundo mecanismos

de controlo opostos, convergindo numa dupla afirmação da identidade de criminoso.

94

CONCLUSÕES

Os resultados desta investigação apontam para um contexto social de extrema

vulnerabilidade dos adolescentes, em função da pobreza e da baixa escolaridade, uma

condição fértil para que estes jovens percebam, nas práticas delinquenciais, um caminho

de sucesso concebível. Mais do que isto, os dados revelam as relações de intenso

conflito social, em torno das práticas delinquenciais, nos territórios onde os

adolescentes residem, nos quais as fações funcionam como um referencial de

autoridade, enquanto o Estado tem pouca representatividade em termos de suporte

social. A formação dos adolescentes é direcionada, em certa medida, por este referencial

de poder local, em detrimento da construção de uma trajetória de estudo ou de trabalho

pelos meios convencionais, cujas oportunidades são, ainda, escassas ou de baixo retorno

material, face às necessidades imediatas dos adolescentes.

Uma vez imersos no quotidiano de serviço do sistema criminal, os adolescentes

são absorvidos, como soldados, nas disputas entre fações, no domínio do mercado de

drogas, e nos confrontos com a polícia. Há, também, o aprendizado de uma

normatividade imposta hierarquicamente, no contexto de grupo, que se utiliza da

violência como instrumento de controlo. Apesar da iniciação nas práticas

delinquenciais, o aprendizado dos métodos de violência se dá mediante situações de

coação e os adolescentes não apresentam um discurso de naturalização destas práticas.

Pelo contrário, o aprendizado ocorre dentro das relações de controlo no âmbito das

organizações, com a exploração dos mais jovens e vulneráveis, violando a subjetividade

dos próprios sujeitos. Neste sentido, as entrevistas permitiram revelar as relações de

cooptação e manipulação dos adolescentes, relativizando perspetivas focadas na

existência de uma tendência individual para o comportamento violento.

Estas relações de conflito são transportadas e reproduzidas, tanto pelos internos,

quanto pelos agentes de segurança, para dentro da instituição, pelo que a estrutura

prisional não é capaz de interromper esta dinâmica de disputa territorial, ou o

estranhamento entre grupos, já estabelecidos. Além disso, verificamos as relações de

tensão que se apresentam na experiência de internamento, no que concerne à

implementação do modelo socioeducativo, perante a prevalência de práticas prisionais,

excessivamente coercitivas. Subsiste a contradição entre estes dois modelos dentro de

uma única experiência: enquanto se espera do adolescente o esforço para a adequeção à

95

proposta socioeducativa, paralelamente, os maus tratos e os castigos físicos impostos

por certos atores da instituição têm o efeito criminógeno e contraproducente de esvaziar

o sentido das iniciativas educacionais.

Embora as estratégias de violência e as arbitrariedades tenham um impacto

extremamente negativo sobre a experiência individual de internamento, é interessante

notar, a partir dos dados, que os adolescentes são capazes de discernir as representações

simbólicas destes dois modelos dentro da unidade. De um lado, existem as relações de

tensão que decorrem das formas de repressão, voltadas para o controlo e para a punição,

além do sofrimento que advém, elementarmente, da condição de privação de liberdade,

sendo que todos estes símbolos prisionais demandam atenção e táticas de sobrevivência.

Soma-se a isto, as representações de poder e de vigilância associados às fações, o que

também repercute em relações de tensão e de coerção entre os internos. Porém, de outro

lado, existem as representações das práticas socioeducativas, nos horários das aulas

escolares, dos cursos, das atividades recreativas, que contam com uma abordagem

educacional por parte do corpo de profissionais especializados. Apesar da precariedade,

as iniciativas socioeducativas parecem ser o único contacto que os adolescentes

possuem com símbolos de autonomia e emancipação, frente às relações de violência e

coerção, que, nos dois primeiros casos, os objetificam como delinquentes, seja para

validar a punição, ou para o servir à fação. Nisto reside a potência revolucionária e

emancipatória do viés socioeducativo, que, por mais difícil de ser implementado num

contexto de internamento, possibilita ao adolescente o desenvolvimento de relações

voltadas para a cidadania, a experiência com novos aprendizados e, por conseguinte,

uma abertura para o surgimento de sonhos, capacidades, ou quaisquer experiências de

vida que rompam com os ciclos de violência e de estigmatização.

Mesmo privados de liberdade, e após uma série de experiências degradantes no

âmbito das práticas delinquenciais, os adolescentes reconhecem o valor das práticas

socioeducativas, e têm dentro de si o desejo de construção de uma nova trajetória e a

visão de um futuro que não se comunica com a delinquência. A socioeducação atua a

partir desta perspetiva de esperança do indivíduo, que, mesmo nas piores condições,

procura uma realidade diferente daquela que lhe é dada.

Este trabalho define-se por ser um feixe de possibilidades para outros percursos

investigativos em que, no lugar de soluções prontas, é necessária uma continuidade

intencional, alargando a amostra para outras instituições de internamento.

96

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101

ANEXOS

Anexo I: Grelha de observação

Nome do observador: Cecilia Roxo Bruno

Data:

Dimensões

1. Ambiente e características estruturais da Instituição39

2. Atividades educativas e profissionalizantes realizadas pelos adolescentes

3. Tempo livre dos adolescentes

4. Interação entre adolescentes e funcionários

5. Interação entre os adolescentes

6. Atendimento médico e apoio psicológico

7. Outros aspetos relevantes

39 Sobre este aspeto, pretende-se observar se as instalações da Unidade oferecem um ambiente

pedagógico, indicativo de liberdade, com, por exemplo, espaços adequados para dormitórios, refeitórios,

realização das atividades educativas e profissionalizantes, de lazer e desporto, bem como espaços de

atendimento de saúde e visita familiar (CONANDA, 2006, p. 50-51). Isto porque, segundo o modelo de

socioeducação proposto pelo ECA e pelo SINASE, o espaço da unidade de internamento deve

proporcionar um ambiente humanizado, que não remeta à naturalização do castigo e à ideia de

continuidade do sistema carcerário destinado aos adultos (CONANDA, 2006, p. 51; CNJ, 2011, p. 3).

102

Anexo II: Guião de entrevista

Data:

Idade:

Ato infracional praticado:

Tema A: Conhecendo o adolescente

1. Poderia me dizer de onde você é?

Onde vivia antes de ingressar na

Unidade?

Descrição do lugar onde nasceu/cresceu

2. Como era viver lá?

3. E com quem você vivia em sua casa?

Possui irmãos? / Outras pessoas de

convívio familiar?

4. Como era o seu dia a dia / interação

com a sua família?

5. E como era o convívio com os seus

amigos?

6. Quanto à escola, frequentava?

Que ano cursava ou até que ano

frequentou? / Se exercia alguma

outra atividade ou trabalho ao

mesmo tempo / Se faltava à escola

para exercer esta atividade /

Quais eram as motivações / O que

te levou a abandonar

Tema B: A experiência de internamento

7. Há quanto tempo você está aqui na

Unidade?

103

8. Poderia me contar sobre o seu

primeiro dia na Unidade?

Experiência pessoal / Sentimentos /

Percepções

9. E como é o seu dia a dia aqui?

O que costuma fazer / Desde a hora que

acorda até a hora de dormir

10. Como é a sua relação com os outros

meninos? Possui amigos aqui?

11. Como são as aulas na escola?

O que acha / Gosta do que

aprende / Qual a sua aula

favorita / Acha que pode tirar

proveito disso para a sua vida?

12. E quanto às outras atividades? Já

participou de alguma atividade

profissionalizante?

13. Há alguma outra atividade que você

goste ou se sinta bem ao realizar aqui?

Atividades terapêuticas / Projetos /

Esportes

14. Sobre estas atividades que você

realiza aqui, acha que pode tirar

proveito delas no futuro?

15. Poderia me contar como tem sido o

contacto com os funcionários?

Se há respeito entre os

adolescentes e os funcionários /

Se já sofreu algum tipo de

violência / Se considera que os

funcionários são pessoas capazes

de lhe ajudar ou apoiar

104

Tema C: A experiência delinquencial

16. Sei que este pode ser um tema

desagradável, mas poderia me contar

sobre a situação que lhe trouxe para esta

Unidade?

17. Como foi a sua experiência de

apreensão pela polícia?

Como aconteceu / Como se sentiu / Como

foi tratado

18. Este foi o seu primeiro contacto com

a polícia?

Já vivenciou outras abordagens? /

Se sim, poderia me contar sobre

como foram as outras

experiências?

19. Saberia me dizer o que te levou a

_____?

Motivações / Carência material /

O que percebia como vantagem

ou desvantagem?

20. Poderia me contar sobre como era a

sua vida atuando no _____?

Possibilidade de vínculo com o

tráfico de drogas / Dia a dia /

Funções a serem desempenhadas

/ Hierarquia

21. Como você se sentia realizando esta

atividade?

22. E o que pensava sobre a

possibilidade de vir a ser apreendido?

Era um medo? / Como se sentia quanto a

isso?

23. Você considera que a sua experiência

com o _____ te trouxe algum benefício?

Se sim, quais? / Algum

aprendizado? / Mudança de vida /

Suporte financeiro / Novas

amizades / Suporte emocional

105

entre os pares

24. E quanto às experiências negativas

nesta atividade? Existiram situações nas

quais você não se sentiu bem?

Experiências de violência / De

medo / De exposição / Violência

entre os pares / Confrontos

armados com a polícia

25. Acha que a experiência no _____ te

transformou como pessoa? Como?

Tema D: Objetivos futuros

26. Hoje, quais você diria que são seus

objetivos de vida?

Possui sonhos? / Projetos de vida? /

Alguma profissão que gostaria de ter? /

Sempre quis ter? / Alguma situação na

sua vida te despertou o interesse para

isso?

27. O que planeja fazer quando sair do

internamento?

28. Considera a possibilidade de voltar a

_____?

Se sim, por quais razões / Se acha

que ao retornar à comunidade

será pressionado pelos colegas a

se reintegrar nas práticas

delinquenciais / Opinião da

família quanto a isto

29. Acha que a sua experiência aqui na

Unidade pode vir a te ajudar a alcançar

estes objetivos de vida?

Se foi uma experiência

transformadora / Se alterou a sua

percepção sobre o futuro / Se

possibilitou que desenvolvesse

novas habilidades / Novos

106

aprendizados

30. Quanto à sua família, considera que

são pessoas que podem te apoiar nos

seus planos?

31. E os seus amigos? O que você espera

deles quando sair da Unidade?

32. Como que gostaria que fosse o seu

futuro?

Estudo / Trabalho / Se pensa em se

mudar / Se pensa em casar-se ou ter

filhos

33. Mais uma vez, gostaria muito de

agradecer a sua participação. Tem

alguma pergunta que gostasse de me

fazer ou algo mais que queira dizer?

107

Anexo III: Consentimento informado

TERMO DE CONSENTIMENTO PARA ADOLESCENTE

(MAIORES DE 12 ANOS E MENORES DE 18 ANOS)

Você está sendo convidado para participar da pesquisa “A MEDIDA

SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAMENTO: análise qualitativa acerca da

experiência de privação de liberdade do adolescente em conflito com a lei”.

Conforme procedimento na coordenação da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo

Freire, Divisão de Estudo, Pesquisa e Estágio – DEPE, o DEGASE permitiu que você

participe.

Queremos saber sobre a sua experiência de internamento na [unidade de

internamento onde teve lugar a pesquisa] e conhecer seus objetivos futuros de vida.

Os adolescentes que irão participar desta pesquisa têm entre 14 e 18 anos de

idade.

A pesquisa será feita na [unidade de internamento onde teve lugar a

pesquisa], onde os adolescentes serão entrevistados. Serão utilizados papel e caneta,

para anotar as suas respostas.

A participação é voluntária e você poderá deixar de participar ou retirar o

consentimento, a qualquer momento. Não há nenhum problema se você desistir, ou se

não quiser responder a alguma pergunta. Não há penalização alguma ou prejuízo de

qualquer natureza.

Caso você se sinta constrangido ou desconfortável com alguma pergunta, você

não é obrigado a responder.

O anonimato é garantido e seu nome não será utilizado em qualquer fase da

pesquisa. A divulgação dos resultados será feita de forma a não identificar os

entrevistados.

108

Desde já, agradecemos a atenção e a sua participação.

Colocamo-nos à disposição para maiores informações.

Se você tiver alguma dúvida, você pode me perguntar.

109

CONSENTIMENTO PÓS INFORMADO

Eu ___________________________________________ aceito participar da pesquisa

“A MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAMENTO: análise qualitativa

acerca da experiência de privação de liberdade do adolescente em conflito com a

lei”.

Entendi que posso dizer “sim” e participar, mas que, a qualquer momento, posso

dizer “não” e desistir.

A pesquisadora tirou as minhas dúvidas e foi autorizada pelo DEGASE.

Recebi uma cópia deste termo de consentimento. Li e concordo em participar da

pesquisa.

Rio de Janeiro, ____de ______________ 2019.

______________________________________

___

Assinatura do adolescente

______________________________________

___

Assinatura da pesquisadora

(CECILIA ROXO BRUNO)

110

Anexo IV: Tabela 2

Tabela 2: Divisão dos alojamentos dentro da Unidade

Alojamento Descrição

Módulo 1 Alojamentos localizados no segundo andar do prédio principal,

destinado à “maioria” dos adolescentes, que corresponde à fação 1.

Módulo 2 O Módulo 2 consiste num espaço menor, de um andar, construído em

2012 segundo as normas do SINASE. Neste espaço estão os

alojamentos destinados à “minoria” dos adolescentes, que pertence às

fações 2 e 3 ou que reside em territórios dominados pelas milícias e

não possuem identificação com nenhuma fação. Além disso, há, neste

mesmo espaço, um alojamento destinado àqueles cujos atos

infracionais não são aceites pelas fações criminosas (via de regra

estupros, homicídios moralmente reprováveis, segundo as regras das

fações ou, ainda, aqueles adolescentes que, em função de alguma

desavença, estão jurados de morte pela fação da qual faziam parte).

Módulo

sem fação

Alojamento “sem fação”, destinado aos adolescentes que possuem bom

comportamento e manifestam interesse em abandonar o convívio com

a respetiva fação criminosa. No Módulo sem fação os adolescentes não

permanecem trancados dentro dos alojamentos, podem transitar pelos

corredores e comer à mesa num refeitório. Além disso, a maioria das

atividades socioeducativas (piscina, futebol, manutenção da horta,

assistir filme, etc.) é priorizada aos internos deste alojamento.

111

Anexo V: Tabela 3

Tabela 3: Categorias

A: Conhecendo o

adolescente

B: Experiência de

internamento

C: Experiência

delinquencial

D: Objetivos

futuros

Perspetiva sobre o

lugar onde vivia

Quotidiano de

internamento

Motivações Continuidade na

prática

delinquencial

Relação com a

família

Atividades

socioeducativas

realizadas durante o

internamento

Quotidiano na

atividade

delinquencial

Aproveitamento do

internamento como

aparato de

ressocialização

Relação com os

amigos

Convívio entre os

adolescentes

Experiência com a

polícia e

expectativa de

punição

Futuro Almejado

Relação com a

escola

Relação com a

escola e frequência

escolar durante o

internamento

Balanço da

experiência

delinquencial

Relação com os

agentes

socioeducativos

112

Anexo VI: Tabela 4

Tabela 4: Categorias relativas ao Tema A

Categoria Descrição

Perspetiva sobre o lugar onde vivia Opinião do adolescente sobre o lugar

onde vivia, o que gostava, o que

costumava fazer e como era viver na

referida localidade.

Relação com a família Percepções e sentimentos em torno da

relação com a família.

Relação com os amigos Perspetiva do adolescente sobre amizade,

sobre ter amigos e como era o quotidiano

com os amigos, o que em alguns casos

está relacionado com a atividade prática

delinquencial.

Relação com a escola Perspetiva do adolescente sobre a escola

e, no caso de abandono escolar, os

motivos que levaram o adolescente a

deixar de frequentar a escola.

113

Anexo VII: Tabela 5

Tabela 5: Categorias relativas ao Tema B

Categoria Descrição

Quotidiano de internamento Dia a dia no internamento, como costuma

ser a rotina do adolescente, o que o

adolescente faz desde a hora que acorda

até a hora de dormir.

Atividades socioeducativas realizadas

durante o internamento

Descrição das atividades socioeducativas

realizadas pelo adolescente, que não a

escola. Isto inclui os cursos

profissionalizantes, cursos educativos e

as atividades recreativas, tais como, ida à

piscina, à quadra de futebol, à horta, à

sala de ping-pong e matraquilhos, às

aulas de artesanato, sessões de filmes,

etc. Também se verifica com que

frequência os adolescentes participam

destas atividades, considerando-se que, a

depender do alojamento, do

comportamento do próprio adolescente,

da disponibilidade dos funcionários e da

logística da instituição, algumas

atividades são oferecidas apenas a alguns

internos.

Convívio entre os adolescentes Relação entre os adolescentes dentro da

unidade, considerando-se a divisão dos

alojamentos, conforme a fação criminosa

e as regras destas fações, que subsistem

dentro da Unidade e permeiam a

interação entre os adolescentes.

114

Relação com a escola e frequência

escolar durante o internamento

Perspetiva do adolescente sobre o

aproveitamento da escola no

internamento, sobre as aulas e o

aprendizado, bem como o

comparecimento ou não do adolescente

às aulas.

Relação com os agentes socioeducativos Relação entre os adolescentes e os

agentes socioeducativos (funcionários),

responsáveis pela gestão e segurança da

unidade.

115

Anexo VIII: Tabela 6

Tabela 6: Categorias relativas ao Tema C

Categoria Descrição

Motivações Percepção do adolescente acerca do que o

levou a iniciar as práticas delinquenciais.

Quotidiano na atividade delinquencial Dia a dia na prática delinquencial e

funções a serem desempenhadas pelo

adolescente no âmbito das fações.

Experiência com a polícia e expectativa

de punição

Experiência do adolescente nas

abordagens e nas apreensões policiais,

bem como o sentimento quanto à

possibilidade de aprisionamento.

Balanço da experiência delinquencial Sentimento do adolescente sobre a sua

experiência de delinquência. Prejuízos e

benefícios percebidos pelo adolescente

nesta experiência e como se vê o

adolescente após a experiência

delinquencial.

116

Anexo IX: Tabela 7

Tabela 7: Categorias relativas ao Tema D

Categoria Descrição

Continuidade na prática delinquencial Perspetiva do adolescente sobre a

possibilidade de retorno às práticas

delinquenciais após o internamento.

Aproveitamento do internamento como

aparato de ressocialização

Opinião do adolescente sobre o

contributo da experiência de

internamento na viabilização de novos

percursos de vida, principalmente no que

diz respeito ao estudo e ao trabalho.

Futuro almejado Objetivos de vida do adolescente, sonhos

e planeamento do futuro.

117

Anexo X: Tabela 8

Tabela 8: Participação dos entrevistados nos cursos profissionalizantes e

educativos

Entrevistados Tempo de

internamento

Cursos

profissionalizantes

Cursos educativos

E1 1 ano e 4 meses Não Sim. 1 vez

E2 2 anos e 2 meses Sim. Mais de 3 cursos Sim. 3 vezes

E3 1 mês Sim. 1 curso Não

E4 1 ano e 9 meses Sim. 2 cursos Sim. 1 vez

E5 8 meses Sim. 1 curso Não

E6 2 anos Sim. 1 curso Não

E7 2 meses e 12 dias Não Não

E8 23 dias Não Não

118

Anexo XI: Tabela 9

Tabela 9: Frequência escolar dos entrevistados no internamento, ao tempo das

entrevistas

Entrevistados Frequenta a escola no internamento?

E1 Sim, regularmente.

E2 Sim, a depender da iniciativa dos agentes socioeducativos.

E3 Não.

E4 Sim, a depender da iniciativa dos agentes socioeducativos.

E5 Sim, a não ser na aula de educação física (em razão de haver internos

de outras fações nesta aula).

E6 Não.

E7 Sim, regularmente.

E8 Sim, regularmente.