A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS Diego Faust Ramos A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado como parte dos requisitos para obtenção do diploma de Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina. Rafael José de Menezes Bastos Florianópolis, março de 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Diego Faust Ramos

A Mensuração de Tempo dos Índios

Kamaiurá

Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) apresentado como parte dos requisitos para

obtenção do diploma de Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de

Santa Catarina.

Rafael José de Menezes Bastos

Florianópolis, março de 2007

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Nota introdutória

Para chegar até a Terra Indígena do Xingu o “caminho” comumente utilizado

começa na cidade de Canarana1, MT. A cidade, no que se refere aos indígenas, é

utilizada de várias maneiras. Ela pode servir de entreposto para uma viagem mais longa,

a Brasília ou Goiânia, por exemplo; serve também de posto de abastecimento dos mais

variados bens da sociedade ocidental utilizados na terra indígena; para divertimento ou

passeio, quando existe algum dinheiro sobrando para isso2; inúmeras vezes para

atendimento médico que não pode ser realizado no Posto de Saúde do Posto Indígena

Leonardo Villas Bôas; entre outras necessidades menos freqüentes.

Figura 1: mapa da região do Alto Xingu3

1 A polarização de Canarana acontece mesmo estando boa parte do alto-Xingu dentro da área do município de Gaúcha do Norte. Durante o tempo em que estive na área apenas duas vezes houve ocasiões de relação direta com este município: uma vez os kamaiurá foram até a cidade participar de um campeonato de futebol organizado pela prefeitura e outra uma funcionária da Secretária de Educação veio até a aldeia para continuar desenvolvendo o projeto da escola da aldeia, mantida pelo município. 2 Principalmente os mais jovens, conforme tese de mestrado que pude ler na aldeia Kamaiurá, intitulada “Os jovens KamaiuráKamaiurá no séc. XXI”, de autoria de Vaneska Taciana Vitti.3 A seta indica aproximadamente onde está a aldeia kamaiurá na qual residi. Mapa retirado de http://www.socioambiental.org em 09 de Março de 2007.

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Para se sair de Canarana e entrar na Terra Indígena existem duas possibilidades.

A mais utilizada, sempre que não é necessária a locomoção rápida ou que não se trate da

viagem de alguma autoridade, é através de estradas até a beira do rio Culuene e depois

por meio de barco motorizado (voadeira). Quando é necessária a locomoção de algum

paciente, autoridade ou pessoa que possa pagar R$1.500,00, um avião monomotor é

usado. Eu optei pela forma mais usual e barata.

No entanto, antes de poder viajar eu precisava encontrar alguém que estivesse

indo para a área indígena, tendo em vista a indisponibilidade de barco e a minha

inabilidade para pilotar o mesmo. Para minha sorte cheguei à cidade no sábado dia 30

de Setembro de 2006, antes do dia do primeiro turno das eleições daquele ano. A

quantidade de índios que estava na cidade para votar foi impressionante para mim que

não sabia que eles votavam com tanto afinco4. No hotel em que estava hospedado, por

exemplo, eu era o único hóspede branco em um hotel lotado. Logo que fui ao “Centro

de Cultura”5, também lotado de hóspedes, consegui, através da administradora do

Centro, uma carona com um branco que se chama Mané e que mora na Terra Indígena

há mais de 20 anos, nas proximidades da extinta Base do Jacaré. Para viajarmos

tínhamos que encontrar o Chico, filho mais novo de Takumã, pajé da aldeia Kamaiurá,

que estava na cidade, pois precisava vender sua máquina fotográfica digital e queria

voltar para a aldeia também. Depois de todos contatados, conseguimos deixar tudo

pronto para fazer a viagem na terça-feira, 3 de Outubro. Saímos de Canarana no dia

planejado, com algumas horas de atraso. Fizemos a viagem da cidade até a beira do rio

em 3 horas, chegando lá às 17 horas. Logo que carregamos o barco, partimos pelo

Culuene em direção ao ribeirão Tuatuari. Chegamos ao Posto Indígena Leonardo, à

beira do ribeirão, às 2 horas da madrugada de uma noite de lua cheia.

Por causa de nosso atraso, nossa carona (o trator dos Kamaiurá) já tinha ido

embora e pernoitamos sob as mangueiras do Posto Leonardo. Ao acordar, ás 06h30min,

Chico já havia preparado o café na fogueira acesa na noite anterior. Eu, sentado na rede

tomando café, olhando, da elevação na qual se encontra o Posto Leonardo, o horizonte,

4 Conversei com alguns índios sobre o ato de votar, na cidade e na aldeia, considerando que também foi colocada uma urna no Posto Indígena Leonardo tanto no primeiro quanto no segundo turno. A maioria me disse que votar era importante porque eles podiam escolher quem achavam melhor e quem ia ajudar mais a eles, ou quem teria mais possibilidade de lhes dar mais, porém quase ninguém sabia o nome do candidato em que ia votar. Exceção de alguns indivíduos em relação ao voto a governador para o estado do MT, Blairo Maggi, reeleito no primeiro turno. Todos votavam com uma “cola”, muitas vezes uma tabela de computador impressa, xerocada e preenchida a mão. Ao serem questionados sobre em quem iriam votar entregavam-me esta “cola”, que não continha nem o nome do candidato.5 É um centro de apoio mantido pela FUNAI que pode ser utilizado como dormitório, possui banheiros, uma estação de rádio amador para comunicação com a área, cozinha, escritório, etc.

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que tinha imediatamente sobre si o sol, acabado de nascer, pensei que poderia começar a

minha busca pelo “sistema de mensuração de tempo dos índios kamaiurá”. Nesse

ímpeto perguntei a Chico6 como se falava, em Kamaiurá, a hora em que estávamos

naquele momento. Ele me respondeu: iawyeté, “quando o sol já apareceu”7.

Introdução

Meu projeto de pesquisa para este Trabalho de Conclusão de Curso era

denominado “Um estudo antropológico sobre o sistema de mensuração de tempo dos

índios Kamaiurá”. Como acontece sempre, principalmente se não temos a oportunidade

de realizar um estudo pré-campo para a elaboração do projeto, quando nos deparamos

com a realidade que escolhemos estudar acabamos por perceber que mesmo não

querendo, mesmo fazendo um esforço para que isso não aconteça, pré-concebemos

diversos aspectos da realidade que queremos conhecer. Meu objetivo era, como se

depreende do título de meu projeto, destrinchar o sistema de mensuração de tempo dos

índios kamaiurá. Desenvolvi este TCC durante o tempo que fui bolsista do projeto

integrado de pesquisa (CNPq) coordenado pelo meu orientador, Rafael José de Menezes

Bastos, denominado "Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe"8.

Escolhi o verbo “mensurar” para caracterizar a relação dos kamaiurá com seu

tempo ao invés de “medir” por algumas razões, a maioria delas de ordem semântica

mesmo. Razões estas que, posteriormente, vieram a se mostrar contundentes nas minhas

observações entre os Kamaiurá. O primeiro ponto que abordo relaciona-se às nuances

de significado que cada palavra tem. Pesquisando o dicionário (Houais, 2001),

6 Chico foi um de meus principais informantes, juntamente com seu irmão mais velho, Kotok, e seu pai, Takumã. Takumã é o pajé da aldeia, e é ainda reconhecido como cacique, cargo ocupado, na prática, por Kotok. Takumã tem mais de 85 anos de idade, Kotok está por volta dos 40 e Chico tem 26 anos. Como residi na casa de Kotok tive também muito contato com todos os seus filhos. É importante salientar que com Kotok sendo cacique da aldeia eu tinha possibilidades de ser inserido rapidamente em vários meios, fato que ocorreu diversas vezes tanto na aldeia quanto no Posto Leonardo. 7 Escreverei em Kamaiurá do modo como é feito na escola da aldeia. O estudo que possibilitou a construção dessa grafia foi coordenado pela Profa. Luci Seki (que escreveu também uma gramática da língua Kamaiurá (2000)), e subsidiado pelo ISA. As glosas que apresentarei entre aspas após as palavras em Kamaiurá, sublinhadas, foram feitas pelos índios. No caso de alguma exceção está será frisada.8 É a este projeto integrado que se vincula a minha bolsa de IC. Em relação ao financiamento da minha pesquisa, ela faz parte de outro projeto igualmente coordenado por meu orientador, a saber, "Estudos Antropológicos e Etnológicos no Brasil e na Argentina", relativo ao "Edital CNPq 19/2004 - Universal".

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encontramos no verbete medir, diversos significados possíveis, todos relacionados com

o aspecto de precisão e avaliação que carrega a palavra. Alguns exemplos: determinar,

avaliar por meio de utensílio de medida; avaliar aproximadamente, calcular;

determinar, julgar a importância de (algo) comparando com outra coisa; etc. Ao

contrário, ao olharmos o verbete “mensurar”, encontramos apenas dois significados

possíveis, a saber: i). determinar as dimensões de, ou ter por medida; ii) dar ritmo lento

e cadenciado a, compassar. As nuanças às quais me referi podem se mostrar suaves

para nós, mas são bastante contundentes para quem se interessa pelo estudo do tempo na

sociedade Kamaiurá. No primeiro significado de medir encontramos a frase “por meio

de utensílio de medida”. Existe diferença entre um utensílio utilizado para medir alguma

coisa e um “utensílio de medida”. Este pressupõe a existência de um padrão utilizado

universalmente9 para medir aquilo a que se propõe, o que não ocorre com o primeiro

caso. Podemos utilizar “um instrumento para medir alguma coisa”, sem que seja preciso

trazer à baila um padrão de medição. Podemos utilizar uma caneta, por exemplo, para

saber o tamanho de um caderno, ou um pedaço de madeira para saber o tamanho de um

terreno. Quando penso sobre esse segundo jeito de “medir”, de mensurar, me ocorre

que o que estamos fazendo, e fazemos isso sem perceber em nosso cotidiano, é

“determinar as dimensões de, ou ter por medida” alguma coisa a partir da comparação

desta com alguma outra coisa.

Para meu tema de estudo o segundo significado da palavra – mensurar - - é mais

interessante e suscita maiores reflexões. Cadenciar, compassar. Não uma ação que visa

imprimir algum movimento ou ritmo a alguma coisa, mas sim como um modo como

identificamos e organizamos os ciclos que nossa cultura nos faz perceber. Na sociedade

ocidental, pelo seu modo de organização, utilizamos rotineiramente o relógio para medir

o tempo, a agenda para não o perder, a internet, o carro, o telefone, para não sermos por

ele atropelados. O sistema de segundos, minutos, horas, dias, semanas, etc., é bastante

próprio do ocidente e só funciona da maneira como o faz por causa da sua grande

capacidade tecnológica. Todos estes instrumentos nos habilitam a ter uma relação

exclusiva com o tempo. Os kamaiurá, por só muito recentemente terem tido contato

com alguns desses instrumentos para medir o tempo (ocidental)10, se relacionam com o

tempo (kamaiurá) de uma forma essencialmente diferente. As referências que utilizam 9 Universalmente no sentido de que ao nos referirmos ao peso, utilizamos quilos, gramas, etc.; à energia, utilizamos caloria, joule, etc.; à distância, metros, kilômetros, etc., e assim por diante. 10 Ressalto este aspecto do contato com os instrumentos ocidentais de medição do tempo pois, como veremos no decorrer do texto, estes acabam por exercer influência sobre os kamaiurá, principalmente as gerações mais novas.

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como base para isto são primordialmente aquelas que estão à sua volta. A posição do

sol, as estrelas, a lua, as cigarras, besouros e mais uma infinidade de acontecimentos.

Para entendermos melhor as diferenças a que estão sujeitos os ocidentais e os

Kamaiurá no que se refere à forma com que eles se relacionam com o tempo, farei uma

breve exposição sobre o sistema de medida ocidental e como algumas definições foram

se alterando com o tempo11. É importante destacar que ainda hoje a sociedade ocidental

utiliza diversos padrões de medidas para uma mesma grandeza. Citando como exemplo

apenas alguns referentes à medição de distâncias, temos a milha, a jarda, o quilômetro, o

pé, etc. A primeira tentativa de universalização dos padrões de medida12 aconteceu na

França, no ano de 1799. O sistema ali criado está em pleno uso nos nossos dias

paralelamente ao uso de outros mais antigos e regionais em todos os continentes. Esse

sistema foi chamado de sistema métrico decimal, sua principal “vantagem” é a de

estabelecer uma relação clara e simples entre todas as unidades de medidas das diversas

grandezas. A referência inicial do sistema foi a medida de comprimento chamada metro,

inspirada na braça inglesa, que correspondia ao comprimento que alcança as mãos de

um homem com os seus dois braços abertos, mais ou menos 1,8 metros, e bastante

adequada para medir distâncias de deslocamentos humanos sobre a superfície da terra.

A partir dessa medida chegou-se, por derivação, a todas as outras, tais como as do peso

por exemplo. Explicando, 1kg, a partir deste sistema, é quanto pesa a quantidade de

água que, à temperatura de 4 graus centígrados, pode ser armazenada em um recipiente

de 10 centímetros cúbicos. Dez centímetros, por sua vez, significam a décima parte de

um metro. E o que significa um metro? Na época em que foi criado, o metro era

definido como a décima milionésima parte da quarta parte do comprimento do

meridiano que passa sobre Paris. Mais tarde, no ano de 1983, por ocasião da 17ª

Conferência Geral de Pesos e Medidas, após o advento de novas tecnologias, o metro

foi definido como a distância percorrida pela luz em certo intervalo de tempo.

Os sistemas de medida ocidentais seguem todos o mesmo padrão, identificam

uma unidade básica a partir da qual, através de sobreposições e divisões, se é possível

chegar a qualquer outra unidade do sistema. Todo o desafio dos cientistas que se

debateram com as questões dos sistemas de medida era o de criar essa unidade básica

11 Para esta exposição utilizei como fonte Landes (1983), Eves (2004), e sites de institutos que estão listados na bibliografia deste trabalho.12 É preciso deixar claro que o que chamo de “primeira tentativa” é já resultado de um processo no qual estão envolvidos diversos fatores. Para citar alguns: o desenvolvimento dos estado-nações e a necessidade da aplicação “imparcial” de impostos, leis, etc.; o desenvolvimento do capitalismo e a criação da jornada de trabalho; etc.

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que permitiria estabelecer a rede de relações entre as diversas unidades, de modo que o

resultado de uma medição pudesse vir a ser expresso em qualquer uma das medidas do

sistema. Isso é o que significa padronizar as medidas. Para diversas dessas questões,

apenas a tecnologia ofereceu respostas satisfatórias. Algumas vezes, como percebemos

no caso do metro, foi necessário que antes se criassem padrões que por sua vez

serviriam como novos padrões para outras medidas. Afinal, dizer que um metro é a

distância percorrida pela luz em certo intervalo de tempo, faz com que a nossa medida

de distância exista apenas a partir de nosso sistema de medida de tempo.

É importante salientar que o tempo, aquele sentido pelos sujeitos, construído

socialmente, não se define a partir do modo como medimos esse tempo. No entanto,

esse modo singular de medir o tempo criado pela sociedade ocidental, me refiro tanto ao

próprio sistema de medida quanto aos aparatos criados para medir o tempo,

possibilitaram13 que a maneira como os ocidentais se relacionam com o tempo

assumisse características bastante peculiares. No livro “Revolution in Time, clocks and

the making of the modern world” (LANDES, 1983)14 o autor destaca que o

desenvolvimento do processo de “individualização do tempo” está muito imbricado com

o desenvolvimento dos relógios. Vale a pena desenvolver brevemente está idéia.

A pergunta inicial, da qual parte o autor para abordar este tema, diz respeito à

necessidade da criação do relógio. Antes, é necessário responder à pergunta: “a

necessidade de medir o tempo criou o relógio ou a possibilidade de medir o tempo criou

a necessidade?”. Sem argumentar porque, o autor acredita que a necessidade foi a força

motriz do processo. Essa necessidade, segundo ele, tem relação com a religião católica,

principalmente com o seu braço romano. No século III, aproximadamente, a igreja

católica como instituição ainda não existia como instituição, era apenas uma religião

nascendo e ainda em processo de diferenciação em relação ao judaísmo. A necessidade,

segundo Landes (1983), nasceu por causa dos horários em que os fiéis deveriam praticar

suas preces. Tanto no judaísmo quanto no islamismo não se tem especificado um

13 Utilizo a palavra possibilitaram porque outras sociedades tiveram contato com o sistema ocidental de medir o tempo e seus aparatos no momento em que eles estavam sendo criados na Europa e mesmo assim apenas passaram a utilizar o relógio e a conceber o tempo como os ocidentais após a expansão globalizante no planeta. Os Chineses, por exemplo, que já haviam construído aparatos que mediam o tempo 5 ou 6 séculos antes dos europeus, mas que tinham, na verdade, como objetivo principal, representar os movimentos dos astros, ao entrarem em contato com os relógios feitos na Europa ficaram maravilhados, porém o consideraram mais como um brinquedo, algo sem valor comparado a complexidade de seus próprios aparatos para representar e prever os movimentos astrais (LANDES, 1983)..14 LANDES, David S. Revolution in Time: Clocks and the making of the modern world.Inglaterra, 1983.Harvard University Press.

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horário para a realização das preces diárias. Têm-se que rezar tantas vezes por dia, cada

uma dessas vezes em certo intervalo (de manhã, à tarde, à noite, por exemplo) ou

mesmo em intervalos mais curtos (logo após o nascer do sol, de manhã, logo após o

meio-dia, durante a tarde, logo após o por do sol, à noite). De qualquer forma, não se

define um ponto nesses intervalos onde as preces devam ser proferidas. É apenas algum

tempo após o surgimento da religião católica, que são definidos os horários para os

cultos.

Nesse momento ainda não podemos falar em “individualização do tempo”.

Assim como no caso chinês, onde os “astrônomos” através do poder e conhecimento

concedidos a eles pelo imperador, com suas observações e após grandes debates,

definiam o ritmo cerimonial que era responsável, como em diversos casos relatados na

antropologia recente, pelos marcos que possibilitavam a estruturação de um calendário.

Aqui os horários em que os cultos deveriam acontecer (não mais intervalos) ainda não

eram marcados pelo cuco na parede, mas sim pelo badalar dos sinos da igreja. Esse

processo de individualização do tempo acentuou-se quando da ascensão das igrejas

protestantes. Essa relação se assenta em algumas das idéias de dois clássicos da

literatura sociológica. Em ”As conseqüências da modernidade” Giddens (1991)15 coloca

como uma das características do surgimento da modernidade, o surgimento da venda da

“força de trabalho” e concomitantemente, da jornada de trabalho. Em “A ética

protestante e o espírito do capitalismo”, Weber relaciona magistralmente a ideologia das

religiões protestantes e as características básicas do capitalismo, entre elas a venda da

força de trabalho. Talvez as relações entre as argumentações das duas obras já se “auto-

expliquem”, tendo em vista que uma é o espelho da outra e é somente com o advento da

modernidade que a “individualização do tempo” se concretiza. De qualquer forma um

resumo será didático.

Lembrando de volta as idéias de Landes (1983), quando este afirma ter sido a

igreja católica a primeira a criar a necessidade para a “medição do tempo” devido aos

horários dos cultos. Acrescentando ainda as religiões protestantes, que se diferenciavam

da católica apostólica romana, entre outras coisas, pela individualização das preces por

causa da não necessidade de um mediador entre os sujeitos e “Deus” e da relação desta

com a ascensão do capitalismo. , Cconclui-se, no que diz respeito ao meu estudo, que

estes fatos acarretam uma mudança de marcos temporais instituídos antes

15 GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNEPS, 1991.

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exteriormente, e que agora o são internamente, pelo próprio sujeito16. O processo de

“individualização do tempo” ao qual Landes(ibid.) se refere, foi brevemente explanado

aqui, com algumas comparações feitas por mim.

O fato de a relação dos kamaiurá com o tempo ser baseada nas referências

anteriormente citadas introduz certas características nessa relação, que se estendem ao

modo como os kamaiurá pensam e se referem sobre o tempo. O calendário dos

kamaiurá talvez seja um dos melhores exemplos de como uma relação com o tempo

baseada em certas referências produz reflexos na organização e na expressão do sentido

da relação. Os kamaiurá, não porque não têm planos e compromissos, mas porque

apenas, e tão somente, o fazem diferente dos ocidentais, sentem o tempo passar a cada

momento em que este se faz presente. Sabem que está na hora quando a hora chega,

quando ela se anuncia. O que isto significa, apenas no final deste trabalho pretendo ter

esclarecido.

Os meses, dias, anos, minutos e segundos, são todos termos de um sistema

baseado em certas referências que, de certa forma17, só podem ser sensíveis através de

instrumentos muito sofisticados, com os quais apenas pouquíssimos indivíduos têm

contato. Esse mesmo sistema, levando em consideração seu aspecto teórico/estrutural,

foi objeto de inúmeras discussões filosóficas, de inúmeros trabalhos científicos, em

todas as áreas existentes da Ciência. Foi sendo lapidado como sistema, e ainda o é, para

ser “vivido” pelos indivíduos nos seus dia-a-dia. No entanto, no dia-a-dia todas as

discussões filosóficas ficam para trás. Os trabalhos e teorizações bases do sistema não

existem além daquilo que ele nos mostra obviamente, as horas. As nossas referências

para “sentir o tempo” não são as referências nas quais o sistema está baseado, são sim

os instrumentos criados que têm exatamente por finalidade servir como referência (o

relógio). Esta possibilidade de “alienação” de nossas referências temporais é viável

porque temos outro ponto de apoio, um que não necessita de referências além daquela

sobre a qual está montada, o tique-taque. A criação dessa referência é fruto de uma

padronização que tem como conseqüência a criação de uma escala e de um sistema de

16 Se quisermos pensar em outra esfera, veremos que o marco antes também era inferido internamente, apesar da “camuflagem” com que se apresentava. Ao ouvir o sino da igreja sabia-se que era tal horário, mas importante mesmo era o sino da igreja importar, de ele ao soar mobilizar os fiéis. De qualquer forma, existe uma diferença entre quando se precisa estar sob vigília para se saber as horas e quando ela se anuncia pelos ares. 17 O segundo, por exemplo, é atualmente definido como “9.192.631.770 períodos de radiação” de um elétron, de certa camada, de um átomo de Césio 133. A duração dos anos, sendo a rotação da terra irregular, tem de ser corrigida sempre, e para isso são necessários instrumentos que apenas muito recentemente a cultura ocidental foi capaz de construir.

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medidas baseado no tique-taque, a unidade básica que multiplicada ou dividida dá conta

de se tornar tudo que precisamos para medir o nosso tempo no mundo.

Concluindo esta introdução, depois de discorrer sobre o termo “mensurar”, vejo

agora que, ao contrário de “medir o tempo”, de fato, o que os kamaiurá fazem é

“mensurar o tempo”. Se no decorrer do texto eu conseguir mostrar porque digo que os

kamaiurá mensuram o e como eles fazem isso, além de esclarecer quais são as

diferenças entre o sistema de mensuração de tempo kamaiurá e o sistema ocidental, os

objetivos deste trabalho estarão alcançados.

Os objetivos secundários de meu projeto de TCC foram: um estudo preliminar

da aritmética, da geometria e da língua Kamaiurá. Destes, apenas dois puderam ser

efetuados a contento, a saber, o da língua e o da aritmética Kamaiurá. O da geometria

kamaiurá não pôde ser levado a cabo por razões que serão explanadas posteriormente.

Não existem condições de se estudar como os kamaiurá mensuram o tempo sem antes,

ou durante, estudar sua língua. Os termos do sistema18 de mensuração de tempo

kamaiurá não são, ao contrário dos do ocidental, os mesmos do sistema aritmético

kamaiurá. De pouco serve saber contar em kamaiurá para saber mensurar o tempo em

kamaiurá. Cada termo do sistema de mensuração de tempo dos kamaiurá tem um

significado que não se refere ao fracionamento de um período em períodos menores. Ele

não se baseia na repetição de uma unidade (de tempo ou de qualquer outra dimensão),

operável através de somas, subtrações, multiplicações, divisões, etc.. Cada termo do

sistema kamaiurá tem um significado relacionado com algo de específico de

determinado período. Sem conhecer estes significados e os períodos em si, não

conhecemos como os kamaiurá pensam seu tempo.

A seguir apresento a “temática” de meu trabalho, introduzindo algumas

informações sobre o Alto Xingu e os kamaiurá – como chegaram na região, um pouco

de suas relações com seus vizinhos, etc. – também algo sobre a criação da Terra

Indígena do Xingu.. Este TCC está dividido em três partes: a primeira começa na “Nota

Introdutória” e se estende até a “Temática”; a segunda seria “A mensuração de tempo

kamaiurá” e “A aritmética kamaiurá”; a terceira sendo minhas “Considerações finais”.

18 Contrariando o parágrafo anterior eu continuo a falar em sistema de mensuração de tempo kamaiurá. Faço isso, e continuarei fazendo-o, por duas razões. A primeira é que, já tendo dito que o sistema kamaiurá de mensuração do tempo não é propriamente um sistema, ainda falta que eu explique as razões de tal discrepância, de modo que continuarei falando em sistema até que as razões estejam claras. Segundo que me falta um termo melhor que caracterize tudo aquilo a que se refere ao universo da relação dos kamaiurá com o seu tempo.

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Temática – Os Kamaiurá e o Alto Xingu

O termo Alto Xingu é utilizado para referir-se à região que tem os seguintes

marcos geográficos: ao norte a cachoeira Von Martius, ao sul o planalto Matogrossense,

a oeste a serra Formosa e a leste a serra do Roncador (Seki, 2000). Na Terra Indígena do

Xingu, área atualmente com 2.642.003 hectares, vivem 14 etnias. Dez delas formam

aquilo que é conhecido como a sociedade xinguana: wauja, mehináco e yawalapití do

tronco aruak, kalapálo, kuikúro, matipú e nahukwá (karib), kamaiurá e aweti (tupi)

trumai, de língua isolada .Todos estes grupos se situam na porção sul do parque,

restando a porção norte para os ikpeng (karib); suyá (jê); kaiabi (tupi-guarani); e os

yudja, da família juruna, tronco tupi.

Pelas características geográficas da área, o acesso à mesma, durante os primeiros

séculos da colonização portuguesa no Brasil, por habitantes não nativos do novo

continente, deu-se de maneira esporádica. Esse isolamento relativo possibilitou que as

etnias ali residentes interagissem, até o séc. XVIII, sem que brancos mediassem suas

relações.

Foi por essa razão (o “isolamento” da área em relação aos brancos que

transitavam pelo continente), no que concerne aos pesquisadores, que décadas mais

tarde o interesse pela área foi tão grande. Quando Steinen visita pela primeira vez o Alto

Xingu, em 1884, entra em contato com 9 etnias, espalhadas por um número bem maior

de aldeias, ouve também relatos da existência de outras tantas etnias. Isto não é

surpreendente, pois o continente era densamente povoado, mesmo na época de Steinen.

O que chama a atenção do naturalista é o fato de todas essas etnias apresentarem traços

culturais semelhantes. Relata também ter encontrado, por toda as aldeias em que

passava, visitantes de uma ou mais etnias.

Esta impressão de Steinen, a de que existia ali uma cultura homogênea, da qual

as tribos que viviam nas cabeceiras dos afluentes do Xingu participavam, foi não apenas

corroborada mas muitas vezes superestimada. Dole, no artigo “Retrospectiva da história

comparativa das culturas do Alto Xingu: um esboço das origens culturais Alto

Xinguanas”, que se encontra no livro Os Povos do Alto (Francheto e Heckenberger

(org.), 2001), , nos dá uma lista dos mais eminentes antropólogos que escreveram sobre

a área tomando “características comuns como definidores de uma cultura única e

relativamente homogênea” (Dole, 2001. pp. 65). O mais eminente deles sendo,

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provavelmente, Galvão (Galvão, 1979), responsável pelos primeiros estudos que irão

caracterizar o Alto Xingu como área cultural (a área do uluri).

“Uma sociedade, para ter existência, precisa de dispor de um ou mais sistemas

de comunicação que tornem viável o estabelecimento de relações entre seus membros”

(Menezes Bastos, 1978. pp. 30). Como já foi dito, as tribos xinguanas falam, cada uma,

sua própria língua. Inexiste na área língua franca. Tampouco existe ali multilingüismo

aberto19, isto é, diversos indivíduos entendem outras línguas que não a sua, mas não as

utilizam. A comunicação, portanto, entre os membros da sociedade xinguana, se dá de

maneira não verbal, ao menos não da maneira como nos acostumamos a lidar com ela.

Três são os canais de comunicação existentes entre os xinguanos. Um primeiro é

a troca matrimonial. O casamento de pessoas de tribos diferentes tanto cria alianças

entre essas tribos, como entre seus grupos/facções. As implicações dessas alianças

podendo ser tanto inter quanto intratribais. Aqui podemos também encontrar uma das

razões para um multilingüismo incipiente.

Na sociedade xinguana, a alteridade tem um papel tão importante quanto as

semelhanças. Os antropólogos e a sociedade ocidental em geral, têm-se preocupado

tanto com as semelhanças dos grupos formadores de tal sociedade exatamente pelo fato

de não haver uma língua que possibilite a comunicação “plena” (mais um de nossos

preconceitos) entre seus membros. Porém, para os xinguanos, aquilo que está em jogo

são as especificidades, estando sua língua, única, no ponto fulcral dessa diferenciação.

Por isso me referi ao multilingüismo ali existente como incipiente e não-aberto.

Diversos indivíduos entendem outras línguas. Os filhos de um casal cujos pais são um

de cada tribo falarão a língua da aldeia onde o casal for morar. Porém, o indivíduo que

se mudou de aldeia, poderá conversar com seus filhos em sua língua materna, estes

podendo lhe responder na mesma (Franchetto, 2001). Esta é apenas uma das razões pela

qual encontramos indivíduos que entendem duas ou mais línguas xinguanas, porém

falam apenas a sua.

O segundo canal de comunicação é o comercial. Aqui, duas são as possibilidades

de troca, uma envolvendo várias pessoas e sendo cerimonializada, outra que acontece

19 Com “multilingüismo aberto” me refiro ao fato de que no Alto Xingu a língua falada por cada etnia é considerada característica essencial sua. Um indivíduo que não fale perfeitamente uma língua, nunca a utiliza, mesmo sendo fluente no seu entendimento. Outro exemplo da grande importância dada à língua nos é dado em Menezes Bastos (1989, p. 526). Ele, querendo saber por que esse indivíduo fala tão diferente daquele outro, recebe a seguinte resposta: “aquele homem (evitando-lhe o nome), língua dele não é kamaiurá não. Quer dizer, é kamaiurá mas não é não, assim, de verdade. Ele é neto de Arupaci, outro tribo, antigo, que vem matar nós. Língua dele, assim, não é bom não”.

12

Page 13: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

entre indivíduos e sem a mesma carga simbólica. Na primeira, os produtos trocados são

emblemáticos das tribos, tachos de cerâmica produzidos com maestria pelos wauja, são

trocados por redes, especialidade de outra tribo, por exemplo. Este tipo de troca era

muito mais importante no passado, antes de a área ser ”invadida” por uma imensa

quantidade de produtos ocidentais. O comércio individual envolve uma gama

variadíssima de produtos.

O terceiro e último canal de comunicação é o ritual. Existe na área um repertório

de ritos intertribais, sendo os mais estudados o Kwaryp e o Yawari. Citando Menezes

Bastos: “... o cerimonial, (é) não só o mais vigoroso atestado da identidade xinguana,

como, também, e relevantemente, a condição sine qua non da sua própria vigência...”

(1978. pp. 30). Adiante, terei oportunidades de me aprofundar neste tema e explicar, de

maneira breve, porque o ritual é esse espaço tão privilegiado na vida social xinguana.

Tratarei a história da sociedade xinguana focando na situação kamaiurá. Os

povos pró-kamaiurá (aqueles que vieram a formar o grupo que conhecemos hoje como

kamaiurá), falantes de língua tupi, com exceção talvez, dos aweti (Rodrigues, 1986)

começaram a chegar na área por volta do séc. XVIII (Menezes Bastos, 1989).

Migravam, a partir do norte, de duas macro-regiões diferentes, os interflúvios Araguaia-

Xingu e Tapajós-Xingu (ibid: 528), tendo cada qual suas razões para tanto. Os

migrantes da primeira região, tudo indica, tiveram seu deslocamento desencadeado

pelos “caraíbas” comedores de boi. Menezes Bastos relaciona este fato com a expansão

pecuária em Goiás (ibid: 530). Assim, ao contrário do que é normalmente referido, a

fuga dos pró-kamaiurá oriundos do interflúvio Araguaia-Xingu deu-se mais por desterro

que pelas expedições de escravização, caso da segunda macro-região de origem de

migração. Os pró-kamaiurá provenientes desta tiveram seu deslocamento ocasionado

por enfrentamentos diretos, tanto com outras etnias indígenas quanto com os “caraíbas”

escravizadores. Com outras etnias como os juruna e tonorý (os txikão ou ikpeng), a

disputa se dava em torno da terra, estes também fugindo dos “caraíbas”, responsáveis

por uma depopulação gigantesca.

Quando os pró-kamaiurá alcançaram a região do Alto Xingu, encontravam-se

extremamente fragilizados pela imensa depopulação, por esta razão sua estratégia se

embasava na política de alianças com os povos que encontraram na área. E que povos

eram estes? Como estavam organizados? Que relações mantinham entre si?

Escavações arqueológicas, e estudos sobre as migrações dos aruak apontam para

a chegada destes na área entre 800 e 900 d.C. (Heckenberger, 2001: p. 38). Estes

13

Page 14: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

primeiros povos apresentavam um padrão composto por três dimensões: sedentarismo,

hierarquia interna, integração regional. Esse padrão teria se perpetuado, mesmo que

sofrendo mudanças, dos tempos pré-históricos até hoje. Porém, o que era antes um

padrão referente a populações descendentes de um mesmo substrato cultural, tornou-se

o padrão de grupos inicialmente bastante distintos, que continuam sendo, mesmo após a

adoção deste padrão. Uma das mudanças no padrão de assentamento, coloca

Heckenberger (2001), ocorreu por volta de 1400. Então, quando, ainda, apenas grupos

aruak habitavam a área, pode-se observar o surgimento de enormes estruturas que

serviriam para a defesa contra os “índios bravos”. As estruturas mais eminentes eram

valetas que chegavam a medir 15m de largura, 2,5km de comprimento e até 3m de

altura. Também são documentados enormes aterros que aumentavam gradativamente

sua altura conforme fosse se aproximando do centro das praças das aldeias, bem como

enormes caminhos, verdadeiras estradas, que ligavam aldeias a outras aldeias, e também

a rios e roças.

A instalação dos primeiros grupos karib na área deu-se, mais ou menos, cem

anos após o aparecimento dessas grandes estruturas de defesa, ou seja, entre 1500 e

1600. Estes povos instalaram-se na porção oriental do Alto Xingu. A proximidade

destes com os povos aruak permite afirmar que existiam relações intensas entre estes

grupos, relações provavelmente, também por causa da proximidade, pacíficas. Em

meados do séc. XVIII estes grupos karib, mais uma vez fugindo de “índios bravos”,

possivelmente povos pró-kamaiurá que, segundo Menezes Bastos (1983, 1989),

chegavam à área na mesma época, e também segundo Heckenberger (2001, b), que

coloca a migração pró-kamaiurá rumo ao norte da área atravessando exatamente os

territórios do Complexo Oriental, deslocam-se rumo ao centro do Alto Xingu, caindo no

meio de território aruak, ou pelo menos o que era território aruak. É apenas após essa

migração que se documenta aldeias anulares, típicas do padrão de assentamento aruak,

ocupadas por karib.

A política dos tupi ao chegarem ao Alto Xingu, como já foi colocado, baseava-se

em alianças. Porém, ao contrário do que é entendido de início, e comumente colocado,

essa migração não foi, de maneira alguma, pacífica. As alianças firmadas eram alianças

de guerra. Elas serviam para proteção e retaliação. Foram dois os locais escolhidos

pelos pró-kamaiurá como ideais para o estabelecimento de suas aldeias no momento de

entrada na área. O sítio de nome Ipavu, local, atualmente, da aldeia kamaiurá de mesmo

nome, e o ribeirão Tuatuari. Estes territórios faziam parte dos domínios aruak, o

14

Page 15: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

primeiro relacionado aos wauja, o segundo aos yawalapití e mehináco. Já afirmei que

esse “processo de acomodação” (Menezes Bastos, 1994) dos pró-kamaiurá aconteceu de

maneira conflituosa. Existem alguns fatos que sustentam essa afirmação: o primeiro diz

respeito ao pavor dos aruak em relação aos pró-kamaiurá, principalmente os apùap, por

causa de seu poder xamânico, além de práticas como o canibalismo; o segundo é a

destruição de uma aldeia yawalapití (Paluchayupíti, atual residência dos mehináco), por

uma aliança dos pró-kamaiurá com os aweti.

Outros grupos com os quais os pró-kamaiurá travaram guerras são os suyá e os

juruna, estes também recém chegando à área. A relação dos suyá com os pró-kamaiurá

não pode ser entendida apenas bilateralmente. Há que se considerar tanto o papel dos

aruak (wauja e yawalapití), quanto dos aweti. Os primeiros tinham uma aliança com os

suyá, enquanto os segundos a tinham com os pró-kamaiurá. Mas as guerras não seguiam

apenas o eixo tupi-aruak/jê, tem-se indícios da destruição, por uma aliança dos pró-

kamaiurá com os txikão (karib), de uma aldeia arupaci, povo tupi. Ela aconteceu em

retaliação a um ataque destes aos txikão. Os sobreviventes passaram a residir com os

pró-kamaiurá.

Este estado de coisas, guerras com certas etnias, alianças com outras, faz parte, a

partir da divisão que faz Menezes Bastos (1994) da história dos povos pró-kamaiurá até

os kamaiurá de hoje em dia, da segunda fase da mesma história. A primeira se inicia no

início do processo de migração, quando estes começam a se locomover rumo às

cabeceiras dos rios, e termina quando chegam à área do Alto Xingu. A segunda, que

dura cerca de 200 anos, se inicia com o final da primeira e termina com o começo da

presença mais ostensiva do estado brasileiro ali. A terceira, que começa nas primeiras

décadas do século passado, compreende o início da presença do estado na área e vai até

a consolidação desta presença para os pró-kamaiurá, ou quem sabe já kamaiurá. É dessa

terceira fase que trato a seguir.

A terceira fase da história dos kamaiurá, e do Alto Xingu como um todo, é

marcada por um número enorme de epidemias. O número de habitantes da área é

reduzido de maneira drástica. No caso kamaiurá, a redução é da ordem de

aproximadamente 50%. Toda esta perda demográfica leva os pró-kamaiurá,20 das suas

quatro aldeias quando da segunda passagem de von den Steinen pela área, em 1887, a

20 Utilizo o termo pró-kamaiurá para referir-me aos kamaiurá de hoje, assim o faço pois é nesta fase, segundo Menezes Bastos (1994, pp. 248), que se inicia seu processo de xinguanização. É ai, como veremos adiante, que a identidade kamaiurá começa a ser construída como identidade kamaiurá, um povo xinguano.

15

Page 16: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

apenas uma. Além desta perda, os pró-kamaiurá sofrem por serem alvos de alianças dos

yawalapití21 com, principalmente, os kuikúro, mas também outros povos aruak, e dos

juruna com os suyá e txikão.

Todas essas guerras faziam parte de um processo de acomodação que abrangia

todos os povos da área. Tanto os aruak e karib, os mais antigos ali, quanto os jê e tupi,

além de outros, por força do contexto se encontraram em um território relativamente

pequeno. Quando os primeiros brancos, no começo do século, começaram a tornar mais

contínuas suas visitas ao Alto Xingu, definitivamente presenciaram esse processo, nessa

forma “hostil”, em pleno andamento. Acredito ser possível apontar um relaxamento das

relações a partir do momento em que as epidemias começam a devastar as populações.

Mas, de qualquer modo, é só algum tempo depois, década de 40, que a pax será uma

instituição.

Na situação catastrófica em que se encontravam os kamaiurá nesta terceira fase,

o movimento que eles começam a perpetrar vai claramente em direção ao branco, que

aos poucos começa a se apossar da área. O “karaíba”, o elemento inicial da fuga desses

índios para o Alto Xingu, é agora objeto de desejo. O medo dos kamaiurá em relação ao

homem branco também assume a faceta da admiração. Dizem eles que os “caraíbas” são

detentores de grandes tesouros, além de mestres insuperáveis na arte de transformar.

Para isso basta salientar que ao “karaíba” cabe, como é corrente nos mitos de origem

xinguanos, a espingarda, representando a força bruta de um lado, e a cachaça, a máquina

fotográfica e o gravador de outro, representando seu extraordinário poder. Poder esse

que mais notabilizou os kamaiurá perante a comunidade xinguana, mas que é inútil

perante as forças dos “caraíbas”. A estratégia então, dos kamaiurá para sobreviver e

“vencer” seu inimigo, é juntando-se a ele. Esse movimento de aproximação dos

kamaiurá com os brancos tem como objetivo acesso a bens, e talvez mais importante

que isto, o controle do uso destes produtos perante as outras comunidades indígenas da

área.

Em relação à xinguanização dos pró-kamaiurá, o mesmo pode ser dito. A

situação de extrema fragilidade, tanto deles quanto dos xinguanos como um todo, leva

os primeiros a assimilarem uma nova identificação. Uma identificação que os legitimem

no universo em que se encontravam, e ainda se encontram, embora talvez de maneira

mais branda. Um fato que, segundo Menezes Bastos (1994, pp. 248), foi de grande

21 Estes yawalapiti são aqueles que, após terem a aldeia destruída pelos pró-kamaiurá/aweti, se exilam com povos karib e aruak, os kuikúro sendo os que receberam o maior contingente (Menezes Bastos, 1994, pp. 244)

16

Page 17: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

importância para o desencadeamento desse processo de xinguanização, foi o assassinato

de Awayu´i, último dos grandes chefes guerreiros apùap, pelos suyá. Sua morte e a

desqualificação de seu primogênito fazem com que os kamaiurá passem a ser chefiados

por um “neto” de kuikúro. Cito Menezes Bastos: “É desta maneira que a bravura dos

“kamaiurá de verdade” – assim como sua dieta carnívora, entre tantos outros traços –

começa a ser agora um passado sob censura, desarquivável apenas através da licença

ritual” (ibid., pp. 248).

Relembrando, a terceira fase da história kamaiurá se inicia nas primeiras décadas

do século passado com o início das grandes epidemias e do movimento em procura dos

brancos. Ela termina, mesmo momento em que começa a quarta fase, quando os

kamaiurá solidificam suas relações com o homem branco, no início da década de 40.

Esses anos que decorrem desde o começo da aproximação kamaiurá aos

“caraíbas” até a solidificação desta relação são marcados não apenas pela busca dos

brancos pelos índios, mas também ao contrário, pela dos índios pelos brancos. Os

contextos que se apresentam nessa época, anos 1940, são, no âmbito internacional a 2ª

Guerra Mundial e, no nacional, a política estadonovista, sentida na área através da

“Marcha para o Oeste”. Ambos os cenários tinham a ver com a expansão do controle

estatal do território nacional, para fins de defesa ou comerciais (ibid, 1994). Não focarei

a problemática da formação do Parque no âmbito jurídico ou estatal. Estou interessado

apenas, no momento, em que de que forma esse projeto estatal vai se fazer sentir na

área, especialmente no caso dos kamaiurá.

Foi através da Expedição Roncador-Xingu, fundada em 6 de junho de 1943, que

os Villas Boas vão começar seus contatos com os índios do Alto-Xingu. Orlando,

Cláudio e Leonardo começam a trabalhar na ERX em Aragarças (GO), na época apenas

área de garimpo, transformada em cidade pela ERX. Seguindo os objetivos da ERX -

“desbravar” e “povoar” o Maciço Central, especialmente as áreas de cabeceira do Rio

Xingu -, os Villas Boas, assim que finda o estabelecimento da base de Aragarças,

rumaram na direção do Rio das Mortes, fundando a base de Xavantina. Aí, a ERX já

encontrava indígenas xinguanos.. É então que começa a comunicação entre os Villas

Boas e o Marechal Cândido Rondon.

Os kamaiurá foram o segundo povo com os quais os expedicionários

mantiveram contataram. O primeiro foi os kalapálo, no Culuene. No primeiro contato

com os kamaiurá, os índios levaram os “caraíbas” à sua aldeia, indicando, inclusive, o

local de uma antiga aldeia trumai como sítio para o estabelecimento de uma nova base

17

Page 18: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

de apoio. A primeira base fundada na região foi o Posto do Culuene, hoje nos limites sul

do Parque. A seguir, foi o Posto do Xingu, depois renomeado do Jacaré, muito próximo

à aldeia kamaiurá.

E quais são as conseqüências da presença dos Villas Boas? - A implementação

da pax xinguensis, ou seja, o congelamento do quadro bélico que descrevi na terceira

parte do resumo da história dos kamaiurá. Menezes Bastos (1994, pp.250) aponta quatro

características básicas do processo de implementação da pax:

1. “abastecimento contínuo de manufaturados, sempre escassos porém”

(ibid.);

2. contenção das epidemias;

3. filtragem rigorosa dos “caraíbas” que entram em contato com os índios;

4. “generalização legalizante da etiqueta da ‘xinguanidade’” (ibid.).

Algumas observações sobre este quadro. A primeira, pelo fato da escassez, nos

remete de imediato à consideração da importância que passa a ter o tipo de relação

estabelecida com a fonte dos recursos. No caso dos kamaiurá, vimos que estes tinham

relações amistosas com os Villas Bôas, estabelecidos no Posto do Jacaré, muito próximo

à sua aldeia. Dois fatos alteram esse estado de coisas. O primeiro é o restabelecimento

dos yawalapiti como grupo local, espalhados que estavam por diversas aldeias,

principalmente os kuikúro. O segundo, que na verdade são dois, é o fato de Lonardo ter

roubado a esposa de Tukamapì, chefe kamaiurá, e ter ameaçado de morte Matukã, filho

de Tukamapì. Após o restabelecimento dos yawalapiti, projeto dos Villas Bôas

primordial para a pax xinguensis22 e dos trágicos acontecimentos relatados

anteriormente, os Irmão saem do Jacaré e se mudam para o Tuatuari. É desse modo que

os yawalapiti alcançam uma situação privilegiada em relação às outras etnias no que

concerne o acesso aos bens importados pelos Villas Bôas. Em situação paralela se

encontram os kamaiurá, isso porque no Posto do Jacaré, além dos Villas Bôas e do

aparato da ERX, estava montada também uma base de apoio da FAB, que se manteve

no local como administradora do mesmo quando os Irmãos deixam o posto. É assim que

22 Considero este fato primordial pelas seguintes razões: os yawalapiti montaram sua aldeia no Tuatuari, historicamente pertencente a eles mesmos, roubado pelos pró-kamaiurá quando da sua chegada à área. Esse restabelecimento, capitaneado pelos Villas Bôas num processo que durou anos, contou com índios yawalapiti residentes em outras aldeias, entre elas os kuikúro. Relembrando, antes da pax os kamaiurá sofriam com ataques de duas alianças, uma delas exatamente formada entre yawalapití, ainda exilados e, principalmente, kuikúro. Esta aliança era empreendida como vingança pela tomada por parte dos kamaiurá de territórios aruak, um deles exatamente o ribeirão Tuatuari.

18

Page 19: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

os kamaiurá encontram um modo de, digamos assim, competir com os yawalapiti, no

acesso a recursos “caraíbas”.

Para finalizar os comentários sobre a quarta fase da história kamaiurá, alguns

comentários sobre a 4ª. característica da pax. Para a generalização da “etiqueta da

xinguanidade”, alguns pré-requisitos deveriam ser preenchidos. O primeiro era a

supressão das características beligerantes dos grupos. O segundo, a participação nos

rituais intertribais de todos os grupos xinguanos. E porque, assim, se tornar xinguano? -

Era esse o passaporte para os novos recursos que circulavam na área. A criação da

categoria “xinguano”, cria também a de “não-xinguano”, caso dos juruna e suyá. Estes,

em aliança, empreendiam, na época da chegada dos Villas Bôas, uma guerra pelo

território kamaiurá. Com a pax, esses índios tiveram seu processo de entrada no

território xinguano travado, permanecendo no parque até hoje – em sua parte norte -,

sem, no entanto, serem xinguanos.

A 4ª. fase termina com a fundação do Parque em 1961, talvez um pouco depois,

quando da institucionalização da nova ordem, digamos assim, na área. O ano de 1973

pode ser considerado como um marco do começo dessa nova ordem, através da edição

do “Estatuto do Índio” que, em seu primeiro artigo, transformava o Parque Nacional do

Xingu em Parque Indígena do Xingu. Essa mudança coloca o Parque sob os auspícios

da FUNAI, fundada em 1967 e que respondia ao Ministério do Interior. Em 1971, é

legalizada a passagem da BR-080 (Xavantina-Cachimbo) na porção norte do Parque. O

agro-business começa a circundar o Parque, transformando-o pouco a pouco em uma

ilha no meio de gigantescas pastagens e plantações. O interesse fundiário pela área é

grande, havendo inúmeros editais que dão novas configurações à sua área. Também

acontecem o realocamento de tribos de fora do Parque para dentro. No final dos 1970,

toda a administração do Parque passa para as mãos dos índios, a central, a do Posto

Jarina, a do Posto Leonardo e, finalmente, a do Posto Diauarum (Menezes Bastos, 1994.

pp. 251-255)

Comecei a abordar a história xinguana para explicar porque a dimensão ritual é a

condição sine qua non da participação no éthos xinguano. Acredito ter esclarecido isto

de forma consistente. Uma última colocação sobre o ritual. Se ele é definidor da

xinguanidade, é também o espaço de expressão daquilo que não é xinguano, o passado

guerreiro dos kamaiurá, os grandes feitos de seus ancestrais, o que torna possível o

confronto do passado com o presente. O que significa isso? Que talvez todos estes

títulos criados pelos “caraíbas” não dão conta de entender de maneira satisfatória o

19

Page 20: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

2

mundo em que esses índios vivem. A dualidade xinguano/não-xinguano, por exemplo,

talvez não seja operante entre eles. Ao menos de maneira tão clara segundo usualmente

se pensa.

A seguir, algumas informações sobre a aldeia fiz meu trabalho de campo e a

língua kamaiurá.

A aldeia se chama Ipavu, distante cerca de 35km ao sul do Morená23, 15km a

oeste do rio Curisevo e 20km a leste do rio Batovi. Ela está situada à beira da lagoa de

mesmo nome. Este local é considerado sagrado para os kamaiurá, mesmo na época em

que ali não residiam, era este p local de alguns enterros e de algumas práticas rituais, era

também onde eles estabeleceriam sua próxima aldeia, segundo relatos fornecidos a

Galvão (1979, p. 18).

Figura 224

A língua kamaiurá é classificada como pertencente à família tupi-guarani, já foi

23 Indicado pelos índios Xinguanos como o “centro do mundo” e também local de criação do mesmo, seria a convergência dos rios Ronuro, Batovi e Kuluene.24 Plano da aldeia kamaiurá. 1: Casa de Kotok; casa de Takumã; 3 casa das flautas; 4 casa de Tacapa; 5 casa de Mapyta e; 6 caminho de entrada da aldeia. Importante dizer que as roças estão por todo o redor da aldeia.

20

N1

3

45

6

Lagoa Ipavu;Casa da enfermeira; enfermaria, etc.

Page 21: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

sub-classificada junto com outras línguas da família, mas é agora considerada isolada,

mantendo relações de afinidade com diversas línguas, entre elas a kayabi e asurini

(ambas faladas no Xingu), a parintintin, tupi-kawahib, guajá, etc (Franchetto, 2001, p.

120)25. Menezes Bastos (1989) destaca a existência de diferenças dialetais entre os

falantes do kamaiurá dentro da própria aldeia Ipavu, mais um indício da ambigüidade

do ser kamaiurá, pois não é, como já colocado anteriormente, a língua um dos artifícios

mais severamente perpetuados na conservação do éthos de cada etnia?

Para finalizar, algumas informações sobre o nome kamaiurá. Menezes Bastos

(1989, p. 524) esclarece que o nome vem da palavra aruak kamã + yula, com tradução

aproximada de “mortos no jirau”. O sentido da palavra é uma referência à prática do

canibalismo pelos grupos falantes do tronco tupi, sendo usada para nomear todos eles. A

referência expressa ao canibalismo dos povos tupi reflete o pavor dos aruak e karib em

relação a estes. Esta etimologia quem faz é um índio yawalapiti. Um kamaiurá, ao ser

questionado sobre essa sua antiga hostilidade, como diz Menezes Bastos, “não podendo

negar simplesmente a renegam, a remetem para o passado ou, mesmo, a tratam sob

evasivas” (ibid, p.524). Mas esse aspecto dá conta de apenas um dos lados do ser

kamaiurá. Outro, e talvez não único, é aquele expresso no ritual, onde é o passado que

vem à baila, confrontar o presente, modulando seu funcionamento, se espraiando no

futuro. E, mesmo que somente na “máquina de torýp, ‘ritual”, esse passado seja

encarado de frente e se sobreponha ao éthos xinguano, não é só ai que ele está presente.

Nas próprias diferenças dialetais supracitadas, na denominação daquilo que seriam os

“kamaiurá verdadeiros”, esta sim pensada e falada por um kamaiurá, “apìaw anekopy”,

os “apiap verdadeiros”, na etimologia yawalapiti apresentada anteriormente, enfim, em

todo momento da vida dos kamaiurá, e também na do Alto Xingu, o passado é uma

força atuante.

Menezes Bastos (1978, p.81) em um parágrafo entitulado”máquinas para viajar

no tempo: o mawe e o ãng”, explana como entende a categoria tempo: “tomo tempo

como aquela metacategoria do discurso científico que, dimensão universal, se estabelece

como o espaço lógico das durações, isto complementarmente ao espaço, que é o espaço

lógico das extensões”. A partir daí podemos pensar o mawe ‘tempo mítico’ e o ãng

‘tempo histórico’, os dois diferentes modos através dos quais os kamaiurá se colocam

em relação ao tempo. O ãng, como a tradução leva a crer, é o tempo dos

Apyawanekopy, os ‘apiap mesmos’ literalmente, também traduzido por ‘kamaiurá

25 Para a língua kamaiurá, conforme Seki (2000) e a literatura por ela usada.

21

Page 22: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

mesmos’. Este é o tempo dos “eventos prováveis”, aqueles que aconteceram ontem,

acontecem hoje e irão acontecer amanhã. Já mawe é o tempo dos Apyawaramãy, os

‘ancestrais dos kamaiurá’. Os eventos aqui são possíveis, não prováveis. Por tempos dos

ancestrais não devemos entender que esta matriz remeta inexoravelmente ao passado,

muito pelo contrário. Por eventos possíveis devemos ter em mente a idéia de

potencialidade, daquilo que foi, com certeza, mas que é eterno, sempre surgindo e

ressurgindo, dobrando e redobrando, corrigindo e explanando o presente. Por fim, com

relação ao mawe e o ãng, fato que vale ser ressaltado, é a complementaridade entre um e

outro tempo, não o antagonismo que facilmente se poderia crer existir.

A mensuração de tempo kamaiurá

Na aldeia, com vistas a superar as necessidades para a obtenção de meus

objetivos, tive como primeiro ímpeto o estudo dos termos do sistema de mensuração de

tempo dos Kamaiurá. A pergunta que me fazia era: que palavras os kamaiurá utilizam

para se referir aos diferentes momentos do dia, e, coisa que de fato ainda não sabia,

quais são os momentos do dia kamaiurá? Construí uma tabela com duas colunas, uma

relativa aos momentos do dia ocidental (1h, 2h, 3h, etc.) outra relativa ao momento

correspondente no dia kamaiurá. Seki (2000, p. 402)26, em sua Gramática do Kamaiurá

oferece uma tabela semelhante, com uma palavra em kamaiurá para cada umas das 24h

de nosso dia. Não consegui confeccionar tal tabela, penso que não por falta de

habilidade, mas pelo fraco valor heurístico que a mesma teria, frente aos meus

objetivos.

Depois que tive conhecimento de alguns dos termos27 utilizados pelos kamaiurá

para se referir aos momentos do dia, construí uma tabela colocando-os em ordem e

deixando espaços entre os já conhecidos para completar com os que faltavam para que

eu tivesse os vinte e quatro momentos do dia kamaiurá. Ao apresentar esta tabela para

Chico (filho de Takumã, pajé da aldeia kamaiurá, um de meus maiores informantes) e

pedir a ele que me ajudasse a completá-la, estranhei a dificuldade que ele teve para

achar os termos que se encaixariam nos espaços em branco. Alguns deles eram motivo

26 SEKI, Lucy. Gramática do Kamaiurá. Língua Tupi-Guarani do Alto Xingu. Campinas, SP: Editora da Unicamp; São Paulo, SP: Imprensa Oficial, 2000.27 Os termos estão apresentados na Tabela 1 na página 26.

22

Page 23: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

de discussão entre Chico e outras pessoas que estavam à sua volta. Ao final dessa

empreitada estava com uma tabela quase completa em mãos, mas desconfiava que ela

talvez pouco representasse o modo como os kamaiurá pensam o tempo.

Decidi, dessa maneira, me organizar para que pudesse montar uma tabela mais

fidedigna. Perguntei durante todo o tempo que estive na aldeia kamaiurá que horas

eram, e como se falava em kamaiurá este momento. Anotando, a cada vez que

perguntava as horas e como eles se referiam àquele momento em kamaiurá, consegui,

acredito eu, montar uma tabela mais fiel ao modo como eles repartem e se referem a

essas partes de seu dia. Preciso ressaltar que tive poucas oportunidades para perguntar

“que horas são?”, durante a madrugada. Algumas vezes fiquei acordado até quase meia-

noite, assistindo televisão com outros índios enquanto quase todos dormiam, outras

acordava para ir ao banheiro e encontrava alguém fazendo o mesmo, ou voltando.

Apresentarei neste trabalho a tabela, fruto do processo investigativo mais

aprofundado, ao qual me referi antes. Ela apresenta os horários28 estimados de início e

final de cada intervalo ou momento29 do dia kamaiurá, seus nomes em kamaiurá e sua

glosa em português. Quero dizer que estava propenso a não utilizar a tabela, mas achava

importante, de qualquer forma, a apresentação extensa de todos os termos que os

kamaiurá utilizam para referir-se aos diferentes momentos de seu dia. Escrevê-los um a

um seria certamente muito maçante e de difícil interpretação. A tabela, mesmo sendo

apresentada no começo de meu texto, só poderá ser plenamente entendida após o final

deste trabalho. Ela representa apenas um primeiro esforço de aproximação.

Antes de apresentar as tabelas sobre os termos que os kamaiurá utilizam para se

referir aos diferentes momentos do dia, preciso falar sobre quando começa o dia

kamaiurá. Afinal, não posso começar arbitrariamente por qualquer termo. Menezes

Bastos (1989, p. 87)30 diz que o dia kamaiurá parece começar no final da tarde, começo

da noite. Essa transição, do final para o começo de um novo dia, seria marcada pela

reunião dos homens no centro da aldeia, sendo o período em que acontece, na verdade,

quase que um período fora do tempo. Nas conversas que tive com os kamaiurá, em tudo

28 “Horário”, “hora”, “medir o tempo”, todos estes termos eu concebo como estando em relação direta com o sistema ocidental de medir o tempo. Referem-se a ações frutos de um processo específico, que pouco tem a ver com os kamaiurá, a não ser pelo fato do seu contato com o mesmo. Utilizo, no entanto, “mensurar o tempo” como algo existente em todas as culturas. 29 Esta diferença entre a divisão das partes do dia kamaiurá, como será visível na tabela, é concebida em momentos e em intervalos. Discutirei isto após a apresentação da tabela. 30 MENEZES BASTOS, Rafael José de Menezes. A festa da Jaguatirica: um partitura crítico-interpretativa. São Paulo: 1989. Tese de doutorado. FFLCH, Universidade de São Paulo.

23

Page 24: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

que vi e ouvi dos índios kamaiurá, houve um fato que me levou a pensar da mesma

maneira que Menezes Bastos. Esse sinal eu encontrei em um livro (não editado) de

contos dos índios kamaiurá, que foi produzido na própria aldeia, relatado e traduzido

para o português pelos próprios kamaiurá. Em um conto chamado “A menina que

enfiou a mão no tewikwat (“ânus”) da anta”, encontrei uma fala onde a anta diz à

menina presa nela pelo braço, que os dois partiriam no dia seguinte (“amanhã vamos”).

Em seguida o narrador continua “...abaixou o sol. Os dois começaram a ir embora.

Foram embora no mesmo caminho. Chegaram à água. Começou a amanhecer quando

chegaram à roça do pai”. Esta foi a única informação que me foi possível extrair sobre o

início do dia31 kamaiurá. Confio nela, e também no que diz Menezes Bastos, mais ainda,

pois faz sentido, pelas observações que fiz, que o dia kamaiurá comece realmente no

começo da noite. Explicarei este “sentido” apenas no final deste trabalho.

Em relação à tabela (apresentada na página seguinte por razões de espaço)

algumas coisa precisam ser ditas. Primeiramente que o nome do momento do dia

kamaiurá referente às 21h do dia ocidental não me foi possível obter, transcrevo aqui o

que está inscrito na tabela de Seki (2000). Desconfio que este “momento de recolher”,

antigamente, acontecia relativamente mais cedo do que hoje. Isto por ter experimentado

a vida na aldeia, quando não é possível ligar o gerador durante uma semana inteira. Os

homens da aldeia foram jogar um campeonato de futebol em Gaúcha do Norte, inclusive

o rapaz que é responsável por ligar e desligar o gerador. Durante essa semana, quando

estavam na aldeia os velhos, as crianças, as mulheres e o antropólogo, pude observar

que mesmo durante a reunião dos homens no centro da aldeia, as casas que não tinham

ninguém fechavam as portas e, imagino, pois não me era permitido entrar nestas casas

nesse horário, porém pude observar o que acontecia na casa onde eu residia, todos logo

se recolhiam às suas redes, onde conversavam por algum tempo e dormiam. Takumã me

relatou que antigamente eles dormiam mais cedo, algum tempo após a reunião dos

homens no centro. Cogitei durante algum tempo deixar este espaço em “branco”, o que

significaria dizer que consideraria não existir um intervalo entre ypytunim e Ypy,ajej

ipota kóyt, considerando também que este intervalo não me foi mencionado. Optei,

finalmente, por utilizar o termo de Seki, pois acredito que faz sentido a existência desse

intervalo, ao menos hoje em dia, quando os kamaiurá estão dormindo cada vez mais

tarde, alguns após a meia-noite.

31 Dia aqui entendido como o período de 24h que o sol leva para dar uma volta sobre a terra. Não o período compreendido entre o nascer e o por do sol.

24

Page 25: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

Tabela 1

Horário ocidental Momento do dia kamaiurá Glosa em português

19h – 20h Ypytunim “quando já está escuro”

21h (segundo seki, até as

22h)

Ypypipawamue “tempo de se recolher”

22h

23h

Ypy,ajej ipota kóyt “quase meio do escuro”

24 Ypy,ajej “meio do escuro”

1h

2h

3h

Ara apota kóyt

Ara uham

“passa do meio do escuro”

“passa do meio do escuro”

4h Arimé kóyt “quase clareando”

5h Kuema moe “sol ta clareando”

6h Kuaraitsé “sol ta saindo”

7h Iawyeté “sol já saiu/apareceu (inteiro)”

8h – 10:30min Kopywaraapaa´p “voltando da roça”

11h Apyterowai ipota kóyt “sol ta quase no meio”

12h Apyterowai “sol ta no meio”

13h – 14h Werewaparap “sol está inclinado (pouquinho)”

15h – 16h Mameara “a tarde”

17h Karu kamõe “tarde”

18h Ka,aruk kóyt “sol ta descendo”

Outra colocação importante sobre a tabela refere-se ao intervalo que vai das 14h

até ás 16h. Na tabela de Seki o momento referente ás 14h é dito joetykawa wite,

“próximo à luta” e, logo após, ás 15h, joetykawa ‘arim, “em cima da luta”. É

interessante que nenhuma das vezes que eu perguntei que horas eram durante esse

intervalo alguém tenha me dado resposta similar à que Seki recebeu. Ressalto que entre

os kuikúro, povo falante de língua do tronco karib, o momento referente ás 15h tem

como glosa “tempo de luta”. Meus conhecimentos não tornam possível fazer qualquer

generalização deste fato para todas as tribos xinguanas. O que me parece, e isto é algo

que deve ser investigado em minha próxima visita aos kamaiurá, é que devem existir

25

Page 26: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

momentos (longos ou duradouros, não importa) durante o ciclo anual kamaiurá que as

referências ao intervalo dito pelos ocidentais entre 14h e 16h são feitas pelos kamaiurá

com base nos momentos em que a luta deve acontecer, em outros momentos do ciclo

anual estes mesmo momentos são referidos de uma outra maneira32.

A maioria dos termos que os Kamaiurá utilizam para se referir aos diferentes

momentos do dia se relacionam e aludem, como podemos observar na tabela, à posição

do sol ou ao efeito luminoso característico do sol naquela dada posição. Meio-dia, por

exemplo, é dito “Apyterowei” – “sol ta no meio”- o período entre 4h e 5h da madrugada

é dito “Arimé kóyt” – “quase clareando” ou “não tem mais escuro” – entre 18h e 19h

diz-se “Ka,aruk kóyt” – “sol ta descendo” ou “entrando”. Interessante notar que a

luminosidade do sol também dita o ritmo da noite, ao menos no que se refere aos termos

utilizados para referirem-se aos diferentes momentos da noite33. Entre 19h e 20h temos

o momento chamado de “ypy tunim” – “tá escuro”. O termo que identifica o momento

logo após este último referido significa “quase meio do escuro”, diz-se “ypy aiei ipota

kóyt”, para termos em seguida o “meio do escuro” que diz-se apenas “ypy aiei”. Após o

“meio do escuro” nós temos, naturalmente, “ara uha ipota kóyt” ou apenas “ara uham”,

significando, “passa do meio do escuro”.

É interessante fazer algumas colocações sobre o que foi dito no parágrafo

anterior e uma ressalva. Os horários que utilizei para “traduzir” os termos em kamaiurá

foram aferidos na aldeia, as vezes posteriormente ao tê-lo ouvido, com a ajuda de algum

índio, mas na maioria das vezes no momento em que perguntava “que horas são”, ou

melhor dizendo, “mame kuará?”, aos meus informantes. Assim, não adianta que um

viajante saiba que entre 18h e 19h diz-se “kuaraitsé kóyt” em kamaiurá, se acaso este

queira comunicar o horário de sua partida aos índios. Isso porque numa certa época do

ano ele estaria correto, em outra, certamente não. Se na nossa sociedade o sol nasce todo

dia em um horário diferente, na sociedade kamaiurá o sol nasce diferente todo dia em

um mesmo horário. Isto ocorre por causa das referências, totalmente diferentes em cada

32 Apenas para constar, no caso kuikuro, sabe-se quando é chegada a hora da luta quando a sombra produzida pela casa dos homens no centro da aldeia atinge o banco situado a sua frente. A luta termina quando a mesma sombra atinge os lutadores, Francheto (2002). 33 Isso porque as referências utilizadas pelos kamaiurá para saberem que “horas” são durante a noite não partem, naturalmente, do sol, mesmo fazendo os termos utilizados para indicar os diferentes momentos referência ao sol, ou à sua luz. Existe um grande número de referências que podem ser utilizadas pelos kamaiurá para se localizar temporalmente durante a noite. A primeira que me foi citada é sobre as estrelas (“ietatai”), tanto a posição deste ou daquele grupo de estrelas no céu, quanto o aparecimento de duas “estrelas grandes” (“ietatau”) no céu. Também podem ser utilizados o som dos mais diversos animais, insetos e pássaros na maioria. Em determinada época do ano esse determinado inseto faz esse determinado barulho apenas depois de certa hora. Um referência dupla, sendo que indica um época do ano e um momento na noite. Isso tudo será tratado adiante.

26

Page 27: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

um dos casos, que os indivíduos utilizam para serem sabedores das horas. Fica claro

também, o problema de uma tabela que faça corresponder cada termo para se referir a

um momento do dia kamaiurá a cada uma das 24h do dia ocidental.

No cotidiano, quando um kamaiurá se refere a algum horário, respondendo uma

pergunta sobre que horas são ou contando uma história, ele aponta o braço estendido em

direção à respectiva posição do sol. Quando se trata de relatar a duração de algum

evento, os kamaiurá não dizem que esse evento durou tanto tempo34. Ao invés, indicam

o horário do início do evento, sempre com o braço apontado em direção ao sol, e o do

seu término, percorrendo com o braço estendido toda a extensão percorrida pelo sol

durante o acontecimento. Interessante notar que mesmo quando os Kamaiurá utilizam o

sistema ocidental de medir o tempo, fato que ocorre em algumas ocasiões mais que em

outras, eles estendem o braço em direção ao céu.

Desnecessário dizer, após tudo o que foi relatado, que é o sol a principal

referência utilizada pelos kamaiurá para saber em que momento do dia se encontram.

Lembro-me de ter perguntado, em uma manhã de tempo nublado, que horas eram a uma

mulher que trabalhava a mandioca para fazer polvilho. Ela, olhando para a posição onde

o sol deveria estar àquela hora da manhã, porém não vendo nada por causa das nuvens,

me disse que não sabia, que eu olhasse no relógio.

Às voltas com essa questão dos diferentes momentos do dia kamaiurá eu

comecei a procurar quais eram os momentos em que eles precisavam “saber as horas”

para desempenhar qualquer afazer que fosse. Na sociedade ocidental precisamos a todo

o momento saber que horas são. Precisamos começar a trabalhar em tal horário,

encontrar alguém, temos algo para ver na televisão em tal horário, temos que almoçar

em tal horário, etc. Comecei, para saciar minha curiosidade, por perguntar como se

falava “almoço” em kamaiurá. Responderam-me que esta palavra não existia, “que

quando o índio quer comer ele come, quando tem comida”. Realizei também algumas

entrevistas que tinham como objeto o uso do relógio entre os índios. Não foram muitas

as pessoas entrevistadas, mas todas elas foram unânimes em suas respostas. A principal

pergunta que fiz era “para que o kamaiurá usa o relógio?”. A resposta, sempre, “para

34 Não o fazem não por falta de instrumentos, tanto materiais quanto teóricos. O uso do relógio, como será visto posteriormente, é bastante difundido entre os kamaiurá. Mesmo antes da difusão do uso do relógio a medição do tempo não era obstáculo aos kamaiurá, como podemos perceber através da alta percepção que eles têm dos eventos que acontecem ao seu redor. A falta de um sistema aritmético poderia explicar esse fato, mas, assumindo que exista algo a ser explicado, encontramos entre os kamaiurá um sistema aritmético que, apesar de não ser muito desenvolvido permite a contagem. O fato, a meu ver, que faz com que os kamaiurá se refiram às extensões de maneira diferente dos ocidentais, no que se refere à questão do tempo, é que eles não têm a idéia de hora, ou da repetição. Tudo isso será abordado mais adiante.

27

Page 28: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

saber as horas”. E “para que os kamaiurá precisam saber as horas?”. Para diversas

coisas, mas todas essas coisas são oriundas da sociedade ocidental. Para saber o horário

de tal programa de televisão; de quando ligar o rádio amador e fazer as transmissões

necessárias; de quando ir a outra aldeia ou ao posto indígena para jogar futebol; etc.

Expliquei que na sociedade ocidental o relógio foi criado, principalmente, para lembrar

os homens de quando trabalhar. Diziam-me que “kamaiurá não é assim não”, “índio

trabalha quando quer, trabalha sempre”.

Mais uma vez encarando meu objeto a partir de meus preconceitos perguntei-me

se os kamaiurá simplesmente não precisavam saber as horas. E, depois de dissipada a

confusão, percebi que não, devemos considerar “horário” fruto de uma construção

ocidental. Como já ressaltei no parágrafo anterior, os kamaiurá se interessam pelo

horário quando suas atividades são frutos da relação com a cultura ocidental. No

entanto, esse não era o meu primeiro objetivo, mas sim conhecer aquilo que se refere

“exclusivamente” ao modo kamaiurá de lidar com o tempo.

Começarei por relatar algo que ouvi enquanto fazia uma entrevista semi-dirigida

com um dos genros de. A entrevista, na verdade, era sobre o uso do relógio, a pergunta,

mais especificamente, sobre a freqüência com que ele o utilizava. Ele me disse que

usava bastante, “já tem relógio pra poder sair pra roça. Tem que ver lá o relógio da

pessoa pra poder sair pra roça, e volta, quatro horas pra casa”. Perguntei então se tinha

um horário certo pra ir pra roça, ele me disse: “Não, assim, pros mais velhos não tem

hora não, né.” É preciso uma contextualização para entender tudo isso, e o que afinal,

isso teria a acrescentar ao meu objetivo e não ao que se refere a nota 18, apesar de

certamente o faze-lo.

Um dos projetos mais duradouros e que mais mobilizou os kamaiurá durante os

últimos três anos foi o “Awawo Jamena Ko’’, que significa, literalmente, “Roça

jovem”. Ele era apoiado pela Petrobras e consistia no fornecimento, por parte da

empresa, de verba para a compra de materiais, para o pagamentos dos jovens que

trabalhavam na roça, a compra de insumos e o armazenamento e beneficiamento do que

era produzido. Boa parte deste projeto, como pode ser percebido, consistia no trabalho

dos jovens nas roças referentes ao projeto. Acontece que este trabalho, pago, tinha hora

para começar e terminar. Os jovens, de seu lado, como pode ser visto no dia-a-dia da

aldeia, trabalham bem menos nas roças, se é que trabalham. Estes dois fatores, acredito

eu (seguindo meu entrevistado), fizeram com que o relógio ganhasse uma importância

para o trabalho dos jovens na roça, sendo por ele pautado o início e o fim do da labuta.

28

Page 29: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

O entrevistado nesse caso tinha 29 anos e foi um dos mais velhos a participar do

projeto. Ressalto que ele, após dizer que os mais velhos não tinham hora para trabalhar,

disse que “ele mesmo não tem hora, trabalha direto”.

O importante disso que relatei é o fato de os mais velhos agirem de modo

diferente dos mais novos. Isso não apenas foi me dito, como também observado, entre

outros acontecimentos, na maior freqüência, em relação aos mais jovens, com que via o

ir e vir dos mais velhos à roça. E, no entanto, mesmo não tendo um momento definido

para o começo e para o final, como me foi dito, vemos na tabela que apresentei um

termo que tem como glosa “voltando da roça”. Lembro que perguntei, numa das

diversas vezes que recebi a resposta Kopywaraapaa´p, como os kamaiurá sabiam que

era a hora de “voltar da roça”, a resposta que recebi, como já era de se esperar, pelo sol.

Mas, nesse caso, não pela posição do sol, mas porque “quando tá muito quente” está na

hora de voltar. Interessante pois não é que eles observam o sol em tal ponto do céu e

sabem que é aquele momento em que eles devem parar de trabalhar, ao contrário, é

quando o sol já está muito forte, esquentando demasiadamente, que é hora de parar de

trabalhar. Daí o grande intervalo designado pelo termo Kopywaraapaa’p, pois o mesmo

sol que em certa época do ano está brando, em outra já esta bastante forte.

Outra ocasião que se impõem como um marco no perceber o tempo dos

kamaiurá é quando é chegado o momento do Yawari. Este é indicado pela aparição do

Tawarit (as Plêiades, o popular “Sete estrelo”), em meados de abril (Menezes Bastos

1989). Quando ir pescar, diferente em cada época do ano, às vezes marcado pelo cantar

de uma cigarra, às vezes pelo parar de cantar de um grilo, também faz-se perceber no

tempo kamaiurá. E, como último exemplo, propositalmente nesta ordem, apresento o

payemet, literalmente “reunião dos pajés”, que acontece, como já falei, entre 18h

(Ka,aruk kóyt, “sol ta descendo”) e 19h (Ypytunim, “quando já está escuro”). O

indicador do começo da “reunião dos pajés” é certa luminosidade específica de um

momento dado do dia kamaiurá. A percepção dos sujeitos, é claro, não é uniforme, e

dessa maneira uns sempre se dirigem para o centro da aldeia antes que outros. De

qualquer maneira, como o local da reunião é o centro da aldeia, e como os momentos

absolutamente anteriores à “reunião dos pajés” constituem-se em reuniões das famílias

em frente a suas casas, quando os primeiros começam a se dirigir ao centro da aldeia, os

outros logo os seguem.

É importante ressaltar o caráter de marco temporal do payemet, e por

conseqüência a importância que este tem para a percepção do fluxo temporal dos

29

Page 30: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

kamaiurá. Como já coloquei, o payemet marca o final e o início do dia (“período de

24h”) kamaiurá. Esse marco, que é sem dúvida muito bem definido, é também, de certa

forma fluído. De certa forma porque se pensarmos através do modo ocidental de medir

o tempo poderíamos dizer que o horário em que o payemet acontece varia durante o

ano35. Mas, o início é o início, não varia para aqueles que o tem como tal. Pode ser que

hoje ele inicie com chuva, amanhã com lua, com vento forte, calor ou frio, mas

continuará sempre sendo o início, e o fim.

Depois de apresentar estes exemplos fica claro que a pergunta que me fiz a

alguns parágrafos atrás, “quando os kamaiurá precisam saber as horas?”, só poderia

obter respostas vindas do espectro que mais se relaciona com aspectos da sociedade

ocidental da cultura kamaiurá. A pergunta correta, tendo em vista suprir meus objetivos,

seria, talvez, “quando os kamaiurá sentem o tempo passar?”. Como vimos no primeiro

exemplo, sobre quando voltar da roça é o calor que define este momento, calor que é

produzido pelo sol em intensidades diferentes durante o ano. Isto significa que o horário

em que os kamaiurá saem da roça varia durante o ano? Tomando como base a maneira

ocidental de medir e de pensar o tempo, a resposta correta é sim, no entanto, como

antropólogo, o que quero é exatamente entender o modo kamaiurá de mensurar e de

pensar o tempo, nesse caso, a reposta é não.

Pela mesma razão que posso dar respostas diferentes para a mesma pergunta,

dependendo se tomo como base um ou outro sistema de interpretação, pude dizer, no

segundo parágrafo da página 14, “Se na nossa sociedade o sol nasce todo dia em um

horário diferente, na sociedade kamaiurá o sol nasce diferente todo dia em um mesmo

horário”. Parece contraditória a frase a primeira vista mas considerando que a primeira

parte refere-se a uma cultura e a segunda parte a outra cultura – duas realidades

diferentes – a frase torna-se didática, pois expressa uma diferença latente.

Até esse momento trabalhei primordialmente com a forma como os kamaiurá

organizam e vivem essa organização do ciclo diário de suas vidas. Já utilizei como

exemplo, no entanto, a percepção das Plêiades, quando é chegado o tempo do Yawari. A

partir desse momento tratarei dos períodos mais longos de tempo que os kamaiurá

percebem e identificam, a forma como os identificam e a importância que estes têm.

35 Durante todo o texto, até agora, faço esse exercício de “comparação” entre o “sistema ocidental” e o “sistema kamaiurá” de pensar o tempo. Minhas interpretações do sistema kamaiurá de pensar o tempo foram feitas, é claro, baseadas nas minhas percepções dos kamaiurá. Saber por que tais e tais características do sistema kamaiurá fizeram com que eu, ser pensante “através” do sistema ocidental, construísse determinadas interpretações, me ajudam a esclarecer tanto sobre o modo ocidental quanto sobre o modo kamaiurá de pensar o tempo.

30

Page 31: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

Após a abordagem desta esfera pretendo tentar concluir este trabalho analisando a

dinâmica das relações destas duas esferas do sistema de mensuração de tempo

kamaiurá.

Os kamaiurá não têm na organização de seu sistema nomes que identificam e

diferenciam os “dias da semana”. Sabem e hoje em dia estão sempre atualizados em

relação ao sistema ocidental, que diversas atividades precisam ser efetuadas tais e tais

dias, assim como certos programas de televisão que passam em um dia, em outro não.

Esse conhecimento do sistema ocidental, no entanto, não interfere significativamente no

cotidiano da aldeia, sábado e domingo, por exemplo, são dias iguais aos outros, a não

ser pela programação da TV, o posto indígena fechado, o rádio desligado, etc.

“Hoje”, em kamaiurá, se diz ankóut, “amanhã” óiram e “ontem” ikué. “Depois

de amanhã” diz-se óiram amue. Uma conversa interessante que tive com um índio

chamado Tacapa (um velho, chefe de casa) e Antônio (marido da técnica de

enfermagem que mora dentro da aldeia) me permitiu vislumbrar a organização e a

relação dos kamaiurá com os “dias”. Era pouco antes do meio-dia e Tacapa chega na

casa de Antônio com as roupas bastante sujas e se lamentando de não ter ninguém que

lhe ajude a catar sapé para cobrir sua casa. Conversando sobre quanto sapé ele ainda

tinha que catar e de quanto tempo demoraria a terminar, percebi algumas peculiaridades.

Para dizer o que poderia ser traduzido para o português dessa maneira: “amanhã vou

tirar mais 2, depois de amanhã mais 2, depois mais 2, depois mais 2”; ele disse:

“amanhã vou tirar mais 2, depois amanhã mais 2, amanhã mais 2, amanhã mais 2”.

Como eu escrevi em meu diário de campo: “utilizando a palavra “amanhã” para se

referir ao dia seguinte daquele anterior, mas não tendo como referência o dia de hoje”,

mas o de amanhã, ou depois. Quando os ocidentais se referem à daqui a três dias,

falando “depois, depois, depois de amanhã”, têm como referência o dia de “hoje”, o dia

corrente. Os kamaiurá para se referirem a daqui a três dias, falam “amanhã, amanhã,

amanhã”, transferindo o ponto de referência também para “amanhã”.

Mesmo os kamaiurá não identificando os dias da semana quis saber se eles

identificavam algum ciclo relativo a semana. Pensei nesse intervalo de tempo porque ele

não é meramente “arbitrário”, no sentido de que existem ciclos naturais que indicam de

alguma maneira os ciclos “semanais”. Estes ciclos naturais, no caso, seriam as fases da

lua. Não que estas coincidam perfeitamente com o começo de cada semana no sistema

ocidental, posto que na realidade isto não importa, mas o que importava sim era que

perceber as mudanças de fase da lua poderiam sugerir a identificação de algum ciclo de

31

Page 32: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

aproximadamente 7 dias. Investigando com o intuito de resolver este problema descobri

que os kamaiurá não identificam as fases da lua, quer dizer, não as fases da lua que os

ocidentais identificam e, mais importante, identificam suas próprias fases a partir de

suas próprias prioridades. Explico. Ao falar expressamente sobre as fases da lua

“ocidentais” sempre recebia a resposta que isso não tem aqui não, que isso é coisa de

karaíba. No entanto em outra oportunidade, percebi que as mudanças identificadas na

lua pelos kamaiurá não dizem respeito ao seu “tamanho” no céu, mas sim a posição e o

momento em que ela aparece no céu.

Conversando com Takumã sobre sua iniciação como pajé ele me disse que a

primeira parte desta tinha durado 8 meses. Já havia perguntado pra ele em outra ocasião

se havia alguma palavra em kamaiurá para mês, ele me respondeu, após uma longa

pausa, que não. Relembrei então isto que ele tinha me dito e perguntei como eles faziam

para saber quantos meses tinham se passado, ele me respondeu que pela lua. Percebi que

a percepção das mudanças da lua que eles tinham não tinha como objeto central seu

tamanho e sim a posição em que ela aparece no céu apenas no momento em que

Takumã esticou seu braço paralelamente ao chão e o movimentou horizontalmente

indicando a mudança de posição da lua conforme se passava o tempo36.

Em varias perguntas que eu fazia a Takumã, e ele foi um dos meus maiores

informantes, ele me dizia que não sabia, ou que não tinha, como no caso da palavra

“mês” relatada no parágrafo anterior. Algumas vezes que isso acontecia, quando tinha

alguém por perto, as pessoas diziam que tinha essa ou aquela palavra. Outras vezes,

quando estávamos sozinhos, eu fazia outra pergunta ou mudava de assunto e deixava

para fazer a mesma pergunta a outra pessoa em outro momento. No caso da palavra

mês, ao perguntar a Mapulu (filha de Takumã) como se falava em kamaiurá, ela me

disse iayarehek. Voltei, após ter essa informação, e perguntei a Takumã se mês não

poderia ser dito “iayarehek”, e ele me respondeu que sim.

Interessante que foi apenas algum tempo depois, quando já tinha saído da aldeia

e estava na cidade de Canarana, trabalhando com as palavras que eu tinha recolhido,

entre elas iayarehek, que percebi que iay significa “lua” e arehek, literalmente, “depois”.

36 É interessante colocar que existem dois modos de percepção da mudança na lua no que concerne a posição em que aparece no céu. O primeiro é este já colocado, que tem como referência o movimento horizontal de aparição da lua em relação ao horizonte e marca o ciclo que podemos chamar de “mês”. O segundo percebe a mudança da lua verticalmente no céu e marca o ciclo que podemos chamar de “dia”. Este outro modo de perceber a lua quem me mostrou foi Chico, ao me dizer que “ontem a lua nasceu quando o sol morreu”, indicando com o braço estendido o local onde a lua apareceu, e depois, “hoje ela vai aparecer umas 20h” (usou o termo em português, normal pelo fato de estar falando comigo) e apontou o estendeu o braço em direção ao local onde ela iria aparecer “hoje”.

32

Page 33: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

Iayarehek, dessa maneira, não significa “mês”, no sentido que esta última tem para a

cultura ocidental. Significa, literalmente “lua depois”, que acaso vai ser sempre um mês

(como categoria exclusiva ocidental) após a lua de agora (lembrando que a partir da

maneira kamaiurá de perceber as mudanças da lua, pois através da maneira ocidental

“lua depois” seria “semana que vem”), mas que não obedece aos parâmetros de início e

fim a que estão sujeitos o período “mês” na cultura ocidental.

Talvez alguns possam pensar que o fato de Takumã ter me dito primeiramente

que não existia uma palavra em kamaiurá para mês tire a importância que iayarehek tem

para a análise do sistema kamaiurá de mensuração de tempo. Sobre isso, tenho duas

coisas a dizer. A primeira diz respeito ao caso específico de iayarehek, e é que tomei o

dito no último parágrafo como uma explicação para o fato de Takumã não ter citado a

palavra, isso levando em consideração que ele é um ancião e teve muito menos contato

com o sistema de medir o tempo ocidental que os mais novos. A segunda foi-me dita

pelo próprio Takumã em uma das várias vezes que eu lhe trouxe palavras que os mais

novos tinham me dito e que ele dizia que não existia. Ele disse: “isso é assim mesmo, os

mais novos. É assim que inventa...”. Iayarehek, então, uma possível invenção dos mais

novos. Uma invenção motivada pela vontade de entendimento de um sistema

desconhecido, um entendimento que é guiado pela maneira de perceber e pensar o meio,

próprio de cada um, de cada cultura. E naquilo que de mais próximo eles teriam de

“mês” a relação foi feita.

No significado da palavra iayarehek (“mês”), podemos entrever que os kamaiurá

não nomeiam os meses, algo como Janeiro, Fevereiro, etc.. O “mês”, em kamaiurá, não

existe a não ser em sua passagem, a não ser na mudança de um pra outro, pra outro, pra

outro (e nunca pra “um” de volta). O intervalo “mês” é percebido, mas a percepção de

sua mudança não está assentada em um dia específico. É sempre “mês” que passou pra

alguma coisa. Hoje me acontece isso e a lua está lá, “lua depois” que vem, fará uma “lua

depois” que aconteceu comigo aquilo. Quer dizer, existem diversos ciclos de

aproximadamente 30 dias sendo percebidos ao mesmo tempo por diversos indivíduos da

sociedade kamaiurá. Um acontecimento importante pode ser percebido hoje e dá início

a um ciclo “mensal”, outro acontecimento amanhã, e mais um ciclo começa a ser

percebido, e assim por diante. Como nomear algo que é sempre diferente, ao mesmo

tempo em que é igual sempre em um mesmo aspecto? Ressalta-se o aspecto em comum,

exatamente o caso de iayarehek.

33

Page 34: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

Outro ciclo a respeito do qual me preocupei em estudar como os kamaiurá o

identificavam e qual a sua importância deste para o dia-a-dia dos sujeitos foi o relativo

ao ano. Relembrando que os termos em português que utilizo para fazer referência aos

ciclos identificados pelos kamaiurá não são ideais no sentido que não definem

plenamente o que quero dizer, ou o que é o “ano kamaiurá”, por exemplo. Faço essa

ressalva porque de fato diversos dos ciclos identificados pelos kamaiurá tem alguma

relação com os ciclos identificados pelos ocidentais, principalmente no que diz respeito

a duração destes ciclos. No entanto, essa relação de afinidade dos tamanhos dos ciclos

identificados por uma e outra cultura é importante apenas se considerarmos importante

o tamanho dos ciclos. No caso anterior do “mês”, observamos que a relação que fazem

os índios de iayarehek com o ciclo mensal da cultura ocidental esta assentada sobre a

percepção da duração parecida de um e outro ciclo. Acredito que um ocidental,

pensando o tempo da sua maneira, não teria relacionado iayarehek com “mês” pois falta

ao primeiro um dia de início e fim, falta a possibilidade da predição de quando

começara este e acabara aquele, falta, enfim, aquilo que possibilita ao princípio da

repetição ter o papel que têm no sistema ocidental de medir o tempo, a saber, a unidade

básica que pode ser dividida e multiplicada.

Ano diz-se em kamaiurá kwaryp, tanto segundo Seki (2000) quanto informações

coletadas por mim na aldeia. Kwaryp é também o nome do ritual funerário intertribal

que tem grande importância na vida cerimonial dos povos alto-xinguanos37. São raras as

vezes em que um tribo alto-xinguana não participa do Kwaryp, seja como aldeia

hospedeira do rito, seja como aldeia convidada. Os kamaiurá, no ano de 2006 realizaram

em sua aldeia o Kwaryp e enquanto estive lá pude observar o começo dos preparativos

para o rito deste ano (2007), que acontecerá apenas em Junho, mas que já mobiliza boa

parte da aldeia nos seus preparativos.

Tomando os significados originais de cada termo (“ano” e “kwaryp”) em suas

respectivas sociedades, veremos que a relação não é inequívoca, no sentido de que ela

não é tão óbvia quanto parece. O ritual do Kwaryp acontece todos os anos, tendo seu

início e fim mais ou menos à mesma época. Como já disse, enquanto estive lá pude

observar diversas atividades, tanto práticas, como preparar o pequi para ser guardado até

Junho, como rituais, como cantos e brincadeiras, sendo desempenhadas já para o

Kwaryp, sendo já, o Kwaryp. Nesse sentido o Kwaryp já esta acontecendo e só ira

37 AGOSTINHO, Pedro. Kwarìp: mito e ritual no Alto Xingu. São Paulo, 1974. Editora Pedagógica e Universitária Ltda., Editora da Universidade de São Paulo.

34

Page 35: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

acabar em Junho, quando o rito atinge seu clímax com a chegada das aldeias

convidadas. Dessa forma vimos que nem a duração do rito (mais ou menos seis meses),

nem seu fim coincide38 (sobre seu início trataremos a seguir) com as características do

ano ocidental.

É relatado na literatura da década de 80-90 sobre a área que o mês de Junho é a

época do Yawari. Esta invenção, citando Takumã, pode ter sido desencadeada por

mudanças climáticas. Um possível evidência é o fato de Agostinho apontar como o

começo da época das chuvas e do amadurecimento do Pequi como sendo Outubro e, no

entanto, me lembro que mesmo alguns dias antes de ir embora Takumã me dizia que os

Pequis ainda não “caem muito”, sai da aldeia Ipavu no dia 14 de Novembro.

Perguntei ao Chico, depois que este me explicou como se falava “ano” em

kamaiurá, como eles faziam para saber quando muda o ano. Ele me disse que pela

chuva, “quando começa a chover, a gente sabe que tá mudando o ano, quando acaba,

mudou”. O ritual do Kwaryp tem certamente relação com o começo da estação chuvosa,

tendo em vista que é nessa época que os rios estão com um menor volume de água,

possibilitando o encurralamento dos peixes e sua conseqüente captura. Boa parte desta

pesca é feita para suprir a necessidade de alimentação dos convidados de outras aldeias

durante a parte intertribal do ritual.

Algumas considerações sobre o dito no parágrafo anterior. O fato de Chico ter

apontado as chuvas como marco entre um ano e outro pode ser reflexo já do calendário

ocidental.Porém alguns outros fatos me levam a pensar o contrário. Uma pergunta que

me fiz, e que já respondi no parágrafo anterior, foi porque o Kwaryp acontece quando

acontece e porque tem está periodicidade específica. Apenas para relembrar, por causa

do começo das chuvas, que impossibilita a pesca depois que enche os rios . A estação

chuvosa começa no mês de outubro e se estende até o mês de abril. O “tempo de

kwaryp”39 começa em novembro e termina, baseando-me no rito deste ano, no final de

junho ou começo de julho. Essa questão não pode ser solucionada neste momento, para

isso preciso voltar a campo e continuar minha pesquisa. Me pergunto se o ciclo “ano”,

traduzido pelos kamaiurá como “kwaryp”, era um termo tradicional do sistema de

38No sentido de que se considerarmos que os kamaiurá hoje em dia tem conhecimento e compreendem de certa forma o calendário ocidental, poderíamos pensar que, se acaso assim fosse, os kamaiurá teriam traduzido “ano” em kwaryp por causa de coincidências entre a duração e as datas de início e fim que cada conceito têm em sua respectiva sociedade tradicionalmente. 39 Para esclarecer, o Kwarýp de uma pessoa, como já disse, começa com a morte desta. O “tempo de kwarýp”, kwarùwamó’e, se inicia com o começo dos preparativos por parte da aldeia para o ritual que esta por vir.

35

Page 36: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

mensuração de tempo kamaiura ou se este foi criado como resposta ao “ano”

ocidental40. Os fatos que expus acima me levam a acreditar que os kamaiurá tinham sim

um ciclo relativo a ano e que identificavam a passagem de um para o outro ano (mesmo

que essa passagem seja, como Chico da a entender, um processo longo e demorado, que

dura toda a estação das chuvas) na estação chuvosa, esta última essencial para o Kwaryp

(o rito). De qualquer forma, sendo ou não o ciclo “ano” um termo tradicional do sistema

de mensuração de tempo kamaiurá, é coerente eles traduzirem “ano” por kwaryp e

identificarem na estação chuvosa o marco de passagem de um ano para outro, mais

coerente pois é exatamente junto com a estação chuvosa que começa o “tempo de

kwaryp”.

Sobre a estação da chuva é interessante colocar que ela é a única que recebe um

nome, amary. Esta informação me foi passada por Takumã em uma conversa que estava

tendo com Chico. Depois de conversar sobre “qualquer coisa” durante algum tempo

perguntei a Chico se os kamaiurá também reconheciam as estações do ano, se eles

tinham nomes para a “primavera” o “verão”, etc. Ele pensou depois de pensar por algum

tempo. Me disse que não, que eles não tinham não. Nesse momento Takumã estava

passando e Chico resolveu perguntar a ele se eles tinham alguma coisa como estações

(me lembro de Chico falando em kamaiurá e depois os nomes das 4 estações em

português). Takumã respondeu que sim, mas que eles tinham só uma. Só o inverno.

Perguntei e o verão, como se falava verão. Ele me disse que não tinha não.

Até esse momento eu tratei quase que exclusivamente do sistema de mensuração

de tempo kamaiurá, tentei fazer uma descrição através de impressões e interpretações

que tive no campo, após ele, e também neste exato momento em que escrevo. Uma

conclusão eu não posso apresentar, eu nem mesmo sei o que seria ela diante de tudo que

tenho em minha frente. O que farei são algumas considerações finais amarrando

algumas idéias que podem ajudar a esclarecer o que é o sistema de mensuração de

tempo kamaiurá. Algumas idéias que se mostram bastante claras nesse momento, mas

precisam ser mais bem focadas para que suas entranhas apareçam apesar da luz. No

entanto estás considerações serão feitas apenas após falar um pouco sobre o sistema

aritmético kamaiurá.

40 Não sei se nome do ritual (Kwaryp) era utilizado também para se referir a um intervalo de tempo, intervalo este que duraria um ano (uma relação estranha tendo em vista que o próprio ritual tem uma duração bastante longa), mas sim se o intervalo de um ano, entre um Kwaryp e outro, por exemplo, é significativo e significado de alguma forma especial pelos kamaiurá.

36

Page 37: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

A aritmética kamaiurá

A “aritmética” é a ciência matemática que estuda o modo como os números são

combinados através das quatro operações básicas. O sistema aritmético ocidental

(chamado na realidade de hindu-arábico) tem base dez. O sistema aritmético kamaiurá

parece ser um sistema quinário41, apesar de que o modo como é organizado o sistema

aritmético kamaiurá e o modo como é organizado o sistema aritmético ocidental não

permite que os classifiquemos a partir do número de elementos que cada um tem em sua

base. Penso que o modo como o sistema aritmético kamaiurá funciona talvez não me

permita classificá-lo a partir do número de elementos que ele tem em sua base, estas

dúvidas, no entanto, só poderão ser esclarecidas em minha próxima ida a campo.

Apresento na próxima página uma tabela com os termos kamaiurá referentes

aos números de um a dez. Este intervalo de um a dez não foi definido arbitrariamente.

Em minhas conversas com Takumã e Kotok diversas vezes ambos afirmaram que os

Kamaiurá contam apenas até dez. No entanto, como relatarei após tratar desses dez

termos iniciais, os sujeitos inventam estratégias a partir do modo como se relacionam

com um e outro sistema aritmético, estratégias estas que lhes permitem equacionar as

diferenças de um e outro sistema no seu dia-a-dia.

Ao contrário da tabela número 1, está não tem uma coluna para a glosa dos

termos em kamaiurá. Isto porque em sua maioria não foram colocadas por meus

informantes e eu não tenho condições de formulá-las com meus conhecimentos atuais

sobre a língua kamaiurá. De qualquer forma tenho algumas informações que devem ser

apresentadas. A palavra nhenepomõmap (5) foi dita como significando “mão cheia”. Os

números de 6 a 9, como pode ser percebido, é uma combinação dos primeiros quatro

termos com nheneva (“mão”). Perguntei a Kotok se a palavra amongaty significa

“mais”, ele me disse que não, significa “outro lado”. Quer dizer é uma mão, junto com

os dedos do outro lado, da outra mão, que representa 6 a 9. Por final, a palavra

nhenepopap (10), significa “acabou os dedos”42.

Tabela 2

Número ocidental Termo referente em kamaiurá

41 Menezes Bastos (1974, pp.156) sugeri que o sistema numérico kamaiurá seria de base quinária.42 Sobre os significados que coloquei acima referente a cada termo, é importante dizer que quem os construiu foram os próprios Kamaiurá. Importante também ressaltar que Seki (2000, pp.79-80) constrói uma etimologia bastante aprimorada. Eu não transcreverei por completo estas etimologias pois acabam por reiterar o significado colocado pelos índios, no entanto, posteriormente darei alguns exemplos de etimologias úteis para o entendimento da discussão.

37

Page 38: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

1 Mõiepete

2 Mõkoen

3 Mõaput

4 Mõinhon iru

5 Nhenepomõmap

6 Nheneva amongaty mõiepete

7 Nheneva amongaty mõkoen

8 Nheneva amongaty mõaput

9 Nheneva amongaty mõinhon iru

10 Nhenepopap

É desnecessário dizer a relação direta dos dedos (como veremos a seguir não

apenas os das mãos) com a forma como os kamaiurá contam. Acredito que a

representação subjetiva deste modo de contar se diferencia de maneira paradigmática

daquela produzida pelos números ocidentais. Um é um. Dois é um mais um. Três é um

mais... e assim por diante, até onde quisermos. No caso kamaiurá me parece improvável

que mokõen seja mõiepete mais mõiepete. Dois não é uma repetição de um. Algumas

observações sobre o modo como os kamaiurá contam irá ajudar a compreender porque

afirmo o que acabei de dizer.

A referência aos dedos não é um mero acaso. Quando um kamaiurá conta ele

invariavelmente utiliza seus dedos para isso. Seja quando o faz em kamaiurá seja

quando o faz em português (nesse último caso apenas até dez) a cada número falado um

dedo é estendido. Interessante que parece haver uma mão correta para se iniciar a

contagem, assim como uma ordem correta para a extensão dos dedos. Observei uma vez

a irmã de Kotok (Mapulu) contar quantos filhos tinha seu irmão. Kotok tem mais de

vinte filhos, fato que impossibilita a contagem destes em kamaiurá. Mapulu não

começou a contar desde o início, ela lembrava-se que ele tinha já um certo número de

filhos (mais que 15) e começou a fazer a conta a partir dos que foram nascendo desde o

momento em que ela tomou como referência. Ela tinha os dedos das duas mãos

estendidos e, sentada com as pernas esticadas, olhava fixamente para seus pés,

acrescentando filho por filho e dedo por dedo.

38

Page 39: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

A aparição, no sistema aritmético kamaiurá, dos quatro primeiros termos nos

termos de 6 a 9 pode parecer uma repetição, uma adição de iguais. No entanto, como já

disse anteriormente, mas que talvez só agora se torne visível, amongaty não significa

“mais” mas sim “outro lado”. Esse “outro”, certamente, não um igual. É difícil acreditar

que um dedo que esteja em uma mão, e outro que esteja em outra mão, sejam o mesmo

dedo. Apenas a volta a campo irá tornar possível uma interpretação mais sólida desses

fatos que percebi. Dessa maneira, também não poderei nesse momento explicar e

justificar satisfatoriamente porque digo que mõkoen é mõkoen e não mõiepete mais

mõiepete. Faço agora apenas um esboço de como começo a equacionar tudo que vi em

relação ao sistema aritmético kamaiurá, porque penso o que penso e que informações

me serão úteis na construção de uma interpretação sólida.

Começo por pensar no fato de existir uma mão correta pela qual se deve

começar a contagem e uma ordem correta para a extensão dos dedos. Se existe uma

ordem é porque certamente ela significa ou representa algo. Se não podemos levantar

aleatoriamente um dedo a cada número contado é porque cada um desses números deve

manter alguma relação direta com cada um dos dedos. Seria importante, para

aprofundar esta linha de pensamento, saber se os kamaiurá nomeiam cada um de seus

dedos separadamente. De qualquer forma, em comunicação pessoal com meu orientador

soube que o lado direito (aeté katy) e esquerdo (iau katy) são equacionados,

respectivamente, como “bom”, “belo” e “sinistro”. Em Menezes Bastos (1989, p.212)

encontramos um relato feito por um de seus informantes que diz: “Na festa de verdade,

no Kwaryp, não se pode fazer isto. O Kwaryp está no ‘princípio’. O Yawari no ‘meio’.

O Yawari é uma ‘comédia’, é ‘ciúme’, é ‘vergonha’. Não há ‘respeito’ no Yawari”. A

relação que faço parte do fato de que os kamaiurá começam a contar sempre a partir da

mão direita43, o lado do “bom” e do “belo”, característica do Kwaryp, rito do

‘princípio’.

Concomitantemente, a forma como os kamaiurá se referem aos números é

também assentada sobre a percepção dos dedos. Alguns exemplos de como Seki (2000)

constrói as etimologias dos numerais cardinais irá clarificar o que quero dizer com

“assentada sobre a percepção dos dedos”.

“A palavra jenepomomap “cinco” é claramente constituída dos morfemas jene

“primeira pessoa inclusiva”, -po “mão”, mo- “prefixo causativo” e –pap “terminar”,

43 Não apenas um acaso. Lembro-me que Kotok me falou expressamente dessa necessidade de se começar a contar pela mão direita.

39

Page 40: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

correspondendo literalmente a “fazer terminar nossa mão”, e a palavra para “dez”,

jenepopap, contém os mesmos morfemas, exceto o prefixo causativo, correspondendo a

“nossas mãos terminaram””. A correspondência não literal das palavras jenepomomap e

jenepopap são colocadas por Seki (idem) como, respectivamente: “cinco ou em cinco” e

“dez ou em dez”. Todas as glosas dos termos da tabela de Seki, exceto mojepete e

mokõen, que recebem como glosa respectivamente “um, uma vez” e “dois, duas vezes”,

seguem o mesmo padrão que jenepopap e jenepomomap, a saber: “n ou em n”, sendo

“n” o numeral correspondente ao termo kamaiurá em português.

Outras etimologias interessantes que Seki faz são as que se referem aos números

de 6 a 9, de 11 a 14 e, finalmente, de 16 a 1944. Os termos que ouvi referentes aos

números de 6 a 9 são bastante diferentes daqueles que Seki apresenta. “Seis”, por

exemplo, é grafado em Seki (2000 pp. 79) jene poa wero’yahap mojepete. A etimologia

para este termo é a seguinte: jene, “pronome cíclico primeira pessoa inclusiva”; -po,

“nome, significa mão”; -ero’yahap, “verbo, passar por, passar além de, atravessar” e;

mojepete, “numeral, um”. O significado literal apresentado por Seki como “passar por

nossa mão uma vez”. Os termos referentes aos numerais de 16 a 19 seguem a mesma

estrutura apresentada acima, sendo o morfema –po (mão), substituido pela palavra –py

(pé). Os termos para os números de 11 a 14 recebem o morfema pyai (dedo do pé) e são

montados em uma estrutura diferente. Um exemplo: 13 disse em kamaiurá mo’apyt jene

pyai wero’yahap. Não preciso explicar cada morfema individualmente tendo em vista

que já o fiz no começo deste parágrafo. O significado literal do termo, segundo Seki

(2000 pp.80) é “passar por três nosso dedo do pé”.

Seis são seis vezes um. O termo “seis”, no entanto, não remete diretamente a sua

trajetória até a “casa seis”. “Seis” pode ser seis, apenas. O termo correspondente a seis

em kamaiurá tem implícito em sua construção alguns sentidos “ocultos”. O termo

começa com um pronome na primeira pessoa, faz referência a mão, informando através

do verbo logo após que essa mão já passou, e em seguida o termo referente a “um”. Fica

implícito a passagem por toda uma mão, e depois mais um dedo, para chegar “em seis”.

A imagem subjetiva dos numerais cardinais kamaiurá me parece ser, impreterivelmente,

44 Disse anteriormente que nas diversas vezes que perguntei a Kotok e Takumã coisas sobre o sistema aritmético kamaiurá sempre me foi reiterado que os kamaiurá contam apenas até dez. No entanto fui a campo já tendo contato com a gramática de Seki e, dessa forma, sabendo da possibilidade de eles contarem até mais que dez. Enquanto estive lá, duas vezes, uma conversando com o professor da escola e outra conversando com um homem mais novo, pude entrar em contato com como contar além de dez. No entanto meu encontro com essas pessoas eram sempre breves e muito pouco freqüentes, fato que me impossibilitou anotar ou chegar mesmo a ter conhecimento de todos os termos utilizados nessa contagem.

40

Page 41: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

de uma densidade difícil de ser entendida a partir dos numerais cardinais ocidentais.

Todo número em kamaiurá, como disse no último parágrafo, não é apenas o número,

mas é também no número. Quer dizer, não se chega em seis sem antes percorrer todos

os caminhos até seis. Quero deixar claro que os kamaiurá, é claro, podem muito bem

falar em “6” sem ter que contar até “6”. Estou me referindo ao sentido do numeral em

si, ao significado implícito que a palavra carrega, e não a utilização dos termos.

Com estas poucas página escritas sobre o sistema aritmético kamaiurá acredito

ter dado conta de explicar boa parte daquilo que percebi em minha pesquisa de campo.

Um tema que ficou de fora, tanto na esfera do sistema kamaiurá de mensuração de

tempo, quanto da esfera do sistema aritmético kamaiurá, foi como a utilização de

artefatos (sejam simbólicos ou materiais) com origem na sociedade ocidental estão

fazendo com que os kamaiurá tenham que criar estratégias e resignificados que lhes

possibilitem um trânsito fácil entre um e outro sistema (o ocidental e o kamaiurá). A

razão por não abordar este tema foi a de que não este caberia neste TCC, e eu não teria

tempo para tal empreitada. Este será, sem dúvida, um dos meus objetivos em meu

projeto de mestrado.

Considerações finais

Acredito que o primeiro ponto que devo abordar em minhas considerações finais

deve remeter diretamente ao meu objetivo principal, o sistema de mensuração de tempo

kamaiurá. Já fiz uma descrição, o mais detalhada possível nos limites de minhas

possibilidades, da grande maioria daquilo que percebi durante meu trabalho de campo

entre os índios kamaiurá. O principal ponto dessa parte do texto será explicar através de

quais mecanismos o sistema kamaiurá de mensuração de tempo equaciona as relações

entre seus termos.

Como disse no começo deste trabalho, o sistema de mensuração de

tempo ocidental tem como um dos fundamentos para o seu funcionamento a

“repetição”. Repetição, no caso ocidental, que multiplica ou divide termos que através

dessas operações criaram novos termos. Temos como unidade básica de tempo no

ocidente o “segundo” e a partir dele podemos multiplicá-lo ou dividi-lo para

alcançarmos qualquer unidade de medida de tempo ocidental que existe. O sistema

kamaiurá de mensuração de tempo também tem como um dos mecanismos propulsores

41

Page 42: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

de seu sistema a “repetição”, porém, neste caso, a repetição de termos que são de uma

natureza bastante distinta da do sistema ocidental45. Lembro meus leitores que nos

primeiros parágrafos da introdução disse que não basta saber contar em kamaiurá para

saber marcar o tempo em kamaiurá.

Nas últimas páginas do segundo capítulo, tomando contato com o sistema

aritmético kamaiurá descobrimos que os termos deste sistema e o de mensuração de

tempo não são os mesmos. No entanto, naturalmente, o sistema aritmético kamaiurá é

também usado para “saber o tempo”. Os kamaiurá costumam dizer, quando querem

contar quantos dias fazem que algo aconteceu, que se passaram “n dormidas”46. No

ritual do Yawari, por exemplo, o pareat (convidador) leva consigo um arco de imbira no

qual terá que fazer tantos nós quantos forem os dias que os convidados demorarão para

chegar (o Yawari, “festa da Jaguatirica”, é também um ritual inter-tribal alto-

xinguano(GALVÃO, 1979)47. Nos dois casos o sistema aritmético é utilizado

paralelamente a outras noções para informar um certo intervalo de tempo.

Alguns comentários sobre o primeiro exemplo (“n dormidas”) e o começo do dia

kamaiurá. Uma pergunta que me fiz, ao não encontrar nenhuma “pista” sobre quando

começa e termina o “dia” kamaiurá foi se eu não estaria fazendo a pergunta errada.

Tentei perguntar “o que é a primeira coisa que o kamaiurá faz quando o dia começa?”.

A resposta que recebia era ou “banhar” ou trabalhar, as duas primeiras coisas feitas

durante a manhã. Ao revisar as etimologias de algumas palavras na gramática de Seki

(2000), encontrei a palavra em kamaiurá referente a “dia” em uma tabela que relaciona

os diferentes momentos do “dia” (período de 24h) kamaiurá com as respectivas “horas”

em português, dela também foi retirada a glosa “dia, luz”, para at. O significado da

palavra dia em português pode tanto indicar um período de 24h como o período

compreendido entre o nascer e o por do sol. At que é utilizada como termo para se

referir à 4h, não encontra “tradução” absoluta em nenhum dos dois significados

possíveis para “dia” em português, relaciona-se mais estreitamente, certamente, com o

segundo deles48. Este fato explicaria porque todas as respostas que recebi relacionando-

45 É preciso deixar claro que não apenas a “repetição” esta presente no sistema kamaiurá, mais adiante veremos que tão importante quanto esta, para eles, é também outra dimensão do tempo. Veremos nos últimos parágrafos deste trabalho que a “repetição” não é a única forma que percebemos o tempo, de maneira alguma. Minha ênfase nesta esfera se dá por causa da ênfase que a sociedade ocidental põem nesta.46 Esta informação me foi passada por meu orientador. 47 GALVÃO, Eduardo. Encontro de sociedades. Índios e brancos no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p.46.48 At foi também a palavra que me indicaram para se referir a “tempo”.

42

Page 43: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

se com esse assunto indicavam como o começo do “dia” kamaiurá o amanhecer. Tenho

como certo que o começo (e seu fim) do “dia” (período de 24h) kamaiurá, seguindo o

que indica Menezes Bastos (1989), é marcado pelo payemet, este sendo o ponto de

intersecção entre um e outro “dia”. Como já foi dito, antigamente os kamaiurá iam

deitar-se bastante cedo, logo após o payemet, e tendo isto em mente, seria normal eles

utilizarem as noites de sono, a primeira coisa que fazem no começo de seus dias, para

marcarem o transcorrer destes.

Os ocidentais também utilizam, paralelamente ao seu sistema de medida o seu

sistema aritmético para expressarem medidas de tempo. Dizemos: “6 meses”’; “7 dias”;

“10 anos”. Estes exemplos, propositalmente escolhidos, nos permitem visualizar a

natureza da repetição do sistema de mensuração de tempo ocidental. Este sistema,

baseado em certas conexões com a realidade, interpreta esta realidade criando

“intervalos” de realidade, estes intervalos, por sua vez, podem ser agrupados e

reagrupados de modo a organizarem novos intervalos, e assim sucessivamente. Dessa

maneira “6 meses” se transforma em “1 semestre”, “7 dias” em “1 semana”, “10 anos”

em “1 década”. Voltando ao caso kamaiurá, “n dormidas” não será uma semana, ou

mês, independentemente de quantas noites se passarem. É interessante que eu não tenha

tido contato com este “modo” de expressar a passagem dos dias. Em nenhum momento

eu recebi como resposta, ou ouvi algo que fizesse pensar nisso que Menezes Bastos

aponta. Este fato pode ser esclarecedor.

Faz sentido que os kamaiurá marquem a passagem dos dias contando quantas

noites foram dormidas tendo em vista que o começo do seu dia se da durante o payemet.

A primeira coisa que fazem em seu “dia” marca a passagem deste. O payemet, no

entanto, este começo e final, é indicado por Menezes Bastos como sendo um intervalo

fora do tempo. Eu não ter tido contato com esta forma de mensurar o tempo kamaiurá

talvez tenha como explicação eu estar focando tudo exatamente no sistema de

mensuração destes. Menezes Bastos, interessado que estava com outros assuntos, mais

especificamente, no caso, com o ritual do Yawari, presenciou Takumã perguntar a

pessoa encarregada de convidar outras tribos para o rito: “quantas dormidas para a

chegada dos (...)?” Este “digitou “três”, apontando com o dedo indicador da mão direita

para uma série de três dedos da esquerda”. Interessante ressaltar que o “convidador”

voltou de sua jornada às 20h e que os convidados, três dias depois, mesmo já estando

nos arredores da aldeia kamaiurá há algum tempo, esperaram até às 19h45min para

oficialmente se apresentarem no rito.

43

Page 44: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

Dessa maneira que eu, procurando por artefatos que mostrassem de forma mais

clara o sistema de mensuração de tempo kamaiurá, não pude encontrar esta forma de

mensurar o dia. Não porque fiz as perguntas erradas, mas porque procurei no lugar

errado. Procurei sempre onde havia o tempo para saber como os kamaiurá pensam o

tempo, o que percebo apenas agora é que tão importante onde há tempo, para os

kamaiurá é também onde não há. Marcar os dias pelas noites dormidas porque o novo

dia começa nessa “dormida”, um novo dia marcado por um “descontínuo”, um novo dia

“anunciado” durante o final do “dia”.

Esse descontínuo me parece ser a chave para entender a diferença crucial entre a

repetição kamaiurá e a repetição ocidental. A repetição exige que características em

comum existam entre os termos que estão sendo repetidos. Esta afirmação pode parecer

sem sentido, tendo em vista que se repetimos um termo de qualquer sistema teremos,

certamente, características em comum entre um e outro termo. No entanto no dia-a-dia a

repetição acontece baseada em certos “sinais” que nossa cultura nos faz perceber, em

outros não. Os kamaiurá tem como um desses “sinais” o momento do payemet, e a

subseqüente “dormida”. O fato de o payemet ser considerado um momento fora do

tempo faz com que a passagem de um dia para outro aconteça de uma forma

descontínua, marcada por um intervalo que, no que se refere ao meu estudo, e pelas

características próprias que têm, não podemos nem mesmo chamar de intervalo, posto

que é atemporal.

Esta descontinuidade me parece acarretar algumas características para o sistema

de mensuração de tempo kamaiurá. A repetição kamaiurá não é repetição de iguais, é

repetição de diferentes. A repetição ocidental é capaz de criar novos termos em seu

sistema a partir de outros termos, a semana, por exemplo, repetindo-se o dia sete vezes.

O sistema kamaiurá de mensuração de tempo não apresenta esta característica, novos

termos não são criados a partir da repetição de outros. A repetição kamaiurá é a

repetição dos ciclos naturais. Todo intervalo percebido pelos kamaiurá podem ser

repetidos quantas vezes estes forem capazes de contar. No entanto, a relação dos termos

do sistema não se da a partir da repetição. Os kamaiurá podem certamente dizer que já

fazem 5 dormidas que ele esta esperando, e ai certamente existe repetição, posto que ele

identifica as dormidas como 5. No entanto, ele poderá identificar quantas dormidas

forem que este intervalo não vai nunca se transformar em outro intervalo. Ele identifica

as dormidas em referências muito claras, seu próprio sono, seu próprio sonho (é

interessante que boa parte das conversas durante a manhã gire em torno dos sonhos da

44

Page 45: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

última noite), mas a repetição destas referências não significa a repetição do dia, do

mesmo dia.

Quando digo que “não basta saber contar em kamaiurá para saber medir o tempo

em kamaiurá”, estou fazendo uma paródia transportando a lógica ocidental para o caso

kamaiurá. Agora, após ter esclarecido um pouco sobre o sistema aritmético kamaiurá,

posso dizer que este e o sistema de mensuração de tempo funcionam através dos

mesmos mecanismos. Isto não significa que os dois são parecidos, nada além daquilo

que acabei de dizer. Disse em algum momento que mokõen não é moiepete mais

moiepete (dois não é um mais um), por causa da relação intrínseca que a imagem

simbólica dos termos mokoen e moiepete têm com um objeto muito concreto, o(s)

dedo(s). O mesmo acontece com os termos do sistema de mensuração de tempo

kamaiurá, como pôde ser observado na tabela 1, e com as dormidas, comentada nos

últimos parágrafos. Ambos os sistemas tomam seus pontos de referência como

constituintes de seus termos, e o princípio que orquestra a relação entre estes termos tem

na forma como os sujeitos percebem as tais referências sua força motriz.

E aí temos esclarecida a repetição kamaiurá. A percepção da repetição dos ciclos

que eles escolheram perceber, é baseada em referências elas próprias constituintes do

sistema, como coloquei. O fato de estas referências serem elas mesmas constituintes do

sistema acarreta, pela concretude que estas carregam, uma percepção da repetição que

não vai além das próprias referências, posto que todo o resto é diferente. Como disse “se

na nossa sociedade o sol nasce todo dia em um horário diferente, na sociedade kamaiurá

o sol nasce diferente todo dia em um mesmo horário”. O fato de o sol nascer e

apresentar sua luz se repete, e é isto que é percebido, mas de maneira alguma o sol que

nasceu ontem de um jeito, vai ser hoje do mesmo. O fato de um dedo e outro dedo

serem ambos, dedos, é uma repetição, mas não conseguimos, olhando para nossos

dedos, confundi-los, ou imaginar que três mindinhos são um indicador.

Leach (1974) em dois artigos “Cronos e Crono” e “O Tempo e os Narizes

Falsos” estabelece que existem dois tipos de experiências no que se refere ao “sentir” o

tempo. Estas são: (1) “que certos fenômenos da natureza se repetem”; (2) “que as

mudanças da vida são irreversíveis”. LEACH (1974, pp.193). O autor diz ainda que na

moderna sociedade ocidental tende-se a dar mais valor para o segundo tipo de

experiência, mas que, pelo fato desta ser “desagradável” do ponto de vista psicológico,

busca-se fugir da mesma. Essa fuga seria o motor principal das religiões: achar um meio

de reverter as irreversibilidades da vida. O jeito mais usual de se fazer isso seria

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Page 46: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

identificando o “fim” com o “início”, equacionando o segundo tipo de experiência com

o primeiro.

Sobre “nosso modo de pensar” ele diz que “todo intervalo de tempo é marcado

pela repetição; ele tem um começo e um fim que são “a mesma coisa” (...) cada

intervalo de tempo é apenas uma parte de algum outro intervalo maior que, do mesmo

modo, começa e acaba repetidamente”. Esse pensamento nos levará a considerar que o

“próprio tempo (seja ele o que for) acaba por se repetir”. O autor argumenta que não

existe em nossa experiência fatos que sustentem esse modo de encarar o tempo e que

esse ímpeto viria exclusivamente da religião, ressaltando que o homem é um “animal

social”.

Antes de apresentar um outro modo de pensar o tempo, Leach ressalta o fato de

sentirmos o tempo “passar” de forma desigual durante nossa vida. Afirma que

realmente, como os organismos mais novos têm um metabolismo mais acelerado do que

os mais velhos, o tempo “passa” em velocidades diferentes para uns e outros, e o fato de

o considerarmos como uniforme também seria um reflexo da religião. Por fim diz que

muitos povos não concebem o tempo como “rodando”49, mas como indo e vindo, como

um pêndulo. “Com uma visão pendular do tempo, a seqüência das coisas é descontínua;

o tempo é uma sucessão de alternações e paradas. Os intervalos são distintos, não como

os marcos de seqüência em uma régua de medida, mas como opostos repetidos (...).”

(LEACH, 1974. pp. 206).

49 Uma metáfora muito utilizada pelos matemáticos para representar a repetição do “próprio tempo”.

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Page 47: A Mensuração de Tempo dos Índios Kamaiurá

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