A Morte Sem Mestre - Cenas de Escrita

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HELDER, Herberto. A morte sem mestre. Porto: Porto Editora, 2014. 1. o teu nome novo, comecei eu a tirá-lo com uma navalha da madeira grossa, e nunca mais saía a única letra até dentro, a primeira, e já toda a mão me sangrava com o talho à volta dos dedos, e a letra e o melhor do meu sangue e a seiva metiam-se pela ferida como se ela mesma fosse o meu trabalho apenas, sangue que escorria pulso abaixo e me escoava: a própria lavra da escrita – ¿oh quando arranjarei mão que alcance em sangue e força o fundo final desse começo de ti, nome terreno, isso: coisa amada tanto quanto o alvoroço mortal deste fim de idade: será que nenhum poder me devasta ainda? (p. 8) 2. entre as suas pernas afastadas, dentro das minhas mãos unidas, um leão atrás da porta nunca poderia brilhar tanto, uma bic cristal preta, um papel quadriculado, umas unhas sujas, uns pulmões de carvão abusados pelo tabaco, uma vida cega de olhar tanto por aí adentro que até já tenho medo que um momento, um só, me toque o deslumbre de estar no meio do mundo encostado ao ar apenas, eu, o bruto, o que não entendeu o sinal, o que não viu a onda a entrar no porto e a espuma a espumar no ar, a estrela a rebentar no ar como uma estrela, oh sim, abra as pernas como a Lady Godiva, ou a grávida extrema, a deusa, a mais simples rapariga que vai parir,

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HELDER, Herberto. A morte sem mestre. Porto: Porto Editora, 2014.

1. o teu nome novo, comecei eu a tir-lo com uma navalha da madeira grossa,e nunca mais saa a nica letra at dentro,a primeira, e j toda a mo me sangravacom o talho volta dos dedos,e a letra e o melhor do meu sangue e a seivametiam-se pela ferida como se ela mesma fosseo meu trabalho apenas,sangue que escorria pulso abaixo e me escoava:a prpria lavra da escrita oh quando arranjarei mo que alcance em sangue e forao fundo final desse comeo de ti,nome terreno,isso: coisa amada tanto quanto o alvoroo mortal deste fim de idade:ser que nenhum poder me devasta ainda? (p. 8)

2.entre as suas pernas afastadas,dentro das minhas mos unidas,um leo atrs da porta nunca poderia brilhar tanto,uma bic cristal preta,um papel quadriculado,umas unhas sujas,uns pulmes de carvo abusados pelo tabaco,uma vida cega de olhar tanto por a adentroque at j tenho medoque um momento, um s, me toque o deslumbrede estar no meio do mundoencostado ao ar apenas, eu, o bruto,o que no entendeu o sinal,o que no viu a onda a entrar no portoe a espuma a espumar no ar,a estrela a rebentar no ar como uma estrela,oh sim, abra as pernas como a Lady Godiva,ou a grvida extrema,a deusa,a mais simples rapariga que vai parir,a segunda rapariga rapariga a cantar a contar da outra,abra, que dou logo com a boca na primeira palavraonde j o sangue coze todo,eu que em verdade no sei nada seno que me pareceu um momento que estava pronto para ver,e afinal s quero cair a um canto, fechar os olhos e, em havendo algum calor,chegar-me a ele, e quem sabe se pegar fogo,ir embora numa labareda grande de meia dzia de palmos de iluminura:purificao de esterco, oh glria que nunca nigum me prometeranunca nunca:uma espcie de musa ou de puta (p. 18-19)3.[...] a essa pouca mo, a esse pouco de escritainsensata, sensvel, canhota,se calhar, que sei eu?, devo a vida,e se a vida, a minha, me vale de alguma coisa,no para fortuna do mundo,mas para mim mesmo que respiro enquanto escrevo,embora possa haver quem o no creia ou no queira,ento, para acabar, agradeo como acabo:estupor velho e relho,um bom sacana (p. 25)

4.e eu sensvel apenas ao papel e esferogrfica: mo que me administra a alma

5.se um dia destes parar no sei se no morro logo,disse Emlia David, padeira,no sei se fazer um poema no fazer um poum po que se tire do forno e se coma quente ainda por entre as linhas,um dia destes vejo que no vou parar nunca,as mos sbito cheias:o mundo s fogo e po cozido,e o fogo que d ao mundo os fundamentos da forma,po comprido nas terras de Frana,po curto agora nestes reinos salgados,se parar no sei se no caio logo ali redonda no cho friocomo se casse fundo em mim mesma,a mo dentro do po para com-lo disse ela (p. 29)

6.queria fechar-se inteiro num poemalavrado em lngua ao mesmo tempo plana e plenapoema enfim onde coubessem os dez dedosdesde a roca ao fusopara l dentro ficar escrito direito e esquerdoquero eu dizer: todovivo moribundo mortoa sombra dos elementos por cima (p. 30)

7.porque j me no lavo,porque desde os oitenta s me lavava em gua soberba(gua que no h)porque mal acordo tenho muita pressa e vou correndo verse o sonho bate certo(com que pode bater certo sonho to limpo?)porque o mundo seria turvo e eu no me curvaria nunca,e ento no me lavo,ileso o corpo,spro que me tinha no ar,impalpvel tecido de um jogo,o sentimento de no haver nenhum temposeno aquele mesmo nenhum que era sempre: noite vinha o orvalho,manh muito cedo era s sossego,depois a erva estremecida e moviam-se as colinaspara stios que ningum sabia,depois a gente banhava-se que era tudo quanto se podia ver em cima do universo:a terra no tinha costuras,nem secreto e aberto, nem dentro e fora, nem sujo e limpo,nem ningum tomava banho seno aquilo:estou to lavado que estremeo de tudo o igual a mim mesmo,limpo tanto que mete medo desde o cho ao imenso arcodo abrao com aquilo sossego:nome de banho seno este:externo extenso extremoescrito to magnoo tamanho banho:denominao: dominao de tudo nome baptismo,imo o stio (p. 51-52)

8.folhas soltas, cadernos, livros, montes inexplicveis, e cada vez que lhes toco fica tudo mais catico e no descubro nada,s vezes procuro apenas uma palavra que algures na desordem estava certa,nos magos e umbigos da alma:brilhava,uma vez encontrei um relmpago, e quase morri de assombro,quase via alguma coisa nos jardins de outro mundo,quase via o fogo que nascia,quase irrompeu um poema quase sem uma palavra errada,quase me tocaram,quase nasci ali mesmo nesse pice da terra inteira,quase que a mo esquerda se moveu dentro da desordem,quase tinha pegado fogo mas j estava fora,quase todo eu era matria-prima,mas de repente no,de repente as coisas colocadas regressavame entre elas, dentro, sentado, eu apenas escrevia isto,catico como antes era:livros, folhas soltas, cadernos, etc.,este pequeno poema que deixava tudo revolto como dantes era,e eu no tocava em nada e nada me tocara,e nada se tocara entre si,e eu morria aos poucos como era costume na poca (p. 55-56)