A Mulher Sertaneja Uma Anáilise Cultural Ok Revisado Por Hudson
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Transcript of A Mulher Sertaneja Uma Anáilise Cultural Ok Revisado Por Hudson
.A MULHER SERTANEJA: UMA ANÁLISE CULTURAL
Miriam Carla Batista de Aragão de Melo (Mestranda/UFS)
Resumo: Este trabalho objetiva analisar a construção da identidade feminina no poema A
Mulher Sertaneja (2010), do cordelista sergipano Ronaldo Dória. Observamos que, apesar de ser
uma obra produzida no início do século XXI, imerso na globalização e nas vozes discursivas da
pós-modernidade, nela predomina um olhar patriarcal, estereotipado e tradicional, sobre o papel
da mulher que reside no sertão nordestino. A análise textual se dará pelo viés dos Estudos
Culturais e verificaremos os níveis em que este poema dialoga com a tradição cultural
hegemônica (BHABHA,1998), ); refletiremos ainda sobre questões de gênero e do falar
subalterno (SPIVAK, 2010), bem como sobre aspectos relacionados à identidade cultural
(HALL, 1999).
Palavras-chave: estudos culturais; identidade cultural; mulher sertaneja.
1. Introdução
No início do século XX, o Cordel se proliferou pelo Nordeste e a mulher era
descrita, predominantemente, sob um discurso ideológico colonialista, sendo construídas
representações femininas a serviço do interesse de um discurso patriarcal que pretendia impor
a sua cosmovisão como universal, levando à construção de uma identidade feminina
uniforme, prevalecendo, assim, os estereótipos.
Apesar de ser uma obra situada no início do século XXI, imerso na
globalização e nas vozes discursivas da pós-modernidade, o poema A Mulher sertaneja,
produzido no ano de 2010 pelo cordelista sergipano Ronaldo Dória, nascido na cidade de
Aracaju e criado no sertão sergipano, retrata ainda esse mesmo olhar patriarcal estereotipado e
tradicional sobre o papel da mulher que reside no sertão nordestino, expressando uma
identidade feminina sertaneja enraizada pelas em ideologias colonialistas.
Neste trabalho, pelo viés dos Estudos Culturais, objetivamos construir uma
análise crítica dessa representação identitária da mulher sertaneja cantada nos versos poéticos
do texto em estudo. Para isso, estabeleceremos diálogo com concepções teóricas presentes nos
textos dos autores Stuart Hall e Homi Bhabha, em suas obras A identidade cultural na pós-
modernidade (1999) e O local da cultura (1998), respectivamente, bem como, com a ideia de
subalternidade trabalhada pela autora Gayatri Spivak, em seu texto Pode o subalterno falar?
(2010).
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Embora os Estudos Culturais tenham surgido no ambiente universitário,
sabemos que extrapolaram os muros acadêmicos e se tornaram suporte teórico para o estudo
de diversas manifestações populares, dentre elas a Literatura de Cordel, que é realizada pelo
povo e esboça aspectos significativos do cotidiano, mostrando formas específicas de
elaboração de versos e fazendo alusões ao linguajar popular. De modo geral, os Estudos
Culturais são compreendidos como um campo de pesquisa que se baseia nas relações entre
cultura contemporânea e sociedade, suas formas, instituições, mudanças e práticas culturais
(ESCOSTEGUY, 2004, p. 138-139).
Dessa forma, encontramos nesse campo de estudos a possibilidade de
realização de uma crítica textual que considere a diversidade cultural e valorize a variedade de
produções artísticas, admitindo a cultura como um campo de batalha entre modos de vida
diferentes (2004, p.141) e não tendo compromisso em reproduzir a tradição cultural elitista,
bem como, reconhecendo que a literatura não pode mais ser vista como sinônimo de “cultura
refinada” que representa apenas os clássicos e o cânon, sendo feito um trabalho de resgate das
produções culturais populares, a exemplo do poema em análise, colocadas à margem pela
tradição, nivelando a “cultura de baixo” à “alta cultura” (COUTINHO, 1996, p.72).
2. Fundamentação teórica
Na concepção pós-moderna, a arte não pode ser mais compreendida fora de seu
contexto social, uma vez que se trata de uma forma de produção cultural. Nesse ambiente, a
linha entre formas de arte eruditas e não eruditas desaparece e as tradições não são
necessariamente reverenciadas como consagradas, mas toda manifestação artística deve ser
interpretada criticamente e o universo de estudo ampliado, passando a incluir imagens e
objetos das tradições populares e folclóricas antigamente ignoradas (EFLAND, 2005, p.177-
178).
Literalmente, o termo Estudos Culturais, cunhado por Richard Hoggart, em 1963,
refere-se ao estudo da cultura, entretanto, o conceito de cultura é admitido de modo bastante
elástico nesse campo de pesquisa e “pode ser usado para se referir a quase tudo, desde os
clássicos, às belas artes e ao cânone da alta literatura até à sociologia da guerra e à
antropologia do parentesco” (MILNER, 2007, p. 420).
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Além disso, essa área de estudos se constitue constitui uma possibilidade de reflexão a
partir de espaços de livre circulação de ideias e criticidade, e pode ser admitida como a
proposta de um debate que passa por temas contemporâneos relacionados a questões de
gênero e sexualidade, identidades nacionais coloniais e pós-coloniais, raça e etnicidade, entre
outros, cuja investigação intelectual se propõe politizada ((RESENDE, 2005, p. 250-251,257).
Ao longo dos anos, os Estudos Culturais têm sido definidos em torno de quatro
conjuntos principais de significados (MILNER, 2007, p. 421-424): intervenção política,
disciplina inteiramente nova, campo de interdisciplinaridade e novo paradigma teórico. Desse
modo, quanto ao primeiro aspecto desse conjunto, explicitamos que já na década de 1970 os
Estudos Culturais tornavam-se cada vez mais interessados na política cultural da diferença
sexual e racial, posteriormente, durante as décadas 1980 e 1990, a discussão política se
expandiu, e foram incluídos o nacionalismo, o multiculturalismo e o pós-colonialismo à sua
forma engajada de análise.
Quanto ao caráter disciplinar inovador dos Estudos Culturais, destacamos que desde o
princípio de seus estudos esse campo voltou-se para a pesquisa da cultura popular e operária,
reagindo ao elitismo das formas mais antigas de estudo literário, consolidando a sua crítica ao
conceito ontológico de literatura e pondo em questionamento a visão estreita de cânone, sendo
compreendido como uma sociologia, etnografia ou semiologia do consumo dos meios de
comunicação de massa.
No que se refere ao aspecto interdisciplinar dos Estudos Culturais, explicitamos que
desde os anos 70 a sua proposta consistiu na ampliação de fronteiras, recrutando estudiosos
das áreas de ciências sociais, história, psicologia, antropologia e estudos literários para
analisar os seus objetos de pesquisa. Segundo Escosteguy (2004), os Estudos Culturais são
uma área que resulta da insatisfação com algumas disciplinas e seus limites, constituindo-se
um campo onde várias disciplinas interagem no estudo de aspectos culturais da sociedade, não
sendo um campo unificado de análise (p. 137).
Já em relação ao fato de constituir um novo paradigma teórico para o estudo da
cultura, Milner (2007) explica que os Estudos Culturais vinculam o estudo do popular ao do
literário, interessando-se tanto por televisão e imprensa quanto por literatura e drama
canônicos, por exemplo, demonstrando como através de um movimento duplo entre os
Estudos Culturais e os Estudos Literários pode ocorrer uma interferência no campo
tradicionalmente literário da textualidade, sendo estabelecidas relações entre texto literário e
sociedade, cultura e política, dando evidência à complexidade do fazer cultural.
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Ainda em relação ao aspecto do texto e da textualidade, o autor Stuart Hall (2003)
afirma que a linguagem tem uma importância crucial para qualquer estudo da cultura, e
explica que no âmbito dos Estudos Culturais a noção de texto e textualidade sempre foi
bastante expandida, uma vez que esse campo de análise reconhece a heterogeneidade e
multiplicidade dos significados, pois o simbólico é visto como fonte de identidade e a
representação linguística é compreendida como local de poder. Dessa forma, Hall (2003)
esclarece que ao pensar questões da cultura através das metáforas da linguagem e da
textualidade, os Estudos Culturais se voltam para a realização de uma análise crítica que vá
além do aparente, que enxergue além da significação direta e imediata ou da superficialidade
do texto, voltando-se para as “sombras”, ou seja, para a identificação das ligações diretas ou
indiretas que um texto estabelece com outras estruturas (agências, classes, academia, raças,
gêneros, entre outros), bem como, para o vestígio da intertextualidade desse texto, analisando-
o sempre em seu respectivo contexto.
Hall (2003) destaca, ainda, que essa forma de análise crítica textual é marcante na
definição dos Estudos Culturais enquanto projeto e explicita que esse é um campo de estudos
que se caracteriza pela proposição de uma crítica intelectual não orgânica, mas dialógica, que
admite o trabalho de análise crítica do texto como prática intelectual transitória, em
permanente construção, e que não tem a pretensão de se inscrever como metanarrativa
englobante de conhecimentos acabados (p. 211-217).
Assim, estabelecendo diálogo com concepções teóricas presentes nos textos dos
autores Stuart Hall e Homi Bhabha, em suas obras A identidade cultural na pós-modernidade
(1999) e O local da cultura (1998), respectivamente, bem como, com a ideia de
subalternidade trabalhada pela autora Gayatri Spivak, em seu texto Pode o subalterno falar?
(2010)supracitados (Stuart Hall, Homi Bhabha, Gayatri Spivak), construiremos uma análise
crítica textual do poema A mulher sertaneja (2010), escrito pelo cordelista sergipano Ronaldo
Dória, atrelados à concepção de identidade feminina e pelo viés dos Estudos Culturais.
A respeito do conceito de identidade, Stuart Hall (1999) explica que o sujeito
iluminista, compreendido como indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado de razão,
criou uma concepção de identidade muito “individualista” do sujeito. Entretanto, diante da
crescente mudança do mundo moderno e da compreensão de que a autonomia desse sujeito
era concebida mediante a relação com outras pessoas, desenvolve-se a concepção do sujeito
sociológico, caracterizado como possuidor de uma identidade que busca estabilização entre o
interior (sua subjetividade) e o exterior (mundo social e cultural) (p. 10-13).
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Hall (1999) explicita que ambas as concepções demonstram a busca por uma
identidade fixa e permanente, entretanto, diferentemente das sociedades tradicionais que
veneram e perpetuam o passado a cada geração, no contexto da pós-modernidade essas
identidades fixas, relacionadas à ideia de “sujeito unificado”, enfrentam uma “crise” e estão
em “deslocamento”, ou seja, o autor explica que a pós-modernidade é caracterizada por uma
“crise de identidade” que consiste na fragmentação desse “sujeito unificado”, sendo abalados
“os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo
social.” ( p. 7).
Assim, em diálogo com as concepções do autorde Homi Bhabha (1998), podemos
perceber que na contemporaneidade há esforços em busca depara recuperar as unidades, as
certezas e a “pureza” anterior, ou seja, de se manter as identidades ao redor do que se chama
de tradição, ao mesmo tempo em que as identidades estão sujeitas às mudanças da história, da
política, da representação, sendo improvável que elas sejam novamente “puras” ou unitárias,
devendo pertencer, assim, ao universo da “tradução”, que consiste na possibilidade de
formação de novas identidades por meio da intersecção e negociação das novas culturas,
resultando na formação de identidades “híbridas”:.
O trabalho fronteiriço da cultura exige urn encontro com o ‘novo’ que não seja parte do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou precedente estético, ela renova o passado, refigurando-o como um ‘entre-lugar’ contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O ‘passado-presente’ torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver. (p. 27)
Para Bhabha (1998) esse “entre-lugar” ou “terceiro espaço” ou “hibridismo cultural”
possibilita o surgimento de outras posições acerca da identidade cultural, deslocando as
histórias que a constituem e estabelecendo novas estruturas de autoridade. Segundo o autor, o
hibridismo trata-se, pois, de um processo que não se fecha, através do qual a cultura revisa
constantemente suas próprias referências, normas e valores. Dessa forma, ,“[...] ao explorar
esse Terceiro Espaço, temos a possibilidade de evitar a política da polaridade e emergir como
os outros de nós mesmos” (p.69)
Assim, diante da realidade de formação de identidades culturais híbridas, para Bhabha,
cabe ao sujeito pós-moderno estar apto a traduzir e agenciar constantemente culturas e
tradições, de modo a ressignificar os valores dominantes que clamam por soberania e
contribuir para a construção de valores éticos e estéticos que não pertencem a nenhuma
cultura específica, não tendo a pretensão de abolir as concepções tradicionais e estereotipadas
da identidade cultural, mas assumir uma postura dialógica em relação a essas, adotando o
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papel, enquanto sujeito/leitor pós-moderno, de ressignificar ou traduzir a cultural, para que
não prevaleçam espaços contínuos de hegemonia, mas sim de hibridismo cultural (SOUZA,
2004, p. 127-128).
Para Homi Bhabha, é através dessa prática de tradução (ou ressignificação) cultural
que o sujeito pós-moderno tem a possibilidade de articular práticas culturais diferentes e
mostrar que os mitos dos particularismos e especificidades culturais não se sustentam com
facilidade. Revela-se, então, a natureza híbrida dos valores culturais e o próprio conceito de
cultura ou de identidade como aberto, dinâmico e constituído pela diferença e por alteridades
heterogêneas em suas origens, rompendo, assim, com o discurso cultural homogeneizante
(SOUZA, 2004, p. 125- 126).
Portanto, a cultura não pode ser tida como uma instância monolítica ou estanque que
determinaria as ações ou um sujeito. Dessa forma, a autora Gayatri Spivak enfatiza, em sua
obra Pode o subalterno falar? (2010), que devemos trabalhar com categorias que refletem
movimentos abrangentes caracterizados pela heterogeneidade, não se devendo falar em nome
do subalterno, uma vez que tal ação sempre tende a pressupor um essencialismo discursivo e
“Ao representá-los, os intelectuais representam a si mesmos” (p.41).
Spivak (2010) se refere à crítica aos relatos de representação do oprimido que acabam
por ajudar na manutenção de práticas essencialistas e imperialistas que resultam em violência
epistêmica cotidiana (p. 60-61). No que diz respeito à ideia de subalternidade, a autora
argumenta que na produção colonial o sujeito subalterno é aquele que não tem história e não
pode falar, e afirma também que o subalterno feminino está ainda mais na obscuridade devido
aos problemas subjacentes às questões de gênero (ALMEIDA, 2010, p.16-17).
Spivak (2010) defende que a fala do subalterno, isto é, daqueles sobre quem o poder se
exerce como abuso, não deve ser intermediada pela voz de outrem que se coloque em posição
de reivindicar algo em nome de alguém, e afirma que o subalterno deve saber e falar por si
mesmo. Dessa forma, a autora defende que a tarefa incômoda e de cumplicidade do
intelectual para a construção de um discurso de resistência à produção hegemônica é a de
criação de espaços por meio dos quais o sujeito subalterno possa falar, para que, quando ele o
faça, possa ser ouvido, não se falando pelo subalterno, mas contra a subalternidade, criando-se
espaços nos quais o subalterno possa se articular e ser ouvido (ALMEIDA, 2010, p.16-17).
3. Análise da obra
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O poema A Mulher Sertaneja foi produzido no ano de 2010 pelo cordelista sergipano
Ronaldo Dória e está inserido, portanto, no âmbito de produção cultural da literatura popular,
a qual durante muitos séculos foi sinônimo de atraso e de “pequena tradição”, estando atrelada
à oralidade e à criação de narrativas sobre o cotidiano das pessoas, não sendo considerada
pela elite cultural uma produção “séria”, mas apenas uma alternativa cultural de diversão
(BURKE, 1989, p.55).
Com o estabelecimento dos Estudos Culturais, porém, ocorreu o resgate dessas
produções culturais colocadas à margem pela tradição e a concepção do literário foi
reconstruída, de modo que a literatura foi destituída de seu patamar clássico e canônico e
desenvolveu-se uma concepção diferente daquela dos estudos literários “puros” de tradição
intelectualista e elitista (COUTINHO, 1996, p.72). Essa retomada visou transformar a cultura
de minoria em uma cultura comum, resgatar os da “cultura de baixo” (negros, homossexuais,
“iletrados”, pobres, mulheres, entre outros) e os nivelar com os da “alta cultura” na produção
de sentidos e de valores, formados na comunidade, e que pudessem ser vivido por todos.
Assim, pelo viés dos Estudos Culturais, passaremos à análise do poema A Mulher
Sertaneja, compreendendo esse texto como legítima produção literária contemporânea,
buscando identificar em seus versos como a identidade feminina está representada e, através
da articulação de significados no processo dialógico com concepções teóricas dos autores
Stuart Hall, Homi Bhabha e Gayatri Spivak, construir uma análise crítica do texto
(HALL,2003).
Notamos que a representação da mulher sertaneja na obra se constrói em meio a
contradições que ficam implícitas nas entrelinhas do canto poético. O autor já inicia o texto
afirmando que “Quando se fala em sertão/ Se pensa logo em vaqueiro/ Porém vou falar da
sertaneja/ E seguir outro roteiro” (p.1), entretanto, nas quatro estrofes seguintes e iniciais ao
poema, o poeta se resume a falar somente do homem sertanejo, narrando as virtudes e a “sina”
cotidiana dele:
É certo que sertanejoÉ forte, muito valenteQue não tem medo de touroE nem sequer de serpenteE que somente ao bom DeusO sertanejo é temente.De manhã muito cedinho Ele segue para a roçaPra fazer a plantação E descansa na palhoçaCom o canto do passarinhoEle senta e ali almoça.E com o sol se escondendo
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Apagando os raios douradosEle volta a sua casaCom corpo e braços cansadosNaquele seu caminharTendo passos apressadosToma um banho de latadaE depois vai descansarDeitado na sua redeAli pode até sonharA rede para o matuto É coisa espetacular. (p.1,-2).
Logo em seguida, o poeta retoma a figura da mulher sertaneja em seu canto e exalta a
coragem, valentia e força dela, não se esquecendo, porém, de referir-se à figura masculina, a
quem essa mulher dedica-se diariamente, ajudando, com alegria e orgulho, na “lida”
cotidiana:
Mas agora eu vou falarDe uma mulher corajosaEssa mulher bem valente...[...] Que ajuda o seu maridoNo trabalho do dia a diaQue acorda bem cedinhoVendo pássaro em cantoriaVai seguindo seu roteiroE trabalha com alegria ... [...] Pra plantar macaxeiraCom a enxada nos ombrosDuma forma altaneira. (p.2,-4).
Quando se refere ao papel materno desempenhado pela mulher sertaneja, o autor deixa
claro que a ela cabe a função de ser boa reprodutora, a fim de demonstrar para as pessoas o
quanto seu “macho” é viril, o que fica bem explicitado no trecho a seguir:
[...] Que tem filhos a granelÉ costume no sertão Todo ano ter um filhoE mostrar para o povãoQue o marido é bem machoVerdadeiro “garanhão” (p. 3).
Deste modo, notamos que a mulher sertaneja, apesar de dar título ao poema em análise
e aparentemente estar sendo homenageada pelo canto poético do cordelista, é enquadrada, no
texto, em uma condição de subalternidade (SPIVAK, 2010), sob um olhar falocêntrico que a
situa sempre à sombra da figura masculina, pondo em evidência uma concepção patriarcal
estereotipada e tradicional sobre o papel da mulher que reside no sertão nordestino,
expressando uma identidade feminina sertaneja enraizada pelas ideologias colonialistas.
De modo ainda contraditório, o poeta segue cantando outras características identitárias
dessa mulher. Agora, ao falar sobre aspectos físicos dela, afirma que suas mãos são calejadas
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devido ao seu trabalho na enxada (p.4), sua pele é castigada e seu rosto é marcado (p. 2), pois
“O sol cruel, escaldante/ Fica o seu rosto a queimar/ Querendo tirar a beleza/ Sua pele a
castigar” (p. 3), mas também a caracteriza como sendo “Tão linda quanto a rosa” (p. 2),
“mulher iluminada” (p. 7) e aquela que, na terra da caatinga, possui “Um brilho singular” (p.
3).
No que diz respeito à vida amorosa dessa mulher sertaneja, o poeta afirma que
Nesse sertão de meu Deus Sem frescura e ilusões Elas também se apaixonamTrazem amor nos coraçõesTendo muitos sentimentosMas sem grandes emoçõesDe uma forma muito secaAprendeu também amarNessa terra tão rachada Que vive a lhe atormentarEssa terra ressequidaQue maltrata e faz chorar. (p.3)
Ele enfatiza ainda que, depois de um dia de “lida”, a mulher sertaneja
Inda enfrenta o marido Que fica a lhe esperarE dentro d’uma redinhaCom ele vai namorar.Aí ela esquece de tudo Quem sabe, volta a sonharAbre um bonito sorrisoCombinando com o luarDizendo pra todo mundo:[--] Sertaneja sabe amarFica com os olhos brilhandoMostrando tanta alegriaNaquela bendita horaA sua tristeza aliviaNão importa se Teresa,Joana, Raimunda ou Maria. (p.6)
Assim, em meio à paixão e a forma “seca” de amar e ser amada, imersa em muitos
sentimentos e pouca emoção, segundo o poeta, é apenas nos braços do seu homem que toda
mulher sertaneja “verdadeiramente” se satisfaz, chegando a esquecer das adversidades que
enfrenta e acreditando na possibilidade de voltar a sonhar.
Trata-se também de uma mulher caracterizada pelo aspecto da religiosidade, que “Traz
no peito muita fé” (p. 7), “Tendo sempre a proteção/ De Senhora Aparecida” (p. 8), uma
mulher resignada, “Mesmo com tanto sofrer” (p. 8) e que não perde o sorriso do rosto “Nem
fala de ingratidão” (p. 8), mulher que, contraditoriamente, na voz do poeta, é bastante feliz e
“Não conhece a depressão”, mesmo “Vendo seus filhos sofrerem/ Sem ter pão e sem nada” (p.
7):
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Com essa simplicidade Ela vai levando a vidaNo seu lugar, seu ranchinhoCom sua prole querida...E quando bate a tristezaPesando nos ombros seusEla se ajoelha e rezaNão faz como os FariseusAtravés da oraçãoEla vai falar com Deus. ( p.8,77-8.)
Por fim, o autor explicita que a mulher sertaneja é caracterizada por possuir uma
identidade tão admirável e digna de orgulho que pode ser considerada sinônimo de brasilidade
e símbolo de grandeza nacional:
Eu falei com muito orgulhoDessas mulheres guerreirasQue vivem lá no sertãoMulheres, lindas, faceirasOrgulho desse BrasilEssas grandes brasileiras. ( p. 8).
Do início ao fim do poema, ouvimos ressoar em alto e bom som uma voz masculina
que canta a identidade feminina da mulher sertaneja, a qual, em condição de subalternidade
(SPIVAK, 2010), é representada através de um discurso hegemônico estereotipado. Assim,
nos versos desse poema, presenciamos o incômodo vazio da ausência da voz da mulher, um
vazio cheio de significado, que nos reporta à voz poética masculina que fala, da primeira à
última estrofe, sobre as subjetividades dela, expõe detalhes da sua vida cotidiana e que, sob
um ponto de vista dito como “real e verdadeiro” (p.1), constrói a identidade feminina
sertaneja.
Consideramos que a mulher que é cantada poeticamente nesse texto em análise não
tem poder de fala por estar inserida em um contexto de agenciamento hegemônico em que se
fala por ela, sendo apresentadas imagens socialmente verossímeis que passam a fazer parte do
imaginário cotidiano da população (SPIVAK, 2010). Dessa forma, o autor do poema
representa a mulher sertaneja e passa a “falar por” ela ou fazer “re-presentação” artística dela
(SPIVAK, 2010, p.39), silenciando a sua voz.
À luz das concepções de Spivak, enfatizamos que, quando o poeta representa a
identidade feminina da mulher sertaneja, ele na verdade acaba representando a si mesmo, ou
seja, seu olhar sobre ela, suas impressões, seus preconceitos, suas subjetividades (SPIVAK,
2010, p.41), compreendendo que não se pode falar em nome do subalterno, em nome daquele
cuja voz não é ouvida, sem que esse ato não esteja atrelado ao discurso hegemônico
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(ALMEIDA, 2010, p.18), cabendo ao subalterno falar por si mesmo a fim de que possa ser
ouvido (2010, p.16-17).
Observamos, ainda, que apesar de se tratar de um poema situado no início do século
XXI, imerso na globalização e nas vozes discursivas da pós-modernidade, esse retrata um
olhar hegemônico e estereotipado da mulher que reside no sertão nordestino, expressando
uma identidade enraizada pelas ideologias colonialistas, uma identidade plenamente
unificada, completa, segura e coerente, que traz concepções do passado para o presente
(HALL, 1999, p. 13-15). Esse fato pode ser interpretado como uma prova viva das
ambiguidades e contradições que o sistema de globalização encerra, coexistindo, com toda a
modernização, manifestações literárias e culturais que, muito calcadas em sua herança
tradicional, não parecem acompanhar as ambivalências e flexibilidades típicas da pós-
modernidade, cabendo ao leitor crítico o papel de questionar essa representação cultural
hegemônica da mulher e, pelo viés dos Estudos Culturais, admitir diferentes
posições/identidades culturais da mulher sertaneja.
Afinal, diante da realidade pós-moderna de formação de identidades culturais híbridas
(BHABHA, 1998), entendemos que construções discursivas tradicionais como essa não
precisam ser abolidas e sim articuladas criticamente com outros discursos, de modo que
possam ser reescritas sob novas perspectivas no processo de análise crítica textual e cultural.
Assim, nesse processo de análise, é necessário que o leitor esteja apto a traduzir e agenciar
culturas e tradições, de modo a ressignificar os valores hegemônicos e contribuir para a
construção de valores estéticos e éticos que não pertencem a uma cultura específica, mas
dialoguem com outras concepções, não havendo a preocupação de abolir as versões
tradicionais e estereotipadas da identidade cultural feminina, mas a preocupação de
ressignificar a cultura a fim de que os espaços de hegemonia sejam reduzidos, a ênfase recaia
sobre o hibridismo cultural (BHABHA, 1998), a identidade feminina seja compreendida sob
uma perspectiva mais “deslocada” e a partir de novos paradigmas, e diferentes abordagens
políticas atreladas ao papel social da mulher, seja ela sertaneja ou não, sejam pensadas..
[4.] Considerações finais:
Neste trabalho procuramos desenvolver, a partir do diálogo com concepções teóricas
presentes nos textos dos autores Stuart Hall (1999; 2003) e Homi Bhabha (1998), bem como
mediante a ideia de subalternidade trabalhada pela autora Gayatri Spivak (2010), uma análise
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crítica textual do poema A mulher sertaneja (2010), pelo viés dos Estudos Culturais, atrelada
à concepção cultural de identidade feminina.
Dessa forma, notamos que, no poema, a mulher, apesar de dar título ao texto e estar
sendo homenageada pelo canto poético do autor, o cordelista sergipano Ronaldo Dória, é
representada em condição de subalternidade (SPIVAK, 2010), situada sempre à sombra da
figura masculina e não tendo direito a voz, antes sendo representada pela voz do poeta que
fala do cotidiano dela, de seus sentimentos, pensamentos, características físicas e até de
aspectos espirituais da vida dela, colocando em evidência uma concepção patriarcal,
estereotipada e tradicional do papel da mulher na sociedade, expressando uma identidade
feminina sertaneja enraizada pelas ideologias colonialistas, uma identidade plenamente
unificada (HALL, 1999).
Entendemos que em tempos de pós-modernidade, contexto em que a obra está
inserida, marcados pelo hibridismo cultural (BHABHA,1998), somos provocados, na análise
crítica cultural do poema, a fazer uma leitura que articule diferentes concepções culturais e
dialogue intertextualmente, não nos preocupando em abolir as versões tradicionais e
estereotipadas da identidade cultural feminina, mas em admitir diferentes
posições/identidades culturais dessa mulher sertaneja, contribuindo para que espaços de
hegemonia sejam reduzidos e a ênfase recaia sobre o hibridismo cultural, de modo que a
identidade feminina seja compreendida sob uma perspectiva mais “deslocada” e a partir de
novos paradigmas culturais.
[5.] Referências Bibliográficas:
ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. Apresentando Spivak. In: SPIVAK, Gayatri
Chakravorty. Pode o subalterno falar?. Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida e
Marcos Pereira Feitora, Belo Horizonte: UFMG, 2010.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Minas Gerais: UFMG, 1998.
BURKER, Peter. A cultura popular na Idade Média. Europa 1500-1800. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
COUTINHO, Eduardo. Literatura comparada, literaturas nacionais e o questionamento do
cânone. Revista brasileira de literatura comparada. Rio de Janeiro: Abralic. n.3, 1996.
DÓRIA, Ronaldo. A Mulher Sertaneja. 2010, 8p.
13
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GUINSBURG, J.; BARBOSA, Ana Mae. O Pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005.
ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Estudos Culturais: uma introdução. In: SILVA, Tadeu da
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da
Silva e Guaracira Lopes Louro, 3. ed., Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
HALL, Stuart. Estudos Culturais e seu legado teórico. In: Da Diáspora: Identidades e
Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003, p. 199-218.
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