A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO: …

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SÔNIA MARIA RIBEIRO JACONI A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO: Revelação do escritor no texto do prefeito Graciliano Ramos Universidade Metodista de São Paulo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social São Bernardo do Campo-SP, 2012

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SÔNIA MARIA RIBEIRO JACONI

A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO:

Revelação do escritor no texto do prefeito Graciliano Ramos

Universidade Metodista de São Paulo

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

São Bernardo do Campo-SP, 2012

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SÔNIA MARIA RIBEIRO JACONI

A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO:

Revelação do escritor no texto do prefeito Graciliano Ramos

Universidade Metodista de São Paulo

Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

São Bernardo do Campo-SP, 2012

Tese apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, para obtenção do grau de Doutor. Orientador: Prof. Dr. José Marques de Melo

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FICHA CATALOGRÁFICA

J159g

Jaconi, Sônia Maria Ribeiro A transgressão sertaneja do gênero relatório: Revelação do escritor no texto do prefeito Graciliano Ramos / Sônia Maria Ribeiro Jaconi. 2012. 190 f. Tese (doutorado em Comunicação Social) --Faculdade de Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2012. Orientação : José Marques de Melo 1. Ramos, Graciliano, 1892-1953 - Gênero relatório 2. Processos comunicacionais 3. Figuras de linguagem 4. Transgressão I. Título.

CDD 302.2

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SÔNIA MARIA RIBEIRO JACONI

A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO:

Revelação do escritor no texto do prefeito Graciliano Ramos

Resultado:

Data da Aprovação: ___/___/___

Banca Examinadora:

Prof. Dr. José Marques de Melo _______________________ Orientador Universidade Metodista de São Paulo

Profa. Dra. Elizabeth Moraes Gonçalves ______________________ Examinadora Interna Universidade Metodista de São Paulo Prof. Dr. Luiz Roberto Alves _______________________ Examinador Interno Universidade Metodista de São Paulo Profa. Dra. Sandra Reimão _______________________ Examinadora Externa Universidade de São Paulo - USP Profa. Dra. Rossana Gaia _______________________ Examinadora Externa Instituto Federal de Alagoas - IFAL

Tese apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo - UMESP, para obtenção do grau de Doutor. Orientador: Prof. Dr. José Marques de Melo

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FOLHA DE APROVAÇÃO

A tese A transgressão sertaneja do gênero relatório: Revelação

do escritor no texto do prefeito Graciliano Ramos, elaborada por

Sônia Maria Ribeiro Jaconi, foi defendida no dia 17 de abril ,

tendo sido:

( ) Reprovada

( ) Aprovada, mas deve incorporar nos exemplares definitivos modificações

sugeridas pela banca examinadora, até 60 (sessenta) dias a contar da data da

defesa.

( ) Aprovada

( ) aprovada com louvor

Banca Examinadora:

_______________________________________________________

_______________________________________________________

_______________________________________________________

_______________________________________________________

_______________________________________________________

Área de concentração: Processos Comunicacionais

Linha de Pesquisa:________________________________________

Projeto Temático:_________________________________________

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DEDICATÓRIA

Ao meu esposo e filho, companheiros e amigos, por terem compreendido

minhas muitas horas de leitura, pesquisa e ausência. Amo vocês!!!

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AGRADECIMENTOS

A Deus, por iluminar sempre meus caminhos na busca do conhecimento e do

aperfeiçoamento pessoal e profissional.

A realização deste trabalho só foi possível graças à orientação do professor Dr.

José Marques de Melo, a quem serei eternamente grata pelo estímulo e

confiança depositada em mim, desde o nosso primeiro encontro. Conduziu a

orientação com muita paciência, atenção e com dicas precisas e fundamentais

para o desenvolvimento e conclusão desta tese. Muito obrigada!

Agradeço a todos os professores do programa PósCom pela contribuição na

minha formação e concretização deste trabalho. Os debates teóricos durante

as aulas ajudaram na minha formação e na elaboração deste estudo.

Às professoras Dra. Elizabeth Moraes Gonçalves e Dra. Sandra Reimão pelas

valiosas sugestões e observações dispensadas à organização desta pesquisa.

Sou muito grata, mais uma vez, a minha família, esposo e filho, pelo apoio e

compreensão, sem os quais não seria possível o envolvimento e finalização

desta tese.

Também aos meus amigos, Ieda Borges, Raul Arriagada e Juliana Belmonte,

que ajudaram nas traduções e no debate de ideias fundamentais para o

trabalho.

Aos meus colegas de classe por compartilharem os momentos de muita leitura,

estudo e elaboração de artigos. Todos, além de ricos e produtivos, foram

divertidos e importantes no processo desta pesquisa.

Agradeço ao amigo João Tenório, funcionário da Casa Museu Graciliano

Ramos, em Palmeira dos Índios, pela acolhida carinhosa e prestativa nos dias

em que visitei a cidade. Ajudou-me com informações preciosas sobre o Prefeito

Graciliano Ramos e na coleta de materiais para a pesquisa.

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Agradeço ao coordenador do programa, Prof. Laan, pela condução do curso e

pela preocupação com a qualidade dos trabalhos dos alunos e cumprimento de

suas etapas.

Ao FUNDAC (Fundo de Incentivo Acadêmico-Cientifico), da Universidade

Metodista, pelo financiamento desta tese.

Meus agradecimentos são para todos os que, de alguma forma, contribuíram

no processo de minha formação e realização deste trabalho.

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EPÍGRAFE

Na imensa maioria dos gêneros discursivos (exceto nos artístico-literários), o

estilo individual não faz parte do plano do enunciado, não serve como um

objetivo seu mas é, por assim dizer, um epifenômeno do enunciado, seu

produto complementar. Em diferentes gêneros podem revelar-se diferentes

camadas e aspectos de uma personalidade individual, o estilo individual pode

encontrar-se em diversas relações de reciprocidade com a língua nacional. A

própria questão da língua nacional na linguagem individual é, em seus

fundamentos, o problema do enunciado (porque só nele, no enunciado, a

língua nacional se materializa na forma individual). (BAKHTIN, 2010).

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A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO:

Revelação do escritor no texto do prefeito Graciliano Ramos

Resumo Esta tese se propõe a investigar o gênero relatório, a fim de conhecer seus traços constitutivos, seu contexto situacional e a função sócio comunicativa que exerce em sua comunidade discursiva. Forma o objeto desta pesquisa os relatórios públicos escritos pelo prefeito Graciliano Ramos, nos anos de 1929 e 1930, e enviados ao governador do estado de Alagoas. Estes documentos alcançaram grande repercussão na época, devido ao tom irônico e ousado presente em seus textos que indicam uma transgressão da escritura do gênero relatório. Foram definidas para a unidade de análise as figuras de linguagem, na perspectiva de Quintiliano de Calahorra e sua incidência nestes textos prestando atenção nas transgressões praticadas pelo escritor gestor. Para alcançar os objetivos, a metodologia adotada foi o da análise da padronização de texto e textualização proposto por Bhatia, que compartilha com o da análise da expressão, de Lawrence Bardin. Palavras-chave: Graciliano Ramos, gênero relatório, processos comunicacionais, figuras de linguagem, transgressão.

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The transgression of gender backland report: revelation of the writer in the text of the mayor Graciliano Ramos

Abstract This thesis aims to investigate the genre report, in order to know its constituent characteristics, situational context and the socio-communicative role that it plays among its speech community. The object of this research are the public reports written by the mayor Gracialiano Ramos, in the years 1929 and 1930, and sent to the governor of Alagoas State. These documents have achieved great impact at the time, due to the ironic and daring tone present in the texts, indicating a violation of the genre of report writing. For the analysis, it were defined the figures of rhetoric according to Quintiliano de Calahorra, and their incidence in these texts, paying attention to the transgressions committed by the manager-writer. To achieve our goals, the methodology used was the analysis of standardized text and textualization, proposed by Bhatia, with the analysis of expression, as proposed by Laurence Bardin. Key-words: Graciliano Ramos, genre report, communication processes, figures

of rhetoric, transgression

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La transgresión del género reporte sertaneja: revelación del escritor en el texto del alcalde Graciliano Ramos

Resumen Esta tesis se propone a investigar el género informe, con el fin de reconocer sus rasgos constitutivos, su contexto situacional y la función socio comunicativa que ejerce en su comunidad discursiva. Se hace objeto de esta investigación los informes públicos escritos por el alcalde Graciliano Ramos en los años 1929 y 1930, y enviados al gobernador del estado de Alagoas (Brasil). Estos documentos alcanzaron grande repercusión en su época debido a su tono irónico y osado presente en sus textos que indican una transgresión de la escrita del género informe. Fueron definidas para la unidad de análisis las figuras de retórica bajo la perspectiva de Quintiliano de Calahorra y su incidencia en estos textos, prestando atención en las transgresiones practicadas por el escritor gestor. Para alcanzar los objetivos, la metodología adoptada fue el del análisis de la expresión, de Lawrence Bardin. Palabras clava: Graciliano Ramos, género informe, procesos comunicacionales, figuras de retórica, transgresión.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Fac-símile do num. 1 do Jornal “O Dilúculo”, editado por Graciliano Ramos,

aos 12 anos de idade....................................................................................................62

Figura 2 - Fac-símile do texto “Pequeno Pedinte”, publicado no Jornal “O Dilúculo”.........................................................................................................................64 Figura 3 - Jornal O Estado, 28/01/1934 – O Romancista Graciliano

Ramos...........................................................................................................................70

Figura 4 - Jornal O Estado, 23/01/34 – De um Relatório a um

Romance.......................................................................................................................72

Figura 5 - Jornal A tarde, 1969 – Dispersos de Graciliano

Ramos...........................................................................................................................74

Figura 6 - Periódico “Conversa do Dia”, 1953 .............................................................75

Figura 7 - Jornal Correio da Manhã, ano 1952 – O Relato do Sr.

Prefeito.........................................................................................................................76

Figura 8 - Igreja do Rosário em Palmeira dos Índios, onde atualmente abriga o Museu

dos Xucurus.................................................................................................................118

Figura 9 - Atual fachada de uma loja que, no passado, foi a Loja Sincera, de

Graciliano Ramos........................................................................................................119

Figura 10 - Fachada do prédio da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios (2010),

cenário da gestão de Graciliano Ramos nos anos de 1928 a 1930............................120

Figura 11 - Fachada da Casa Museu Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios

(2010)..........................................................................................................................120

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Gênero, Auditório, Intenção, Valores..................................80

Quadro 2 – Figuras de Linguagem.......................................................127

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Perfil dos Relatórios de Graciliano Ramos por Incidência das

Figuras de Linguagem.....................................................................................146

Gráfico 2 - Figuras de Linguagem: incidências nos relatórios de Graciliano

Ramos..............................................................................................................147

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 18 1.1 Transgressão Sertaneja ......................................................................................... 18 1.2 Justificativa da Pesquisa ........................................................................................ 20 1.3 Objetivos e Indagações .......................................................................................... 22 1.4 Roteiro da Tese ..................................................................................................... 23 1.5 Caracterização da Pesquisa .................................................................................. 25 1.6 Metodologia da Análise .......................................................................................... 25 1.7 Unidade de Análise dos Relatórios: Figuras de Linguagem ................................... 28

2 REVISÃO DE LITERATURA ....................................................................................... 30

2.1 Um Sertanejo de Letras ......................................................................................... 30 2.2 Sobre os Relatórios Públicos de Graciliano Ramos ............................................... 37

3 AS MULTIFACES DE GRACILIANO RAMOS ............................................................. 40

3.1 O Menino Graciliano: Letra, Leitura e Palmatória ................................................... 40 3.2 Comerciante à Frente de Seu Tempo .................................................................... 42 3.3 Um Professor Matuto ............................................................................................. 45 3.4 O Prefeito Graciliano: Coragem e Desafios numa Terra Sem Lei ........................... 52 3.5 O Perfil Jornalístico e Literário de Graciliano Ramos ............................................. 59 3.6 Difusão de um Estilo Irônico e Sincero ................................................................... 67

4 CONCEPÇÃO DOS GÊNEROS DISCURSIVOS E TEXTUAIS: CARACTERIZAÇÃO SÓCIO-RETÓRICA ......................................................................................................... 76

4.1 Gênero do Discurso: Concepção e Evolução ........................................................ 77 4.2 Escolha e Aplicação de um Gênero Discursivo e Textual: Habilidades Prática e Teórica ......................................................................................................................... 87

5 O GÊNERO RELATÓRIO PÚBLICO: ASPECTOS SÓCIO COMUNITICATIVOS ........ 90

5.1 Apresentação ......................................................................................................... 90 5.2 Sobre os Gêneros Textuais na Comunidade Discursiva Institucional ..................... 91 5.3 Marcas do Discurso Institucional ............................................................................ 94 5.4 Gênero Relatório Público: Contexto Situacional ..................................................... 97 5.5 A Padronização Textual dos Relatórios Públicos: Conceitos e Estrutura ............... 99 5.6 Organização do Gênero Relatório Público: Características Constitutivas ............. 105

6 OS RELATÓRIOS DO GESTOR PÚBLICO GRACILIANO RAMOS: TRANSGRESSÃO REVELADORA DO ESCRITOR ..................................................... 113

6.1 Palmeira dos Índios Xucurus e do Prefeito Graciliano Ramos: uma Apreciação de suas Características Sociais Remotas e Atuais .................................................... 113 6.2 Informação e Literatura nas Gavetas da Prefeitura de Palmeira dos Índios: Conjunturas de Criação ............................................................................................. 119 6.3 Figuras de Linguagens: um Viés para a Transgressão do Gênero Relatório ........ 121 6.4 Identificação das Figuras de Linguagem no Estudo de Quintiliano ....................... 122 6.5 Figuras de Linguagem no Relatório I (ano 1.929) ................................................ 126 6.6 Figuras de Linguagem no Relatório II (ano 1930) ................................................ 133

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CONCLUSÃO................................................................................................................ 143 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 147 ANEXOS ....................................................................................................................... 154

Relatório I - Fac-símile I, publicado no Diário Oficial, em 24 de janeiro de 1929 ........ 154 Relatório II - Fac-símile, publicado no Diário Oficial, em 16 de janeiro de 1930 ......... 156 Relatório II – Edição comemorativa ao centenário de nascimento do escritor Graciliano Ramos (1892 – 1853) ............................................................................... 158

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1 INTRODUÇÃO

1.1 Transgressão Sertaneja

As práticas comunicativas dos indivíduos acontecem através de gêneros

discursivos (orais ou escritos) que predominam em seus espaços coletivos.

Esses gêneros se formam e se estabelecem nas diferentes esferas sociais a

fim de atender às necessidades e às carências de comunicação dos grupos

que compartilham realidades culturais semelhantes. Sendo assim, os gêneros

discursivos contribuem para a organização do ato comunicativo dessas

sociedades.

Tanto no campo da oralidade quanto no da escrita, o reconhecimento e

o domínio dos gêneros possibilitam a realização mais efetiva das intenções

discursivas de seus atores (emissor/receptor). São estas conquistas que

conferem liberdade à transgressão de determinado gênero, a fim de o

enunciador alcançar qualidade estética, expressividade e ampliação do seu

discurso.

Um exemplo insigne desta liberdade transgressora pode ser observado

nos textos dos relatórios oficiais de Graciliano Ramos, que causaram

estranhamento na mídia da época, devido à contravenção da linguagem oficial

do gênero relatório.

A repercussão da infração da escritura de um gênero, quando

amplamente divulgada na mídia, como aconteceu com os relatórios citados,

merece observação atenta quanto à recepção estética e social apreendida pelo

público leitor da época, bem como os reflexos dessa ruptura na mídia

contemporânea.

Os gêneros textuais apresentam regularidades recorrentes quanto ao

seu formato, seus termos de construção retórica, tipos e formas de organização

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da sua mensagem, que possibilitam não só a identificação entre os demais

gêneros que circulam nas diferentes esferas sociais, mas também a orientação

quanto a sua utilização apropriada pelos sujeitos envolvidos na ação

discursiva.

Sobre a necessidade desta orientação didática nos cursos de

comunicação social, recorro às palavras do professor Melo (2010, p. 23):

[...] os jovens diplomados encontram resistências para ingresso no mercado de trabalho, desconhecedores que são, em grande maioria, das especificidades do relato jornalístico e de sua aderência a um sistema que os diferencia por gêneros, formatos e tipos, determinados pelos antigos e novíssimos suportes.

Não só no âmbito das instituições, públicas ou privadas, e da mídia

oficial, mas também no acadêmico, o gênero relatório circula intensamente

entre os indivíduos, desempenhando ações comunicativas que extrapolam a

função informativa, uma vez que também contribuem para a participação

efetivas dos indivíduos na administração destas instituições.

Assim como acontecem em outros gêneros textuais, são suas

características constitutivas que lhe definem como gênero relatório e que

permitem o seu reconhecimento e a sua reprodução em sua comunidade

discursiva. A natureza do relatório “um documento público e/ou publicizável”

(LIMA, 1994, p.109), obedece a regras redacionais que valorizam a

impessoalidade, a norma culta da língua e o uso de termos técnicos e rígidos.

Pode-se dizer que esse tipo de texto tem um estilo geral estabelecido, ou seja,

não se admite um estilo individual (BAKHTIN, 2010, p. 265-2661).

A divulgação administrativa, especificamente a que acontece através

dos documentos oficiais, frequentemente, fica à margem dos estudos sobre os

processos comunicacionais, talvez, pela sua essência mais restrita de

circulação.

1 Os gêneros do discurso. In Estética da Criação Verbal.

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No entanto, a difusão das ações administrativas, principalmente a

pública, segundo o autor Ney (1954, p. 10), “é uma tarefa que requer mais do

que os administradores ocasionais, mesmo quando eficientes – isto é, requer

verdadeiros especialistas em divulgar ideias”.

Assim foi Graciliano Ramos quando escreveu os relatórios públicos

sobre a sua administração pública na cidade de Palmeira dos Índios – um

especialista transgressor do gênero relatório que, através de sua intimidade

com a linguagem artística, conferiu sabor e encanto aos textos destes

documentos.

Examinar o gênero relatório na perspectiva da escritura dos textos

oficiais de Graciliano Ramos é, certamente, uma rica oportunidade para

examinar e divulgar o lado do gestor escritor de Palmeira dos Índios, e de

ampliar os estudos no campo dos gêneros textuais que se manifestam na

antiga e atual mídia.

1.2 Justificativa da Pesquisa

Percebe-se uma ausência de estudos aprofundados dos relatórios de

Graciliano Ramos e que, se tais pesquisas houvesse, ajudaria a recompor de

maneira mais completa o perfil do gestor público e da sua produção não

ficcional.

No caso de específico da escrita de Graciliano Ramos, ainda que ele

não tenha se posicionado como destaque no jornalismo, já que sua maior

atuação foi no campo como revisor, é possível afirma-lo como tradutor de

narrativa jornalística inerente à sua literatura. O texto do namorado, do prefeito

ou do escritor vai ser elemento exaustivamente revisado, ou na sua própria

metáfora: lavado e enxugado.

À luz desse estudo, também está a necessidade de investigar as

características e natureza da escritura do gênero “relatório”, pois existe

semelhante escassez de pesquisa nessa área. O estudioso Thayer (1972, p.

309), naquela época, apontou que a “necessidade de pesquisas sobre os

relatórios é claramente indicada pela natureza e magnitude dos problemas

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típicos do manejo de informações necessárias à tomada de decisões

administrativas”. Especificamente nas esferas das instituições públicas, os

relatórios têm em sua essência a obrigação de informar bem ao público para

que, desta forma, gere conhecimento à sociedade e, consequentemente,

reação e transformação efetivas.

Sobre este desafio – o de informar bem ao público - está a exigência dos

órgãos responsáveis pela transmissão da informação em dominar os gêneros

textuais de suas comunidades discursivas, pois assim, estes emissores

conseguirão elaborar e transmitir informação que gere conhecimento.

Os gêneros discursivos e textuais estão inseridos em todas as situações

da vida humana e, portanto, interferem nas ações comunicativas das pessoas

em seus espaços coletivos. Dessa forma, ressaltar a importância da pesquisa

dos gêneros e do seu reconhecimento pelas comunidades discursivas

possibilita a melhora significativa destas ações e atribui liberdade no ato

discursivo dos indivíduos. Segundo Bakthin (2010), são os gêneros discursivos

e textuais que organizam a comunicação humana.

Os estudos sobre os gêneros midiacêntricos ganharam, gradativamente,

após o início do século XXI, destaque na academia, nos cursos de

comunicação social do país, a partir da observação da necessidade dos

estudantes reconhecerem e produzirem adequadamente os gêneros textuais

no campo da comunicação.

O pioneiro deste estudo, no cenário nacional, foi Luiz Beltrão que

compôs uma trilogia sobre os gêneros jornalísticos: A imprensa informativa

(1969), Jornalismo interpretativo (1976), Jornalismo opinativo (1980).

Analisar os gêneros e suas comunidades discursivas possibilita domínio

e, consequentemente, melhor escrituração destes textos. No caso dos gêneros

que circulam nas esferas institucionais, as análises que existem são tímidas o

que estimulou esta tese a propor um estudo aprofundado do gênero relatório.

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O estudo do gênero relatório converge com a linha de pesquisa

Processos Comunicacionais Midiáticos por ser um gênero que, por um lado, se

aproxima dos gêneros jornalísticos interpretativo e utilitário e, por outro, se

distancia da hegemonia dos gêneros informativo e opinativo. Essa linha de

pesquisa vem avançando no país, através da proposta do professor José

Marques de Melo em dar prosseguimento aos estudos pioneiros de Luiz

Beltrão, sobre a prática dos gêneros na mídia nacional. Sendo assim, investigar

o gênero relatório é uma forma de reforçar estas pesquisas e de apresentar

contribuições para a formação do panorama do pensamento comunicacional

brasileiro.

A publicação destes escritos, nas edições de 24 de janeiro de 1929 e 16

de janeiro de 1930, demonstra uma defesa do jornalismo utilitário, pois prestou

um papel orientador ao público leitor, uma vez que proporcionou conhecimento

de informações sobre as atividades da gestão do prefeito de Palmeira dos

Índios, Graciliano Ramos.

Na comparação do gênero relatório com o gênero interpretativo observa-

se afinidade, pois os textos destes documentos trazem aprofundamento,

explicitação e orientação, que ultrapassam a mera prestação de contas da

administração municipal, além de recursos estilísticos literário como a ironia “no

cemitério enterrei”, conforme p. 28 desta tese.

Propomos uma contribuição, que se pretende relevante, para a difusão

das pesquisas no campo dos gêneros discursivos e textuais, especificamente,

do gênero relatório.

1.3 Objetivos e Indagações

Inquietações sobre a transgressão reveladora do escritor Graciliano

Ramos estimularam esta tese que tem por objetivo geral promover a reflexão

sobre o gênero relatório, a partir da revisão do conceito, do formato e da função

sócio comunicativa que exerce, tomando como ponto de partida o exame da

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transgressão deste gênero, observada nos relatórios públicos de Graciliano

Ramos. Com isso, simultaneamente, intenciona-se contribuir com a divulgação

e leitura dos textos não ficcionais do autor e, desta forma, também promover o

lado do gestor público do autor.

Quanto aos objetivos específicos, a tese se propõe: 1) apresentar as

multifaces de Graciliano Ramos para que, desse modo, se viabilize a

ampliação da trajetória deste personagem; 2) expor os gêneros discursivos e

textuais e sua caracterização sócio retórica, a partir das concepções de autores

que pensam o assunto, como Bakthin, Todorov, Jonh Swales, Matoso Silveira,

Charles Miller; 3) investigar o gênero relatório público através de suas

características constitutivas e da configuração de sua comunidade discursiva,

além do seu contexto situacional; 4) levantar e examinar a incidência das

figuras de linguagem, a partir da obra de Quintiliano, nos textos dos relatórios,

prestando atenção nas transgressões praticadas pelo escritor gestor, quando

comparados com o gênero relatório.

No processo da problematização do objeto, algumas indagações foram

formuladas para provocar o desenvolvimento da tese. No campo da

comunidade discursiva institucional, como o gênero relatório público aparece e

exerce sua função sócio comunicativa? Como os relatórios públicos do gestor

Graciliano Ramos foram lidos e comunicados na mídia local e nacional da

época? E como os são na mídia contemporaneidade? Quais foram os recursos

linguísticos utilizados por Graciliano Ramos que contribuíram para a

transgressão do gênero relatório? De que forma os relatórios públicos de

Graciliano Ramos são responsáveis pela divulgação e reconhecimento do autor

na literatura ficcional?

1.4 Roteiro da Tese

Para cumprir seus objetivos, esta tese se apresenta em cinco capítulos

que abordam temas que ajudam a compor a análise do seu objeto de estudo –

os relatórios públicos escritos por Graciliano Ramos e publicados no Diário

Oficial de Alagoas, nos anos de 1929 e 1930.

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Na primeira parte do trabalho, após a introdução, se atentou para a

atualização da revisão de literatura sobre o autor e de seus dois relatórios, a

fim de percorrer os estudos que exploraram o tema dos relatórios do prefeito

Graciliano Ramos.

No capítulo III, foram descritas as multifaces do escritor a fim de

reconhecer suas atuações em diferentes momentos; como comerciante,

professor, prefeito e jornalista. Além de apresentar o menino Graciliano,

através das lembranças doloridas do homem Graciliano Ramos. Esta

composição visa reunir, mesmo que sumariamente, a formação e a trajetória de

um personagem que tem importante destaque no campo da literatura nacional.

No capítulo IV, são discutidos, primeiramente, a partir da concepção de

gênero discursivo e textual dos autores Bakhtin, Todorov, Jonh Swales e Maria

Inez Matoso Silveira, o conceito de gênero relatório, evolução, características e

a função sócio comunicativa que este gênero exerce na comunidade discursiva

que se manifesta. Depois, a questão dos gêneros textuais e de suas

comunidades discursivas são apresentadas como uma habilidade prática e

teórica dos sujeitos da comunicação.

Após essa exposição, o capítulo V volta-se para o gênero relatório

público com o propósito de apontar seus aspectos constitutivos, seu contexto

situacional, como se organizam quanto ao formato e linguagem, para que, mais

adiante, seja possível traçar um estudo comparativo entre a forma padrão do

gênero relatório com a forma corrompida dos textos dos relatórios de Graciliano

Ramos. As marcas do discurso institucional também são reveladas nesta parte

da tese.

Finalmente, no capítulo VI, apresenta-se uma análise dos dois relatórios

públicos de Graciliano Ramos observando a transgressão do gênero a partir

das incidências das figuras de linguagem, presentes nestes textos, e que foram

apontadas no estudo de Quintiliano de Calahorra.

Page 25: A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO: …

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1.5 Caracterização da Pesquisa

Este estudo se caracteriza como sendo, primeiramente, uma pesquisa

exploratória, pois busca-se o aprofundamento sobre os gêneros discursivos e

textuais para que, posteriormente, fosse possível traçar o perfil do gênero

relatório. Também é uma pesquisa descritiva visto que se realiza uma análise

dos relatórios a partir da identificação das figuras de linguagens para

compreender e comprovar a transgressão do gênero relatório, presente nos

textos de Graciliano Ramos.

Quanto aos procedimentos escolhidos foram: o bibliográfico, objetivando

coletar informações e conhecimentos existentes sobre os relatórios escritos por

Graciliano Ramos, sua difusão e recepção na comunidade discursiva

institucional e em outras esferas, e de absorver fundamentação teórica acerca

dos gêneros discursivos e textuais. Para isso, vários autores foram lidos a fim

de conhecer, confrontar e fundamentar as afirmações apresentadas na

pesquisa; e o documental a fim de examinar os originais das escrituras oficiais

do prefeito Graciliano Ramos. O acesso a vários documentos, inclusive parte

dos originais dos relatórios, foi através de visitas à cidade de Palmeira dos

Índios, Maceió e Rio de Janeiro.

.

Quanto à abordagem, utilizou-se a pesquisa qualitativa para apresentar

e refletir sobre os conceitos, as características e as definições de autores sobre

os gêneros discursivos e textuais, além de apresentar informações sobre o

perfil do gestor público Graciliano Ramos. Outra parte da tese recorreu à

pesquisa quantitativa, pois se adotou as figuras de linguagem como unidade de

análise dos relatórios para verificar a transgressão do gênero por este viés.

1.6 Metodologia da Análise

Através de vários aspectos, os relatórios escritos por Graciliano Ramos

podem ser analisados. Para este estudo, o percurso metodológico adotado foi

o da análise da padronização de texto e textualização, proposto por Bhatia

(1993, p.22-36) apud Silveira (2005, p. 106):

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26

Esse aspecto da análise linguística realça o aspecto tático do uso convencional da língua, especificando a forma que os membros de uma determinada comunidade adota os valores restritos a vários aspectos do uso da língua (que podem ser traços do léxico, da sintaxe e mesmo do discurso) quando opera um determinado gênero.

De acordo com esta proposta, a análise pode ser realizada a partir da

observação de um ou de mais elementos do texto (uso de adjetivos, de frases

nominais, emprego dos verbos, figuras de linguagem, etc.) com a finalidade de

investigar o efeito de sentido que tal elemento cria no texto.

Mais adiante, a autora revela (BHATIA, apud SILVEIRA, 2005, p. 106):

Outros estudos citados cuidam, por exemplo, da função do adjetivo em grupos nominais nos escritos sobre a pesquisa científica e nos documentos jurídicos. Finalmente, o autor reconhece que a análise da padronização textual acrescenta uma explanação interessante à análise léxico-gramatical de um gênero.

A proposta de análise exposta por Bhatia (1993 apud Silveira)

compartilha com o método da análise da expressão, apresentado por Laurence

Bardin (2009), que é um método que trata da “ordem formal (plano dos

significantes e da sua organização)”. (BARDIN, 2009, p. 245).

Diz esta autora:

A hipótese implícita que subentende geralmente este tipo de técnica com base na inferência formal é a de que existe uma correspondência entre o tipo do discurso e as características do seu locutor ou do seu meio. “Os traços pessoais mais ou menos permanentes, o estado do locutor ou a sua reação a uma situação, modificam o discurso tanto na sua “forma” como no conteúdo”. (BARDIN, 2009, p. 245).

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27

Sobre os setores mais indicados para a utilização desta técnica, Bardin

(2009, p. 245) declara:

Os setores normalmente mais propícios à aplicação de técnicas de análise de expressão são os seguintes: a investigação da autenticidade de um documento (literatura, história), a psicologia clínica (psicoterapia, psiquiatria), os discursos políticos ou os que são susceptíveis de veicular uma ideologia (retórica).

Para Bardin (2009, p. 245), este tipo de análise pode ser realizado

através do levantamento das características formais e de linguagem de um

discurso, como “os indicadores lexicais, as análises do discurso ou da narrativa

(encadeamento lógico, arranjo de sequência, estrutura narrativa, estruturas

formais de base)”.

Adotou-se, portanto, estes métodos para a análise dos relatórios escritos

por Graciliano Ramos, por entender que estes são adequados a proposta desta

tese; a de examinar as incidências das figuras de linguagem nos textos dos

relatórios, prestando atenção nas transgressões praticadas pelo escritor gestor.

O autor de Vidas Secas escreveu outros documentos oficiais, inclusive

outro relatório2. Porém, optou-se pelos dois relatórios que foram publicados no

Diário Oficial de Maceió e, portanto, que tiveram presença na mídia oficial da

época.

Critérios de escolha destes relatórios:

1) Por terem sidos publicados na mídia oficial da época (Diário Oficial de

Maceió),

2 Leituras apontam que Graciliano Ramos escreveu outro relatório, antes destes publicados no

Diário Oficial, datado do mês de março de 1928, apresentando-se como prefeito ao Conselho Municipal de Palmeira. Uma transcrição deste relatório pode ser encontrada no livro “Relatórios” (1994), organizado por Mário Hélio Gomes de Lima. Para esta análise, este não foi contemplado, pois deu-se preferência pelos que foram publicados no Diário Oficial e que, portanto, projetaram o estilo literário e ousado de escrever de Graciliano Ramos.

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28

2) Dos documentos oficiais escritos por Graciliano Ramos, os relatórios são

os que mais representam a transgressão de linguagem e de formato do

gênero relatório,

3) São os mais famosos do escritor e, constantemente, são citados na mídia

contemporânea,

4) Existem poucas análises aprofundadas destes documentos.

O processo da análise se apresenta da seguinte forma:

1) Apresentação das conjunturas de criação dos 02 relatórios escritos por

Graciliano Ramos.

2) Levantamento de características que identificam o gênero relatório

(formato e linguagem) e de elementos textuais da criação literária

(figuras de linguagem, ironia, conotação, etc.), presentes nos relatórios

públicos escritos por Graciliano Ramos.

3) Análise dos resultados, através da verificação das transgressões que

estes documentos exibem, em relação ao gênero textual em que se

enquadram.

1.7 Unidade de Análise dos Relatórios: Figuras de Linguagem

A unidade de análise escolhida para o exame dos relatórios públicos de

Graciliano Ramos foi o das figuras de linguagem. Para tanto, foram definidas

as unidades de análises e sua incidência nos textos dos relatórios, prestando

atenção nas transgressões praticadas pelo escritor gestor.

Adotou-se as figuras de linguagem como parâmetro de análise, por

entender que estas expressões atribuem características de efeito estético e

expressivo ao texto, devendo, portanto, serem evitadas nos gêneros oficiais.

Esta tese adotou a padronização textual do gênero relatório, ou seja, o

seu conceito e as suas características de linguagem e de formato, apresentada

por autores que contribuem para a fundamentação desta pesquisa (Lee

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29

Thayer, Othon Garcia, João Luiz Ney (DASP), Maria Inez Matoso Silveira,

Sérgio Roberto Costa), como elemento comparativo para a análise dos

relatórios selecionados.

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30

2 REVISÃO DE LITERATURA

2.1 Um Sertanejo de Letras

Graciliano Ramos geralmente é apresentado e conhecido apenas como

o grande escritor literário da segunda geração do modernismo brasileiro. Sem

dúvida, os romances do autor são obras primas da literatura nacional como

Vidas Secas, Caetés, Angústia, São Bernardo. Ler seus textos é deparar-se

com um estilo linguístico enxuto, pouco sentimental, objetivo, essencial e

artístico. Era um escritor de poucas palavras. (CANDIDO, 2006, p.21-22).

No entanto, é pouco conhecida a face do executivo Graciliano Ramos

que, bem antes de tornar-se um escritor de romances, redigiu relatórios

públicos que causaram estranhamento no público leitor da época. Tais escritos

apresentam um estilo que rompe com a estrutura tradicional do gênero

relatório, pois é possível encontrar nas palavras, além da exatidão gramatical,

as figuras de linguagem que conferem a estes documentos tom de ironia e

humor, além de revelar características do caráter firme e ético de um sertanejo

íntimo das letras e das leituras. (MORAES, 1996).

Os estudos sobre o perfil do gestor Graciliano Ramos são escassos. O

que se observa são breves citações sobre estes escritos oficiais, mas sem

aprofundamento.

Uma destas alusões foi a produção do documentário “Relatos da

Sequidão – o poder e quase vida de Graciliano Ramos”, pelo Tela Brasil, para

lembrar os cinquentas anos de seu falecimento.

Sua Vida e Obra já foram vasculhadas e registradas por autores

interessados em contribuir com a perpetuação e multiplicação do conhecimento

sobre a produção artística de Graciliano Ramos.

São várias as críticas literárias, ensaios e teses acadêmicas que existem

sobre os livros do autor. Ora apresentando e analisando o estilo estético da

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31

escrita de Graciliano Ramos, ora sobre seus personagens e o ambiente onde

desenrolam as histórias, ora sobre seu perfil.

No panorama da literatura ficcional brasileira, Graciliano Ramos se

enquadra nos escritores da geração de 303 que, de maneira breve, foram

aqueles que valorizaram o romance regionalista, ou seja, os protagonistas

dessas histórias são as tensões das relações sociais do povo brasileiro e seus

dramas com o meio em que vivem. (BOSI, 1994).

A obra Vidas Secas, publicada originalmente em 1938, atingiu sua 100ª.

edição, número raro entre os escritores brasileiros. No ano de 2008 a obra

completou 70 anos, desde sua primeira publicação, e ganhou edição

comemorativa além de grande destaque na mídia.

Estes números mostram, mesmo que sumariamente, não somente a

dimensão da importância desse autor na literatura ficcional brasileira, mas

também revelam seu poder de impacto em outros campos da comunicação

social como no mercado editorial, no cinema e na televisão. Arrisco a dizer que,

muito provavelmente, o mesmo acontecerá com seus outros romances São

Bernardo e Angústia.

Nas telas do cinema nacional, as obras Vidas Secas e São Bernardo

foram exibidas e ambas ganharam importantes prêmios da crítica.

O lançamento de Vidas Secas aconteceu em 1963, foi premiado em

Cannes (1964) e aparece na lista do British Film Institute4 como uma das 360

obras fundamentais em uma cinemateca, única entre as produções brasileiras.

3 Alfredo Bosi, importante crítico literário brasileiro, na obra História Concisa da Literatura

Brasileira (1994, p. 402), define a geração dos escritores de romances ficcionais de 1930 e 1940 como “romancistas de uma visão crítica das relações sociais [...]” e sobre o realismo de Graciliano Ramos o autor escreve “não é orgânico nem espontâneo. É crítico. O “herói” é sempre um problema: não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Sofrendo pelas distâncias que o separam da placenta familiar ou grupal, introjeta o conflito numa conduta de extrema dureza que é a sua única máscara possível.” 4 O BFI (British Film Institute) é um instituto que promove a compreensão e apreciação do

cinema e da televisão do patrimônio e da cultura. Fundado em 1933 ( http://www.bfi.org.uk/).

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32

A adaptação para o cinema do romance São Bernardo, feita por Leon

Hirszman, aconteceu em 1972 e também foi considerado pela crítica como uma

das melhores produções fílmicas na década de 70.

No contexto mundial, as obras de Graciliano Ramos foram traduzidas

para o espanhol, o francês, o inglês, o italiano, o alemão, o russo, o húngaro, o

tcheco, o polonês, o finlandês, etc. (BOSI, 1994, p. 401).

Seus livros são tão poliglotas quanto ele próprio, pois o menino que

nasceu longe da capital era um autodidata, aprendeu vários idiomas e, ainda

adolescente, leu grandes clássicos como Émile Zola, Karl Marx, Balzac, Eça de

Queiroz, etc., sempre nos originais.

Graciliano Ramos nasceu escondido no sertão de Alagoas,

Quebrangulo, terra de gente acostumada a conviver com as lutas entre as

famílias inimigas da cidade e com o sol quente do Nordeste. Tinha tudo para se

tornar um Fabiano.

Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros que quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. (RAMOS, 2006, p. 20).

Porém, o sertão, lugar que castiga a matéria e a alma de tudo que nasce

e vive nesse lugar, não conseguiu secar a genialidade de Graciliano Ramos.

Ainda na infância, mesmo acostumado com a violência da seca e com

as pancadas do pai (MORAES, 1996, p.10), Graciliano Ramos demonstrou

interesse pelas letras e intimidade com as palavras.

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33

Aos 12 anos de idade num jornalzinho do Internato Alagoano, publicou

seu primeiro conto “Pequeno Pedinte”. “O Diluculo5” era o nome do jornal que,

segundo nota explicativa sobre a escolha do título, “nos veiu, apenas, da ideia,

de tomarmos a luz como a imagem da vida”6.

O menino Graciliano sentiu o frescor das matas e das águas no romance

de José de Alencar, Guarani, foi parceiro das aventuras de Robison Crosué

(Defoe), de D. Quixote (Cervantes) e de Guliver (Swift).

A primeira obra que li foi O Guarani de José de Alencar. Tinha eu dez anos de idade, quando comecei a admirar bonitas descrições, a linguagem atraente do autor de Iracema, os lances de fidelidade e de amor platônico de um índio, sentimentos impossíveis entre os nossos selvagens, homens desconfiados e lúbricos, segundo a opinião de Southey, Lerry. No entanto, talvez porque eu fosse demasiado ingênuo, aquele enredo intrincado e belo parecia-me a coisa mais real possível.7

Dessa forma, rompendo com o destino duramente traçado para o

sertanejo que vive por aquelas bandas, Graciliano Ramos tornou-se um

sertanejo instruído.

Sentou-se com doutores, governantes, jornalistas e escritores, mesmo

muitas vezes sendo incompreendido. Em alguns casos fez inimizades, pois era

duro e direto nas palavras.

O autor Francisco de Assis Barbosa, apud Moacir Medeiros de

Sant´Ana, na obra Graciliano Ramos (1973, p.13) compara o autor como

sendo um “Machado de Assis Sertanejo, áspero, amargo, pessimista, sendo

trágico e irônico ao mesmo tempo”.

5 Mais adiante, na parte do perfil jornalístico do autor, foram acrescidas algumas informações

sobre esse jornal. 6 Jornal “O Diluculo”, Num. 1, Anno 1, 24 de agosto de 1904.

7 Trecho extraído do Jornal de Alagoas. Maceió, 18 de set. 1910, apud SANT´ANA, Moacir

Medeiros de. Inquérito literário realizado pelo Jornal de Alagoas em 24 de maio de 1959.

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34

As circunstâncias da caatinga forjaram um “animal frio”8 que pouco se

entusiasmava, mas também esculpiram uma alma sábia e sensível que soube

enxergar e expressar em cada página dos seus romances as fragilidades do

homem diante da natureza, suas relações com o poder e suas angústias.

Como apontado no início desta revisão, existem muitos estudos (alguns

mais completos e detalhados que outros) sobre a vida de Graciliano Ramos e

seus romances.

Alguns desses estudos são resultados de teses de doutorado e

apareceram poucos anos após a morte do escritor, como foi o caso da obra

Graciliano Ramos: autor e ator (1962), de Rolando Morel Pinto, que

apresentou sua tese em 1961, na Faculdade de Filosofia de Literatura

Brasileira da Universidade de São Paulo, sobre o vocabulário e as estruturas

frásicas das obras de Graciliano Ramos, além do conteúdo e da personalidade

poética do escritor. (PINTO, 1962, p. 15-16).

Outros importantes pesquisadores apareceram com valiosas

contribuições sobre a trajetória de Graciliano Ramos, como é o caso de

Valdemar de Souza Lima9 e Moacir Medeiros de Sant´Ana, referências na

literatura de Alagoas, sendo o primeiro mais restrito à Palmeira dos Índios e o

segundo ao Estado de Alagoas. Moacir Medeiros de Sant´Ana foi um grande

pesquisador da vida e obra de Graciliano Ramos e, no percurso de seus

estudos, reuniu muitos documentos e textos sobre o autor.

Muitos destes registros foram doados a Casa Museu Graciliano Ramos,

em Palmeira dos Índios, outros estão no Instituto Histórico de Alagoas. Porém,

8 Expressão que o próprio Graciliano Ramos lhe atribuiu em carta enviada em 24 de março de

1934 a Aldaberon Cavalcante Lins, seu amigo e também considerado importante escritor do estado de Alagoas, agradecendo as felicitações que este lhe havia feito sobre a nomeação de Graciliano Ramos ao cargo de diretor da Instrução Pública do Estado de Alagoas, no ano de 1933. 9 Nasceu no povoado de Salomé, atualmente nomeado São Sebastião, em 20 de fevereiro de

1902 e morreu em Brasília em 17 de julho de 1987. Possuía estreita amizade com Graciliano Ramos que o incentivou ao mundo da literatura. Escreveu apenas dois livros “Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios” (1971) e "O Cangaceiro Lampião e o IV Mandamento” (1979).

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segundo informações concebidas por funcionários da Casa Museu e do

Instituto, é provável que existam documentos ainda inéditos em poder do

pesquisador Moacir Medeiros, atualmente com a saúde bastante debilitada.

Medeiros escreveu a obra “Graciliano Ramos” (1973), onde apresenta, além

de informações biográficas, alguns registros administrativos que Graciliano

Ramos escreveu, enquanto prefeito de Palmeira dos Índios.

Lima (1971) publicou a obra “Graciliano Ramos em Palmeira dos

Índios” onde é possível observar um resgate da saga da família Ramos e das

várias fases da vida de Graciliano Ramos - da infância reprimida à juventude

cheia de dúvidas e anseios, do homem-comum do sertão ao ilustre Graciliano.

Nesta obra, o autor desenha o espaço onde Graciliano Ramos atuou

como comerciante, político e cidadão, além de apresentar a projeção do

escritor na literatura nacional, após sua morte.

Outro personagem que se debruçou sobre a vida e obra de Graciliano

Ramos foi José Augusto Guerra10. Na obra Caminhos e Descaminhos da

Crítica (GUERRA, 1980) fez uma análise sobre algumas obras e autores

brasileiros consagrados como; Mário de Andrade, Olavo Bilac, Ledo Ivo, etc., e,

entre estes, incluiu Graciliano Ramos na qual apresentou o perfil jornalístico do

escritor alagoano.

No capítulo “O Jornalista Graciliano Ramos” Augusto Guerra traçou

algumas características de Graciliano Ramos no campo do jornalismo, fazendo

uma analogia com alguns personagens criados pelo escritor; Paulo Honório,

Luís da Silva e João Valério que, na trama do romance, exercem de alguma

forma o ofício da redação.

10

Natural de Maceió (1926), foi professor de Redação e Jornalismo da Universidade de Brasília, escreveu vários trabalhos e, com a monografia “A técnica da Comunicação na Redação Oficial”, em que sugere à necessidade de alteração do processo que era vigente na época de expressão dos documentos oficiais, de modo a tornar mais objetiva a linguagem, foi premiado pelo DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público).

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36

Ainda na intenção de apresentar a região de inspiração do escritor

alagoano, em 2003 (ano que marcou os cinquenta anos da morte de Graciliano

Ramos), foi realizada uma grande exposição no SESC Pompéia de São Paulo

para divulgar “O Chão de Graciliano”, extensão do livro-reportagem do

jornalista Audálio Dantas e do fotógrafo Thiago Santana.

Nos aniversários de morte do “Velho Graça”, título carinhoso e criativo

da obra de Dênis Moraes11 (1996) sobre a biografia do escritor, é comum

aparecer nas estantes das livrarias edições comemorativas contando e

recontando a vida de Graciliano Ramos.

Foi o que aconteceu com os ensaios escritos por Antonio Candido sobre

o ilustre alagoano. Esses textos, quatro no total, foram escritos em períodos

diferentes e, só mais tarde, apareceram reunidos no livro Ficção e Confissão

(2006), mesmo título de um dos ensaios que compõem a obra e que foi

publicado a primeira vez em 1955. Os temas dos ensaios são sobre as

criações Caetés, Infância, Angústia e Memórias do Cárcere, onde o crítico

Antonio Candido expõe o estilo literário de Graciliano Ramos, sua perseguição

pela expressão correta e enxuta e sua personalidade, muitas vezes estampada

nas ações dos personagens. (CANDIDO, 2006, p. 17-21).

Em 1992, no Centenário de Graciliano Ramos, o curso de Pós-

Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas

(PPGLL/UFAL) e o Governo do Estado organizaram evento no qual o professor

Dênis trouxe reflexões importantes acerca da escrita de Graciliano Ramos.

11

Atualmente é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, na qual ingressou, por concurso público, em 1992. Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação Ford e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Suas áreas de especialização são economia política da comunicação, políticas de comunicação e tecnologias. Seus mais recentes livros são "A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios" (2009) e "Mutações do visível: da comunicação de massa à comunicação em rede", (org. 2010).

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37

Apesar da ampla discussão em torno do homem e artista Graciliano,

esquadrinhar suas várias fases e faces não deixa de ser desafiador, pois as

possibilidades de releituras são muitas.

2.2 Sobre os Relatórios Públicos de Graciliano Ramos

Certamente há muitos estudos sobre a criação de Graciliano Ramos,

porém percebe-se uma ausência de estudos mais aprofundados sobre seus

relatórios.

Apesar de terem sido apenas dois publicados na mídia oficial de Maceió,

um para cada ano de sua gestão, suspeita-se de que foram essenciais para a

iniciação e projeção do escritor no país. Frequentemente, o que se observa são

reedições dos famosos relatórios, na mídia contemporânea.

Mário Hélio Gomes de Lima12 organizou o livro Relatórios (1994) onde

expõe breves comentários sobre estes documentos escritos, talvez um dos

mais extensos até o momento. Compõe este livro o capítulo “Comentários de

um Sociólogo, dois Jornalistas, um Escritor e um Ator de Cinema de Hoje aos

Relatórios de Graciliano Ramos” que é a soma de curtos artigos que exploram

a escritura dos relatórios. Apesar da pouca extensão, são textos bem

construídos e que trazem reflexões sobre estes registros de Graciliano Ramos.

De tempos em tempos aparecem na mídia comentários sobre os

relatórios e o jeito de administrar de Graciliano Ramos, mas frequentemente

são leituras de trechos que exemplificam o perfil irônico e sincero do autor. Não

se observa nestes comentários um exame mais profundo e fundamentado.

A Revista da História da Biblioteca Nacional, que conta com o apoio do

Ministério da Cultura, publicou a matéria Manual do Bom Político (2008),

escrita por Lorenzo Aldé, na qual se registra que “os documentos têm o frescor

de uma fotografia digital” (p. 30).

12

Atualmente, é professor da Universidade Federal de Santa Maria atuando na área de Comunicação.

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38

Para alegria da autora desta tese, o jornal Folha de S. Paulo publicou

no dia 12 de setembro de 2010, uma extensa matéria sobre os relatórios

públicos de Graciliano Ramos e um trecho de uma carta ainda inédita que este

autor escreveu ao então presidente Getúlio Vargas, fundamentada nesta

pesquisa.

Na mesma data, também saiu uma matéria na Gazeta de Alagoas

sobre os relatórios escritos pelo ilustre alagoano, intitulada Política de Graça e

escrita pelo repórter Fernando Coelho. A matéria da Gazeta, além de

transcrever trechos dos relatórios e apontar brevemente como foi o estilo de

governar de Graciliano Ramos, apresenta alguns depoimentos de

pesquisadores contemporâneos que estão estudando os relatórios.

O estudioso Ivan Barros13, filho de Palmeira dos Índios, autor de vários

livros, entre eles Graciliano era assim (1974) e Palmeira dos Índios – terra &

gente (1969), declarou a Gazeta que brevemente lançará o livro Graciliano, o

prefeito que virou Best-Seller. Sobre os relatórios Barros diz “Eu vejo os

relatórios como uma lição para esses políticos fichas-sujas, ficha limpa e os

que estão denunciados por improbidade ou irregularidade” (Gazeta de Alagoas,

caderno B, setembro de 2010).

A pesquisadora Ana Florinda Dantas 14 (2010, Caderno B) fez os

seguintes comentários sobre o perfil administrativo do escritor e sobre os

documentos:

Um exemplo de probidade administrativa e respeito aos seus administrados, pois levou a democracia representativa ao mais alto patamar, quando se sentia efetivamente um representante do seu eleitor, a quem prestava contas e dava satisfações dos seus atos de administração. Mais que isso, tinha um comportamento pessoal compatível com a austeridade do

13

Jornalista, advogado e escritor, ex-repórter da extinta revista Manchete, promotor de justiça aposentado, autor de vários livros, entre eles Graciliano Ramos era assim, lançado em 1974 pela editora Sergasa, atual Imprensa Oficial Graciliano Ramos http://imprensaal.wordpress.com/ Uma das suas principais publicações é a Revista Graciliano Ramos cujo objetivo é retratar Alagoas através de ensaios, entrevistas, artigos fotográficos etc. 14

Professora da Faculdade de Direito do Centro Universitário Cesmac (AL), juíza membro do Pleno do Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas.

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39

governante que sabia ser, mesmo involuntariamente, um modelo para os administrados. (GAZETA DE ALAGOAS, CADERNO B, 12/SET/2010).

No desenvolvimento da reportagem, aparecem outros depoimentos

sobre a obra ficcional de Graciliano Ramos como Memórias do Cárcere,

Caetés e Vidas Secas.

Como se pode perceber, existem referências e alguns estudos iniciais

sobre os registros da gestão do mais ilustre prefeito de Palmeira dos Índios,

alguns remotos e outros mais recentes.

A carência de estudos dirigidos aos escritos não ficcionais de Graciliano

Ramos, especificamente de seus relatórios, justifica esta pesquisa que busca

ampliar os estudos sobre esses documentos e mostrar como foram lidos e

comunicados ao país.

Para melhor compreensão desses textos, faz-se necessário um estudo

dos gêneros discursivos e textuais, à luz das concepções de Bakhtin, Todorov

e de outros autores.

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40

3 AS MULTIFACES DE GRACILIANO RAMOS

3.1 O Menino Graciliano: Letra, Leitura e Palmatória

O menino Graciliano Ramos nasceu no ano de 1892, filho de Sebastião

Ramos e Maria Amélia, na cidade de Quebrangulo, no estado de Alagoas.

Nesta época, o Brasil passava por importantes mudanças políticas e

econômicas que deixavam no ar um vestígio de incertezas. A República ainda

era uma criança e as querelas do Regime Militar ainda se faziam presentes

(FURTADO, 1995).

Sebastião Ramos sentiu as consequências da falência dos negócios do

avô paterno de Graciliano Ramos, Tertuliano Ramos, homem que teve

propriedades e capangas, mas que amargou com os dissabores da caída

social e econômica do país. (LIMA, 1971, p. 12-13). Sobre o cenário econômico

da época, Furtado (1995, p. 170), aponta:

Dessa forma, a depressão externa (redução dos preços das exportações) transformava-se internamente em um processo inflacionário. No último decênio do século, desequilíbrios internos desse tipo agravados pela política monetária que seguiu o governo provisório instalado após a proclamação do regime republicano. A política monetária do governo imperial nos anos oitenta, traumatizada pela miragem da “conversibilidade”, por um lado conduzia a um grande aumento da dívida externa e por outro mantivera o sistema econômico em regime de permanente escassez de meios de pagamento. Entre 1880 e 1889, a quantidade de papel-moeda em circulação diminuiu de 216 para 197 mil contos, enquanto o valor do comércio exterior (importações + exportações) crescia de 414 para 477 contos.

O casal Ramos seguia pelejando por uma vida sem dívidas e sem

muitas complicações financeiras. Para isso, mudaram para Buíque (PE) e

montaram um pequeno comércio, onde adotaram estrategicamente a venda à

vista, evitando o máximo possível o fiado, prática tão comum naquele período.

Fazer economia era uma lei para o jovem casal, guardavam o que podiam. A

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41

outra estratégia que adotaram para conservar o bom ir e vir na cidade foi o

cultivo da boca fechada e da discrição. (LIMA, p. 18-19). Nesse período,

Graciliano era ainda uma criança tenra, tinha apenas dois anos.

Com administração séria, regrada e devidamente anotada, Sebastião

Ramos de Oliveira e sua mulher, aos poucos, consolidaram-se na sociedade

como comerciantes bem sucedidos. Enquanto isso, o menino Graciliano

crescia longe da miséria, mas debaixo de palavras severas e de pancadas do

pai “meu pai era terrivelmente poderoso, e essencialmente poderoso (...) não

economizava pancadas e repressão. Éramos repreendidos e batidos15”

(RAMOS, 2003, p. 27).

As constantes mudanças de cidade acompanharam a família Ramos.

Passaram por Quebrangulo, Buíque, Viçosa, Palmeira dos Índios. Em Viçosa,

já com sete anos, o menino Graciliano ingressou no Internato Alagoano, onde

começou a manifestar seu interesse pela literatura.

Enquanto a educação formal consumia o menino Graciliano no Internato,

em Palmeira dos Índios a Loja Sincera demonstrava solidez e prosperidade.

Recentemente, para conhecer mais de perto o ambiente do ilustre

personagem, estive na cidade de Palmeira dos Índios e desejei passar na rua

onde outrora ficava a loja da família Graciliano. Constatei que a estrutura física

da loja continua de pé e, atualmente, funciona como loja de variedades. A

maioria dos clientes entra e sai do estabelecimento sem saber que um dia

aquele espaço pertenceu a um dos personagens mais importantes da literatura

brasileira, pois não há nenhuma referência informando que ali foi a Loja

Sincera de Graciliano Ramos.

O jovem Graciliano, após alguns anos frequentando a escola e muita

leitura solitária, deteve um conhecimento sólido. Envolveu-se cada vez mais

nos negócios do pai, não por gosto, mas por obrigação. A leitura era sua

15

Trecho retirado da obra Infância.

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prioridade, mesmo sabendo que o interesse pelas letras o distanciava das

obrigações de jovem comerciante, atitude que deixava o velho Sebastião

Ramos arredio.

Assim, entre leituras solitárias, letras conhecidas e desenhadas sob a

vigia rigorosa da palmatória, o menino Graciliano foi sendo esculpido

culturalmente.

3.2 Comerciante à Frente de Seu Tempo

Mesmo sem satisfação, Graciliano Ramos trabalhou muitos anos na loja

Sincera que inicialmente era do seu pai. Entre fazendas, miudezas, ferragens e

tintas, passou muitos dias de sua juventude envolvido com as ações de compra

e venda de mercadorias. Raramente se distanciava do balcão e, por isso, suas

leituras foram comprometidas (LIMA, 1971).

Graciliano Ramos, na obra Infância (2003), sobre a fatalidade do destino

das pessoas, inclusive do seu próprio, escreveu: “Ainda hoje suponho que os

meus poucos acertos e numerosos escorregos são obra de um destino irônico

e safado, fértil em astúcias desconcertantes” (RAMOS, 2003, p. 93).

Diante desse destino supostamente marcado, o comerciante não

mostrou rebeldia, ao contrário, fez mudanças criativas na loja e cuidou com

esmero das contas, dos clientes e dos empregados. O perfil do comerciante

Graciliano nos revela características modernas para o período, o que

demonstra um homem com visão a frente do seu tempo.

Naquele período, preocupado em formar uma equipe preparada para

atender os clientes e concretizar bons negócios, Graciliano Ramos aplicava

testes tanto para escolher os melhores candidatos para trabalhar na loja quanto

para treinar os já atuantes, dessa forma, a equipe era reduzida, mas eficiente.

(LIMA, 1971, p. 56).

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Os registros das negociações, certamente das vendas, entradas e

saídas de mercadorias, cadastro dos clientes, livro caixa, eram feitos com rigor

e exatidão, característica que vai se repetir no Livro de Registro de Contas da

Prefeitura de Palmeira dos Índios, quando foi prefeito da cidade. Fazia questão

de anotar tudo a próprio punho, com letra miúda e firme. Ainda nos relatos de

LIMA (1971), Graciliano Ramos prezava pelo bom atendimento aos clientes,

gostava de prosear, mesmo que o freguês não tinha intenção de comprar nem

botão.

O comerciante de Palmeira dos Índios mostrava-se meio arredio a

tecnologia. A máquina de datilografia era raridade em cidades como Palmeira

dos Índios, aliás, consta que na época, apenas um morador dessa região

possuía tal novidade. Apesar de causar espanto e admiração, Graciliano

Ramos resistiu em adotar a máquina.

O proprietário da Loja Sincera mostrou que entendia da importância do

marketing, mesmo em uma época que não se conhecia tal termo no país.

Publicou um anúncio da Loja Sincera no Jornal O Índio, semanário católico,

(mais adiante citarei a atuação de Graciliano Ramos nesse veículo), com a

intenção de projetar seu estabelecimento. (LIMA, p. 57). Para conquistar e

fidelizar o cliente mantinha a loja sortida de produtos e novidades, com a

fachada atrativa, para chamar a atenção dos fregueses e fixou o preço único

para cada artigo. Não dava desconto e nem tirava os poucos centavos para

arredondar o preço. Essa atitude inflexível do comerciante confrontava com os

costumes das pessoas da cidade, pois era muito comum um acerto pessoal do

preço da mercadoria, diretamente no balcão.

Praxe original, sem dúvida, essa do tal preço fixo inarredável, mas que não sintonizava com o espírito da clientela, principalmente a da roça, via de regra danada para rezingar. Estupidez fechar as portas a quem desejava adquirir qualquer coisa, batendo-se sempre por uma “diferençazinha”. O freguês preferia transacionar com quem admitia o jogo das palavras, no curso do qual tinha liberdade para expor os seus argumentos e defender-se. Aquele estranho figurino era inaceitável, parecia confundir-se com a letra fria dos decretos,

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debulhados em artigos e parágrafos, impondo rigorosa observância. Quem já vira? Ora bolas! Marchar em lorota de negociantes, com a sua notória inclinação o logro... Engraçado! (LIMA, 1971, p. 59).

Embora a conduta do jovem comerciante para gerir seu negócio

causasse espanto na população e, talvez para os outros comerciantes da

cidade fossem atitudes inapropriadas, o resultado foi positivo, pois a imagem

de loja que inspirava confiança e sinceridade cristalizou-se na redondeza.

O negociante Graciliano Ramos reconhecia a dinâmica do mercado e,

de tempos em tempos, tornava-se flexível para realizar a venda a prazo, porém

sempre muito precavido com as anotações. Preferia o diálogo com o devedor,

se este não cumpria com os prazos de pagamento, a recorrer aos cartórios da

cidade.

Há nos arquivos da Casa Museu Graciliano Ramos em Palmeira dos

Índios, registros de memorandos escritos por Graciliano Ramos aos seus

devedores. O exemplo abaixo ilustra um destes registros:

Palmeira dos Índios, de 4 de fevereiro de 1926. Amigo Manoel Pereira. Recebi sua carta de 30 p. Tenho como o amigo deve compreender, numa crise como esta que atravessamos, grande necessidade de dinheiro. Assim, se lhe fosse possível dar baixa na hipoteca este ano, eu lhe ficaria agradecido. Caso não possa, peço-lhe ao menos, já que tenho absoluta necessidade, que faça um esforço para trazer pelo menos a metade da importância16.

Muito agradecido ficará seu amigo certo Graciliano Ramos

16

Carta exposta no Arquivo Público da Casa Museu Graciliano Ramos.

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Graciliano Ramos era o tipo de negociante que não apreciava a

desgraça do outro e nem julgava as ações que o levaram a ruína. Apesar de

sua postura séria e muito rigorosa, demonstrava compaixão com o sofrimento

das pessoas. (LIMA, 1971).

Os negócios da Loja Sincera iam bem até que veio a crise de 1929. A

economia do sertão ficou à deriva e muitos comerciantes nordestinos,

pequenos e grandes, não suportaram a situação. A desvalorização do preço

dos frutos da terra, a escassez do mercado e a ausência da moeda na praça

denunciaram a vitória da crise. O poder aquisitivo do povo caiu, as mercadorias

se amontoaram nas prateleiras e as dívidas aumentavam mês a mês. Foi

nesse contexto de dificuldade que o experiente comerciante Graciliano Ramos

resolveu dar cabo na Loja Sincera.

3.3 Um Professor Matuto

No tempo em que a educação escolar, principalmente em cidades como

Palmeira dos Índios que ficavam longe das capitais, era precária e contava com

professores que, muitas vezes, não havia frequentado os bancos escolares e

nem concluído curso algum para exercer tão nobre função, quem possuía

educação bancária17 era rei.

Graciliano Ramos iniciou seus estudos formais no Internato Alagoano,

após ter aprendido aos cinco anos as primeiras letras com o mais severo

professor que teve, Sebastião Ramos: “Aprendi a carta do ABC em casa,

aguentando pancada” (RAMOS, apud, Moraes, 1996, 10).

Com o passar dos anos, naturalmente foi demonstrando sua

característica autodidata e foi visto pelos moradores de Palmeira dos Índios

17

Expressão apresentada por Paulo Freire para expor o modelo tradicional de prática pedagógica que imperou por muitos anos no país, entendia que esse tipo de educação visava à mera transmissão passiva de conteúdos pelo professor, sem considerar a realidade do aluno no processo de ensino/aprendizagem.

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como um homem letrado e, se desejasse, poderia ajudar na educação da

cidade.

Para ilustrar a educação paterna de Graciliano Ramos, um trecho da

obra Infância:

Mas, arengando com Joaquim, na areia do beco, ou admirando o rostinho de anjo de Teresa, assaltava-me às vezes um desassossego, aterrorizava-me a lembrança do exercício penoso. Vozes impacientes subiam, transformavam-se em gritos, furavam-me os ouvidos; as minhas mãos suadas se encolhiam, experimentando nas palmas o rigor das pancadas; uma corda me apertava a garganta, suprimia a fala; e as duas consoantes inimigas dançavam: d, t. Esforçava-me por esquecê-las revolvendo a terra, construindo montes, abrindo rios e açudes. (RAMOS, 2003, p. 115 – 116).

São vários os exemplos da educação violenta e inútil que Graciliano

Ramos recebeu durante sua formação. Em trecho da obra Infância (2003. p.

16) o autor fez a seguinte declaração: “Medo. Foi o medo que me orientou nos

primeiros anos. Pavor.”

Embora traumática, a vida escolar do menino mal compreendido não foi

reproduzida quando este teve a oportunidade de ensinar, ao contrário,

mostrou-se exigente nas lições, mas incapaz de um ato violento que pudesse

deixar marcas negativas em seus alunos. Quando precisava chamar a atenção,

era sempre com palavras, muitas vezes carregadas de ironia.

Voltando ao cenário educativo de Palmeira dos Índios, estava longe de

ser considerado adequado, pois além de contar com a falta de professores,

também não possuía instalação e mobília para acomodar os aspirantes ao

estudo. A Diretoria da Instrução, órgão responsável pela educação do povo

palmeirense, recorria à ajuda dos pais dos alunos para conseguir realizar suas

funções de escola.

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De mais a mais, essas abnegadas mulheres não dispunham de local apropriado nem de instalações convenientes para exercer o seu sagrado mister. Os pais de família, então se dispunham a cooperar com a Diretoria da Instrução, em permanente estado de bancarrota, mandando os filhos para a escola, munidos de seu respectivo caixão de querosene, adquirido nas mercearias do lugar. (LIMA, 2003, p. 36).

De férias do Internato no ano de 1910, Graciliano ouviu comentários dos

moradores da cidade sobre sua boa instrução, não só na gramática da língua

materna, mas também no francês, italiano, inglês e nas contas. Seus colegas

de praça passaram a indagá-lo a fim de saber se nele havia alguma intenção

em ajudá-los na transmissão de seus conhecimentos. Mas o perfil de homem

avesso ao exibicionismo não se gabava com os comentários elogiosos a sua

pessoa, pelo contrário, fazia questão de cortar esse tipo de conversa quando

estava por perto.

As indagações tornaram-se frequentes, até que Graciliano Ramos, em

plenas férias, decidiu abrir um curso particular noturno da cidade, do qual foi

mestre. Não fez tal empreendimento por vocação, mas talvez pelo anseio em

ajudar, de alguma forma, seus conterrâneos e também pela oportunidade de

mexer com a faculdade da leitura e do conhecimento, que tanto lhe agradava.

Os moradores da cidade logo ficaram sabendo do curso e os filhos de

pais com recursos, jovens políticos e interessados em uma instrução mais

apurada matricularam-se no curso do jovem professor Graciliano Ramos.

(LIMA, 1971).

O perfil de bom estrategista esteve presente na administração das aulas

e na escolha dos alunos, pois taxou o curso com mensalidades relativamente

altas. O preço tinha um objetivo, atrair para o curso somente aqueles

interessados nas palavras do mestre Graça e, dessa forma, afastar os curiosos

e brincalhões. Essa atitude foi experimental, apenas seletiva e, após a

formação e consolidação da turma, as mensalidades não eram mais cobradas.

(LIMA, 1971)

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Diante das novidades do esperanto, proposta de língua universal,

Palmeira dos Índios contou com o dedicado professor Graciliano Ramos, que

se empenhou para aprender e ensinar o idioma aos interessados. Também

ministrou aulas de francês no Colégio Sagrado Coração e era constantemente

procurado para esclarecer dúvidas de alunos, crianças e adultos, matriculados

nas poucas escolas da região. (LIMA, 1971).

Entre seus alunos, suas irmãs Marili e Clélia estavam presentes que

receberam a mesma orientação rigorosa que os outros colegas de turma. Em

declaração feita ao escritor Denis de Moraes (1996), Clélia recordou “Ele

conseguia despertar o nosso interesse, ninguém faltava às aulas. Eu aprendi

noções de francês e italiano numa época em que nem sabia direito o

português”! (MORAES, 1996, p. 41).

Nos quatro anos de funcionamento do curso, adultos e crianças

passaram pela nova escola que apresentava uma proposta pedagógica

diferenciada para a época. A palmatória por ali não era aplicada, porém exigia

dedicação e frequência dos alunos.

A escola funcionou apenas por quatro anos, pois com a partida de

Graciliano Ramos para o Rio de Janeiro em 1914, o “curso noturno” foi

fechado. Provavelmente não o confiava em outras mãos.

Alguns textos apontam que Graciliano Ramos foi empreendedor de uma

escola de idiomas em Palmeira dos Índios. (LIMA, p. 113) Teria sido uma

escola tanto para ensinar a Língua Portuguesa à nova gente que por lá

chegava, quanto para ensinar o italiano aos palmeirenses interessados.

Graciliano Ramos foi o único professor. Porém, essa informação precisa ser

melhor investigada para constatar a sua veracidade. Existe um trecho na obra

Viventes das Alagoas (RAMOS, 1967, p. 154) que pode ser um indício

verdadeiro dessa narração:

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Por motivo de ordem econômica, resolvi um dia, a exemplo de toda gente, ministrar aos outros alguns conhecimentos proveitosos de mim. Não me arrisquei a preparar oleiros sapateiros pois ninguém tomaria a sério sapato ou panela que eu fizesse. Procurei matéria exótica, de verificação difícil. Imaginando, sem grande esforço que na Itália existia uma língua, pedi catálogos ao Garnier e dispus-me resolutamente a estropiar o italiano com a ajuda de Deus. Anunciei: - Italiano rápido e barato a cinco mil réis por cabeça, mensalmente. Aproveitem. Lições em todos os dias úteis. Tempo é dinheiro como diz o gringo. Isso deve ser fácil, pensei. É só arrumar no fim das palavras une ou ine. De estrangeiro cá na terra ninguém entende. E se aparecer por aí um carcamano, adoeço e perco a fala. Pois, senhores, não me dei mal. Matricularam-se cerca de trinta idiotas. Comecei a trabalhar com energia e confiança. Ainda estaria trabalhando, se dois alunos, finda a primeira quinzena, não entrassem em concorrência comigo, deslealmente, fundando escolas que italianizaram toda a localidade.

Mais uma vez, pode-se notar o espírito de homem de negócio que o

escritor possuía. Como qualquer outro jovem de sua idade, Graciliano

desejava conhecer novas terras, buscar aventuras intelectuais, sociais e

econômicas. Esse espírito desbravador fortaleceu-se e o jovem sertanejo

decidiu partir para o Rio de Janeiro, mesmo deixando para trás sua futura

esposa, Maria Augusta.

Na cidade grande, trabalhou com revisor suplente no Correio da Manhã,

depois em O Século, para reforçar os ganhos, logo após como revisor do jornal

A Tarde, escreveu crônicas para o Jornal de Alagoas e colaborou com o

semanário Paraíba do Sul, na cidade fluminense. Desde a sua chegada no Rio

de Janeiro, teve uma vida intensa como escritor e seus textos foram elogiados

por leitores, jornalistas e escritores da época.

O jovem professor cumpriu bem com a sua missão de instrutor, pois

ensinou com rigor e dedicação todos os que lhe procuravam interessados em

aprender com o mestre matuto e sábio do sertão.

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Anos mais tarde, o perfil de homem intelectual e de educador exemplar

rendeu a Graciliano Ramos os cargos de Diretor da Instrução Pública de

Alagoas, esse era o ano de 1933.

A postura destemida, justa, inflexível e que não se dobrava a corrupção

e a privilégios para obter favorecimento próprio, foi observada tanto no

exercício da prefeitura de Palmeira dos Índios quanto na ocupação do cargo de

Diretor da Instrução Pública do Estado. (SANT´ANA, 1992, p. 54). Tal postura

despertava descontentamento nos rostos daqueles que se viram direta ou

indiretamente atingidos.

Como Diretor da Instrução baixou medidas polêmicas e desafiadoras,

passou a exigir diplomas e formação específica para os que desejassem

ministrar aulas nas escolas públicas do estado, demitiu as professoras

interinas, entre as quais sua própria irmã, criou as Juntas Escolares que tinham

a função de propagar e fiscalizar as escolas estaduais, municipais e

particulares, instaurou os estudos estatísticos sobre a educação no estado.

(SANT´ANA, 1992, p. 54).

Em trecho da obra Memórias do Cárcere (2008), Graciliano Ramos fez o

seguinte relato sobre sua gestão no cargo de Diretor da Instrução:

Pelo meu cargo haviam passado em dois anos oito sujeitos. Eu conseguiria aguentar-me ali mais de três anos, e isto era espantoso. Ocasionara descontentamentos, decerto cometera numerosos erros, não tivera a habilidade necessária de prestar serviços a figurões, havia suprimido nas escolas o hino de Alagoas, uma estupidez com solecismos, e isto se considerava impatriótico. (RAMOS, 2008, p. 17).

Em sua gestão escolar, o número de matrículas aumentou bastante em

relação aos anos anteriores a sua administração, como podemos observar nos

dados apresentados pelo pesquisador Sant´Ana, (1992, p. 53) “[...] os números

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da matrícula geral dos alunos nas escolas de Alagoas, a começar de 1932, ano

anterior ao seu ingresso na Diretoria em questão, até 1934: 21.478 alunos em

1932: 32.912 em 1933 e finalmente 40.239, em 1934, representando o

significativo aumento de 87,3% no período”18.

Quando Graciliano Ramos assumiu o cargo na Pasta da Educação do

Estado, a situação do ensino encontrava-se precária e muito distante de

oferecer uma educação de qualidade a crianças e adultos.

No ano de 1935, Graciliano Ramos escreveu um relato sobre a realidade

da educação do Estado de Alagoas, que foi divulgado na revista A Escola no

mesmo ano (SANT´ANA, 1992, p. 51). Diz o relato:

O quadro que nos apresentava, há poucos anos, a instrução pública em Alagoas era este: dezena e meia de grupos escolares, ordinariamente localizados em edifícios impróprios, e várias escolas isoladas na capital e no interior, livres de fiscalização, providos de material bastante primitivo e quase desertas. As professoras novas ingressavam comumente nos grupos; as velhas ficavam nas escolas isoladas, longe do mundo, ensinando coisas absurdas. Salas acanhadas palmatórias, mobília de caixões, santos nas paredes, em vez de mapas.

O jovem professor cumpriu bem e com rigor sua missão de instrutor.

Passou por vários níveis da educação formal; professor da roça, dono de

escola de idiomas e Diretor da Instrução Pública do Estado de Alagoas. A

postura ética e corajosa o acompanhou em todos os momentos e o mestre

matuto e sábio do sertão deixou uma lição de cidadania, justiça e

comprometimento com o próximo para o povo do seu estado e para o país.

18

Esses dados aparecem divulgados no livro do pesquisador Moacir Medeiros de Sant´Ana “Graciliano Ramos: vida e obra, e foram retirados do Jornal de Alagoas de 13 de dezembro de 1935, do editorial Trabalhando em Silêncio.

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3.4 O Prefeito Graciliano: Coragem e Desafios numa Terra Sem Lei

Palmeira dos Índios além de haver contado com o mestre Graça

ministrando aulas de gramática, francês, italiano, esperanto, leitura e contas,

teve o privilégio de ser governada por Graciliano Ramos.

A história de curta permanência atuando como professor da região se

repetiu no cargo da prefeitura da cidade. Este último com um tempo ainda

menor, dois anos.

O jornalista Álvaro Paes, em visita eleitoral à cidade de Palmeira dos

Índios, na época era candidato a governador do Estado de Alagoas, foi bem

recebido pelos colegas de profissão, os jornalistas, pelos curiosos e por

aqueles que tinham esperança em obter algum favor do ilustre visitante.

Na metade da segunda década do século XX, mais precisamente no ano

de 1926, Palmeira dos Índios viveu uma história de violência na arena política.

O prefeito Lauro de Almeida Lima foi assassinado, em plena luz do dia, pelo

cobrador de tributos da região João Ferreira de Gusmão e Melo. O ocorrido se

deu por motivo de desentendimento entre os envolvidos na tragédia por

questões de cobrança de tributos. (LIMA, 1971).

O vice-prefeito, Manuel Sampaio Luz, assumiu a posição que lhe era de

direito e governou a cidade até o final do mandato. Era período de nova eleição

e a “princesa do sertão” precisava apontar um nome para concorrer ao cargo

da sua prefeitura. Nessa época, a fama de Graciliano Ramos na cidade de

homem instruído, justo, sério e de bom administrador corria solta. Não

demoraria muito para o convite bater-lhe a porta.

As conversas entre o governador do Estado e os famosos irmãos

Francisco e Otávio Cavalcanti, que comandaram a política da cidade por mais

de quatro décadas, chegaram ao nome de Graciliano Ramos. Esse era o

candidato ideal para concorrer ao cargo da prefeitura de Palmeira dos Índios.

Porém, restava saber se o indicado se interessaria pelo pleito.

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Selado o acordo, faltava armar a arapuca para o candidato. No terraço da mansão dos Cavalcanti, Graciliano sentiria as pernas tremerem ao ouvir Otávio lançá-lo prefeito. Refeito do susto, responderia, sem morder a isca: - Só se Palmeira dos Índios estivesse com urucubaca... (MORAES, 1996, p. 52).

Como nota-se, Graciliano Ramos prontamente recusou o convite. Mas

os homens da política não desarmaram suas arapucas. Nessa mesma

época o livro Caetés estava sendo escrito pelo escritor, que lhe tomava boas

horas de sono. Se entrasse para a política, seria obrigado a encostar o

romance. Foi o que aconteceu.

Depois de muita insistência dos amigos e de uma provocação dos

adversários espalhando que ele estava amedrontado e, por isso, fugiu da briga,

Graciliano voltou atrás. “Apareça o filho da puta que disse que eu não sabia

montar em burro bravo!” (MORAES, 1996, p. 53), foram as palavras escritas no

bilhete que o candidato Graciliano Ramos escreveu a Francisco Cavalcanti.

No dia 07 de outubro de 1927 Palmeira dos Índios elegeu seu novo

prefeito, Graciliano Ramos de Oliveira, com 433 votos. Após a morte de sua

primeira esposa, Maria Augusta, fato que ocorreu em 1920, o jovem prefeito

buscou conforto nos filhos, nos negócios da Loja Sincera e na literatura. Agora,

envolvido com a política, teria mais uma obrigação. Raros foram os momentos

de lazer com alguns poucos amigos. O luto se arrastou por aproximadamente

sete anos.

No ano em que foi eleito, fato importante em sua vida, aconteceu outra

inusitada surpresa, Heloísa. Foi um amor à primeira vista para Graciliano,

como descreveu em uma das inúmeras cartas que enviou à amada:

Heloísa: mandei-te uma carta pelo último correio, e já a necessidade me aparece de falar novamente contigo. Se pudesse, empregaria todo o tempo em escrever-te, só para ter o prazer de receber respostas. Tenho tanto que te dizer... Nem sei por onde começar, fico indeciso, com a pena suspensa, vendo interiormente esses olhos que me endoideceram

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quando os vi pela primeira vez. Muitas coisas para dizer-te, mas coisas que só se dizem em silêncio e que talvez compreendas, se houver afinidade entre nós. (RAMOS, 1980, p. 86-87).

Atormentado entre os desafios da política e da paixão, Graciliano Ramos

assumiu legalmente a prefeitura no dia 07 de janeiro de 1928, pouco tempo

depois, Heloisa era oficialmente primeira-dama de Palmeira dos Índios.

Como prefeito, Graciliano Ramos inovou o perfil da administração

pública da cidade. Logo nos primeiros dias de sua gestão, observou que os

desafios eram muitos e que, certamente, mexeria em feridas que poderiam lhe

render infortúnios e inimizades. Em outro trecho de carta enviada à noiva

Heloisa, ele desabafa:

Para os cargos de administração municipal escolhem de preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na cabeça uns parafusos de menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício e qualquer dia renuncio. Por tua culpa, meu amor, toco num assunto desagradável e idiota. Isso não vale nada. (RAMOS, 1980, p. 97).

Quem chega a Palmeira dos Índios, depara-se com um enorme busto

do mais ilustre prefeito que a cidade já teve. A homenagem, certamente, não é

apenas para simbolizar a fama de Graciliano Ramos como escritor, mas

também para lembrar do gestor público exemplar que ele foi.

Na qualidade de prefeito, não poupou esforços para administrar de

maneira justa e competente. Assumiu um município praticamente falido. Seu

antecessor deixou o caixa magro, dívidas atrasadas, tanto a pagar quanto a

receber. Precisava fazer milagre para colocar a casa em ordem. (LIMA, 1971).

Administrou a cidade com mãos de ferro. Reduziu as despesas, cobrou

com rigor os impostos e não perdoou os devedores. Demitiu funcionários

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desnecessários ao serviço público e que apareciam por ali somente nos dias

dos vencimentos. Graciliano tinha mania de limpeza e primava muito pela

higiene pessoal, dessa forma, transferiu seu asseio para a cidade.

No dia 22 de agosto de 1928, instituiu o Código Municipal de Conduta19,

que foi publicado na Gazeta de Notícias de Maceió do mesmo ano. Mandou

limpar todas as ruas e matar os bichos que faziam das ruas públicas seus

quintais. Os donos dos animais que não queriam ver seu bichinho morto

correram para colocá-los dentro de suas casas. Nas ruas da cidade, era

comum a livre circulação de cachorros e porcos. Tal medida causou alvoroço

nos moradores, mas nem o pai do próprio prefeito foi poupado da nova ordem.

A seguir20, algumas resoluções do polêmico Código que ajudam a

retratar o zelo e o interesse em instaurar a ordem na cidade, escritas e

cumpridas à risca por Graciliano Ramos:

CAPITÚLO I – Comércio

Art. 1 - Ninguém poderá estabelecer negócio de qualquer

natureza sem previamente haver obtido a necessária

licença da Prefeitura. Multa igual à importância do imposto

aos contraventores.

Art. 2 - O indivíduo que for encontrado negociando sem

licença terá fechada a sua casa comercial.

19

O Novo Código de Conduta substituiu um antigo, escrito na época do Império no ano de 1865. Sobre a existência do caduco relatório, Graciliano Ramos fez o seguinte comentário quando escreveu o segundo Relatório ao governador do Estado de Alagoas: “Em janeiro do ano passado não achei no Município nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral, anacrônicas, do tempo das candeias de azeite. Contava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me que o código era uma espécie de lobisomem. Afinal, em fevereiro, o secretário descobriu-o entre papéis do Império. Era um delgado volume impresso em 1865, encardido e dilacerado, de folhas soltas, com aparência de primeiro livro de leitura de Abílio Borges. Um furo. Encontrei no folheto algumas leis, aliás bem redigidas, e muito sebo. Com elas e com outras que nos dá a Divina Providência consegui aguentar-me até que o Conselho, em agosto, votou o código atual”. 20

Essas informações foram retiradas de uma cópia do próprio Código Municipal de Conduta, escrito por Graciliano Ramos, adquirida na Casa Museu Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios.

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Art. 5 - Os objetos que se empregarem no serviço das

vendas e tavernas devem estar sempre limpos. Multa de

$5000,000.

Art. 11 - As mercadorias avariadas, aprendidas por um

fiscal, serão inutilizadas depois de reconhecido o seu mau

estado por dois peritos nomeados pelo prefeito. De tudo

será lavrado um termo, que o fiscal, peritos e duas

testemunhas assinarão. Os donos, além da multa, pagarão

as despesas necessárias ao exame das mercadorias.

CAPÍTULO II – Higiene

Art. 23 – É proibido aos habitantes da cidade e dos

povoados:

1. Ter monturos ou depósitos de lixo em seus pátios ou

quintais;

2. Conservar sujas as frontarias de suas casas;

3. Ter porcos em liberdade ou em chiqueiros sem

segurança;

Art. 24 – Os animais encontrados mortos na rua serão

enterrados por seus donos, que terão, depois de intimados,

quatro horas para fazei-o. Os transgressores incorrerão na

multa de 2o$ooo. Se os donos não forem conhecidos, os

animais serão enterrados à custa da Prefeitura.

Art. 31 – É proibido:

1) Deitar substâncias orgânicas ou imundícies em rios,

riachos, açudes, tanques, lagoas e quaisquer fontes de

abastecimento público.

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57

CAPÍTULO III – Moralidade, tranquilidade, segurança

pública

Art. 43 – É proibido:

1) Ter cães soltos sem mordaça.

Art. 50 – É proibido mendigar.

Os moradores de Palmeira dos Índios viveram uma nova fase na cidade.

Para alguns, boa, para outros aceitável e para os acostumados a privilégios e a

fazer suas próprias leis, praticamente um cenário de guerra.

Durante sua permanência a frente da Prefeitura de Palmeira dos Índios,

Graciliano Ramos escreveu dois relatórios prestando contas de sua gestão do

governador do Estado de Alagoas, Álvaro Paes. Estes relatórios, além de

apontar o perfil de um funcionário público verdadeiramente comprometido com

a gestão correta do cargo, exibem também um estilo de redação inovador, pois

prima pela correção gramatical, pessoalidade e traços literários.

Na conclusão do segundo relatório, o Prefeito Graciliano Ramos

escreveu:

Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis. Evitei emaranhar-me em teias de aranha. Certos indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos. Não me entendi com esses. Há quem ache ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem como assunto invariável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal; há até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos. Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325$500 de multas. Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os

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meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca. Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizerem falta. Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. (LIMA, 1994, p. 45-46).

A forma como Graciliano Ramos redigiu os relatórios causou espanto e

admiração nos leitores. Destinados a Álvaro Paes, os documentos logo foram

publicados nos jornais do Rio de Janeiro e os escritores e editores da época

tomaram conhecimento do estilo ousado e da veia artística de um jovem

prefeito do sertão.

Os relatórios públicos de Graciliano Ramos romperam com o estilo dos

documentos oficiais, escritos de maneira formal, técnica e impessoal. A

repercussão de tais relatórios foi intensa na imprensa local e nacional, mesmo

após ter passando alguns anos da primeira publicação.

Abaixo, alguns trechos retirados de jornais21 que circulavam no período,

sobre os documentos:

Assim por 1929, mais ou menos, não houve em Alagoas quem não conhecesse Graciliano Ramos. Pessoalmente não. Que ele vivia metido com os chucurus de Palmeira dos Índios. Por causa de um relatório. Um relatório tão sincero e de uma sinceridade tão forte, que se os governantes brasileiros a utilizassem sempre, haverá muito maior probabilidade de salvar o Brasil que servindo-se do finado “espírito revolucionário. (DIÉGUES JUNIOR, O ESTADO, 1934).

Sobre os relatórios, José Lins do Rego (apud REBELO, 1953)

escreveu:

O homem que sabia mitologia, também entendia de Balzac, de Zola, de Flaubert, de literatura, como se vivesse disto. Soube que era comerciante, que era ateu, que estivera no Rio, que fizera sonetos, que sabia inglês, francês, que falava italiano.

21

A cópia dos originais destes jornais foi adquirida parte na Casa Museu de Graciliano Ramos (Palmeira dos Índios), parte na Imprensa Oficial de Maceió e parte no Arquivo Público Estadual de Maceió.

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Conheci assim o mestre Graciliano Ramos. Depois o comerciante fechou as portas pagando integralmente todos os credores e seria o prefeito de sua cidade, faria relatórios ao conselho municipal, em língua e humor de grande escritor. (JORNAL A MANHÃ, 29/01/1942). Chico Peixoto, acostumado aos relatórios em puro estilo Bias Fortes ou José Bonifácio, abria a boca, arregalava os olhos, nem podia acreditar naquela prestação de contas municipais do Prefeito de uma aldeola alagoana: Caramba, seu Marques, trata-se de um grande escritor! Na realidade cada parágrafo era uma joia de estilo, precisão, simplicidade, coerência, verdade, decência, enfim, de todas as qualidades que fazem um grande escritor. (REBELO, 1953).

No mesmo jornal, na coluna Crônica, publicada em 28 de março de

1953, Marques Rebelo escreveu:

Os singelos relatórios de prefeito de Palmeira dos Índios foram para aquela magra estante das obras que não me abandonam nunca, que estou sempre folheando e pesquisando para suportar com menos tédio ou menos nojo os balanços do mundo, que me socorrem quando preciso de coragem e exemplo para empreender qualquer tarefa difícil e

responsável. (REBELO, 1953).

Muito tem para ser falar sobre os relatórios que Graciliano Ramos

escreveu como gestor público, mas uma apresentação e análise mais apuradas

serão apresentadas em capítulo destinado a tal propósito. Interessa aqui,

somente a exposição da fase do administrador Graciliano Ramos.

3.5 O Perfil Jornalístico e Literário de Graciliano Ramos

A presença de escritores da literatura ficcional foi sempre uma realidade

do jornalismo brasileiro. Seja na parte da produção jornalística, na colaboração

com o envio de fragmentos de suas obras ou na escritura de textos opinativos

ou interpretativos. Dentre eles podemos citar Machado de Assis, Olavo Bilac,

Raquel de Queirós, Carlos Drummond de Andrade, etc.

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Graciliano Ramos também foi um destes escritores jornalistas que

contribuiu com os jornais da época, escrevendo crônicas regularmente e textos

reflexivos sobre a situação política e social do país.

Seu perfil jornalístico era o de um escritor preocupado em dizer muito

além das palavras visíveis no papel. Em cada texto publicado nos jornais por

onde passou, nota-se a despreocupação com a correria das redações para a

entrega das reportagens, pois sua escrita era um misto de literatura e realidade

que transbordava a mera objetividade da informação.

A escritura jornalista de Graciliano Ramos aparece em suas crônicas,

organizadas e publicadas postumamente em quatro obras: Viagem (1954),

Linhas Tortas, Viventes das Alagoas e Alexandre e outros heróis (1962).

Originalmente, estes textos eram publicados em jornais de Alagoas e Rio de

Janeiro.

As crônicas reunidas em Viventes das Alagoas e em Linhas Tortas

tratam de conflitos sociais e políticos da região do nordeste, mas que podem

ser histórias representantes de outros cantos do país e do mundo. A discussão

sobre o autor Graciliano Ramos ser genuinamente regionalista ganha espaço

entre os críticos da literatura brasileira. Seus romances apresentam temas

sociais, políticos e culturais que extrapolam o limite do sertão.

Os textos da obra Viagem traz o relato do jornalista que andou pela

União Soviética no início da década de 50, pouco antes de sua morte, e viu

nestas andanças “lugares medonhos situados além da cortina de ferro exposta

com vigor pela civilização cristã e ocidental”. (RAMOS, 1992, p. 11).

A inclinação para escritor e jornalista de Graciliano Ramos apareceu na

infância, quando em 1904, organizou, juntamente com Cícero de Vasconcellos,

o jornalzinho “O Dilúculo”, publicado pelo Órgão do Internato Alagoano.

No primeiro número do jornal, aparecem escritos do menino Graciliano

explicando a origem do nome do veículo e também sua primeira criação

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literária publicada Pequeno pedinte. A seguir cópias do original do jornal “O

Dilúculo”:

Figura 1 - Fac-símile do nº 1 do Jornal “O Dilúculo”, editado por Graciliano Ramos aos 12 anos de idade. Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira dos Índios Foto: Sônia Jaconi

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Figura 2 - Fac-símile do texto “Pequeno Pedinte”, publicado no nº. 1 do Jornal “O Dilúculo”. Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira dos Índios Foto:

Sônia Jaconi

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Quando Graciliano Ramos saiu de Palmeira dos Índios, no ano de 1914,

em direção ao Rio de Janeiro, iniciou uma vida intensa nos jornais desta

capital. Trabalhou como revisor suplente no Correio da Manhã, depois em O

Século, para reforçar os ganhos, logo após como revisor do jornal A Tarde,

escreveu crônicas para o Jornal de Alagoas e colaborou com o semanário

Paraíba do Sul e o Jornal de Alagoas, na cidade fluminense. Seus textos

foram elogiados por leitores, jornalistas e escritores respeitados da época.

Graciliano Ramos, nas funções que ocupou nos referidos jornais,

demonstrou comportamento de um verdadeiro jornalista. (GUERRA, 1980).

Escrevia bem, com franqueza e opinião. Em suas crônicas é possível perceber

o tom intimo com que trata de temas polêmicos e variados. O autor José

Augusto Guerra, no livro Caminhos e Descaminhos da Crítica (1980), escreveu

sobre o perfil jornalístico de Graciliano Ramos:

Era um colaborador. Um colaborador que, à maneira de cronista, discreteava sobre assuntos os mais diversos pulava de um a outro tema, enleava-se no cotidiano falava bem, falava mal, e sempre colocava em primeiro plano o que, em termos já um tanto remotos, era condição essencial: o jornalista, profissional que opinava. (GUERRA, 1980, p. 191).

A atuação de Graciliano Ramos nos jornais, ora como revisor ora como

cronista colaborador, não tem muitos registros. Os artigos que escreveu no ano

de 1915, um total de dezesseis, revelam que Graciliano Ramos produziu com

velocidade nos periódicos provincianos, porém não se sabe se além de

prestigio social esse trabalho lhe atribuiu prestigio financeiro e prazer.

(GUERRA, 1980, p. 192). “Escrevi há tempos em dois jornais hebdomadários

que publicavam por aí além. Eu trabalhava por necessidade”. (Jornal Paraíba

do Sul, apud Guerra, 1980, p. 192).

O perfil de homem duro nos dizeres e ásperos na escrita já era

conhecido pelo povo que, de uma maneira ou de outra ouvira falar de

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64

Graciliano Ramos. O ato de escrever, para Graciliano Ramos, era um oficio

que exigia muito esforço físico e intelectual de quem se metia com tal tarefa.

Sobre esse exercício escreveu:

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laja ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia a fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. (RAMOS, 2008, p. 278).

Em suas crônicas, o povo de Alagoas, mais especificamente os

“figurões”, os problemas da terra, as angústias do homem sertanejo, as

mazelas da política, eram atacados com frequência. (GUERRA, 1980, p. 194).

O escritor Augusto Guerra, em obra anteriormente citada, fez

interessante comparação entre alguns personagens ficcionais de Graciliano

Ramos e sua atuação enquanto cronista. Em Angústia, da experiência no

jornalismo carioca, como revisor, encontra-se esse registro: “Em seguida vinha

à banca de revisão: seis horas de trabalho por noite, os olhos queimando junto

a um foco de 100 velas, cinco mil réis de salário, multas, suspensões”.

(RAMOS, 1936, apud GUERRA, 1980, p. 193).

No ano de 1921, após volta forçada à Palmeira dos Índios, colaborou

com o semanário, sempre aos domingos, O Índio, com os pseudônimos de J.

Calisto, Anastácio Anacleto e Lamba. A primeira edição deste jornal data de 30

de janeiro de 1921 e a última de 22 de maio do mesmo ano. No periódico,

Graciliano Ramos escrevia poemas, crônicas e anúncios.

O mundo da leitura e da escrita sempre foram íntimos a Graciliano

Ramos. Nunca escondeu, nem mesmo do arredio Coronel Sebastião, que o

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seu desejo era exercitar a intelectualidade através da apreciação dos romances

que chegavam, sob encomenda, nos lombos dos burros, guiados por um velho

mercador. Também era ler as notícias da capital e do mundo que chegavam já

vencidas em Palmeira dos Índios. (LIMA, 1971).

Naquele tempo e naquelas terras, o transporte dependia do tempo. O sol

forte do sertão era impiedoso, a chuva, quando vinha, descarregava sua fúria

enchendo as estradas com lama e buracos. Aventurar-se semanalmente da

capital às cidades do interior era um desafio real de vida ou morte, até para os

mais experientes mercadores.

Graciliano Ramos não era o único na cidade que ficava esperando a

carga de livros e jornais chegar à Praça do Coqueiro (LIMA, 1971.p. 10).

Porém, provavelmente, o que mais entendia dos assuntos que os periódicos

traziam. Mais tarde, comerciantes locais, políticos e cidadãos comuns o

procurariam para receber suas explicações e conhecer o seu ponto de vista

sobre as notícias, tanto ligadas ao contexto alagoano e nacional quanto às

voltadas ao contexto mundial. Quando a 1ª Guerra Mundial estourou e as

notícias começaram a alcançar o mundo, Graciliano Ramos empenhou-se para

compreender a situação e transmiti-las ao povo. Tornou-se uma espécie de

“comentarista oficial” do movimento não só em Palmeira dos Índios, mas

também no Estado (LIMA, 1971, p. 109). Era Graciliano Ramos um importante

formador de opinião e transmissor de conhecimento e cultura para o povo de

Palmeira dos Índios? Indagação que inquieta e merece investigação apurada.

Os jornais que circulavam na época eram o Diário de Pernambuco e

Província, que davam conta das notícias da região, e o Correio da Manhã,

vindo diretamente do Rio de Janeiro, com atraso de quase um mês. “Através

de longa jornada – vinte dias e até mais – chegava-nos também o “Correio da

Manhã”, que, antes que aparecesse “A Noite” para com ele fazer uma perna,

era, e fato, o jornal do Rio de Janeiro que mandava por aqui” (LIMA, 1971, p.

107).

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Como exposto anteriormente, as leituras de Graciliano Ramos eram

intensas e variadas. O jovem Graciliano se inteirava profundamente com os

movimentos literários que ocorriam na época. Apreciava os romancistas

brasileiros, José de Alencar, Aloísio Azevedo, Castro Alves, Casimiro de Abreu,

Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Euclides da Cunha, e os novos romances

realistas que vinham da Europa. Eça de Queirós caiu na graça do jovem

literário que tratou de adquirir a coleção dos romances do escritor português.

Outros clássicos da literatura portuguesa contribuíram para a formação literária

de Graciliano Ramos: Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Antero de

Quental, etc.

Ler o que os outros escreviam, sem dúvida, trazia muito prazer e

formação a Graciliano Ramos, porém a veia de escritor nele era latente. O

autor de Caetés estava prestes a surgir.

O conhecimento que Graciliano possuía atribuía-lhe credibilidade e

respeito. Suas palavras, sempre poucas e exatas, eram ouvidas com atenção e

admiração por aqueles que ficavam a sua volta.

Diante do exposto, pode-se dizer que Graciliano Ramos praticou com

êxito tanto o jornalismo oral, lendo, interpretando e transmitindo ao povo de

Palmeira dos Índios as notícias que chegavam da capital quanto também o

jornalismo circunstancial, através da crônica. Sobre este último, Guerra (1980,

p. 196) escreveu:

Jornalismo circunstancial o de Graciliano Ramos, que surpreende em confronto com a ficção. Mas, esse jornalismo, com que se iniciou na literatura, nos revela outro Graciliano, vinculado a uma realidade externa que não a interior de seus infelizes personagens. Um Graciliano que se preocupava com os problemas da terra, os livros dos amigos, os personagens vivos e mortos, nem sempre atormentados. Até na arte do descritivo – raro em sua obra de ficção – jornalista se demora numa crônica inteira: Habitação, em que descreve, da porta da rua ao fundo do quintal, uma casa sertaneja. Um jornalista que não desconhecia os limites e a expressão do gênero, em que certamente aprendeu a tornar enxuta a prosa de ficção, escrita na primeira pessoa por três colaboradores de jornal de província: João Valério, Paulo Honório e Luís da Silva.

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Na empreitada do jornalismo, Graciliano Ramos atuou oficialmente por

pouco tempo, mas o suficiente para deixar sua marca de escritor que sabia o

que dizer e como dizer, causando admiração ao invés de dúvidas em cada

frase que concluía. Torcia e retorcia o texto a fim de aparar todas as arestas e,

para ele, o ofício de escrever era uma tarefa que exigia, além de intimidade

com a gramática, dedicação e compromisso com o leitor.

3.6 Difusão de um Estilo Irônico e Sincero

A partir da publicação dos relatórios de Graciliano Ramos no Diário

Oficial de Alagoas, em 24 de janeiro de 1929 e 16 de janeiro de 1930, a reação

de espanto e admiração nos leitores não parou de acontecer. A fama desses

documentos não foi passageira e restrita à época. Mesmo após a estreia

pública, continuaram sendo citados e comentados nos jornais do país.

Quando possível Graciliano Ramos fazia questão de recortar e guardar

todas as notícias que saiam sobre os seus escritos. A título de ilustração,

alguns recortes de jornal que mencionaram os relatórios são expostos nesta

parte da pesquisa.

No seguinte recorte, José Lins do Rego revela sobre a sua dúvida inicial

em relação aos escritos de Graciliano Ramos e cita a admiração exagerada de

Schimidt quando conhece os relatórios. Depois, no final do texto, Lins do Rego

se rende a superioridade literária de Graciliano Ramos e se torna um dos

melhores amigos do autor.

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Figura 3 - Jornal O Estado, 28/01/1934 – O Romancista Graciliano Ramos

Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira dos Índios

Eu faço bem em falar em olhos de Raio X com relação a Graciliano Ramos porque ninguém como ele para só ver das cousas a sua nudez. Ele vai as entranhas e a gente sente o ringir de ossos do seu processo de escrever. Mas é um grande escritor porque o grande escritor será sempre o que sabe ver com profundidade. (REGO, 1934).

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No mesmo periódico, no mês seguinte do mesmo ano, outro autor faz

referência sobre os relatórios. O texto intitulado “De um relatório a um

romance” de Diegues Junior fez discurso laudatório sobre os relatórios do

romancista e afirmou que foram estes documentos os responsáveis pela

divulgação de Graciliano Ramos.

Assim por 1929, mais ou menos, não houve em Alagoas quem não conhecesse Graciliano Ramos. Pessoalmente não. Que ele vivia metido com os chucurus de Palmeira dos Índios. Por causa de um relatório. Um relatório tão sincero e de uma sinceridade tão forte, que se os governantes brasileiros a utilizassem sempre, haveria muito maior probabilidade de salvar o Brasil que servindo-se do finado “espirito revolucionário”. (...) Foi por esse relatório que Graciliano Ramos se fez conhecido na capital. (DIÉGUES JUNIOR, 1934).

O reconhecimento do caráter híbrido dos relatórios de Graciliano Ramos

denota a sua relevância para os estudiosos dos campos interdisciplinares,

sobretudo da comunicação social, da linguística e da literatura.

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Figura 4 - Jornal O Estado, 23/01/34 – De um Relatório a um Romance Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira dos Índios

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Mesmo após a morte do autor, muitos jornais continuaram estampando

em suas páginas informações sobre os relatórios, frequentemente, destacando

tanto a qualidade estética destes documentos quanto a do seu autor. O redator

Hélio Simões (1969), do jornal “A tarde”, escreveu sobre os relatórios:

Evidentemente não se pode comparar estes acervo de crônicas, perfis, estórias, comentários e até relatórios do prefeito de Palmeira dos Índios, preciosos documentos, aliás, em que o nosso homem, como tal, surge de corpo inteiro, seco, cáustico,

indomável. (...).

Identifica-se nesses relatos a metáfora do texto como personificação do

próprio Graciliano Ramos. A escolha lexical do prefeito escritor denotava não

apenas uma estratégia estilística, mas uma forma de perceber o mundo; uma

coerência pessoal que se confirmaria ao longo da sua existência, inclusive

pelas suas opções políticas.

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Figura 5 - Jornal A tarde, 1969 – Dispersos de Graciliano Ramos. Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira

dos Índios

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No recorte seguinte, o redator escreve sobre a sua admiração quando

leu os relatórios e chega a comparar o estilo de Graciliano Ramos ao de

Machado de Assis e de Manual Antonio de Almeida.

Figura 6 - Periódico “Conversa do Dia”, ano 1953

Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira

dos Índios

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No jornal Correia da Manhã (1952) trechos dos relatórios são

apresentados ao leitor destacando o estilo criativo e artístico de Graciliano

Ramos criar o seus textos.

Figura 7 - Jornal Correio da Manhã, ano 1952 – O Relato do Sr. Prefeito

Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira dos Índios

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Outros veículos de comunicação de todo o país escreveram sobre os

relatórios, frequentemente realçando o estilo irônico, humorístico e artístico

presente em seus trechos. Diante desta divulgação, pode-se concluir que foram

os relatórios que tiraram do anonimato e da pequena cidade de Palmeira dos

Índios o prefeito escritor Graciliano Ramos.

Outros documentos e registros raros e caros a memória do grande

escritor alagoano, que enaltece o estado e a cidade de Palmeira dos Índios,

estão reunidos na Casa Museu Graciliano Ramos que, infelizmente, vivencia

uma completa ausência de aporte financeiro que possa garantir a preservação

física desses itens, por longo tempo.

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4 CONCEPÇÃO DOS GÊNEROS DISCURSIVOS E TEXTUAIS:

CARACTERIZAÇÃO SÓCIO-RETÓRICA

São três os desafios deste capítulo: primeiro é o de apresentar as

concepções teóricas de alguns estudiosos sobre os gêneros textuais e

discursivos a fim de conhecer o processo histórico e conceitual deste campo.

O passo seguinte é o de expor sumariamente as modalidades e as

funções sócio comunicativas dos gêneros discursivos nos espaços onde se

manifestam.

Finalmente, evidenciar e discutir o gênero relatório a partir da sua

organização e função sócio comunicativa, com o objetivo de verificar as

correlações existentes entre a prática dos escritos não ficcionais de Graciliano

Ramos e a teoria.

Segundo Bakhtin (2010, p. 264) :

O estudo da natureza do enunciado e da diversidade de formas de gênero dos enunciados nos diversos campos da atividade humana é de enorme importância para quase todos os campos da linguística e da filologia. Porque todo trabalho de investigação de um material linguístico concreto – seja de história da língua, de gramática normativa, de confecção de toda espécie de dicionários ou de estilística da língua, etc. – opera inevitavelmente com enunciados concretos (escritos ou orais) relacionados a diferentes campos da atividade humana e da comunicação – anais, tratados, textos de leis, documentos de escritórios e outros, diversos gêneros literários, científicos, publicísticos, cartas oficiais e comuns, réplicas de diálogos do cotidiano (em todas as suas diversas modalidades), etc. de onde os pesquisadores haurem os fatos linguísticos de que necessitam.

Ao indicar os documentos oficiais como parte inerente da

comunicabilidade humana, Bakhtin (2010) destaca a relevância de um gênero

normalmente ignorado em seu valor linguístico (por integrar parte das nossas

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ações ordinárias do cotidiano), ainda que fartamente usado como corpus em

estudos de campo.

Os relatórios de Graciliano Ramos, conforme já se verificou, causou

estranheza por não se ajustar a uma única forma.

4.1 Gênero do Discurso: Concepção e Evolução

Espera-se dos estudos que se propõem a refletir sobre determinado

gênero textual uma apresentação prévia da exegese gêneros do discurso para

que, a partir do entendimento da exegese do termo, se avance para as

modalidades textuais. Este resgate conceitual e histórico torna-se necessário

em razão da complexidade e da heterogeneidade que envolve o conceito de

gêneros discursivos e textuais.

Sabe-se que o estudo sobre gênero não é uma atividade dos tempos

atuais e que, desde os precursores muitas teorias e análises surgiram sobre o

tema. Na atualidade, a obra de Bakhtin, mais precisamente a partir dos anos 70

do século XX, sobre a teoria e a função sócio comunicativa dos gêneros é

considerada, além de revolucionária, essencial para o entendimento da

linguagem humana em seus espaços enunciativos.

Porém, os primeiros avanços sistematizados aconteceram ainda na

Grécia Clássica com a obra de Aristóteles (Ars Rethorica), até hoje

considerada precursora da ação discursiva da comunicação humana.

Nesta obra Aristóteles evidenciou a fala (discurso) como “forma de ação”

persuasiva entre o orador e o ouvinte, ou seja, no ato enunciativo está presente

“uma relação de ação verbal orientada” e não apenas uma “informação

transmitida” (SILVEIRA, 2005, p. 49). O filósofo fez uma exposição dos passos

que o orador deve seguir para preparar um discurso, levando-se em conta as

suas intenções (a do orador) e o seu auditório, além de apresentar os três

gêneros oratórios: jurídico, deliberativo e epidictico.

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Sobre esta quantidade, Reboul (2000, p. 45), com base em Aristóteles,

escreveu que há distintas espécies de auditório, o que requer:

a necessidade de adaptar-se a eles que confere traços específicos a cada gênero: conforme as pessoas a quem nos dirigimos, não falaremos da mesma maneira. O discurso judiciário tem como auditório o tribunal,; o deliberativo, a Assembleia (Senado); o epidíctico, espectadores, todos os que assistem a discursos de aparato, como panegíricos, orações fúnebres ou outras.

De acordo com a divisão aristotélica sobre as intenções deste discurso,

temos:

Quadro 1 - Gênero, Auditório, Intenção, Valores

Gênero Auditório Intenção Valores

Judiciário Juízes Defender/acusar O

justo/injusto

Deliberativo Assembleia Aconselhar/Desaconselhar O

útil/nocivo

Epidíctico Espectador Louvar/Censurar O nobre/o

vil

Fonte: Silveira22, 2005, p. 50.

Esta divisão proposta por Aristóteles (2011) partiu não somente das

marcas linguísticas e dos formatos que os textos exibiam, mas também de

outros elementos que são recorrentes nestes enunciados e que, normalmente,

não são explicitados na escrita como; o auditório (receptor) a intenção e os

valores que tais textos desejam alcançar.

No campo da literatura, a noção de gênero apareceu primeiro na obra

República, de Platão, na qual foi retratada a divisão tripartite da literatura: o

teatro (tragédia e comédia), a poesia lírica e a épica.

22

Adaptação de quadro apresentado em Reboul, 1998, p. 47, de Silveira.

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Mais tarde, na Idade Média, apesar dos intensos conflitos religiosos

vividos neste período, novos gêneros literários surgiram como o romance de

cavalaria, e outros se expandiram, como foi o caso da criação de novos

gêneros teatrais. (SILVEIRA, 2005, p.51).

Passando para o período renascentista, a literatura voltou a valorizar a

expressão artística que era cultuada na antiga Grécia Clássica, mas que foi

neutralizada pela doutrina religiosa da Idade Média. Nestes períodos citados

“os gêneros eram entendidos como fórmulas e formas fixas, sustentadas por

doutrinas expressas em regras diante das quais só restava aos escritores um

caminho: aceita-las e praticá-las”. (MOISÉS, 1970, p. 26 apud SILVEIRA, 2005,

p. 51). A quebra desta rigidez teve início a partir do Romantismo, período em

que os escritores ousaram misturar os gêneros em seus romances e, desta

forma, abriu-se uma ampla janela para a criação de novos gêneros.

O autor Fiorin23 (2002, p. 11), na apresentação da obra As astúcias da

Enunciação24, fez uso de uma passagem mítica da bíblia para apresentar a

origem da linguagem humana e da sua necessidade para a organização do

mundo: “No Gênesis, vê-se que a linguagem é um atributo da divindade, pois o

Criador dela se vale quando realiza sua obra. Há dois relatos da criação. No

primeiro Deus cria o mundo falando. No início, não havia nada. Depois há o

caos”.

Fiorin (2002, p. 11) destaca a linguagem como sendo a grande

responsável pela organização do caos do universo e que garante a formação

de sentidos.

A passagem do caos à ordem (= cosmo) faz-se por meio de um ato de linguagem. É esta que dá sentido ao mundo. O poder

23

Professor livre-docente do Departamento de Línguística da Universidade de São Paulo, autor de vários livros sobre linguística e gêneros discursivos. 24

Nesta obra, Fiorin apresenta as três categorias da enunciação: o tempo, o espaço e a pessoa, tanto na forma como são empregados na gramática da Língua Portuguesa, quanto no plano discursivo.

Page 80: A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO: …

80

criador da divindade é exercido pela linguagem, que tem, no mito, um poder ilocucional, já que nela e por ela se ordena o mundo.

Através desta ilustração, o autor cita a língua adâmica (advinda de

Adão) como sendo uma “faculdade divina dada ao homem, para que ele,

denominando cada uma das coisas criadas, apreenda o Universo” (FIORIN,

2002, p. 12). Portanto, é somente a partir da nomeação das coisas que estas

passam a existir.

Disse também o Senhor: “Não é bom que o homem esteja só, façamos-lhe um auxílio semelhante a ele”. Tendo formado o Senhor Deus do barro todos os animais da terra e todas as aves do céu, levou-os para Adão, para que visse como os chamaria; cada um deveria portar o nome que Adão lhe tivesse dado. E chamou Adão por seus nomes todos os animais, e todas as aves do céu, e todas as feras da terra. (GENESIS, 18-20, apud FIORIN, p. 12).

A leitura desta passagem possibilita a reflexão quanto ao uso da língua

como instrumento que organiza as atividades humanas, em seus diversos

campos de atuação. É a partir do uso da língua que os indivíduos vão criando a

sua linguagem individual e de suas relações sociais. Destas, começam a surgir

os gêneros discursivos.

Outro autor que também relaciona a origem dos gêneros com os atos de

fala do cotidiano é Todorov (1980)25 “Como qualquer instituição, os gêneros

evidenciam os aspectos constitutivos da sociedade a que pertencem” (p. 50).

Continuando nas palavras do autor:

[...] uma sociedade escolhe e codifica os atos que correspondem com maior proximidade à sua ideologia; eis porque a existência de certos gêneros numa sociedade, sua ausência em outra, são reveladoras dessa ideologia e nos permitem estabelecê-la com maior ou menor certeza.

(TODOROV, 1980, p. 50).

25

Citação retirada da parte I da obra “Os gêneros do discurso”, onde o autor faz uma discussão teórica sobre as definições e noções de gênero e de literatura.

Page 81: A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO: …

81

Se são das relações humanas que os gêneros discursivos aparecem,

esta tese chega a algumas conclusões:

a) São dinâmicos e acompanham as mudanças sociais e culturais da

época de seus interlocutores, assim como a fala dos indivíduos.

b) Surgem e se firmam das relações sociais cotidianas, sem regras ou

formatos pré-estabelecidos.

No entanto, mesmo não sendo construídos a partir de normas fixas,

estes discursos apresentam marcas linguísticas (termos, entonação, frases)

que são incorporadas e reproduzidas espontaneamente no ato de fala dos

indivíduos e que, mais tarde, “tornam-se enunciados relativamente estáveis”

(BAKHTIN, 2010, p. 282).

A língua materna – sua composição vocabular e sua estrutura gramatical – não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam. (BAKHTIN, 2010, p. 283).

Retomando a concepção de Tzvetan Todorov (1980) sobre a origem dos

gêneros discursivos, percebe-se que estes acompanham os interesses

individuais e coletivos das pessoas, levando-se sempre em conta o contexto

histórico, social e político em que estão inseridas. Portanto, são dinâmicos e se

transformam para atender as necessidades de determinado público.

Bakhtin (2010), no capítulo Os Gêneros do Discurso, 26 apresenta

reflexões a respeito do uso da linguagem e das suas inúmeras possibilidades

de manifestação, tanto oral quanto escrita, pois esta (a linguagem) está

intrinsecamente ligada aos campos da atividade humana, que é variado e

amplo.

26

Texto que compõe o livro Estética da Criação Verbal, tradução de Paulo Bezerra.

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82

Partindo da formulação deste autor, pode-se dizer que para cada campo

de atuação dos sujeitos há uma exibição linguística carregada de expressões,

signos, e entonação que marcam e identificam determinado discurso.

Estas manifestações linguísticas surgem de maneira espontânea devido

à necessidade natural do ser humano interagir e de se comunicar. Então, para

estas, não há uma estruturação sistemática e complexa, uma vez que nascem

dos diálogos do cotidiano.

No entanto, a partir da espontaneidade discursiva, aos poucos e de

maneira natural, estas interações vão adquirindo formas e características

particulares que a identificam e, consequentemente, orientam o diálogo. São

estas manifestações variadas e aleatórias (porém organizadas) que Bakhtin

(2010) chama de “gêneros discursivos primários”.

Ainda segundo o filósofo russo, existem também as declarações

estruturadas e complexas, aquelas que adotam formatos e padrões linguísticos

para caracterizar determinado discurso, os “gêneros discursivos secundários”.

São os documentos oficiais, textos de leis, anais, tratados, romances, etc.

(BAKHTIN, 2010, p. 264). Neste caso, predominam os escritos.

Refletindo sobre as teorias dos dois professores, Todorov e Bakhtin,

percebe-se que os raciocínios destes convergem com daqueles autores citados

no início deste capítulo, sobre a origem dos gêneros, ou seja: é do ato de fala

dos seus interlocutores e do contexto social e histórico em que estão inseridos

que os gêneros emergem; a reprodução de características de determinado

enunciado vai, gradativamente, se estabilizando nas trocas sociais e, desta

forma, se consolidando como gênero do discurso.

Recentemente, os professores Carolyn Miller e Charles Bazerman27,

questionados sobre o conceito de gênero, apresentaram o seguinte argumento:

27

Carolyn Miller é professora da Universidade do Estado da Carolina do Norte (EUA) e o professor Charles Bazerman é da Universidade da Califórnia, de Santa Barbara (EUA). Ambos

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83

“Gênero é uma ação retórica tipificada baseada numa situação recorrente. [...]

essa definição tende a se concentrar mais na produção, na pessoa que

desenvolve a ação do que na recepção” (MILLER, 2011).

A resposta do professor Charles foi uma complementação do que disse

a professora, pois declarou que concordava e usava a definição de Carolyn

Miller, mas que desejaria apontar duas características desta definição:

a) Que o gênero não se localiza no texto ou no artefato, no objeto em si, mas na percepção do criador e do receptor, como eles percebem o que está acontecendo. Isso faz do gênero uma categoria de reconhecimento psicológico, mas os gêneros também emergem historicamente e são praticados socialmente e também precisam ser socialmente distribuídos, de modo que haja certo alinhamento entre as pessoas ao longo do tempo. Portanto, o gênero também é uma categoria de reconhecimento social. b) O gênero encerra a noção de uma afirmação ou sentido criado por alguém. Os gêneros são coleções percebidas de enunciados. Os enunciados são delimitados, têm começo e fim, ocupam lugar definido no tempo e no espaço e são percebidos como portadores de algum sentido. Portanto, duas características que eu enfatizo nos gêneros é que eles são categorias de reconhecimento psicossocial e categorias de enunciados. (BAZERMAN, 2011).

A partir destes argumentos de Bazerman, percebe-se que os gêneros

são categorias geradoras de sentido porque legitimam emoções, indicam

valores, destacam desigualdades, etc.

Para este professor, os gêneros “precisam ser socialmente distribuídos,

de modo que haja certo alinhamento entre as pessoas ao longo do tempo”

(BAZERMAN, 2011). Esta declaração possibilita algumas reflexões sobre os

gêneros:

estiveram recentemente, julho de 2011, na Universidade Federal de Pernambuco, a convite do NIG (Núcleo de Investigação sobre gêneros textuais) desta mesma universidade, para falar sobre os gêneros textuais. UFPE. Série Bate-Papo Acadêmico. Gêneros Textuais (Genres). Pergunta 1: Como você define o conceito de gênero? How do you define the concept of genre? Disponível em: http://www.nigufpe.com.br/serie-academica/serie-bate-papo-academico-vol-1-generos-textuais/.

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84

Se praticados por todos, facilitam a inclusão em suas práticas

sociais;

Exercem função social importante, pois contribuem para o

conhecimento e aproximação dos processos comunicacionais de

diferentes gerações.

Graciliano Ramos cumpre essa tarefa psicossocial em sua narrativa

como prefeito que soube ler, como poucos, a emoção das pessoas com as

quais conviveu, entendeu suas dificuldades (materiais, cognitivas, emocionais,

etc...), mas também as dificuldades impostas ao seu povo pela própria política.

Os indivíduos de uma sociedade que reconhecem os gêneros dos

discursos e os utilizam adequadamente em suas relações sociais, certamente,

circulam por diferentes espaços coletivos e, desta forma, incluem-se

ativamente nas práticas sociais daquele espaço. Retomando o pensamento de

Bakhtin (2010, p. 284):

Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso. (BAKHTIN, 2010, p. 284).

Cabe ressaltar que, mesmo com a devida apropriação dos gêneros

discursivos pelo sujeito do enunciado, geralmente, este também não o faz de

maneira tranquila e segura, isto é, também passa pelas incertezas da

construção adequada de determinado gênero discursivo. É muito provável que

isto ocorra pelo fato de que aquele sujeito sinta-se cobrado pelos seus próprios

conhecimentos, a obedecer regras e padrões do gênero que ele (o sujeito)

escolheu para proferir o seu discurso.

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85

No entanto, mesmo sob esta fiscalização, apropriar-se das teorias sobre

os gêneros discursivos (orais ou escritos) é a maneira mais segura para utilizá-

los corretamente a seu propósito.

Sobre este controle, feito apenas por aqueles que dominam os traços

gerais e específicos dos discursos, sejam eles orais ou escritos, Foucault28

(1970) argumenta:

Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOCAULT, 2001, p. 8).

Sobre a inclusão social referida pelo professor Bazerman, para que esta

se concretize de maneira democrática e real os indivíduos precisam dominar

não somente os gêneros primários, mas também os secundários, de acordo

com a categorização de autor. “Muitas pessoas que dominam magnificamente

uma língua sentem amiúde total impotência em alguns campos da

comunicação precisamente porque não dominam na prática as formas de

gênero de dadas esferas.” (BAKHTIN, 2010, p. 284).

Silveira (2005)29 recorre, entre outros, aos pensamento de John

Swales30 na expectativa de apresentar concepções sócio retóricas sobre

gêneros.

Essa autora cita a obra Genre Analysis – English in Academic and

Researech Settings, de John Swales (1990) como uma importante contribuição

ao campo dos estudos sobre a análise de gêneros. Swales (1990, p. 9 apud

28

Michel Focault proferiu em aula inaugural, ao assumir a cátedra no Collége de France no ano de 1970, um discurso sobre a relação entre as “práticas discursivas e os poderes que as permeiam”. O título do texto é A ordem do discurso. Para esta pesquisa, foi consultada a 7ª edição do discurso, publicada em 2001. 29

Análise de Gênero Textual – Concepção Sócio-Retórica, obra publicada pela Edufal, em 2005. 30

John Malcolm Swales nasceu em 1938 no Reino Unido, é um linguista reconhecido por seu trabalho na análise de gênero, destacando nos campos da retórica e análise do discurso.

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86

SILVERIA, p. 86) expõe, além do conceito de gênero, a ideia inovadora de

comunidade de discurso:

Comunidade de discurso são redes sócio retóricas que se formam a fim de atuarem em prol de conjuntos de objetivos comuns. Uma das características que os membros estabelecidos dessas comunidades de discurso possuem é a familiaridade com determinados gêneros que são usados no favorecimento desses conjuntos de objetivos. Em consequência disso, os gêneros são propriedades das comunidades de discurso; ou seja, os gêneros pertencem às comunidades de discurso e não aos indivíduos, a outros tipos de agrupamentos ou a comunidades de fala mais amplas. (SWALES, 1990, p. 9 apud SILVEIRA, 2005, p. 86).

A partir da ideia de Swales, pode-se concluir que os grupos sociais de

certa maneira são reconhecidos também pelos gêneros que circulam entre eles

e que estes discursos passam a ser familiares e, consequentemente

reproduzidos pelos indivíduos que fazem parte destes grupos. Sendo assim,

também é possível dizer que determinado gênero pode ser mais valorizado por

um grupo do que em outro e que, até mesmo, alguns gêneros não circulam em

algumas comunidades.

Mais adiante o autor, exibe de maneira bastante detalhada, o seu

conceito sobre gênero:

O gênero é uma classe de eventos comunicativos – em que se devem considerar não apenas o discurso em si mesmo e seus participantes, mas também o papel desse discurso e os entornos de sua produção e recepção, inclusive os aspectos culturais e históricos. O principal traço criterial que transforma uma coleção de eventos comunicativos num gênero é algum conjunto compartilhado de propósitos comunicativos”. (SWALES, 1990, p. 45-55, apud, SILVEIRA, p.89).

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87

Com as apresentações destes autores sobre a origem e os conceitos

dos gêneros do discurso, é possível dizer que, qualquer estudo que se propõe

a investigar os processos comunicacionais de determinado enunciado, seja ele

escrito ou falado, precisa primeiro reconhecer o gênero discursivo deste

enunciado (suas características formais, linguísticas e suas marcas textuais) e

suas origens. Se não for assim, a investigação corre o risco de se tornar “uma

abstração exagerada, deformam a historicidade da investigação, debilitam as

relações da língua com a vida”. (idem, p. 284).

4.2 Escolha e Aplicação de um Gênero Discursivo e Textual: Habilidades

Prática e Teórica

Antes do ato da fala, o indivíduo faz uma escolha geralmente sem ter

consciência desta ação, de certo gênero discursivo estável (oral ou escrito)

(BAKHTIN, 2010).

O gênero torna-se estável porque apresenta características semânticas,

temáticas, de formato e tipo que são reconhecidas mutuamente pelos sujeitos

da comunicação (receptor e emissor).

Geralmente nos enunciados orais e espontâneos a escolha e aplicação

de determinado gênero estável ocorre de maneira habilidosa e natural, pois há

uma recorrência habitual daquela prática discursiva no diálogo cotidiano das

pessoas.

À medida que o indivíduo amplia seu percurso social,

concomitantemente aumenta o seu repertório de gênero discursivo. Assim

como acontece de maneira natural e progressiva com o aprendizado da língua

materna, a apreensão dos gêneros discursivos dá-se de maneira involuntária

na vida dos indivíduos. “Falamos apenas através de determinados gêneros do

discurso, isso é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente

estáveis e típicas de construção do todo” (BAKHTIN, 2010, p. 282).

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88

A formulação de Bakhtin pode nos levar à seguinte interpretação: o

gênero discursivo (escrito ou oral) escolhido antecipa as intenções de diálogo e

cria expectativas entre os sujeitos da mensagem, isto é, tanto o emissor quanto

o receptor moldam seus discursos às características do gênero eleito e

esperam reações.

Os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintáticas). Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras, advínhamos um determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construção composicional, prevemos o fim, isto é, desde o início temos a sensação do conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo da fala. Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria impossível. (BAKHTIN, 2010, p. 283).

Por outro lado, a habilidade discursiva das pessoas, quando requer

conhecimentos teóricos sobre determinado gênero, seja para o discurso oral ou

escrito, muitas vezes torna-se comprometida devido ao desconhecimento da

existência do conceito de gênero e de suas modalidades. “Em termos

práticos, nós os empregamos de forma segura e habilidosa, mas em termos

teóricos, podemos desconhecer inteiramente sua existência.” (BAKHTIN, p.

282). Desta forma, isto é, quando ele (o falante) transgride o formato e as

marcas linguísticas de determinado gênero esvazia a organização da

mensagem e dos meios pela quais são propagadas.

Reconhecer as modalidades dos gêneros discursivos contribui para a

escolha e aplicação adequadas do gênero, nos diversos campos da atividade

humana.

Page 89: A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO: …

89

No campo do jornalismo, estudiosos da área alertam para a necessidade

da utilização correta dos gêneros jornalísticos, para que se possa garantir a

prática adequada do “fazer jornalismo” e, desta forma, evitar o caos.

Por esta e outras lacunas é que os jovens diplomados encontram resistências para ingresso no mercado de trabalho, desconhecedores que são, em grande maioria, das especificidades do relato jornalístico e de sua aderência a um sistema que os diferencia por gêneros, formatos e tipos, determinados pelos antigos e novíssimos suportes. (MELO, p. 23, 2010).

Sobre a possibilidade de caos neste campo, (ALBERTOS, 1988 apud

MELO, 2010, p. 24) declarou: “a comunicação jornalística, como fenômeno

social próprio das sociedades industriais, pode desaparecer totalmente nos

próximos 20 ou 30 anos”. Para o professor Melo, este “argumento ancorava-se

no fluxo migratório de muitos jornalistas para os territórios limítrofes da

propaganda e das relações públicas. Produzindo mensagens persuasivas,

mimetizam os formatos usuais do jornalismo”.

A exemplo do campo jornalístico, estudar e aplicar corretamente os

gêneros discursivos, manifestados oral e graficamente, é uma maneira de

garantir que a mensagem seja transmitida de forma adequada, além de

possibilitar às gerações futuras o acompanhamento do processo discursivo

daquele gênero.

No caso específico do objetivo central desta tese, seu mérito, conforme

anunciado já no título, está em registrar a transgressão da norma, mas ao

mesmo tempo indicar a garantia de uma estrutura interna própria. O que atrai

nos relatórios de Graciliano Ramos é a simbiose entre gêneros aparentemente

díspares: texto oficial, texto jornalístico, texto literário – transformando-se em

discurso original cuja validade e atualidade permanecem.

Page 90: A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO: …

90

5 O GÊNERO RELATÓRIO PÚBLICO: ASPECTOS SÓCIO

COMUNITICATIVOS

5.1 Apresentação

Para que seja possível fazer uma análise mais profunda dos relatórios

públicos, especialmente os escritos por Graciliano Ramos, optou-se em,

primeiro, apresentar o contexto de sua produção e recepção para esclarecer os

processos de exigência e motivo deste gênero textual e discursivo.

Também esboçar-se, mesmo que sumariamente, o uso da linguagem

dentro das organizações e como ela se materializa no discurso escrito, pois é

através da manifestação da escrita que eles (os relatórios) se concretizam.

Evidente que existem outros conceitos sobre relatórios administrativos,

além dos expostos aqui, porém optou-se por apresentar os elaborados pelos

autores Charles Miller, Lee Thayer e Othon Garcia, além das reflexões de

Bakhtin e Maria Inez Matoso Silveira, por serem constantemente consultados e

citados nos estudos sobre gêneros oficiais.

Vale ressaltar que há poucos estudos específicos e aprofundados sobre

o gênero relatório administrativo, tanto sobre suas características como sobre a

sua função sócio comunicativa no espaço onde se manifestam. Os que

existem, geralmente, são manuais didáticos exibindo modelos a serem

seguidos.

Visando ampliar as fontes de consultas sobre o tema, também foram

investigados alguns manuais que se propõem a apresentar modelos de

relatórios administrativos, quanto ao formato e à linguagem.

Não é objetivo deste tópico do trabalho realizar uma apresentação da

evolução do gênero relatório nos diferentes contextos de gestão, nem mesmo o

de apresentar as possíveis transformações que o seu conceito sofreu com o

passar dos anos. O objetivo principal é o de expor além dos conceitos e do seu

Page 91: A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO: …

91

contexto de produção suas características mais marcantes e comuns, as de

linguagem e de estrutura, que permitem identificá-lo nos contextos por onde

circula para que, na sequência seja possível estabelecer uma comparação dos

relatórios escritos por Graciliano Ramos com as características peculiares

deste gênero e, desta forma, analisar as rupturas presentes nos relatórios

administrativos que este famoso escritor alagoano escreveu.

5.2 Sobre os Gêneros Textuais na Comunidade Discursiva Institucional

Atualmente, com as infinitas e eficientes possibilidades que a internet

proporciona à sociedade, os meios de comunicação social impressos estão

migrando para as telas dos computadores que, cada vez mais, estão

acessíveis à população.

Revistas, jornais, livros e outros tipos de impressos, agora são

“folheados” virtualmente, e apresentam recursos atraentes aos leitores, que

vão da possibilidade de interagir com o autor à sua mudança, acréscimo ou

comentário do texto.

No entanto, apesar desta aparente ameaça os impressos massivos

continuam preenchendo as prateleiras de bancas de jornal e das livrarias.

Compreender a resistência dos gêneros impressos, aos demais veículos de

comunicação como o rádio, a TV e a Internet é, além de desafiador, um

estímulo à pesquisa e a divulgação desses gêneros. Talvez, a garantia de sua

permanência esteja, justamente, na obediência às suas modalidades.

Muitos estudos discutem a possibilidade de extinção de determinado

veículo de comunicação massiva impresso, após o surgimento da tecnologia

com suas possibilidades inovadoras como suporte de comunicação. Porém, o

que se observa, desde a invenção da imprensa, é a evolução e o aumento de

todos os tipos de impressos.

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92

Sobre os gêneros impressos, pode-se dizer que estes fazem parte dos

gêneros discursivos secundários, pois sua formulação é mais complexa que a

dos primários. Para Bakhtin (2010, p. 262):

Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas condições de um convívio cultural mais completo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) – artístico, científico, sociopolítico, etc.

A complexidade dos gêneros secundários está, justamente, na

necessidade de obediência às regras estabelecidas a determinado gênero.

Reconhecer e aplicar adequadamente as particularidades do gênero impresso

eleito para apoiar o discurso, requer ao escritor conhecimentos teóricos (de

estrutura da língua, das marcas linguísticas e do formato) e práticos

(observação do contexto social e cultural) para a sua construção organizada.

Frequentemente, no espaço das organizações, pública ou privada, os

gêneros impressos continuam circulando ativamente entre seus interlocutores

e, consequentemente, sendo suportes de organização e materialização do

discurso administrativo.

Neste contexto, a mensagem escrita se torna uma ferramenta

reguladora do convívio entre as pessoas, principalmente nas hierarquias, e

assegura a ordem e o exercício das normas técnicas e operacionais, que

regem os processos necessários nestes espaços.

Sobre as relações sociais através da linguagem escrita, no ambiente das

organizações, escreveu Silveira:

No contexto da organização empresarial e burocrática, as relações sociais dão especial relevo às conveniências que preservam a integridade organizacional, cabendo à linguagem o papel de instrumento de trabalho necessário para o cumprimento de tarefas e a manutenção da ordem institucional. Numa perspectiva sócio retórica, os atos de

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93

linguagem (especificamente os enunciados escritos) que se realizam nesse contexto devem ser vistos como atos responsivos a situações ou problemas no continuum das atividades, instaurando uma dinâmica enunciativa (ou pragmática, se quer), em que os gêneros desempenham seus papéis de respostas a situações tipificadas. (SILVEIRA, 2005, p. 113, 114).

Percebe-se, portanto, que é através do ato da linguagem escrita que as

empresas se organizam e se manifestam e que a esta ação enunciativa é

atribuída a responsabilidade da resposta desejada à determinada situação

apresentada pelo emissor da mensagem.

Os gêneros textuais que circulam nas organizações obedecem a regras

e padrões linguísticos que precisam ser dominados por todos que precisam

conviver com estes discursos institucionais. Se isto não existir, o ato

comunicativo pode ser prejudicado e, consequentemente, todas as tarefas

comprometidas.

Por Thayer31 (1972, p. 34): “Quando se organiza uma empresa coletiva

de qualquer tipo (companhias, nações, etc.). o que se organiza de fato é o fluxo

de informações relacionadas com a empresa e, em decorrência, as relações

estratégicas entre as suas partes funcionais”.

Percebe-se, portanto, que em uma organização formal, é pouco

provável, para não dizer impossível, que a burocracia escrita seja excluída. É

ela, verdadeiramente, quem sistematiza e organiza este organismo vivo e

dinâmico que é o discurso administrativo.

Os gêneros textuais no ambiente organizacional são variados e muitos:

relatórios, ofícios, atas, boletins, requerimentos, cartas, memorandos,

documentos oficiais, avisos, etc..

31

Publicou vários livros sobre a comunicação administrativa, dentre eles Princípios de Comunicação Administrativa, que influenciaram os pensamentos de outros estudiosos da área.

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94

Na atualidade, todos estes gêneros adotaram também o suporte virtual,

mas não deixaram de circular ativamente no suporte impresso, entre os

departamentos das organizações.

5.3 Marcas do Discurso Institucional

As formações discursivas presentes no contexto das relações sociais

ajudam seus usuários na organização de seus discursos, de maneira mais

efetiva, aos seus propósitos comunicativos. Em todas elas há marcas de

construção do enunciado e da enunciação32 que as caracterizam e a definem

como determinado gênero.

Para o autor Swales (1990) apud Biasi-Rodrigues, Araújo e Sousa

(2009, p. 20):

[...] a ideia de que cada gênero adquire determinadas

características em função da sociedade e dos seus usuários e apresenta certas combinações das três variáveis de registro com determinados traços linguísticos. Isso quer dizer, na interpretação de Swales, que linguagem realiza o registro, e o registro realiza o gênero. Além disso, ele endossa o pensamento de Martin (1985) de que gêneros realizam propósitos sociais e observa que a realização de um gênero se faz através do discurso, razão pela qual a análise de estruturas discursivas se integra aos estudos de gênero.

Diante desta declaração, pode se aferir que são das necessidades do

contexto das relações humanas que os gêneros emergem, se adaptam e se

transformam.

Existem diversos gêneros discursivos, mas para cumprir o objetivo desta

fase do trabalho, será privilegiado o discurso institucional. Suas características

discursivas serão destacadas na tentativa de ampliar o referencial teórico sobre

32

Segundo a autora Discini (2005), a enunciação é composta por “um enunciador, o sujeito „que fala‟ (eu/nós), e um enunciatário, o sujeito „que escuta‟ (tu/você/vocês). Em outras palavras, a enunciação compreende o sujeito do dizer, que se biparte entre enunciador, projeção do autor, e enunciatário, projeção do leitor”.

Page 95: A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO: …

95

este gênero. Muito se tem para apresentar e discutir sobre este tipo de gênero

discursivo, da sua estruturação e linguagem até a sua função sócia

comunicativa que ele se propõe.

Levantamos algumas características do discurso institucional, com o

objetivo de contextualizar suas intenções discursivas. Para a fundamentação

teórica deste tipo de discurso, recorreu-se à alguns estudiosos deste campo, o

do gênero institucional.

Na formulação do professor Dilson Ferreira da Cruz33 (2008), o discurso

institucional apresenta as seguintes características:

A enunciação não pode se projetar no enunciado como um eu.

O autor da enunciação deve obrigatoriamente ser identificado

no texto e figurativizado como uma figura do mundo capaz de

produzir o discurso em questão.

Deve ser utilizada a norma culta padrão.

Deve ser criado um efeito de sentido de verdade; ou seja, o

texto produzido deve parecer verdadeiro, independentemente

de sê-lo ou não.

O discurso deve tratar do ser e / ou do fazer do ator da

enunciação e por isso haverá um sincretismo entre ator da

enunciação e o do enunciador.

Partindo desta formulação, este tipo de discurso prioriza o

distanciamento do eu, da linguagem impessoal e da verossimilhança.

Já o autor Thayer (1972) fala que o que caracteriza o discurso

institucional são as funções instrutivas e de mando presentes no ato

comunicativo de seus interlocutores.

33

Doutor e mestre em Semiótica e Linguística Geral pela USP. Citação do artigo “Subsídios para uma caracterização do discurso institucional”, publicado na periódico Organicon, ano 5, número 9.

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96

Para o autor, as relações humanas são marcadas hierarquicamente e

seus interlocutores utilizam a comunicação não apenas para transmitir uma

informação, mas, frequentemente, com o objetivo de ordenar uma tarefa, ou

seja, com a finalidade de mandar fazer algo. Por Thayer (1972, p. 226):

“Quando as regras a respeito de quem pode ordenar a quem a fazer que coisas

são adequadamente entendidas, nem o superior nem o subordinado esperam

empenhar-se num diálogo.”

De acordo com a proposta de Thayer, sobre as funções instrutivas e de

mando, pode-se concluir que o contexto das organizações é caracterizado pela

ação comunicativa que privilegia o comando e a obediência e que, portanto,

valoriza as relações interpessoais de hierarquias.

Partindo da formulação de Miller, pode-se concluir que o surgimento dos

gêneros discursivos, orais ou escritos, principalmente estes últimos, resulta das

imposições do cotidiano social e que, portanto, passam (os gêneros

discursivos) a existir para cumprir uma necessidade comunicativa de

determinado grupo. Tais necessidades e imposições aparecem tanto nas

organizações formais quanto nas informais.

O processo de organização e decisão das organizações é realizado

através da ação comunicativa dos indivíduos que interagem nestes espaços.

Estas ações enunciativas acontecem de diversas maneiras, porém é na

manifestação escrita que elas se materializam e ganham status de validade e

permanência.

O cenário das organizações deve ser visto como um espaço social

tipificado onde os indivíduos desenvolvem uma linguagem apropriada para este

local. Neste meio, seus interlocutores adotam um comportamento linguístico

que valoriza as “marcas de controle, formalismo, impessoalidade,

racionalização e profissionalismo” (SILVEIRA, p. 113).

Desenvolvendo a ideia da autora, pode-se dizer que as marcas de

controle estão presentes nas mensagens de mando que “visam a coagir a

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97

liberdade do subordinado de exercitar seu próprio julgamento a respeito dos

parâmetros de sua tarefa especificados por essas mensagens”. (THAYER,

1972, p. 227).

Além destas marcas, o discurso nas organizações também é marcado

pelas “restrições e relações de força que ali se realizam; daí serem a

linguagem e os gêneros administrativos tão regrados e padronizados, tendo a

sua escrituração regulada através de normas, manuais oficiais e guias

específicos”. (idem)

As manifestações discursivas, tanto na forma escrita quanto na

oralidade, que ocorrem nos espaços das organizações valorizam temas ligados

aos interesses que preservam e melhoram a ordem e a integridade das

instituições e, portanto, é natural que o enunciado seja controlado pelas

normas que regem estes ambientes.

5.4 Gênero Relatório Público: Contexto Situacional

O relatório, sem dúvida, é um gênero textual que circula intensamente

nas organizações privadas e públicas, de diferentes segmentos e tamanhos.

Sempre está nas mesas, nos arquivos ou nas mãos de quem atua na

comunidade discursiva empresarial. Fica difícil de imaginar este grupo sem a

presença dos relatórios, uma vez que a ação comunicativa dos seus atores

frequentemente acontece através deste tipo de texto.

O domínio discursivo34 que privilegia a produção e a recepção deste

gênero textual é o empresarial, porém em outras esferas da atividade humana

ele também se manifesta como; o jurídico, o esportivo, o comercial, etc.

34 Domínio Discursivo, segundo o Dicionário de gêneros textuais (2009, p. 26), de Sérgio Roberto Costa, é a “esfera/instância de atividade humana que produz textos com algumas características comuns, isto é, o lugar onde os textos ocorrem/circulam (lugar de produção e recepção).

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98

Assim como existem vários gêneros textuais para atender às

necessidades das diversas formações discursivas (religioso, jornalístico,

acadêmico, literário, cotidiano, publicitário, eletrônico/digital), também existem

vários gêneros textuais e subgêneros que circulam nas organizações públicas

e privadas.

Nas organizações formais, ou seja, aquelas onde as estruturas são

formadas a partir de regras políticas, de missão, valores e de divisões

hierárquicas, a ação de produção e de recepção de relatórios torna-se

necessária não apenas para registrar e transmitir informações de comando e

execução, mas também, para organizar e preservar estes espaços em seus

processos de tarefas e de relacionamentos sociais.

Os estudos de Miller (1984, p. 30) fazem referência aos processos de

exigência e motivo para a escolha de determinado gênero discursivo: “a

exigência deve ser vista não como uma causa da situação retórica, nem como

intenção, mas como um motivo social. Compreender uma exigência é ter um

motivo”. Sendo assim, pode-se dizer que o motivo da produção do gênero

relatório público está em atender, além da ação de relatar “experiências

vividas”, às necessidades discursivas da esfera administrativa.

Outra característica que contribui para identificar o contexto situacional

de circulação do gênero relatório é que este se configura num domínio

discursivo marcado pela ação comunicativa que privilegia o mando, a execução

e o controle35, neste caso, nos espaços empresariais.

Por Thayer (1972, p. 227):

Ordens, diretivas, pedidos, procedimentos, mesmo apreciações de desempenho – tudo isto funciona como mensagem de mando (ou controle). Visam a coagir a liberdade do subordinado de exercitar seu próprio julgamento a respeito dos parâmetros de sua tarefa específica por essas mensagens.

35

Reflexões sobre esta ideia são apresentadas por Lee Thayer (1972, p. 226) no capítulo Funções instrutivas e de mando, da obra Princípios de Comunicação Administrativa.

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99

Se estas funções contribuem para identificar o contexto de produção e

recepção do gênero textual relatório público, o canal que o transmite também

passa a ser outro elemento caracterizador deste cenário. Assim, o código

escrito se destaca como suporte para a transmissão dos diversos gêneros

textuais que circulam nas organizações. Segundo Lee Thayer (p. 279) “O meio

de comunicação por escrito possibilitou a manutenção de relações de grande

distância”.

5.5 A Padronização Textual dos Relatórios Públicos: Conceitos e

Estrutura

O relatório público, assim como outros documentos, tem formato e

marcas textuais que o diferenciam dos demais. Porém, antes de exibir algumas

de suas características constitutivas, serão expostos primeiro os conceitos de

relatório público, traçados por autores que se propõem ou se propuseram a

discutir o assunto. Também é pertinente fazer, mesmo que sumariamente, a

distinção entre relatório administrativo e público, pois apesar de próximos,

apresentam diferenças essências.

O autor João Luiz Ney (1954) publicou um texto nos Cadernos de

Administração pública (DASP), no qual apresentou a diferença entre o relatório

público e administrativo.

Segundo Ney (1954, p. 6):

Os relatórios oficiais compreendem três tipos distintos: 1) o que é apresentado ao superior pelo funcionário em serviço fora da sede; 2) o que é apresentado pelos departamentos. Divisões ou seções ao respectivo órgão subordinante; e, finalmente, 3) a mensagem presidencial ao Congresso.

Nesta divisão, o autor apresenta duas grandes classes dos relatórios

oficiais; uma que se dirige ao público e a outra à própria administração. São os

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100

primeiros os relatórios públicos e este os relatórios administrativos. Aponta Ney

(1954, p. 7):

Apesar de ambos exercerem a função de informar, o relatório administrativo é mais um registro das ocorrências, destinado a apoiar e esclarecer a ação administrativa, desempenhando o papel de documentação viva – ao passo que o relatório público se destina, originalmente, à ação política. Com base no relatório público, o eleitorado pode ou não reeleger determinada autoridade e a opinião pública pode aumentar-lhe ou retirar-lhe seu apoio.

Feita esta diferenciação, entre o relatório público e o administrativo, o

autor em seu estudo apresenta os propósitos principais dos relatórios públicos,

a partir de suas observações no Municipal Administration Service de New York

(1931), que vale a pena elencar nesta parte do trabalho:

1) Registrar e divulgar as realizações da administração pública;

2) Analisar problemas públicos correntes;

3) Descrever o governo como uma instituição compreensível

relacionada com a vida dos cidadãos;

4) Esboçar programas de ação para tratamento de futuros

problemas gerais;

5) Facilitar e encorajar, nos funcionários, o hábito de autocrítica;

6) Fornecer dados ao público para que este possa julgar da ação

de seus servidores;

7) Fornecer material jornalístico para divulgação através da

imprensa e do rádio.

Através destes propósitos, pode-se dizer que os relatórios públicos

proporcionam conhecimento e ativam mudanças no público, pois sua função

vai além do mero ato da informação.

O Dicionário de gêneros textuais (2009), do autor Sérgio Roberto Costa,

adotou a nomenclatura Relato ou Relato de Caso, levando-se em conta a

capacidade linguística de Relatar.

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101

Para este autor, o Relato de Caso abriga outros textos que apresentam

funções específicas de comunicação, mas que em cada um deles aparecem

marcas comuns do Relato de Caso. Portanto, diante desta formulação, pode-se

dizer que o relatório administrativo é um subgênero do gênero relato de caso.

Por Costa (2009, p. 177): “A composição do texto final varia de acordo com o

tipo de relatório: administrativo, policial, de viagem, de estágio, de visita, de

projeto, de investigação, etc.”.

Segundo Costa (2009, p. 24), os gêneros textuais que satisfazem esta

capacidade de linguagem são: a anedota, o caso, o curriculum vitae, o diário

íntimo, a notícia, o relato de experiência, o policial, o histórico, etc., pode

acrescentar a estes o empresarial, o acadêmico, etc.

A formulação sobre relatório, de Roberto Costa (2009, p. 177):

Relato de Caso (v. artigo, artigo científico, dissertação, exposição, exposição oral, memorial, monografia, relato, relatório, tese): documento (v) em que se expõem os resultados, as conclusões às quais chegaram os membros de uma comissão (ou uma pessoa) encarregada de efetuar uma pesquisa, ou de estudar um problema particular ou um projeto qualquer.

A partir desta elaboração, pode-se dizer que o relatório é o registro de

um fato real (caso) que foi observado ou vivido por um grupo ou por um

indivíduo e que a intenção é a da apresentação de determinada vivência.

Também é possível depreender que neste tipo de texto pode estar contida a

visão subjetiva das particularidades do fato relatado, mesmo que a linguagem

privilegiada neste espaço seja mais formal, objetiva e impessoal.

Outro autor que também apresentou um conceito para relatório

administrativo foi Thayer (1972, p. 306):

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102

Relatórios administrativos são todos aqueles produzidos pelos membros de uma organização, desde que requeridos ou utilizados pelos administradores. Em outras palavras, um relatório administrativo é qualquer relatório produzido ou recebido através da autoridade de um administrador, ou desempenho de sua função dentro de uma organização. Os bons relatórios administrativos são entradas primordiais para um administrador, no desempenho de sua função, e representam produções secundárias ou colaterais efetivas para proprietários, diretores, empregados, clientes e fornecedores.

Para Thayer, o conceito de relatório está na sua utilidade final e não em

suas características formais e estilísticas. Sendo assim, o que identifica o

relatório administrativo, na visão de Thayer, é a intenção discursiva do

enunciado ou a vontade discursiva do falante.

Estes termos, intenção discursiva e vontade discursiva do falante,

aparecem na obra de Bakhtin (2010, p. 284), quando o filósofo discorre sobre o

tom dos gêneros:

A diversidade desses gêneros é determinada pelo fato de que eles são diferentes em função da situação, da posição social e das relações pessoais de reciprocidade entre os participantes da comunicação: há formas elevadas, rigorosamente oficiais e respeitosas desses gêneros, paralelamente a formas familiares, e além disso, de diversos graus de familiaridade, e formas íntimas. Esses gêneros requerem ainda um certo tom, isto é, incluem em sua estrutura uma determinada entonação expressiva. Esses gêneros, particularmente os elevados, oficiais, possuem um alto grau de estabilidade de coação. Aí, a vontade discursiva costuma limitar-se à escolha de um determinado gênero, e só leves matizes de uma entonação expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso, mais frio ou mais caloroso, introduzir uma entonação de alegria, etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional).

Lee Thayer também conceituou os relatórios através de seus objetivos e

finalidades. Ele elencou alguns destes critérios, porém, fez questão de ressaltar

que outros podem ser incorporados, mas que estes servem para exemplificar a

sua afirmação.

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Quanto aos objetivos, declarou:

1) Informar a respeito da situação de todos os planos, projetos e

operações.

2) Dar todas as informações de que o administrador necessita, todas as

fontes para tomar decisões adequadas.

3) Informar a respeito de problemas potenciais ou áreas problemáticas.

Sobre as finalidades:

1) Mantê-los informados quanto aos planos, a longo e a curto prazo, da

companhia, e quanto a quaisquer mudanças requeridas para sua

implementação.

2) Informar os empregados da situação dos atuais planos, operações e

problemas.

3) Dar aos empregados todas as informações atuais de que poderão

precisar para o desempenho adequado de suas próprias funções.

Na tentativa de explorar, mesmo que sumariamente, a concepção de

relatório apresentada em manuais que valorizam o padrão de construção do

relatório administrativo e o de outros documentos oficiais, foi investigado o

Prontuário de Redação Oficial36 (1972, p. 221) escrito por João Luiz Ney e

editada pelo DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público). Este

prontuário assim conceitua o relatório administrativo:

Exposição circunstanciada sobre atividade administrativa, ou, em outras palavras, o relato mais ou menos minudente que alguém faz por escrito, por ordem de autoridade superior ou no desempenho das suas funções do cargo que exerce. O relatório é geralmente feito para expor: situações de serviços públicos, resultado de exame laboratorial ou de quaisquer pesquisas científicas, condições de ordem de determinadas zonas do País, investigações policiais, prestações de contas ao término de um exercício, etc.

36

A consulta foi realizada na 7ª edição do prontuário.

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104

Pode-se depreender desta formulação que o surgimento do relatório

administrativo frequentemente parte da solicitação de alguém que está em

posição hierárquica superior a quem vai elaborá-lo, mais especificamente no

âmbito das relações organizacionais.

Outro autor que também apresentou um conceito sobre os relatórios

administrativos foi Othon M. Garcia37 (2006, p. 401):

O relatório é um dos tipos mais comuns de redação técnica, dada a variedade de feições que assume: muitos artigos publicados em revistas científicas, muitos papéis que circulam em repartições públicas ou empresas privadas, contendo informações sobre a execução de determinada tarefa ou explanação circunstanciada de fatos ou ocorrências, pesquisas científicas, inquéritos e sindicâncias, nada mais são do que relatórios.

Assim como Lee Thayer, Othon conceitua o relatório administrativo

através da ação comunicativa presente em seu enunciado que, neste caso, é o

de informar sobre a atividade de um quefazer ou mesmo sobre o

esclarecimento de “fatos e ou ocorrências”.

Ainda sobre o conceito de relatório, fez-se consulta no Manual de

Redação de Correspondência e Atos Oficiais38 para conhecer, além do padrão

de relatório que a Federação adota, o entendimento que seus gestores têm

sobre este tipo de gênero comunicativo.

Diz o Manual (2006, p. 63-65):

Documento em que se expõem ou se relatam atos e fatos sobre determinado assunto para a descrição de atividades

37

Professor, filólogo e crítico literário, publicou várias obras sobre Comunicação, Linguística e Literatura, dentre elas “Comunicação em Prova moderna” em 1967, que já alcançou a 26ª edição pela editora FGV. Faleceu no ano de 2002, no Rio de Janeiro. 38

BRASIL. FUNASA. Manual de Orientações Técnicas (2ª. Ed.). Brasília: Núcleo de Editoração e Mídias de Redes/ASCOM/Presi/Funasa/MS: Fundação Nacional da Saúde. Ano 2006. Disponível em: http://www.funasa.gov.br/internet/arquivos/biblioteca/adm_redOficial.pdf

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105

concernentes a serviços específicos ou inerentes ao exercício do cargo. O relatório deve ser conciso, claro e objetivo e com descrição das medidas adotadas.

Sem se diferenciar dos outros manuais este, o Manual de Redação de

Correspondência e Atos Oficiais, se limita a apresentar a estrutura do relatório

e, para garantir a sua fiel reprodução, exibe um modelo detalhado do

documento.

5.6 Organização do Gênero Relatório Público: Características

Constitutivas

O propósito deste tópico é o de levantar e expor as principais

características que constituem o gênero relatório público para que, a partir

desta evidenciação, seja possível reconhecer, além de suas regularidades

linguísticas, de formato e os seus aspectos estilísticos, sua função sócio

comunicativa nos espaços onde se manifesta; nas atividades administrativas

das empresas públicas e privadas.

Bakhtin (2010), em sua teoria sobre os gêneros do discurso, revela que

são nos espaços sociais, formais ou informais, que emergem os gêneros

discursivos com as suas características formais e linguísticas, próprias para

atender às necessidades comunicativas de cada campo. É no momento da fala

e/ou da escrita que acontece a escolha e a reprodução do gênero que irá

transmitir o discurso do enunciador.

Por Bakhtin (2010, p. 282):

A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela composição pessoal dos seus participantes.

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106

Sendo assim, é possível inferir que, para existir a escolha adequada de

determinado gênero textual, falado ou escrito, torna-se necessário ao

enunciador o conhecimento e o domínio das “formas relativamente estáveis e

típicas de construção do todo”. (BAKHTIN, 2010, p. 282).

Também é possível deduzir que no momento da produção de

determinado enunciado há a reprodução das marcas textuais e do formato que

possibilitam a sua identificação dentre os demais gêneros que circulam neste

espaço. Estas marcas, além de individualizar e caracterizar os discursos,

também servem para garantir a permanência da circulação destes gêneros.

Sobre a questão de características determinantes de cada gênero, é

relevante a seguinte citação:

Jonh Swales reforça a ideia de que cada gênero adquire determinadas características em função da sociedade e dos usuários e apresenta certas combinações das três variáveis de registro39 com determinados traços linguísticos. Isso quer dizer, na interpretação de Swales (1990), que a linguagem realiza o registro, e o registro realiza o gênero. (SWALLES, 1990, apud BIASI- RODRIGUES, ARAUJO, SOUZA, 2009, p. 21).

Certamente que, com o passar do tempo ou, de acordo com a intenção

do enunciador, determinado gênero discursivo pode sofrer alguma

transformação, pois sua estrutura, apesar de estável, é flexível e adota

características socioculturais da época em que está sedo reproduzido. Porém,

suas marcas essenciais (de finalidade, de espaço de circulação, de seus

interlocutores, de intenção, etc.) permanecem.

Sobre esta flexibilidade dos gêneros, apresentou Bakhtin (2010, p. 284):

Mas também é possível uma reacentuação dos gêneros, característica da comunicação discursiva em geral; assim, por exemplo, pode-se transferir a forma de gênero da saudação do campo oficial para o campo da comunicação familiar; isto é,

39

As três variáveis de registro são: campo, relação e modo.

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107

empregá-la como uma reacentuação irônico-paródica; com fins análogos pode-se misturar deliberadamente os gêneros das diferentes esferas.

Fazer uso desta reacentuação, de certa forma, é apresentar um tom

criativo para determinado gênero e, sobre isso, o filósofo ressalta que esta

ação “livre e criadora” só se torna possível através do amplo domínio que o

enunciador tem sobre os gêneros que circulam em seu meio e que, portanto, “é

preciso dominar bem os gêneros para empregá-los livremente”. (Bakhtin, 2010,

p. 284).

Para Bakhtin (2010, p. 284-285), o domínio dos gêneros discursivos

possibilita uma movimentação muito mais ampla e livre ao indivíduo que possui

esta aquisição.

Muitas pessoas que dominam magnificamente uma língua sentem amiúde total impotência em alguns campos da comunicação precisamente porque não dominam na prática as formas de gênero de dadas esferas. Frequentemente, a pessoa que domina magnificamente o discurso em diferentes esferas da comunicação cultural, sabe ler o relatório, desenvolver uma discussão científica, fala magnificamente sobre questões sociais.

Mais adiante o autor revela (2010, p. 285):

Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livro projeto de discurso.

No caso específico do gênero relatório administrativo, conhecer e

dominar suas características, assim como de outros gêneros que circulam nas

organizações, contribui para uma escrituração mais adequada e,

principalmente, para uma ação comunicativa mais eficiente.

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O gênero relatório administrativo apresenta algumas características

formais que permitem seu reconhecimento e reprodução toda vez que alguém

pretende utilizá-lo em seus propósitos comunicativos.

Para o autor Garcia (2006, p. 401):

O relatório, seja técnico ou administrativo, engloba variedades menores de redação técnica propriamente dita: descrição de objeto, de mecanismo, de processo, narrativa minuciosa de fatos ou ocorrências, explanação didática, sumário, e até mesmo a argumentação, que, entretanto, não é um gênero menor.

O autor acrescenta outros traços formais da estrutura física do relatório

(GARCIA, 2006, P. 401):

É verdade que só recebem essa designação aqueles documentos que apresentam certas características formais e estilísticas próprias: título, “abertura” (origem, data, vocativo, etc.) e “fecho” (saudações protocolares e assinatura). Algumas vezes, consiste numa exposição rápida e informal de caráter pessoal; outras, assume formas mais complexas e volumosas, como os relatórios de gestão, quer do serviço público quer de empresas privadas.

Vale ressaltar que, assim como acontece com outros gêneros, os

relatórios também apresentam suas variedades de construção. O autor Odacir

Beltrão [s.d], apud Garcia (2002, p. 401) listou algumas:

[...] de gestão (relatórios empresariais periódicos), de inquérito (administrativo, policial e outros), parcial, de rotina, de cadastro, de inspeção (ou de viagens), de pesquisa (ou científico), de tomada de contas, de processo, contábil, e o relatório-roteiro (elaborado com base em modelo ou formulário impresso).

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Para o professor Costa (2002, p. 177), sobre a organização dos

relatórios administrativos e suas diversidades, são evidentes os seguintes

aspectos:

Os dados devem ser apresentados de forma muito organizada para que se possa lê-lo em diferentes níveis. Pode se apresentar como um documento final ou parcial de resultados que, periódica e parceladamente, vão se somando até o final, dado seu caráter funcional e informativo. Como resultado de pesquisa (v) que é, exige planejamento, coleta e seleção de material e dados que serão analisados e relatados. Nesse sentido, assim se estrutura: introdução (justificativas, diretrizes, delimitação e explicação necessárias, corpo ou texto principal (descrição (v.) detalhada do objeto do relatório, análise e resultados) e conclusões e recomendações finais (resultados práticos, sugestões de atividade ou medidas a serem tomadas, a partir do que foi apresentado e analisado antes). A composição do texto final varia de acordo com o tipo de relatório: administrativo, policial, de viagem, de estágio, de visita, de projeto, de investigação, etc.

No entanto, apesar de existirem várias espécies de relatórios, cada uma

delas apresenta características comuns que são reproduzidas no ato de sua

produção e que são reconhecidas entre as pessoas envolvidas neste contexto

de comunicação.

A inclusão de alguns elementos no processo de construção dos

relatórios é essencial, pois contribui para a sua caracterização enquanto

gênero relatório e possibilita a sua construção e difusão de maneira mais

apropriada aos seus propósitos comunicativos.

Para Garcia (2002, p. 402) os relatórios públicos devem apresentar,

além da “abertura e “fecho”, as seguintes partes:

1. Introdução: indicação do fato investigado, do ato ou da

autoridade que determinou a investigação e da pessoa ou

funcionário disso incumbido. Enuncia, portanto, o propósito do

relatório.

2. Desenvolvimento (texto, núcleo ou corpo do relatório): relato

minudente dos fatos apurados, indicando-se: a data, o local, o

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110

processo ou método adotado na apuração, discussão

(apuração e julgamento dos fatos).

3. Conclusão e recomendação de providências ou medidas

cabíveis.

De acordo com a formulação do autor, para preencher a estrutura do

relatório administrativo é necessário que o redator domine as técnicas do

relato, ou seja, que se tenha a capacidade linguística de contar “experiências

vividas situadas no tempo (relatos de experiência vivida, notícias, diários, etc.)”

(COSTA, 2009, p. 24).

Outro elemento importante que deve ser ressaltado na construção do

relatório público é o da linguagem. Em todos os gêneros textuais a forma como

a linguagem é utilizada contribui para dar identidade para determinado gênero

textual. No caso do relatório público, segundo a formulação de vários autores,

ela deve ser formal, objetiva, correta, impessoal e concisa.

Para Ney (1972, p. 13) a linguagem presente nas comunicações oficiais

deve ser: “A simplicidade na estrutura da frase e no vocabulário, a objetividade

e a clareza são requisitos que se impõem no intercâmbio dessas comunicações

específicas”. O autor ressalta ainda que na comunicação oficial não cabe à

utilização de recursos linguísticos literários, pois estes são próprios da literatura

artística e não da utilitária.

No entanto, apesar deste autor concordar com as características formais

do texto oficial, ele faz a seguinte ressalva: “As esporádicas elegâncias

literárias, em correspondências oficiais, devem-se apenas às eventuais

qualidades de formação, de alguns redatores” (NEY, 1972, p. 14). Quando isto

acontece, diz-se que houve uma transgressão/ruptura no estilo padrão de

determinado gênero textual. Isso não quer dizer que surgiu um novo gênero

textual, mas que apenas o autor deixou sua marca de formação/seu estilo no

texto. Sobre isto, mais adiante, serão analisados os relatórios administrativos

escritos por Graciliano Ramos, objetivo deste estudo.

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111

Sobre a impessoalidade da comunicação oficial, vale repetir as palavras

de Ney (1972, p. 14): “Na linguagem administrativa, se sobreleva a

impessoalidade das regras e dos princípios, e não, o caráter ou as

particularidades psicológicas ou literárias de quem escreve.” Por

impessoalidade entende-se, neste caso, o fato do ocultamento da autoria do

enunciado, seja escrito ou falado, e de todas as marcas discursivas que

evidencie esta pessoa.

Para caracterizar a linguagem do discurso institucional é necessário

evidenciar que a sua prática acontece especificamente nas esferas

burocráticas e que, portanto, “seu uso é regulado e normatizado” (SILVEIRA,

2005, p. 187).

Sendo assim, pode-se dizer que os usuários da linguagem administrativa

ou burocrática como preferem alguns autores, precisam aprender as marcas

formais deste discurso para que, a partir desta apreensão de sentido e forma,

possam exercer com competência seus desejos comunicativos.

Por Mendonça (1987, p. 22) apud Silveira (2005, p. 187):

Os regulamentos e as normas devem ser obedecidos, havendo sanções para os que não o fazem. As regras são determinadas pelo sistema burocrático sem consulta prévia àqueles que deverão obedecer a elas. Os que não fazem parte das instituições públicas e privadas, quando têm de negociar com as mesmas, devem fazê-lo dentro de termos estabelecidos pelas instituições. Isso cria um sistema de comunicação fechado, que é reflexo de um sistema administrativo também fechado, hierarquizado, impessoal, autoritário, com usos estranhos.

A linguagem burocrática tem um traço muito forte das regras que

estabelecem a ideia de comando e obediência presentes nas instituições

públicas e privadas, ou seja, seus usuários têm pouca liberdade para a criação

de uma linguagem mais individual e particularizada. Existe um modelo

instituído e, portanto, deve ser seguido por todos que transitam nos espaços

burocráticos.

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112

Ainda sobre a concepção da linguagem administrativa, foi consultado o

Manual de Redação da Presidência da República (2002), com a pretensão de

conhecer sua formulação sobre esta questão. Diz o manual:

O mesmo ocorre com os textos oficiais: por seu caráter impessoal, por sua finalidade de informar com o máximo de clareza e concisão, eles requerem o uso do padrão culto da língua. Há consenso de que o padrão culto é aquele em que a) se observam as regras da gramática formal, e b) se emprega um vocabulário comum ao conjunto dos usuários do idioma. É importante ressaltar que a obrigatoriedade do uso do padrão culto na redação oficial decorre do fato de que ele está acima das diferenças lexicais, morfológicas ou sintáticas regionais, dos modismos vocabulares, das idiossincrasias linguísticas, permitindo, por essa razão, que se atinja a pretendida compreensão por todos os cidadãos. Pode-se concluir, então, que não existe propriamente um "padrão oficial de linguagem"; o que há é o uso do padrão culto nos atos e comunicações oficiais. É claro que haverá preferência pelo uso de determinadas expressões, ou será obedecida certa tradição no emprego das formas sintáticas, mas isso não implica, necessariamente, que se consagre a utilização de uma forma de linguagem burocrática. O jargão burocrático, como todo jargão, deve ser evitado, pois terá sempre sua compreensão limitada.40

Este manual reproduz o que dizem os outros autores sobre a linguagem

administrativa, no entanto, tem um ponto que o diferencia dos demais; a não

consagração de “uma forma de linguagem burocrática” nos textos oficiais,

apesar de concordar que nestas manifestações linguísticas haja a recorrência

de determinadas expressões características das esferas institucionais.

Outras características periféricas contribuem para formar e identificar a

linguagem administrativa, porém o objetivo deste tópico foi o de ressaltar as

marcas textuais e de formato que mais se reproduzem no momento de sua

materialização.

40

BRASIL. Manual de Redação da Presidência da República. Brasília: 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_3/manual/index.htm

Page 113: A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO: …

113

6 OS RELATÓRIOS DO GESTOR PÚBLICO GRACILIANO RAMOS:

TRANSGRESSÃO REVELADORA DO ESCRITOR

Para apresentar um estudo sobre os relatórios do prefeito escritor, viu-se

necessário exibir antes, mesmo que sumariamente, a geografia e a cultura da

cidade que fora o ambiente da administração pública de Graciliano Ramos, nos

últimos anos da segunda década do século XX.

Evidente que o cenário atual de Palmeira dos Índios destoa daquele

descrito em Caetés, mas não totalmente, pois a Princesa do Sertão ainda

preserva características, mesmo que remotas, que lembram a cidade do

prefeito Graciliano Ramos.

6.1 Palmeira dos Índios Xucurus41 e do Prefeito Graciliano Ramos: uma

Apreciação de suas Características Sociais Remotas e Atuais

Suas ruas agitadas com a atividade do comércio enganam os que

acham que vão encontrar ali uma cidade lenta e de pouco movimento, como a

descrita na obra Caetés.

A quantidade de obras públicas, no centro da cidade, cria a impressão

de que ela toda está em construção. As calçadas das lojas e das residências

são divididas para o passeio de pessoas e cães. Destes, percebe-se que

alguns têm donos e que outros são os donos das ruas. Fosse à época do

prefeito Graciliano Ramos, estariam os donos dos animais sob “[...] lamúrias,

reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães

vagabundos (...)” (RAMOS, 1967, p. 187). Construções modernas contrastam

com as casinhas de janelas miúdas e paredes desbotadas.

41

Consta que os índios Xucurus foram os primeiros habitantes da região, no século XVII.

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114

Até a capital (Maceió) são aproximadamente 135 quilômetros, mas

parece que a distância é bem maior. O sol do sertão de Alagoas parece querer

mostrar toda a sua força e brilho aos seus visitantes, como sinal de boas

vindas! Sobre esta quentura de Palmeira dos Índios, um diálogo entre

personagens da obra Caetés (RAMOS, 2009, p. 123, 124):

Um domingo à tarde, como o calor na cidade era grande, entrei no Pinga-Fogo, com a intenção de dar uma volta pelos arredores. À porta da casa de Vitorino encontrei Luísa, d. Josefa e Clementina. – Para onde vai o senhor por esta zona? Gritou-me a Teixeira. - Por aqui, sem rumo. Boa tarde. Girando, em busca de um canto onde possa morrer sem ser queimado. As senhoras vão sair? - Vamos. Estávamos procurando um homem, e como o primeiro que passou foi o senhor, venha conosco, que tenho medo dos cachorros do Massa-Fina. Por quem esperam vocês? Clementina sorriu, vexada com a desenvoltura da outra, e chamou d. Engrácia, que se meteu debaixo do guarda-chuva e marchou na frente. Abrindo a sombrinha, a Teixeira disse em voz baixa: - Que vem fazer esta velha? Estragou o passeio. Como a viúva pisava rijo e estava suada, inquiri, julgando ser agradável: - Essa roupa preta não incomoda, com semelhante quentura, d. Engrácia?

Hoje, o município de Palmeira dos Índios tem uma população de

aproximadamente 70.000 mil habitantes que se espalham pelos seus quase

470 km2 de extensão. É um território de vida rural e urbana.

Para quem chega à cidade, principalmente pela primeira vez, todos os

detalhes são observados: o povo andando nas ruas, o sotaque da região, as

lojas com os seus utensílios, a feira, o que é vendido na feira, o busto de

Graciliano Ramos na entrada da cidade. Sobre este, tem-se a impressão de

que é uma espécie de guardião do lugar, devendo a todos pedir-lhe

autorização para passagem. Basta um passeio curto para conhecer seus

lugares e ter uma noção dos seus costumes. A pequena Igreja do Rosário,

construída pelos escravos no início do século XIX e que, atualmente, abriga o

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115

Museu dos Xucurus, se destaca em um ponto elevado da cidade. O seu interior

não é suficiente para acolher tantas peças histórias da região, e tem de tudo;

recortes de jornal, roupas e peças dos índios que um dia foram donos daquelas

terras, armas de tortura, fotos, fósseis, quadros, imagens, sinos, peças de

barro, de ferro, de palha, etc.

Figura 8 - Igreja do Rosário em Palmeira dos Índios, onde atualmente abriga o Museu dos Xucurus Fonte: Acervo da autora, Jul. 2010

A Prefeitura Municipal ainda exibe sua fachada original do início do

século XX e é famosa por ter sido cenário da administração pública de

Graciliano Ramos, nos anos de 1928 a 1930. É comum encontrar algum

munícipe escorado em sua porta principal ou nos batentes de suas amplas

janelas. Costume que se repete nas portas das residências, mesmo das que

estão nas ruas mais movimentadas. Uma cena pré-anunciada na obra Caetés:

“Uma noite de lua cheia, no banco do jardim, Vitorino me acirrou a paciência

com a exposição arrastada e nasal dos méritos da filha, que deixara o Coração

de Jesus, onde ensinava pintura. Estive a escutá-lo uma hora” (RAMOS, 2009,

p. 50).

Algumas lojas da cidade estão instaladas em construções antigas. Em

uma destas construções, no passado, funcionou a loja Sincera, de Graciliano

Ramos, e que, atualmente, é um atacadão de importados. Além da placa

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116

exibindo o nome do estabelecimento “Atacadão dos Importados” e de cartazes

de seus produtos, nenhum indício sobre o seu famoso proprietário do passado.

Figura 9 - Atual fachada de uma loja que, no

passado, foi a Loja Sincera, de Graciliano Ramos

Fonte: Acervo da autora, Jul. 2010

Em uma das ruas centrais, tem uma casa de fachada pequena e

descolorida que, se não for apresentada por algum morador conhecedor da

história da cidade, fica difícil identificar que no seu interior abriga um importante

acervo literário e histórico – o de Graciliano Ramos. O espaço recebeu o nome

de Casa Museu Graciliano Ramos e, lá, é possível encontrar inúmeros

documentos, livros e objetos do famoso escritor. Não é construção recente,

pois no passado, foi a residência do mais famoso romancista da cidade. Para

este estudo, a visita42 à ilustre humilde casa foi essencial, pois muitos

documentos e informações, lá, foram adquiridos. Lamentável que a sua

conservação depende mais da boa vontade e do orgulho de sua história de

quem ali trabalha do que de quem tem o poder para a liberação de verbas

necessárias à conservação do rico acervo.

42

Em julho/2010, foram quatro dias de visita à cidade de Palmeira dos Índios com o objetivo de conhecer e de observar a cultura local. Na ocasião, foram realizadas visitas monitoradas a diversos pontos turísticos da cidade, além de passeios nas ruas, igrejas e praças. À Casa Museu Graciliano Ramos foi dedicado um tempo maior, onde várias informações, documentos e imagens foram coletados.

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117

Parece que a desvalorização do espaço Casa Museu Graciliano Ramos

está vinculada não somente aos interesses políticos, mas também na lógica

interiorana de Alagoas, imbricada aos desinteresses quanto à formação de

uma cidadania ativamente cultural, conectada às picuinhas pessoais dos

gestores que por ali passam.

Figura 10 - Fachada do prédio da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios (2010), cenário da gestão de Graciliano Ramos nos anos de 1928 a 1930 Fonte: Acervo da autora. Jul. 2010

Figura 11 - Fachada da Casa Museu Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios (2010) Fonte: Acervo da autora, Jul. 2010.

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118

Sobre a política da região, observa-se nas conversas de rua, que ainda há uma

disputa pelo poder entre as famílias tradicionais da região e que alguns

conflitos desta área ainda são resolvidos à moda antiga, na derrama de

sangue. Comportamento que, segundo divulgação da mídia local, é frequente

não só na cidade de Palmeira dos Índios, mas em todo estado de Alagoas.

Aliás, muito se conhece através deste tipo de conversa. Este cenário atual

reproduz características similares àquelas das primeiras décadas do século

XX, onde o regime das oligarquias exercia forte influência sobre as decisões

políticas do país, principalmente, nos pequenos municípios dos estados do

Nordeste. Alguns sobrenomes tradicionais estão no poder há décadas, assim

como as brigas entre família rivais da região.

O território de Palmeira dos Índios assistiu, ao longo de sua evolução,

muitas desavenças políticas que deixaram em seu solo, além das marcas de

injustiças, um rastro de sangue. Uma destas foi o assassinato do prefeito Lauro

de Almeida Lima, no ano de 1926. Fato que, contribuiu para a entrada de

Graciliano Ramos na vida política da cidade.

Os moradores de Palmeira dos Índios parecem que se conhecem todos,

pois os cumprimentos e paradas para breves conversas são constantes.

Apesar do avanço, a cidade ainda preserva características como estas; do

tempo para a conversa na calçada, do cumprimento nominal, do interesse em

saber se fulano de tal já melhorou, se a mulher de ciclano já pariu, se os

preparativos para a festa da igreja já estão prontos, etc. Também reconhecem

quem é filho daquela terra e quem veio de outras paisagens. Ações que podem

remeter à vida social da segunda década do século XX e que foi reproduzida

na ficção Caetés.

Estalaram foguetes na rua, à passagem da procissão. Soltei o livro, agarrei o chapéu e cheguei à calçada no momento em que desfilavam dois renques de velhos tristes, de opas, conduzindo tocheiros sem velas. - Vai acompanhar, Pascoal? Você sabe o que há na igreja? - Sermão. Sermão e tedéu. Sim, acompanho. Vinham devagar, em filas, as crianças do catecismo, com fitinhas amarelo-verdes. Depois, duas alas de mulheres, e entre as alas uma cambulhada de anjos, rubicundos, frisados, com asas de arame e gaze. Em seguida, o estandarte das

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119

filhas de Maria, dos cordões de aspirantes e veteranas. Atrás, o andor do Coração de Jesus, beatas de beiço mole, caducas, d. Engrácia, a Teixeira velha, Casimira, outras criaturas hediondas e sem sexo, de roupas pretas e escapulários como nódoas de sangue. E três figuras simbólicas, as virtudes excelentes. (RAMOS, 2009, p. 112).

O primeiro romance publicado de Graciliano Ramos, Caetés, descreve a

rotina da vida social de Palmeira dos Índios, principalmente a que representa a

“classe média”. São farmacêuticos, tabeliões, médicos, padres, comerciantes,

beatas, os índios, caixeiros, etc., que frequentam as ruas e vendas da cidade,

além dos jantares e chás oferecidos nas casas de alguns.

Às quintas e aos domingos ia aos chás de Adrião. Ficávamos tempo estirado cavaqueando – e era para mim verdadeiro prazer tomar parte em duas conversações cruzadas sobre moda e câmbio. Algumas vezes Luísa falava de contos, versos, novelas. O marido ferrava no sono. Ou então, com enormes bocejos, lá se ia claudicando, a lamentar que a enxaqueca não lhe permitisse saborear um enredo tão filosófico. Ele entendia bem de comércio; o resto era filosofia. Quando vinha o advogado Barroca, sério, cortês, bem aprumado, a sala se animava. Também aparecia com frequência o tabelião Miranda, Miranda Nazaré, jogador de xadrez, com a filha, a Clementina. E o vigário, o dr. Liberato, Isidoro Pinheiro, jornalista, pequeno proprietário, coletor federal, tipo excelente. Luísa, ao piano, divagava por trechos de operetas; Evaristo Barroca, com os olhos no livro de músicas, tocava flauta. (RAMOS, 2009, p. 8-9).

Da terra dos Índios Xucurus e Cariris existem poucos habitantes

remanescentes que , no passado, dominaram Palmeira dos Índios. Apenas

algumas mulheres índias e curumins que ficam na praça tentando vender

poucas peças de seu artesanato e tentando conversar com algum turista.

Hoje, as Palmeiras daquelas terras não são dos Índios, mas de muitos

que, pacificamente ou não, passaram a ocupar este pedaço do sertão de

Alagoas.

6.2 Informação e Literatura nas Gavetas da Prefeitura de Palmeira dos

Índios: Conjunturas de Criação

Page 120: A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO: …

120

Os dois relatórios administrativos escritos por Graciliano Ramos, um no

ano de 1929 e o outro em 1930 prestando contas de sua gestão ao então

governador de Alagoas, Álvaro Paes, foram publicados pela primeira vez no

Diário Oficial do Estado de Alagoas, precisamente no dia 24 de janeiro, o

primeiro, e 16 de janeiro o segundo.

Desde a primeira divulgação, estes documentos causaram espanto e

admiração nos leitores da época, mesmo naqueles que conheciam o perfil

duro, justo e enxuto de Graciliano Ramos, quando fazia uso da palavra.

Foi um destes leitores espantados com o estilo artístico dos relatórios,

que desconfiou da alta qualidade literária do seu autor. Esse leitor era o poeta

e proprietário da Editora Schimidt43, Augusto Frederico Schimidt que, com seu

faro apurado para farejar escritores de alto nível, apontou que, muito

provavelmente, o autor daqueles documentos escondia um precioso romance

em suas gavetas. Acertou. Augusto Schimidt revelou para o mundo o autor de

Caetés, publicando a obra no ano de 1933.

Sobre esta cena, Graciliano Ramos escreveu:

.... Nunca passei disso. Em fim de 1915, embrenhei-me de novo em Palmeira dos Índios. Fiz-me negociante, casei-me, ganhei algum dinheiro, que depois perdi, enviuvei, tornei a casar, enchi-me de filhos, fui eleito Prefeito e enviei dois relatórios ao governador. Lendo um desses relatórios, Schimidt imaginou que eu tinha algum romance inédito e quis lança-lo. Realmente, o romance existia, um desastre. Foi arranjado em 1926 e apareceu em 1933. Em princípio de 1930 larguei a Prefeitura e dias depois fui convidado para diretor da Imprensa Oficial. Demiti-me em 1931. (RAMOS, 1980, p. 103).

A leitura dos dois relatórios revela que Graciliano Ramos ignorou o tom

oficial da linguagem predominante nestes documentos. Porém, em nenhum

momento, encontram-se vestígios de um escritor que não dominava as regras

da língua materna e nem as do gênero relatório, pelo contrário, indica um

escrevente com rigor técnico e apurado, capaz de dizer muito com poucas

43

Fundada em 1930 no Rio de Janeiro, foi a primeira editora a publicar a obra Caetés, de Graciliano Ramos.

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121

palavras e consciente da transgressão linguística que cometia. Nesta violação,

a qualidade estética de Graciliano Ramos salta aos olhos de quem lê seus

relatórios, bem como o estilo objetivo e preciso quando o autor usa as palavras.

Nenhum substantivo ou verbo era jogado no papel sem o cuidado que merecia.

Os adjetivos sempre foram regrados. Todas as palavras passavam pelo crivo

de quem as conheciam muito bem e sabia manejá-las com criatividade e rigor

que, na construção pronta, encantavam todos que as liam.

6.3 Figuras de Linguagens: um caminho para a transgressão do gênero

Relatório

Os relatórios de Graciliano Ramos se tornaram famosos devido à

qualidade estética que se apresenta em sua escritura. O tom irônico, artístico e

sincero conferiu aos relatórios de Graciliano Ramos um status de proclamador

do talento do autor – Graciliano Ramos.

Percebe-se na leitura destes documentos fartura de expressões irônicas,

carregadas de humor e metáforas que, certamente, contribuíram na criação de

um texto artístico e transgressor.

Sabe-se que as figuras de linguagens são frequentemente utilizadas no

campo da literatura artística e que estas expressões conferem a estes textos

poesia e encantamento.

Por outro lado, orienta-se que essas figuras fiquem distantes dos textos

oficiais, didáticos, informativos, etc., ou seja, daqueles que valorizam o fato real

e a objetividade.

Para escrever seus relatórios, Graciliano Ramos ignorou as regras do

gênero para seguir o seu tino literário e o seu estilo individual de escrita. Não

fez esta ruptura por ignorância das características textuais e de formato que

definem o gênero relatório, pois em carta a sua amada Heloisa, Graciliano

Ramos mostrou-se conhecedor das regras da escritura dos textos oficiais:

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122

“Tanta gravidade, tanta medida, só vejo em documentos oficiais. Até sinto

desejo de começar esta carta assim: “Exma. Sra.: tenho a honra de comunicar

a v. exa., etc.” (RAMOS, 1980, p. 85).

Ora, mas o que seriam essas figuras de linguagens? Convém determos,

sumariamente, para conceituar ditas figuras antes de dar prosseguimento a

análise, para que esta mesma se torne mais clara no que diz respeito a estas

expressões de linguagem.

6.4 Identificação das Figuras de Linguagem no Estudo de Quintiliano

Preside a análise desta tese as figuras de linguagem apresentadas na

obra de Quintiliano de Calahorra. Optou-se pelas concepções deste autor, por

este ter sido um dos primeiros estudiosos do antigo Império Romano a

apresentar uma obra completa sobre as figuras de linguagem. Até hoje, a obra

deste pensador é uma fonte de pesquisa para os estudos contemporâneos que

envolvem o campo das figuras de linguagem.

Segundo Quintiliano de Calahorra44, a definição de figura de linguagem

se confunde com o significado dos tropos45.

Tropos más frecuentes por razón de su significado: metáfora, sinécdoque, metonimia, antonomasia, onomatopeya, catacresis. – Los tropos utilizados en virtud de adorno: epíteto, alegoría, enigma, ironía, perífrasis, hipérbaton, hipérbole. (QUINTILIANO, 2001, p. 243).

Sobre esta semelhança entre tropo e figuras o autor esclarece que

ambas aparecem, frequentemente, juntas no mesmo discurso, pois “la

expresión se puede transformar en uma figura tanto com palavras utilizadas em

sentido metafórico como próprio”. (p. 281).

44

Quintiliano de Calahorra ( Calahorra, 30 – 96 a. C), conceituado retórico e professor do Império Romano. 45

Tropo é um truque artístico - cum virtute – de significado próprio de uma palavra ou de uma expressão a outro significado. (CALAHORRA, 2001, p. 243). Tradução do autor.

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123

Aponta, ainda, Quintilino que o significado de figuras vem do grego

“schémata” que remete à atitude. Esta relação de significado faz sentido devido

à ideia de transformação do texto, causada pela utilização destas figuras -

“transforman el lenguaje” (CALAHORRA, 2001, p. 277). Também, diz

Quintiliano: “es uma configuración del linguaje, que se aparta del modo común

de hablar y em primer lugar se presenta”. (2001, p. 279).

Foram levantadas as figuras de linguagem presentes na obra de

Quintiliano para que, no momento seguinte, seja possível confrontar as

incidências destas figuras nos relatórios públicos de Graciliano Ramos.

Destaca-se deste conjunto a metáfora, muito valorizada por Graciliano

Ramos em seus relatórios, e que encontramos em Quintiliano um grande

amante deste recurso:

[El tropo] más frecuente y, por otra, el más hermoso entre todos, quiero decir la translatio – traslación del significado -, que en griego se llama metaphorá. Ella es ciertamente de tal modo, tanto por la misma naturaleza a nosotros dispensada, que hasta las personas incultas y sin advertirlo la usan, como tan agradable y resplandeciente, que aunque aparezca en un discurso, por brillante que éste sea, sin embargo, ella refulge con luz propia […]. (CALAHORRA, 2001, p. 245-247).

A ironia apontada por Quintiliano:

[…] en la figura de la ironía se trata del fingimiento de toda la intención, que se trasluce más que se manifiesta, de suerte que allí – en el tropo – las palabras son contrarias unas a otras, mientras aquí – en la ironía como figura - se contrapone el sentido a la expresión completa y a su tono, y a veces la configuración entera de un caso, hasta una vida entera parece tener en sí ironía, cual pareció tener la de Sócrates (pues por eso se le llamó eíron, - „El Irónico‟ – porque se hacía el ignorante y admirador de los otros como si fueran sabios). (CALAHORRA,2001, p. 315-317).

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Uma vez definidas as figuras de linguagem a partir das definições

encontradas em Quintiliano, esta tese segue adiante na análise dos relatórios

de Graciliano Ramos.

Quadro 2 – Figuras de Linguagem

Figuras de linguagem (Qintiliano) Sentido de Expressão, nas palavras de

Quintiliano (tradução da autora)

Onomatopeia É a formação nova de um nome: por

conseguinte, também se apresenta em vez

de outra palavra.

Hipérbato Consiste na troca da ordem das palavras.

Prosopopeia Dá admirável variedade ao discurso, como

também incitante viveza. Por meio delas

fazemos aparecer, por um lado, os

pensamentos de nossos adversários, como

se estivéssemos falando consigo mesmo.

Somente quando fingimos personificamos.

Ironia (mofa) Trata-se do fingimento de toda a intenção,

que se revela mais do que se manifesta.

Os romanos a chamavam de inlusio, mofa.

Alegoria sarcástica, Mykterismos

(Disfemismo*)

A este grupo se soma “o torcer de nariz”

uma espécie de mofa dissimulada.

Metáfora Aumenta a plenitude e a expressão, por

truque ou empréstimo do significado, que

uma coisa não tem ou lhe falta, ou que é

inclusive mais difícil, empresta a língua o

benefício de que nenhuma coisa pareça

precisar de um nome.

Sinédoque Pode dar variedade ao discurso, de sorte

que em uma coisa podemos pensar em

muitas, na parte a totalidade, na espécie o

gênero, no antecedente o seguinte, ou

também todas estas ao contrário com uma

liberdade maior para os poetas do que para

os oradores.

Metonímia Consiste em colocar um nome por outro

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125

nome. Esta designa as coisas inventadas

pelo inventor delas e as coisas possuídas

por seu possuidor.

Antonomásia Põe algo em lugar de um nome, é em suas

duas formas muito frequente nos poetas,

tanto por meio de um epíteto, que ao

desaparecer o nome, para quem se

antepôs, significa o mesmo que o nome

dito.

Perífrase (Eufemismo) Uma espécie de rodeio no modo de falar,

que se sente obrigado a fazer, sempre que

encobre coisas que causam vergonha dizer.

Pois tudo o que pode dar-se a entender

com mais brevidade e se põe ante os olhos

mais desenvolvidos, com expressões de

enfeite é uma perífrase.

Hipérbole É uma virtude de estilo, quanto ao próprio

objeto, do que se faz falar, faz ultrapassar a

medida natural. Pois é permitido falar

exagerado, porque não se pode cabalmente

dizer qual é a exata medida das coisas.

Catacrese

Quando falta nome para a coisa e há o uso

abusivo de um termo metafórico.

Epíteto Efetivamente serve de adorno o epíteto

(adição), que em direta equivalência

chamamos adpositum e alguns sequens (o

seguinte). Os poetas o usam com mais

frequência e com mais liberdade. Porque

para eles é suficiente esta adição

apropriada à palavra que vem em primeiro

lugar, e por esta razão não censuramos

neles o dizer brancos dentes e úmidos

vinhos. No orador é supérfluo, se não

produzir.

Fonte: Elaborado pela autora, a partir do texto de Quintiliano.

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126

*Na obra de Quintilinano não foi identificada uma figura de linguagem definida para a

“palavra de mau agouro, blasfêmia (...), contundentes, irritadas, violentas,

pertencentes à linguagem popular, ao calão e às gírias” (MOISÉS, 2004, p. 127). A

alegoria sarcástica foi identificada como sendo a mais próxima desta figura de

linguagem.

6.5 Figuras de Linguagem no Relatório I (ano 1.929)

Na apresentação do primeiro relatório, a formalidade ao se dirigir ao

superior é preservada, bem como a exposição direta do objetivo do documento.

Ao Governador do Estado de Alagoas Exmo. Sr. Governador: Trago a V. Excia. um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928. Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim minguados, entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o Município se achava, muito me custaram.

Nota-se, nestas linhas iniciais o lampejo dos primeiros vestígios de uma

escrita rigorosa e artística.

A utilização de verbos na primeira pessoa, tanto do singular quanto do

plural, revela sentimentos de um prefeito insatisfeito com os resultados do seu

trabalho, pois “os recursos são exíguos”, e de um homem indignado com as

mazelas de sua gente, invisível ao mundo. “Assim minguado, entretanto, quase

insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o

Município se achava, muito me custaram.”

Percebe-se uma recorrência da ironia e das metáforas no

desenvolvimento dos relatórios, o que sugere uma intenção de dizer muito

além do que se vê no enunciado, além de revelar o ponto de vista do autor em

relação a uma situação, fato ou pessoas.

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127

Na abertura do Relatório I, intitulado de “Começos”, o tom irônico,

manifestada através da ironia, a metáfora e a hipérbole surgem com vigor,

pode-se dizer que todo o enunciado é marcado por estas figuras:

Ironia / metáfora / hipérbole

O Principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração. Havia em Palmeira dos Índios, inúmeros prefeitos (hipérbole): os cobradores de impostos, o comandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar (metáfora). Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com prefeitos e coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões (ironia). Os fiscais, esses resolviam questões de politica e advogava (ironia).

Na expressão “alguma ordem” está implícita a leitura de uma

cidade acostumada a conviver com a desordem administrativa e social e que,

se a intenção for arrumar a casa, terá de realizar um trabalho audacioso e

arriscado.

A hipérbole aparece quando o autor se refere aos inúmeros prefeitos da

cidade. A expressão revela, além do exagero, também a intenção sarcástica de

retratar a realidade, o que indica fusão de duas figuras, característica que

demarca o estilo de Graciliano Ramos como híbrido e que transita em

fronteiras dos estilos jornalismo / documento / literatura.

No seguinte trecho, é possível depreender e comprovar,

simultaneamente, o jeito bruto e suave de escrever de Graciliano Ramos,

valendo-se do recurso da metáfora e do eufemismo:

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Metáfora / ironia / Disfemismo

Para que semelhante anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama (metáfora); fora, uma campanha sorna, obliqua, carregada de bílis (disfemismo). Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor (ironia), que administra melhor do que todos nós: outros me davam três meses para levar um tiro.

O texto dos relatórios causa espanto no leitor não somente pela beleza

estética que apresenta, mas porque a todo instante a informação é exposta de

maneira muito franca e abrupta, ou seja, sem manobra. Neste caso, enquanto

a ironia pode ser apreendida em todo o percurso do texto, a metáfora aparece

poeticamente na expressão “uma resistência mole, suave, de algodão em

rama”.

Em outro trecho observa, além da ironia , a figura da perífrase:

Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam politica e os que não faziam coisa nenhuma (ironia). Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles. Não sei se a administração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior. (Perífrase).

Marcas da linguagem coloquial também marcam o tom dos relatórios.

Neste trecho a expressão “não se metem onde não são necessários” comprova

a afirmação.

A utilização da figura de linguagem da perífrase é bem recorrente no

desenvolvimento dos dois relatórios, pois ao longo dos documentos percebe-se

o abrandamento de expressões que suavizam o texto.

Nos seguintes trechos observam-se estas figuras:

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129

Perífrase

A receita, orçada em 50:000$000, subiu, apesar de o ano ter sido péssimo, a 71:649$290, que não foram sempre bem aplicados por dois motivos: porque não me gabo de empregar dinheiro com inteligência (perífrase) e porque fiz despesas que não faria se elas não estivessem determinadas no orçamento.

Ironia

A iluminação da cidade custou 8:921$800. Se é muito, a culpa não é minha: é de quem fez o contrato com a empresa fornecedora de luz. (ironia).

Ironia

Houve 1:069$700 de despesas eventuais: feitio e concerto de medidas, materiais para aferição, placas. 724$000 foram-se para uniformizar as medidas pertencentes ao Município. Os litros aqui tinham mil e quatrocentos gramas. Em algumas aldeias subia, em outras descia (ironia). Os negociantes de cal usavam caixões de querosene e caixões de sabão, a que arrancavam taboas, para enganar o comprador. Fui descaradamente roubado em compras de cal para os trabalhos públicos.

É possível notar o uso da metáfora reforçando o tom irônico do autor:

No cemitério enterrei (metáfora) 189$000 pagamento ao coveiro e conservação. Os escrivães do júri, do cível e da policia, o delegado e os oficiais de justiça levaram (metáfora).1:843$314.

Nestes casos, percebe-se que Graciliano Ramos utilizou os verbos

“enterrei” e “levaram” com a intenção de dizer algo além do que o enunciado se

propõe que, num primeiro momento, é o de informar as despesas com estas

instâncias. No primeiro caso, cria-se um efeito de sentido combinatório com o

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130

contexto do cemitério que é o de enterrar pessoas, além de ser possível a

interpretação de jogar o dinheiro fora. Já no segundo exemplo, pode ser dizer

que o autor sugere um ambiente de corrupção onde trabalham estes oficiais.

No parágrafo que trata das despesas com a Administração, predominam

as seguintes figuras:

Disfemismo / Ironia / Polissíndeto

Porque se derrubou a Bastilha um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela (disfemismo) um telegrama. Dispêndio inútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós chorámos e que em 1559 D. Pero Sardinha foi comido pelos Caetés. (ironia).

A utilização da expressão “esticou a canela”, além de ser um exemplo

de alegoria sarcástica, é de uso popular e, portanto, predominante no campo

da oralidade. A repetição do conectivo “porque” também caracteriza a figura do

polissíndeto que, neste caso, reforça a ideia de tédio e desdém por atividades

inúteis que são realizadas na prefeitura.

Mais adiante, no tópico “Arrecadação” do Relatório I, o disfemismo foi

empregado para depreciar o perfil dos vendedores da cidade.

As despesas com a cobrança dos impostos montaram a 5:602$244. Foram altas porque os devedores são cabeçudos (disfemismo).

No item “Limpeza Pública Estradas”, percebe-se o uso da enumeração

crescente de palavras para criar um efeito cumulativo no texto. A figura

utilizada para se conseguir este efeito é a gradação:

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131

Gradação

(...) Cuidei bastante da limpeza pública. As ruas estão varridas: retirei da cidade o lixo acumulado pelas gerações que por aqui passaram: incinerei monturos imensos que a Prefeitura não tinha suficientes recursos para remover. Houve lamurias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado em fundos de quintais; lamurias, reclamações e ameaças por que mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamurias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças.

Quando o prefeito escreve o Posto de Higiene, pode-se dizer que fez

uso de um metônimo (uma instância da metonímia), ao utilizar a palavra

“prophylaxia” para se referir à limpeza do munícipio.

Em falta de verba especial, inseri entre os dispêndios realizados com a limpeza pública os relativos à prophylaxia (metonímia) do Município.

No trecho seguinte “Terrapleno da Lagoa” a metáfora e a hipérbole

foram utilizadas para falar das constantes reclamações que o prefeito ouvia dos

munícipes:

Durante meses mataram-me o bicho do ouvido (metáfora)

com reclamações de toda a ordem contra o abandono em que se deixava a melhor entrada para a cidade. Chegaram lá pedreiros outras reclamações surgiram, porque as obras irão custar um horror de conto de réis (hipérbole), dizem.

Custarão alguns, provavelmente. Não tanto quanto as

pirâmides do Egito (hipérbole), contudo, o que a Prefeitura arrecada basta para que nos resignemos ás modestas tarefas de varrer as ruas e matar cachorros. (ironia).

Na conclusão deste trecho, a perífrase e a ironia também aparecem

para dar a expressividade desejada pelo prefeito-escritor:

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Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu (perífrase): em todo caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc, sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados (ironia).

Na conclusão do primeiro relatório, expressões como “do tempo das

candeias de azeite”, “recorrer ao espiritismo” “convenci-me de que o código era

uma espécie de lobisomem”, conferem ao texto uma forte dose de ironia que,

neste caso, a expressividade foi adquirida através da hipérbole e da metáfora.

Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo (hipérbole), convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem (metáfora).

Finalmente, na conclusão do primeiro relatório o autor faz uso de várias

figuras de linguagens que conferem ao texto uma qualidade estética admirável

e um distanciamento do gênero relatório. Nota-se a presença da perífrase, da

ironia, da metáfora, da antítese, do Oximoro. Para ilustrar este jogo de

figuras de linguagem, na integra o desfecho do documento:

Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis (Antítese). Evitei emaranhar-me em teias de aranha (Metáfora). Certos indivíduos, não sei porque, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam com autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos (ironia). Não me entendi com esses. Há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha (Oximoro), a abençoada canalhice (Oximoro), preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem como assumpto invariável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento da ideia de lucro pessoal; ha até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos. Fechei os ouvidos (??) , deixei gritarem arrecadei 1:325$500 de multas. Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porem foram erros da inteligência que é fraca. (perífrase) Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se a

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minha estada na Prefeitura por esses dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade. Palmeira dos Índios, 10 de janeiro de 1929.

6.6 Figuras de Linguagem no Relatório II (ano 1930)

No segundo relatório, o prefeito Graciliano Ramos deu continuidade ao

seu estilo de redigir estes documentos oficiais. A presença das figuras de

linguagem está presente por todo o texto, assim como a qualidade estética.

Como acontece no primeiro relatório, observa-se neste a predominância

das figuras da ironia, da metáfora, da perífrase e da ironia sarcástica, porém

o autor acrescenta a hipérbole, a personificação e a metonímia, em alguns

trechos.

Na apresentação deste relatório, Graciliano Ramos de dirige ao

Governador de maneira muito direta e demonstrando pouca paciência:

Sr. Governador: - Esta exposição é talvez desnecessária. O balanço que remeto a V. Excia. mostra bem de que modo foi gasto em 1929 o dinheiro da Prefeitura Municipal de Palmeira dos índios. E nas contas regularmente publicadas há pormenores abundantes, minudencias que excitaram o espanto benévolo da imprensa.

Além desta aparente urgência do autor, há indício do reconhecimento da

repercussão positiva do primeiro relatório na imprensa: “E nas contas

regularmente publicadas há pormenores abundantes, minudencias que

excitaram o espanto benévolo da imprensa”.

Logo após a abertura do relatório, a parte seguinte apresenta como a

receita atual da prefeitura e como esse valor foi administrado.

Em alguns trechos do relatório, Graciliano Ramos economiza tantas

palavras e é tão objetivo que a informação é transmitida através de um único

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período simples, como se vê no item “Gratificações”: “Estão reduzidas”. Pode-

se dizer que esta expressão, apesar de curta, foi pensada esteticamente, pois

alcança uma expressividade que combina com a ideia pretendida pelo autor, ou

seja, se vale da economia de sentenças para reforçar a ideia de economia das

gratificações.

Personificação

A presença desta figura de linguagem traz ao relatório um tom sarcástico

que reforça e evidencia o caráter irônico destes documentos. A parte intitulada

“Cemitério” diz:

Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo (personificação). São os munícipes que não reclamam.

Antítese, Ironia e Onomatopeia

A prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar se ser negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras (antítese). E um bluff (onomatopeia). Pagamos até a luz que a lua nos dá. (ironia).

O trecho seguinte traz às contas das despesas gastas com higiene,

além da ironia em toda a construção, a personificação dos animais

incomodados com a limpeza das ruas. Parece que eles tomaram uma decisão

– a de que naquela cidade o espaço não era mais apropriado para suas vidas.

No item que refere à instrução, é possível depreender tédio e descrença

nas ações praticadas dentro das escolas de Palmeira dos Índios. O prefeito

revela uma realidade impregnada pelo ensino de baixa qualidade e pela

ignorância transmitida por gerações.

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Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.

Ao relatar sobre os gastos com viação e obras públicas o tom irônico é

reforçado com o uso da metáfora e da metonímia:

Possuímos uma teia de aranha de veredas muito pitorescas (metáfora), que se torcem em curvas caprichosas, sobem montes e descem vales de maneira incrível. O caminho que vai a Quebrangulo, por exemplo, original produto de engenharia tupi tem lugares que só podem ser transitados por automóvel Ford (metonímia) e por lagartixa. Sempre me pareceu lamentável desperdício consertar semelhante porcaria (disfemismo).

As metáforas, as ironias, os eufemismos e as hipérboles continuam

presentes por todo o percurso do relatório, como se pode observar:

Metáfora

A população minguada, ou emigrava para o sul do País ou se fixava nos municípios vizinhos, nos povoados que nasciam perto das fronteiras e que eram para nós umas sanguessugas (metáfora).

Este trecho se encontra no parágrafo “Produção” e algo interessante

pode ser observado nele, além da figura de linguagem. Sua leitura remete ao

cenário da obra Vidas Secas que é marcado pela ação nômade de Fabiano e

de sua família. A vida deles, além de minguada, é marcada pela mudança sem

rumo. “Suspirou. Que havia de fazer? Fugir de novo, aboletar-se noutro lugar,

recomeçar a vida”. (RAMOS, 2006, p. 111).

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Metáfora e alegoria sarcástica (disfemismo)

E o palmeirense afirmava, convicto, que isto era a princesa do sertão (metáfora). Uma princesa, vá lá, mas princesa muito nua, muito madraça, muito suja e muito escavacada (disfemismo).

Disfemismo

Cannafistula era um chiqueiro (disfemismo). Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados com gente. Nunca vi tanto porco (disfemismo).

Perífrase e ironia

Não pretendo levar ao público a ideia de que os meus empreendimentos tenham vulto. Sei perfeitamente que são miuçalhas (perífrase). Mas afinal existem. E comparados a outros ainda menores, demonstram que aqui pelo interior podem tentar-se coisas um pouco diferentes dessas invisíveis sem grande esforço de imaginação ou microscópio (ironia).

Disfemismo

Sei bem que antigamente os agentes munícipes eram zarolhos (disfemismo). Quando um infeliz se cansava de mendigar o que lhe pertencia, tomava uma resolução heroica: encomendava-se a Deus e ia à capital. E os prefeitos achavam razoável que os contraventores fossem punidos pelo Sr. Secretário do Interior, por intermédio da polícia.

Metáfora

O esforço empregado para dar ao Município o necessário é vivamente combatido por alguns pregoeiros de métodos

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administrativo originais. Em conformidade com eles, deveríamos proceder sempre com a máxima condescendência, não onerar os camaradas, ser rigorosos apenas com os pobres diabos sem proteção (metáfora), diminuir a receita, reduzir a despesa aos vencimentos dos funcionários, que ninguém vive sem comer, deixar êsse luxo de obras públicas à Federação, ao Estado ou, em falta destes, à Divina Providência (Antonomásia).

Na finalização deste segundo relatório, no item “Projetos” a metonímia,

o tom irônico e a hipérbole, o epíteto são responsáveis pelo tom divertido do

artístico do trecho:

Iniciarei, se houver recursos, trabalhos urbanos. Há pouco tempo, com a iluminação que temos, pérfida, dissimulavam-se nas ruas sérias ameaças à integridade das canelas imprudentes (metonímia) que por ali transitassem em noites de escuro (epíteto). Já uma rapariga aqui morreu afogada no enxurro. Uma senhora e uma criança, arrastadas por um dos rios que se formavam no centro da cidade, andaram rolando de cachoeira em cachoeira e danificaram na viagem braços, pernas, costelas e outros órgãos apreciáveis. (ironia).

Perífrase / Metáfora

Ficarei, porém, satisfeito se levar ao fim as obras que aceitei. É uma pretensão moderada, realizável. Se não realizar, o prejuízo não será grande. O Município, que esperou dois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura um sujeito hábil (perífrase) e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos (metáfora).

A partir do levantamento e das incidências das figuras de linguagem nos

relatórios de Graciliano Ramos, pode-se chegar a algumas conclusões sobre o

perfil destes textos e, desta forma, avançar na análise comparativa com o

gênero relatório.

Observou-se que o tom irônico é instaurado nos relatórios não somente

pelo uso da figura da ironia, mas pela soma desta com outras figuras que, no

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conjunto, compõe um texto de qualidade estética que valoriza o tom jocoso,

metafórico e o poético.

A metáfora e a ironia predominam nos dois relatórios reforçando, assim,

o perfil conotativo dos relatórios. Dessa forma, estes textos se afastam do tom

oficial pertinente ao gênero relatório, caracterizando uma ruptura da

comunidade discursiva dos gabinetes e das instituições.

No primeiro, de acordo com o levantamento, o autor atribuiu ao texto um

tom mais irônico em relação ao segundo que, sobre aquele, valorizou mais o

disfemismo, ou seja, o tom sarcástico e difamador.

O tom irônico no primeiro e o mais irritado no segundo conferem aos

relatórios um perfil textual subjetivo, pois não só a visão, mas também a

emoção do escritor sobre um contexto se revela nos parágrafos, através da

expressividade conferida pelo uso das figuras.

A incidência destas figuras tem o poder, não só de transfigurar o sentido

e o estilo do texto, mas também o de revelar o sentimento e o ponto de vista do

autor, no momento da escrituração.

Nesse sentido, elas (as figuras) são reveladoras do cansaço do prefeito

escritor em relação à impessoalidade de garantir transformações sociais. Tanto

o é, que a carta de amor que escreve à Dona Heloísa traz um sentimento de

culpa por tocar no assunto política e sua insatisfação com o cargo.

São nos gêneros ficcionais que as figuras de linguagem desempenham

a essência de sua função – a de transformar a realidade e a de conferir

qualidade estética e de encantamento ao enunciado. Para o professor

Massaúd Moisés (2004, p. 188) são as figuras de linguagem “recursos

linguísticos que alteram a disposição normal dos membros da frase, com vistas

a criar um efeito imprevisto, não necessariamente de índole artística ou

erudita.”

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Diferentes destes gêneros estão os que circulam na esfera das

organizações. A linguagem dos textos oficiais deve se aproximar o mais

possível da realidade, ou seja, o uso denotativo das palavras deve ser

valorizado para que, dessa forma, o texto incorpore o tom da objetividade e do

distanciamento dos sentimentos do autor e da mensagem.

Nos textos dos relatórios, a presença das figuras de linguagem

contribuiu para expressar os sentimentos do prefeito Graciliano Ramos sobre a

situação política e social do povo de Palmeira dos Índios, além de revelar o

potencial literário do escritor. São através delas, das figuras, que se torna

possível traçar o perfil homem, do gestor e do escritor Graciliano Ramos.

A presença das figuras que caracterizam a ironia e o disfemismo confere

aos relatórios públicos de Graciliano Ramos tom irônico e explosivo e retratam

o perfil de um gestor inconformado com a injustiça e com o abandono social,

recorrentes em Palmeira dos Índios.

Também é através das figuras que se conhece a retidão de caráter, a

firmeza e a conduta ética do prefeito que não via no setor público a chance de

enriquecimento fácil e nem a oportunidade para ganhar status e prestígio

social. Ao contrário, via no trabalho público o desgaste físico e mental, além do

fardo pessoal que as atividades municipais lhe conferiam.

Sobre isso, escreveu Graciliano, em uma das cartas de amor enviadas à

Heloísa:

A prefeitura? Sim, foi ela que interrompeu a viagem que eu tinha certa para amanhã. A propósito: que história é essa de posição elevada? Enganaram-te, minha filha. Para os cargos de administração municipal escolhem de preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na cabeça uns parafusos de menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício e qualquer dia renuncio. Por tua culpa, meu amor, toco num assunto desagradável e idiota. Isto não vale nada. (RAMOS, 1980, p. 97).

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Ao elencar a palavra “renuncio” em sua carta, Graciliano Ramos já se

posiciona descontente com a realidade que vivia. Nos textos dos relatórios,

observa-se que as figuras de linguagem desempenharam tripla função.

Primeiro, são elas que conferem a estes relatórios qualidade estética e de

expressividade, proporcionando aos seus textos o tom e o sabor da arte

literária.

Também são elas as responsáveis pela transfiguração e transgressão

do gênero relatório, uma vez que rompem com o padrão da linguagem dos

textos oficiais, para atribuir ao texto um perfil conotativo e, portanto, passivo de

interpretações aguçadas pela imaginação do leitor.

Por último, o perfil e os sentimentos do gestor Graciliano Ramos podem

ser apreendidos através destas figuras. Está nelas a expressão de tédio, do

desgosto pela realidade política e social do município, da consciência crítica do

abandono e da violência vividas pelo povo do sertão. Mas, também está a

manifestação do caráter incorruptível e da seriedade do homem político, que

tratava com zelo e responsabilidade não só a sua administração, mas as

palavras que traduziam para ele o mundo e as vivências.

Para visualizar a presença das figuras de linguagem nos relatórios

públicos de Graciliano Ramos, dois gráficos foram elaborados para evidenciar

o perfil destes documentos através de suas incidências.

No primeiro gráfico, o objetivo foi representar e comparar os dois

relatórios através das recorrências das figuras de linguagem para que, desta

forma, seja possível verificar qual a figura que mais contribui para a

transgressão destes documentos.

No gráfico seguinte, a intenção foi a de evidenciar as figuras que mais

predominam nos dois relatórios, assim, facilitando a percepção do leitor sobre

as que mais foram utilizadas pelo autor.

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Gráfico 1 - Perfil dos Relatórios de Graciliano Ramos por Incidência das

Figuras de Linguagem

Fonte: elaborado pela autora a partir do levantamento das figuras de linguagem

presentes nos dois relatórios públicos de Graciliano Ramos.

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Gráfico 2 - Figuras de Linguagem: incidências nos relatórios de

Graciliano Ramos

Fonte: elaborado pela autora a partir do levantamento das figuras de linguagem

presentes nos dois relatórios públicos de Graciliano Ramos.

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CONCLUSÃO

O estudo dos relatórios públicos de Graciliano Ramos, na perspectiva da

transgressão do gênero relatório, foi uma forma de contribuir com o avanço das

informações sobre os gêneros discursivos e textuais, que circulam nas

comunidades discursivas da sociedade, por diferentes mídias, e de possibilitar

a divulgação de um expoente da literatura nacional como gestor municipal que

deixou marcas profundas de transparência e ética, na administração da cidade

de Palmeira dos Índios, através das ações e da linguagem.

No desenvolvimento da tese, buscou-se cumprir com o objetivo geral e

específicos propostos no inicio do seu estudo e apresentar respostas para as

indagações formuladas, que impulsionaram a pesquisa.

Informações sobre o gênero relatório, desde a formulação de seu

conceito, de suas características constitutivas à comunidade discursiva que o

adota, foram apresentadas a partir das concepções de autores que discutem o

tema. Verificou-se que o gênero relatório está muito presente na comunidade

discursiva institucional e, portanto, incorpora a linguagem e o tom oficial,

instituídos neste espaço. Constatou-se também, que é um gênero textual que

apresenta características discursivas secundárias, pois sua formulação exige

“condições de um convívio cultural mais completo e relativamente muito

desenvolvido e organizado” (BAKTHIN, 2010, p. 262).

O domínio discursivo dos textos oficiais, ou seja, o lugar de sua

produção e recepção, é o da instância organizacional, pública ou privada e,

como gênero, suas formas textuais são homogêneas, e sócio discursivo-

enunciativo.

Entende-se que esta tese ativou o estudo sobre a transgressão dos

gêneros, a partir da análise das incidências das figuras de linguagem nos

relatórios de Graciliano Ramos. Foi através da utilização destas figuras que o

escritor infringiu o gênero relatório e, desta forma, conferiu uma qualidade

estética e de expressividade nestes documentos oficiais.

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Finalmente, para cumprir com o objetivo geral, o perfil do gestor público

e a promoção dos textos não ficcionais de Graciliano Ramos foram

apresentados no desenvolvimento desta tese. Como gestor público, observou-

se que Graciliano Ramos era além de criterioso, ético e responsável com as

atividades da prefeitura, suas contas eram detalhadas e registradas com

esmero. No texto dos relatórios, nota-se um homem que sabia o que dizer e

como dizer – não gostava de fazer rodeios. Sua escrita era enxuta e criativa,

seca, mas suave e, como conduzia a sua vida, era rigoroso com as palavras.

Foram os relatórios que revelaram o grande romancista ao País, e quem

os conhece e também suas obras, percebe que a qualidade estética e a

expressividade presentes nestes documentos foram replicadas em seus

romances futuros, o que possibilita um diálogo entre gêneros discursivos e

textuais.

A transgressão do gênero relatório, uma proposta dos objetivos

específicos, foi demonstrada através do levantamento e das incidências das

figuras de linguagem nos relatórios de Graciliano Ramos. O tom irônico e

muitas vezes satírico e pitoresco, presente nestes textos, foi alcançado através

do uso das figuras de linguagem.

No capítulo que se propôs a analisar os relatórios, observou-se o perfil

dos dois textos a partir das figuras de linguagem e constatou-se que no

primeiro o tom irônico e metafórico foi bem mais acentuado que no segundo.

No entanto, a expressividade mais jocosa e explosiva ganha destaque no

segundo. Neste, o autor demonstra sentimentos mais carregados de cólera e

desgosto, em relação ao primeiro.

Para conseguir este efeito de sentido, fez uso do disfemismo que é a

figura de linguagem que valoriza “o emprego de palavras contundentes,

irritadas, violentas, pertencentes à linguagem popular, ao calão e às gírias”.

(MOISÉS, 2004, p. 127). Construções textuais como “Cannafístula era um

chiqueiro. Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados com

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gente. Nunca vi tanto porco [...], ou ainda “Uma princesa, vá lá, mas

princesa muito nua, muito madraça, muito suja e muito escavacada [...].”,

ambas presentes no relatório II comprovam o tom direto, desagradável e

carregado de bílis do prefeito escritor.

No desenvolvimento da tese examinou-se e identificou-se que os

gêneros discursivos e textuais preservam características retóricas e sócios

discursivas que contribuem para o seu reconhecimento e reprodução na

comunidade discursiva que se instauram.

No entanto, sabe-se que, frequentemente, a transgressão é um fato que,

na área da literatura, contribui para a evolução dos gêneros deste campo e é

mais recorrente.

Sobre isso:

No campo de estudos literários, onde se formalizou mais claramente a definição de gêneros textuais, o destaque é para a sua instabilidade, ao contrário dos folcloristas, que dão importância à estabilidade da forma. O que se evidencia é justamente a transgressão das normas para imprimir originalidade à obra. E Swales (1990) chama a atenção para a contribuição dessa área em relação à evolução dos gêneros, às variações nos exemplares do mesmo gênero e ao papel do autor e da sociedade, que determinam as mudanças. (BIASI-RODRIGUES, ARAUJO e HEMAIS, 2009, p. 20).

Por outro lado, o dos gêneros oficiais, a violação de determinado gênero

textual é menos recorrente, pois nas esferas institucionais as convenções do

discurso oral ou escrito são mais regradas e estáveis.

Diz a estudiosa e literária alagoana Vera Romariz (2008, p. 19):

As regras da redação oficial mudam muito lentamente, porque seu objetivo cristalizado é a informação clara, objetiva, precisa, que não dá margem à leitura mais transversal e oblíqua, terreno dos criadores; mas o discurso literário é algodão em rama, bicho manhoso. Nela há sempre frestas onde se pode entrar até a arca dourada de uma multiplicidade de sentidos, o que fez o prefeito Graciliano Ramos utilizar, como escritor, a

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146

liberdade compositiva do avanço do gênero, para fincar um conteúdo social com forma híbrida.

A transgressão presente nos relatórios de Graciliano Ramos confere um

desvio do gênero relatório, no entanto, esta tese aponta que a contravenção

não foi realizada pelo autor por ignorância às normas constitutivas do gênero

dos textos oficiais, mas pela sua intenção em ampliar a mensagem e, desta

forma, dizer muito além das palavras escritas e lidas. Assim, conclui-se que

estes relatórios cruzam suas características com os gêneros jornalísticos

interpretativo e utilitário. As informações divulgadas na mídia oficial da época

cumpriram a função comunicativa na transmissão da gestão pública, de

maneira figurada, mas útil e compreensível ao seu público.

O prefeito escritor utilizou as figuras de linguagem como meio para

atingir o seu objetivo estético e discursivo, através dos relatórios.

O prefeito de Palmeira dos Índios revelou-se para o público através de

seus relatórios oficiais, artísticos, irônicos, poéticos, secos, mas suaves como

algodão em rama.

Somente um escritor com o perfil de Graciliano Ramos para conseguir o

texto híbrido misturando os gêneros da literatura artística com os da literatura

oficial e que resiste ao longo dos anos com vívido interesse para estudos

interdisciplinares.

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