A muralha dosjuros - volneygouveia.files.wordpress.com · da grande Muralha da China. Construída...

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~- A muralha dosjuros Suely ... Caldas* E foi no meio de uma crise e de uma reces- são econômica que fi- nalmente o Brasil atravessou umafron- teira que parecia intransponí- vel, separada que era por um obstáculo invisível, mas forte, poderoso e resistente - compa- rável aos seis mil quilômetros da grande Muralha da China. Construída ao longo de dois mi- lênios e concluída no século 16,a imponente muralha chinesa te- ve uso militar em passado dis- tante e hoje é uma das maravi- lhas do mundo e um ponto turís- tico imperdível. A nossa mura- lha não é visualmente imponen- te nem tem a defesa militar por objetivo, mas por mais de meio século contribuiu para atrofiar o desenvolvimento e o cresci- mento da nossa economia. A decisão do Banco Central (BC)de reduzir para 9,5%sua ta- xa de juros não contém apenas o simbolismo de transpor a barrei- ra dos dois dígitos. Ela deixou lá atrás, no lado fronteiriço ultra- passado, os que defendiam a ideia de reduzir juros na marra, por decreto, de cima para baixo, de forma autoritária e despre- zando regras e leis do mercado. Não significa também que es- tamos seguros e livres de retro- ceder e pular a muralha de vol- ta. O caminho a enfrentar é co- nhecido no mapa e desconheci- do no percurso, embora previsí- vel. Mas é preciso seguir firme em frente. E o caminho do aces- so à educação qualificada, das reformas econômicas, do avan- ço da democracia, do fortaleci- mento das instituições, da multi- plicação e democratização da renda, do emprego e do traba- lho, do progresso e desenvolvi- mento social, enfim. Seja quem for, o próximo go- vernante que ocupar o lugar de Lula precisa ter o percurso des- se caminho bem claro e definido e acelerar o passo em 2011,dis- tanciar o País do limite da fron- teira e seguir em frente. Se não cuidar disso - e logo no primeiro dia do mandato -, corre o risco de andar para trás e reconciliar- se com o atraso. A história da taxa de juros é emblemática neste momento em que o Brasil dá um importan- te passo para, pelo menos nesta matéria, deixar de marchar no mesmo lugar e sair do atraso. É uma história longa e cheia de in- cidentes, mas chegou ao auge em 1988,quando seu tabelamen- to foi escrito na Constituição, a lei maior que todos os brasilei- ros devem seguir e respeitar. Naquele momento, em que o País transitava de um regime di- tatorial para a democracia, era imprescindível ter uma nova Constituição que livrasse a po- pulação do chamado "entulho autoritário" e refletisse o novo momento de liberdades política e econômica. Na época, o presi- dente Lula foi um dos eleitos pa- ra a Assembleia Constituinteen- carregada de elaborar e votar a nova Constituição - o livrinho que o presidente da Constituin- te, o deputado Ulysses Guima- rães, ergueu em cena histórica, com alegria e orgulho, no dia de sua promulgação, em 5 de outu- bro de 1988. A Constituição cidadã do dou- tor Ulysses trouxe muitos avan- ços políticos, mas também equí- vocos econômicos, resultado da inexperiência e de um clima de ingênuo voluntarismo da época. Tabelar os juros em 12%ao ano foi um deles. E por quê? Em primeiro lugar, 12% é uma taxa exageradamente ele- vadaedisso não sabiam os depu- tadosconstituintes que ingenua- mente imaginavam punir os banqueiros com o tabelamento. Depois - e o mais importante da história -, engessar a taxa tira do Banco Central oprincipalins- trumento de política monetária para controlar a inflação e a de- manda. Se a demanda aquece e a inflação dispara, o Banco Cen- tral eleva os juros para equili- brar a economia. E reduz a taxa quando a trajetória éinversa. Ti- rar essa arma do BC é como su- primir oxigênio do homem. O tabelamento nunca foi res- peitadoporque aprópria Consti- tuição o adiou, remetendo sua regulamentação para umaleior- dinária que nunca foivotada no Transposta a barreira dos dois dígitos, é preciso seguir em frente Congresso. As propostas de re- gulamentação cogitadas não passavam da obviedade de fixar os juros em 12%,acrescidos da taxa de inflação. Caso a ideia prosperasse, hoje a taxa Selic não estaria em 9,5%,como deci- diu o BC na quarta-feira, mas em 16,5%.Osparlamentares en- tenderam, enfim, que tabelarju- rosera uma anomalia, uma aber- ração econômica. Mas não desistiram os que ainda hoje defendem baixar ju- ros na marra, ignorando infla- ção, demanda, leis do mercado e atribuindo "tudo isso que está ar' a um hipotético "luxo libe- ral". São os mesmos que sem- preconsideraram baixa e social- mente injusta a taxa que remu- nera a caderneta de poupança. Agora, atônitos e sem entender, constatam que a taxa de 6% de juros fixos para a poupança é al- ta e devem baixá-Ia para permi- tir que o BC continue reduzindo a taxa Selic. São os mesmos que defendem a intervenção do go- verno na política de juros e con- denam a autonomia de decisão do Banco Central. O presidente Lula tem mui- tos amigos e companheiros que pensam assim, mas, felizmente, não embarcou nessa canoa fura- da. Na quarta-feira ele afirmou à agência de notícias Reuters: "Não dou palpite e não quero que onúmero (da Selic) seja polí- tico nunca." Investimento - A queda do pro- duto interno bruto (PIB) no se- gundo trimestre seguido desmo- ralizou de vez a marolinha e as projeções sonhadoras do minis- tro Guido Mantega. É ruim ver o País entrar em recessão, mas a pior notícia do PIB foi a queda livre e recorde do investimento, justamente porque a falta dele vai atrapalhar os sinais de reto- mada da atividade econômica. Segundo oIBGE, a taxa dein- vestimento na economia re- cuou, em um ano, de 18,11% para 16,6%no finalde março de 2009. Mesmo levando em conta a cri- se, é uma queda muito expressi- va para tão pouco tempo. Não é à toa que estão parados seis al- tos fornos da indústria siderúr- gica, que a Vale anunciou redu- ção inédita em seus investimen- tos e que outros setores indus- triais tenham engavetado no- vos projetos de expansão da pro- dução. Ninguém quer pagar pa- ra ver e, enquanto a capacidade ociosa se mantiver em alta, os projetos continuarão na gaveta. O investimento em infraes- trutura, que poderia aliviar ore- cesso na indústria, não decola, seja porque as obras do PAC continuam lentas, seja porque o investimento privado ainda não encontrou no governo Lula re- gras estáveis e ambiente políti- co propício a afastar riscos de mudanças no meio do caminho. Quem sabe a queda dos juros ajude a destravar e a encontrar a saída. 8 *Suely Caldas, jornalista, é pro- fessora de Comunicação da PUC- Rio ([email protected])

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A muralha dosjurosSuely ...

Caldas*

Efoi no meio de umacrise e de uma reces-são econômica que fi-nalmente o Brasilatravessou umafron-

teira que parecia intransponí-vel, separada que era por umobstáculo invisível, mas forte,poderoso e resistente - compa-rável aos seis mil quilômetrosda grande Muralha da China.Construída ao longo de dois mi-lênios e concluída no século 16,aimponente muralha chinesa te-ve uso militar em passado dis-tante e hoje é uma das maravi-lhas do mundo e um ponto turís-tico imperdível. A nossa mura-lha não é visualmente imponen-te nem tem a defesa militar porobjetivo, mas por mais de meioséculo contribuiu para atrofiaro desenvolvimento e o cresci-mento da nossa economia.

A decisão do Banco Central(BC)de reduzir para 9,5%sua ta-xa de juros não contém apenas osimbolismo detranspor a barrei-ra dos dois dígitos. Ela deixou láatrás, no lado fronteiriço ultra-passado, os que defendiam aideia de reduzir juros na marra,por decreto, de cima para baixo,de forma autoritária e despre-zando regras e leis do mercado.

Não significa também que es-tamos seguros e livres de retro-ceder e pular a muralha de vol-ta. O caminho a enfrentar é co-nhecido no mapa e desconheci-do no percurso, embora previsí-vel. Mas é preciso seguir firmeem frente. E ocaminho do aces-so à educação qualificada, dasreformas econômicas, do avan-ço da democracia, do fortaleci-mento das instituições, da multi-plicação e democratização darenda, do emprego e do traba-lho, do progresso e desenvolvi-mento social, enfim.

Seja quem for, opróximo go-vernante que ocupar o lugar deLula precisa ter o percurso des-se caminho bem claro e definidoe acelerar o passo em 2011,dis-tanciar o País do limite da fron-teira e seguir em frente. Se nãocuidar disso - e logo noprimeirodia do mandato -, corre o riscode andar para trás e reconciliar-se com o atraso.

A história da taxa de juros éemblemática neste momento

em que oBrasil dá um importan-te passo para, pelo menos nestamatéria, deixar de marchar nomesmo lugar e sair do atraso. Éuma história longa e cheia de in-cidentes, mas chegou ao augeem 1988,quando seu tabelamen-to foi escrito na Constituição, alei maior que todos os brasilei-ros devem seguir e respeitar.

Naquele momento, em que oPaís transitava de um regime di-tatorial para a democracia, eraimprescindível ter uma novaConstituição que livrasse a po-pulação do chamado "entulhoautoritário" e refletisse o novomomento de liberdades políticae econômica. Na época, o presi-dente Lula foium dos eleitos pa-ra a Assembleia Constituinteen-carregada de elaborar e votar anova Constituição - o livrinhoque o presidente da Constituin-te, o deputado Ulysses Guima-rães, ergueu em cena histórica,com alegria e orgulho, no dia desua promulgação, em 5de outu-bro de 1988.

AConstituição cidadã dodou-tor Ulysses trouxe muitos avan-ços políticos, mas também equí-vocos econômicos, resultado dainexperiência e de um clima deingênuo voluntarismo da época.Tabelar os juros em 12%ao anofoium deles. E por quê?

Em primeiro lugar, 12% éuma taxa exageradamente ele-vadaedisso não sabiam osdepu-tadosconstituintes que ingenua-mente imaginavam punir osbanqueiros com otabelamento.

Depois - e o mais importante dahistória -, engessar a taxa tiradoBanco Central oprincipalins-trumento de política monetáriapara controlar a inflação e a de-manda. Se a demanda aquece ea inflação dispara, o Banco Cen-tral eleva os juros para equili-brar a economia. E reduz a taxaquando a trajetória éinversa. Ti-rar essa arma do BC é como su-primir oxigênio do homem.

Otabelamento nunca foi res-peitadoporque aprópria Consti-tuição o adiou, remetendo suaregulamentação para umaleior-dinária que nunca foivotada no

Transposta abarreira dos doisdígitos, é precisoseguir em frente

Congresso. As propostas de re-gulamentação cogitadas nãopassavam da obviedade de fixaros juros em 12%,acrescidos dataxa de inflação. Caso a ideiaprosperasse, hoje a taxa Selicnão estaria em 9,5%,como deci-diu o BC na quarta-feira, masem 16,5%.Os parlamentares en-tenderam, enfim,que tabelarju-rosera uma anomalia,uma aber-ração econômica.

Mas não desistiram os queainda hoje defendem baixar ju-ros na marra, ignorando infla-ção, demanda, leis do mercadoe atribuindo "tudo isso que está

ar' a um hipotético "luxo libe-ral". São os mesmos que sem-preconsideraram baixa e social-mente injusta a taxa que remu-nera a caderneta de poupança.Agora, atônitos e sem entender,constatam que a taxa de 6% dejuros fixospara a poupança é al-ta e devem baixá-Ia para permi-tir que oBCcontinue reduzindoa taxa Selic. São os mesmos quedefendem a intervenção do go-verno na política de juros e con-denam a autonomia de decisãodo Banco Central.

O presidente Lula tem mui-tos amigos e companheiros quepensam assim, mas, felizmente,não embarcou nessa canoa fura-da. Na quarta-feira ele afirmouà agência de notícias Reuters:"Não dou palpite e não queroque onúmero (da Selic) sejapolí-tico nunca."

Investimento- A queda do pro-duto interno bruto (PIB) no se-gundo trimestre seguido desmo-ralizou de vez a marolinha e asprojeções sonhadoras do minis-tro GuidoMantega. É ruim ver oPaís entrar em recessão, mas apior notícia do PIB foi a quedalivre e recorde do investimento,justamente porque a falta delevai atrapalhar os sinais de reto-mada da atividade econômica.

Segundo oIBGE,a taxa dein-vestimento na economia re-cuou, em um ano, de 18,11%para16,6%no final de março de 2009.Mesmo levando em conta a cri-se, é uma queda muito expressi-va para tão pouco tempo. Não éà toa que estão parados seis al-tos fornos da indústria siderúr-gica, que a Vale anunciou redu-ção inédita em seus investimen-tos e que outros setores indus-triais tenham engavetado no-vos projetos de expansão da pro-dução. Ninguém quer pagar pa-ra ver e, enquanto a capacidadeociosa se mantiver em alta, osprojetos continuarão na gaveta.

O investimento em infraes-trutura, que poderia aliviar ore-cesso na indústria, não decola,seja porque as obras do PACcontinuam lentas, seja porque oinvestimento privado ainda nãoencontrou no governo Lula re-gras estáveis e ambiente políti-co propício a afastar riscos demudanças no meio do caminho.

Quem sabe a queda dosjurosajude a destravar e a encontrara saída. 8

*Suely Caldas, jornalista, é pro-fessora de Comunicação da PUC-Rio ([email protected])