A NARRATIVA ORAL LITERÁRIA NA EDUCAÇÃO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO DOUTORADO EM EDUCAO

A NARRATIVA ORAL LITERRIA NA EDUCAO INFANTIL: QUEM CONTA UM CONTO AUMENTA UM PONTO

ANA NERY BARBOSA DE ARAJO

ANA NERY BARBOSA DE ARAJO

A NARRATIVA ORAL LITERRIA NA EDUCAO INFANTIL: QUEM CONTA UM CONTO AUMENTA UM PONTO

Tese apresentada ao programa de Psgraduao em Educao da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito parcial para obteno do grau de Doutor em Educao.

Orientadora: Prof. Dr. Maria Isabel Patrcio de Carvalho Pedrosa

Recife 2009

Arajo, Ana Nery Barbosa de A narrativa oral literria na educao infantil: quem conta um conto aumenta um ponto/ Ana Nery Barbosa de Arajo. Recife : O Autor, 2009. 201 f. : il. Tese (Doutorado) Universidade Federal de Pernambuco. CE. Educao, 2009. Inclui apndices e anexos 1. Educao de crianas. 2. Narrativa oral literria. 3. Interao social. I. Ttulo. 37 372.21 CDU (2.ed.) CDD (22.ed.) UFPE CE2010-06

DEDICATRIA

A Maria Eugnia, que me leva diariamente de volta aos caminhos mgicos do faz de conta, pedindo sempre: me, conta uma histria de boca, em referncia s histrias contadas oralmente. Seus olhos vidos de fantasia, sua expresso ora de alegria, ora de suspense, de pena, medo ou xtase, sempre acompanham a trama narrada, o que invariavelmente a leva a dizer: me que tal a gente mudar a histria? Com ela aprendo que na vida, como nos contos, podemos sempre aumentar um ponto.

AGRADECIMENTOSAgradeo primeiramente s crianas que fizeram parte dessa pesquisa; estar com elas foi um privilgio, uma alegria. Observar o encantamento diante das histrias, o prazer que sentiram nos momentos em que recontavam e incorporavam os personagens foi muito gratificante, pois o sentido do contar histrias se realiza no outro, na criana que ouve e se encanta. A minha orientadora, Isabel Pedrosa, querida Bel, que mantm dentro de si um olhar de criana, um espao para o ldico, que alimentam sua sensibilidade para orientar. Com ela aprendi tanta coisa... Observar, analisar, argumentar, mas principalmente interagir. Sua capacidade de estar com o outro mpar, sempre considerando o que este tem para lhe dizer. A ela, minha reverncia e admirao. A toda equipe do CMEI, que abriu as portas da instituio para a realizao desta pesquisa. querida professora Eliana Borges, que contribuiu em vrias etapas de minha formao no doutorado: na sala de aula, na banca de qualificao, nos encontros de formao do CEEL, tendo sempre uma atitude disponvel para apontar caminhos, com uma generosidade que lhe peculiar. Agradeo professora Ester Calland as contribuies para o aprofundamento desta pesquisa, colocadas de forma firme e ao mesmo tempo delicada, expressando nessa atitude sua forma de pensar e principalmente ser. Sinto que ela tambm contaminada pelas histrias de encantamento. Agradeo aos professores Ana Maria Almeida Carvalho e Pedro Oliveira Filho, pelo empenho dedicado leitura e avaliao desta tese. Aos professores do Doutorado do Programa de Ps-graduao em Educao da UFPE, por me proporcionarem momentos de aprendizagem que refletiram num enriquecimento pessoal e profissional. Em especial, aos professores Artur Morais, Ferdinand Rhr, Eliana Borges, Jos Batista e Mrcia Melo. professora Jaileila Menezes, cuja prtica docente inspiradora para mim, agradeo os ensinamentos na disciplina de Interao Social e Desenvolvimento Humano, e a delicadeza de suas palavras nos momentos de exposio da temtica desta pesquisa nas suas aulas. equipe do Labint (Laboratrio de Interao Social Humana), Juliana, Pedro, Tacyana, Mayara, Melina, Heitor, Maria Eduarda, Roseane, Vanessa e Sayonara, pelos momentos partilhados na creche, durante nossa coleta, no grupo de estudos e conversas. queles que participaram ativamente da coleta de dados desta pesquisa, Juliana (Juju), Pedro Lira e Pedro Figueiredo, um agradecimento ainda mais especial: vocs so parte dos resultados desta tese.

A Tacyana Ramos e Lucinha Carabas, mais que colegas de doutorado, parceiras nos estudos, nas orientaes, agradeo o apoio e a confiana na concretizao deste trabalho. Agradeo minha famlia, presena constante em todos os meus passos. Minha me, uma fortaleza que me ensinou desde cedo a sempre seguir em frente. Minhas irms, sempre disponveis; Christiany, atenta observadora e incentivadora nos momentos difceis; Christina, meu apoio direto na tese, corrigindo, formatando, dando sugestes, disponibilidade a qualquer hora. Minhas sobrinhas, Natlia e Katharina, expresso da vida que pulsa e prossegue. Em memria, agradeo ao meu pai, por sua determinao e empenho em viabilizar uma formao profissional que me possibilitasse seguir a vida com minhas prprias pernas. Em memria, agradeo ao meu av Ageu, por me introduzir no mundo da fantasia, nas histrias de assombrao contadas noite, quando tnhamos apenas a luz da lua e das estrelas, e sua voz mansa, suave, cheia de mistrios a revelar. Aos meus amigos, Hilda Carvalho, Mrcia Pessoa e Marcelo Sena, agradeo a disponibilidade para me ouvir e incentivar a enfrentar os desafios que surgiram ao longo dessa trajetria. Especialmente Mrcia, por me contagiar com seu otimismo e me iluminar com sua serenidade. A minha querida Luciana Pimentel (Lulu), parceira de vida, de trabalho, uma irm de corao. Sou sua f e voc sempre um modelo de perseverana pra mim. Obrigada pela lealdade em todos esses anos de amizade e pelo apoio incondicional, sempre disponvel para arregaar as mangas e me ajudar. Minhas amigas Silvana Griz e Karina Advncula, cada uma a sua maneira contriburam nesta realizao. Silvana quando me dizia repetidamente: voc tem que acabar o doutorado logo. Por mais difcil que fosse ouvir essa afirmao, essa urgncia, de alguma forma ela me impulsionou para seguir em frente e acabar. Karina, quando dizia palavras que massageavam meu Ego me dando mais confiana. Meu agradecimento tambm a Lcia Elena, amiga sempre presente na minha vida, parceira nos cursos de formao em contadores de histrias ao longo desses ltimos 10 anos. Sua atitude sempre questionadora, reflexiva, atenta delicadeza do ato de narrar, inspiraram-me a pesquisar essa temtica e descobrir novos caminhos de trabalho. Muitos outros amigos, mesmo que de forma indireta, contriburam para a realizao desta tese. Simples gestos, algumas palavras, sorriso ou abrao que representavam a alegria do compartilhar, do querer bem. Meu agradecimento a Patrcia Balata, Regina Papalo, Cristiana Monteiro, Vilma Pastor, Cludia Marina, Jamile Vasconcelos, Daniele Cunha, Cludia Rejane, Abraham Sicsu, Juliane Salgueiro. Em especial agradeo a Fernando Dubeux, presente nos fios fundamentais da minha histria, que tem a firmeza e a delicadeza dos sbios, e que sempre me ajudou a enfrentar as turbulncias da vida. Ele nunca me deixa esquecer que navegar preciso!

Contar histrias sempre foi a arte de cont-las de novo. E ela se perde quando as histrias no so mais conservadas. Ela se perde porque ningum mais fia ou tece enquanto ouve uma histria. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que ouvido (...) ele escuta as histrias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrlas. Assim, se teceu a rede em que est guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida h milnios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual (Benjamin, 1993).

RESUMOA presena da literatura sob a forma de narrativas orais, mesmo considerando o fascnio que estas geram nas crianas, ainda no tem presena marcante na Educao Infantil, no sendo explorada em toda a sua potencialidade. No estudo aqui apresentado procurou-se articular experincias com narrativas orais, proporcionando deleite e encantamento a um grupo de crianas. Alm disso, buscou-se compreender seu papel enquanto mediadoras do conhecimento da criana. A tese defendida a de que a narrativa literria contada oralmente num contexto instigante e envolvente para a criana, explorando a palavra contada com voz, silncios e pausas, um instrumento de atuao docente, favorecedor do desenvolvimento da narrativa nas crianas a partir da/ e potencializado pela interao professor/narrador-criana e das crianas entre si. Diante dessas consideraes, o objetivo da presente investigao foi identificar e descrever processos de construo e desenvolvimento do discurso narrativo literrio em crianas a partir de experincia sociointerativa com contao de histrias. O estudo foi realizado em um Centro de Educao Infantil (CMEI), da cidade do Recife, com crianas de 5 e 6 anos. As situaes interacionais com histrias contadas oralmente foram registradas em vdeo. Foram analisados dois momentos: o contar, realizado pelo narrador, e o recontar, realizado pelas crianas. A partir da observao desses registros, foram selecionados trechos para anlise baseados na identificao dos momentos em que havia indcios de que as crianas elaboravam os fatos narrados e os conflitos presentes na histria, bem como evidncias do processo de desenvolvimento de narrao das crianas, expressas a partir de suas capacidades de narrar, de ouvir, de refletir e de recontar, na perspectiva das transformaes geradas a partir da interao criana-criana e crianas-narradora. Tambm foi considerada a postura da narradora enquanto mediadora da contao. A anlise desses recortes conduziu aos seguintes aspectos, considerando os dois momentos. No CONTAR: (a) o posicionamento diante da histria - significados sendo construdos na interao; (b) a interface entre o real e a fantasia - as experincias das crianas circunscrevendo os fatos; (c) inferncias construdas na interao; e no RECONTAR: (a) recontar baseado nos fatos mais importantes; (b) o corpo e a incorporao dos personagens apoiando o recontar; (c) o papel do narrador no recontar; (d) o recontar construdo a partir das negociaes e ajustamentos criana-criana e crianas-narrador. Os achados sinalizam que quando a criana tem uma participao ativa no contar e recontar, percebe-se que h uma maior adeso histria, expressa nas reflexes e posicionamentos diante do que narrado. Discutiu-se a possvel repercusso desses achados na prtica pedaggica, seja no reconhecimento da construo das crianas, que se apoiam mutuamente para resignificar suas compreenses sobre fatos narrados, seja no reconhecimento do papel do educador enquanto mediador nessa construo, a partir de uma intencionalidade pedaggica. Dentro desse contexto, a narrativa literria torna-se, na educao infantil, uma ferramenta com funo transformadora pelo que possibilita criana experimentar e expressar sentimentos, caminhar em mundos distintos no tempo e no espao, imaginar, a partir de uma linguagem peculiar, que as desloca para um mundo incomum. Alm de potencializar o imaginrio e a expresso ldica, as narrativas orais literrias so a porta de entrada para o mundo letrado.

Palavras-chave: narrativa oral literria; narrativa infantil; contar estrias; educao infantil; interao social.

ABSTRACTThe presence of literature through oral narratives does not yet have a remarkable significance for childhood education. In spite of taking into consideration the fascination that it provokes in children, it has not been explored to its full potential. This study tried to organize experiences with storytelling, providing delight and enchantment to a group of children. Concurrently it also searched for the understanding of the role of storytelling as a tool to facilitate childrens knowledge. The thesis that is being defended is that literary narrative orally presented, within an instigating and involving context for the children, exploring storytelling with voices, silences and pauses, is an instrument for teaching performance which favours childrens narrative development, promoting and raising interaction between the narrator-teacher and children, and amongst the children themselves. The aim of this investigation is to identify and describe the construction and development of literary narrative speech processes in children, based on social storytelling interactive experiences. This study was carried out in a Childhood Education Centre (CMEI), in the city of Recife, with children aged from five to six years. The interactional situation, when the stories were told, was video recorded. Two moments of the processes were analyzed: the telling carried out by the narrator, and the re-telling carried out by the children. Parts of these recorded observations were selected for analysis. Based on these, moments were identified in which there were indications that the children were elaborating the narrated facts and conflicts presented in the story. Also when there was evidence of the development process of narration of the children expressed by their own capacity to narrate, listen, reflect and re-tell; having in mind the transformation perspectives generated from the children to children and narrator to children interaction. Additionally the narrators behaviour as a facilitator for the storytelling was taken under consideration. In consideration of the two moments, the analysis of these parts led us to the following aspects: While NARRATING there was: (a) positioning on facing the story meanings being built by interaction. (b) Interface between reality and fantasy the childrens experiences circumscribing the facts. (c) Interferences built by interaction. While RE-NARRATING there was (a) re-telling based on the most important facts. (b) Support of body language and assumption of the characters role in the re-telling. (c) Assumption of narrators role in the re-telling. (d) Re-telling built based on negotiations and adjustments children to children and children to narrator. The results show that when a child has active participation in telling and re-telling there is a greater adhesion of the story, which is expressed in the reflections and positioning taken towards what was narrated, is realised. Possible repercussions of these results in pedagogical practices were discussed. The recognition of the childrens mutually supported construction in order to identify the meaning of their understandings, concerning the narrated facts; and also the recognition of the educators role as a mediator in this construction process, based on pedagogical purpose. Within this context, literary narratives become a transforming function tool for childhood education as it allows children to experience and express feelings, walk through distinct time and space worlds, use their imagination starting from a peculiar language which moves them into an unordinary world. Furthermore it increases their imaginary and playful expression potentials. Oral literary narratives are the entrance gate to the written world. Key words: oral literary narrative; childhood education; social interaction; childhood narrative; storytelling

RSUMLa prsence de la littrature sous la forme des rcits oraux, mme si on considre la fascination quils exercent sur les enfants, encore na pas une prsence marquante dans lducation des enfants, ntant pas exploite dans toute ses potentialits. Dans ltude ici prsent, on a essay darticuler des expriences avec des rcits oraux qui ont procur plaisir et enchantement une groupe denfants. En plus, on a cherch comprendre le rle des rcits comme mdiateurs des connaissances de lenfant. La thse dfendue cest que le rcit oral littraire racont oralement dans un contexte instiguant et mouvante pour lenfant, en exploitant la parole raconte avec la voix, des silences et des pauses, cest un instrument daction enseignante; favorisant le dveloppement du rcit chez les enfants partir de et valoris par l'interaction entre professeur/narrateur et les enfants et des enfants entre eux. En face de ces considrations, lobjectif de la prsente investigation a t didentifier et dcrire des processus de construction et dveloppement du discours du rcit littraire chez les enfants partir des expriences socio-interactives avec de la raconte dhistoires. Ltude a t ralis dans un centre dducation des enfants (CMEI) de la ville de Recife, avec des enfants de 5 et 6 ans. Les situations de interaction avec des histoires racontes oralement ont t enregistres en vido. Deux moments ont t analyss: la raconte par le narrateur et la nouvelle raconte par les enfants. partir de lobservation de ces enregistrements, des extraits ont t slectionns pour lanalyse, dans lesquels on identifiait des indices dlaboration des faits raconts et des conflits prsents dans lhistoire; ainsi que des vidences du processus de dveloppement et spcification des rcits des enfants, exprims partir de ses capacits de raconter, dentendre, de rflchir, et de raconter de nouveau, dans la perspective des transformations suscites partir de linteraction des enfants entre eux et entre les enfants et la narratrice. On a aussi considr lattitude de la narratrice comme mdiatrice de la raconte. Lanalyse de ces cts conduit aux aspects suivants, en considrant les deux moments. Dans la RACONTE: (a) la position en face de lhistoire - les signifis construits dans linteraction; (b) linterface entre le rel et la fantaisie - les expriences des enfants qui circonscrivent les faits; (c) infrences construites dans linteraction; et dans la NOUVELLE RACONTE: (a) la nouvelle raconte base sur les faits les plus importants; (b) le corps et la personnification des personnages pour aider la raconte; (c) le rle du narrateur dans la nouvelle raconte; (d) la nouvelle raconte construite partir de ngociations et ajustements entre les enfants et entre les enfants et le narrateur. Les rsultats indiquent que quand lenfant a une participation active dans la raconte et dans la nouvelle raconte, on aperoit une adhsion plus forte lhistoire, prsente dans des rflexions et les positions en face du racont. On a discut sur la possible rpercussion de ces rsultats dans la pratique pdagogique, soit dans la reconnaissance de la construction des enfants, qui sappuient mutuellement pour ressignifier ses comprhensions sur les faits raconts et pour raconter de nouveau les histoires, soit dans la reconnaissance du rle de lducateur comme mdiateur dans cette construction, partir dune intention pdagogique. Dans ce contexte, le rcit littraire devient dans lducation des enfants un outil fonction transformatrice parce que permet lenfant dexprimenter et dexprimer des sentiments, de marcher dans des mondes diffrents dans le temps et lespace, dimaginer, partir dun langage particulier, qui les dplace et les emmne un monde inconnu. Les rcits oraux littraires, ainsi que permettent de favoriser limaginaire et lexpression ludique, sont la porte dentre au monde des lettres. Mots-cl: rcit oral littraire; ducation des enfants; interaction sociale; apprentissage; enfant.

LISTA DE ILUSTRAESPg.

Foto 1. Histria: A galinha ruiva contar Foto 2. Histria: A galinha ruiva contar Foto 3. Histria: A galinha ruiva recontar Foto 4. Histria: A galinha ruiva recontar Foto 5. Histria: A galinha ruiva recontar Foto 6. Histria: A galinha ruiva recontar Foto 7. Histria: A galinha ruiva contar Foto 8. Histria: A galinha ruiva contar Foto 9. Histria: A galinha ruiva contar Foto 10. Histria: A galinha ruiva contar Foto 11. Histria: A galinha ruiva contar Foto 12. Histria: A galinha ruiva contar Foto 13. Histria: Doroteia, a centopeia recontar Foto 14. Histria: Doroteia, a centopeia recontar Foto 15. Histria: Doroteia, a centopeia recontar Foto 16. Histria: Doroteia, a centopeia recontar Foto 17. Histria: Doroteia, a centopeia recontar Foto 18. Histria: Doroteia, a centopeia recontar Foto 19. Histria: Doroteia, a centopeia recontar Foto 20. Histria: Doroteia, a centopia recontar Foto 21. Histria: Os msicos de Breman recontar Foto 22. Histria: Os msicos de Breman recontar Foto 23. Histria: Os msicos de Breman recontar Foto 24. Histria: Os msicos de Breman recontar Foto 25. Histria: Os msicos de Breman recontar Foto 26. Histria: Os msicos de Breman recontar Foto 27. Histria: Jorinda e Joringel recontar Foto 28. Histria: Jorinda e Joringel recontar Foto 29. Histria: Jorinda e Joringel recontar Foto 30. Histria: Jorinda e Joringel recontar

78 78 79 79 79 79 81 81 83 83 83 83 99 99 99 99 99 99 100 100 119 119 120 120 122 122 124 124 124 124

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SUMRIOPg. 1 INTRODUO 2 PRIMEIRO CAPTULO - ERA UMA VEZ... O UNIVERSO DA INFNCIA 2. 1 De que universo estamos falando? 2. 2 Contando uma histria: o lugar da interao no desenvolvimento da criana 2. 3 A creche ou pr-escola como contexto de desenvolvimento 3 SEGUNDO CAPTULO - E POR FALAR EM FAZ DE CONTA... 3.1 Um pouco de histria 3.2 Contando histrias e encantando pelas palavras 3.3 O contador de histrias: quem ele? 3.4 As narrativas como uma construo cultural 3.5 Narrativas: entre a criana e o mundo 3.6 A narrativa oral na interface da educao 4 TERCEIRO CAPTULO - MTODO 4.1 O ambiente do estudo 4.2 O grupo estudado 4.3 Procedimentos da investigao 4.3.1 Material e procedimento de coleta 4.3.2 Procedimentos da anlise 14 22 22 25 41 47 47 50 52 55 57 66 72 72 74 74 74 81

5 QUARTO CAPTULO - RESULTADOS E DISCUSSO - ERA UMA VEZ: uma 83 centopeia, chamada doroteia; uma galinha ruiva muito esperta; um sapo apaixonado e uma princesa turrona; sete cabritinhos nas garras de um lobo e muito mais... 5.1 O CONTAR 5.1.1 O incio: Encantamento e deleite 83 83

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5.1.2 As histrias comeam... a) O posicionamento diante da histria: significados sendo construdos na interao b) A interface entre o real e a fantasia, as experincias das crianas circunscrevendo os fatos c) Inferncias construdas na interao 5.2 O RECONTAR DAS CRIANAS a) O recontar baseado nos fatos mais importantes b) O corpo e a incorporao dos personagens apoiam o recontar c) O papel do narrador no recontar

84 84 88 93 97 101 104 110

d) O recontar construdo a partir das negociaes e ajustamentos criana criana 115 e crianas narrador5.3 ALGUMAS REFLEXES SOBRE A ANLISE 6 CONSIDERAES FINAIS REFERNCIAS APNDICE 1 - Narrativa oral 1- Doroteia, a centopeia APNDICE 2 - Narrativa oral 2 - A galinha ruiva APNDICE 3 - Narrativa oral 3 - O Rei Sapo APNDICE 4 - Narrativa oral 4 - Os sete cabritinhos e o lobo APNDICE 5 - Narrativa oral 5 - Os msicos da cidade de Breman APNDICE 6 - Narrativa oral 6 - Jorinda e Joringel APNDICE 7 - Recortes usados na anlise do contar APNDICE 8 - Recortes usados na anlise do recontar ANEXO 1 Autorizao do Comit de tica para o desenvolvimento do estudo 127 130 133 142 145 148 152 155 158 161 174 200

ANEXO 2 Termo de consentimento livre e esclarecido para participao em projeto de 201 pesquisa

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INTRODUO

As narrativas orais so criaes populares e de cunho annimo que surgiram num momento em que a nfase era a oralidade e se espalharam devido memria e habilidade dos narradores que, de gerao em gerao, mantinham a tradio viva. So histrias que foram vinculadas ao imaginrio popular ou memria coletiva, destinadas a ouvintes, adultos e crianas, que, como no viviam numa cultura escrita, reuniam-se, noite, ao redor de fogueiras ou lareiras, para escutar as histrias. A experincia passada de pessoa a pessoa era a fonte a que recorriam todos os narradores. O interesse pela temtica Narrativa Oral na Educao Infantil surgiu a partir da observao de como as histrias, lidas ou contadas exercem um fascnio sobre as crianas. Surgiu tambm de alguns questionamentos iniciais: de onde vem esse encantamento? Por que mobilizam tanto as crianas, sendo muitas vezes utilizadas por professores como estratgia para acalmar e controlar as crianas em sala de aula? O que est relacionado a esse prazer de ouvir histrias? As respostas para essas questes so diversas. As histrias despertam o imaginrio e as emoes da criana, bem como participam da estruturao de sua personalidade, quando ela reelabora sua histria pessoal. atravs das histrias que ela pode descobrir outros lugares, saber de outras maneiras de ser e de agir (ABRAMOVICH, 1991). Nos momentos de contao, um elo estabelecido entre criana e histria: h envolvimento emocional, algumas vezes, por meio da identificao com os personagens e, muitas vezes, da projeo da criana dentro da narrativa. assim, um envolvimento de natureza intelectual, emocional e imaginativo construdo pelas possibilidades trazidas pela histria: situaes de conflito, prazer, raiva, medo, frustrao, alegria, etc. O viver essas possibilidades, temporariamente atravs do enredo e dos personagens, possibilita a ampliao das experincias da criana. O conto de tradio oral, seja ele conto de fada, mito, lenda ou fbula, encanta por alimentar o imaginrio, fazendo ponte com o mundo interior. Ao narrar um conto se concede ao ouvinte a possibilidade de criar a cena, com elementos, cores, e msicas (BUSATTO, 2003). A partir dessas reflexes, surgiram as primeiras questes norteadoras para esse estudo. A presena da literatura sob a forma de narrativas orais, mesmo considerando o

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fascnio que geram, ainda no tem lugar marcante na Educao Infantil, melhor dizendo, no explorada em toda a sua potencialidade. possvel reconhecer, a partir de diversas publicaes na rea de educao Martins e Versiani (2005); Soares (1999); Zilberman (1999); Paulino (2005); Dionsio (2005) , que enquanto o valor insubstituvel do livro literrio para crianas bem reconhecido pela literatura especfica, a partir de uma vinculao chamada formao do leitor, nem sempre isso ocorre com a narrativa oral, s vezes entendida apenas como passatempo. Como dito em Martins e Versiani (2005), com relao ao valor do livro literrio, o pertencimento ao campo do letramento, da aprendizagem, do prprio desenvolvimento e usos da leitura e escrita que aproximam a palavra leitura do espao escolar. Num trabalho de resgate de lembranas de professores de diferentes geraes sobre as suas experincias de leitura na escola, Brando e Leal (2007) encontraram relatos que referem os momentos de ouvir histrias como raros e sempre vinculados ao final da aula, na sexta-feira, possivelmente uma estratgia de acalmar a turma. Ficou evidenciado que a atividade era espordica na sala de aula e desprovida de intencionalidade pedaggica. Essa atitude em relao literatura em sala de aula, segundo as autoras, est vinculada compreenso da Educao Infantil. At fins da dcada de 80 do sculo XX, havia o predomnio da ideia de que a alfabetizao era garantida pela habilidade das crianas na coordenao motora, o que garantia uma letra bonita e legvel, e pela memorizao das associaes grafemas e fonemas, ou seja, nesse momento predominavam concepes e prticas que afastavam a criana do contato com os textos, que contivessem palavras e contedos no previsveis. No estudo aqui apresentado, procurou-se entender o uso das narrativas na Educao Infantil como mediadoras de interaes sociais e de conhecimentos. As narrativas orais literrias potencializam aspectos e saltos qualitativos no desenvolvimento da criana, ampliando e estendendo as diversas possibilidades de trabalho com a palavra e a capacidade criadora (imaginao e fantasia) da criana. A tese defendida nesta pesquisa que a narrativa literria contada oralmente num contexto instigante e envolvente para a criana, explorando a palavra contada com voz, silncios e pausas, um instrumento de atuao docente na Educao Infantil, favorecedor do desenvolvimento da narrativa nas crianas a partir da e potencializado pela interao professor-narrador com as crianas e das crianas entre si. preciso, entretanto, garantir a riqueza da vivncia narrativa para que ela contribua com o desenvolvimento do 15

pensamento lgico das crianas e tambm com sua imaginao, que segundo Vygotsky (1984) andam juntos, estando a imaginao vinculada ao pensamento realista. Esse distanciamento da realidade imediata atravs de uma histria, por exemplo , necessrio para uma penetrao mais profunda na prpria realidade. Reafirmando o lugar e a importncia do uso das narrativas, MacIntyre (1981) refere que precisamos da forma narrativa para entender as aes alheias, visto que as nossas prprias vidas podem ser entendidas enquanto narrativas que se desenvolvem gradualmente. Ou seja, o ser humano, na forma como age e se posiciona essencialmente um ser narrativo. A criana, ao nascer, inserida neste universo, vai tecendo os fios da histria da cultura aos fios de sua prpria experincia, o que contribui para o seu desenvolvimento. Sabe-se que o ser humano no passivo s estimulaes do meio. Ao contrrio, estas vo gerando informaes e vo sendo transformadas por ele que, ao mesmo tempo, redireciona seu olhar para as coisas do mundo. As histrias ouvidas na infncia vo se constituindo em pequenos acervos e vo influenciando a posio que a criana assume diante da vida, principalmente, sua perspectiva escolar, diante de novas aprendizagens pelas quais vai passando. Em meio a essas reflexes, surgem novas questes: como as crianas apreendem as narrativas orais nos momentos de contao de histria? Que aspectos as mobilizam e como elaboram os fatos narrados? Que expectativas so geradas no fluxo de contao das narrativas? Algo que compartilhado no grupo repercute na compreenso individual? Como reagem as crianas diante de conflitos que se evidenciam na trama das narrativas? De que maneiras as crianas aproveitam e incorporam as interpretaes e expectativas provenientes dos parceiros: (narrador/crianas e criana/criana)? Como as crianas recontam as histrias ouvidas? Essas questes orientaram a presente investigao e servem de incentivo para se ultrapassar o contexto atual de uso das narrativas orais na creche ou pr-escola. Ouvir narrativas e tambm narrar constitui um momento de embevecimento, de satisfao e envolve a criana no ato de pensar e imaginar. Coloca-a no lugar da criatividade, da interlocuo, da construo de conhecimentos, da interao social. A relevncia do presente estudo pode ser evidenciada, em primeiro lugar, pela rica possibilidade de interaes sociais instigadas na contao de narrativas, onde h confrontos de significaes entre os interagentes, imitaes, dilogos, aprendizagens cooperativas, dentre outras. 16

Em segundo lugar, a narrativa oral propicia a entrada no universo da histria e o confronto com o seu prprio universo; permite trazer elementos da histria que fazem sentido para ela. Uma rede de significados vai sendo construda, bem como a formao de atitudes mais elaboradas de compreenso da realidade. Nessa perspectiva a criana concebida como autora de seu desenvolvimento e a professora, como facilitadora desse processo. a curiosidade da criana que a torna receptiva a aprendizagens, fortalecendo-a nas suas possibilidades criativas. Da as instituies educacionais deverem se voltar para essa atividade. Em terceiro lugar, destaca-se que a narrativa oral desperta a curiosidade sobre os assuntos das histrias, contribui para a organizao das ideias e do pensamento, pois estes usam a fala como meio de expresso, desenvolve significados simblicos, possibilita maior domnio da linguagem oral e escrita, bem como a busca de solues para dificuldades e problemas interiores; amplia e desenvolve a ateno da criana (ABRAMOVICH, 1991). O papel da narrativa tambm realado por Teberosky e Cardoso (1989). Elas enfatizam que, por meio da narrao de contos, as crianas compreendem o fio da narrativa, a ideia de comeo, meio e fim; possvel um paralelo com a narrao de suas prprias histrias, o que facilita a escrita. A possibilidade de a criana entrar em contato com os fatos organizados da histria tambm favorece a possibilidade de ampliao de sua capacidade antecipatria sobre as estratgias da linguagem literria e principalmente da construo de sentidos (AMARILHA, 1997). Dominar o processo de antecipao corresponde a desenvolver a expectativa adequada sobre as convenes da linguagem e esta uma habilidade necessria ao leitor, da se dizer que a narrativa tem um papel inicial nas convenes da fico. Ainda como componente educativo, a autora comenta que a narrativa oral implica um distanciamento do real e mesmo, temporariamente, esse distanciamento provoca a abstrao. O distanciamento e a abstrao so aspectos importantes no futuro leitor, pois o fazem transitar confortavelmente entre o mundo real e o imaginrio. importante lembrar que a literatura chega criana, principalmente pela oralidade. Esse fato se d, em parte, devido facilidade de congregar todos em uma mesma atividade, uma vez que as salas de aulas so quase sempre numerosas. Em decorrncia, a oralidade se constitui tambm em um dos atrativos da literatura na escola, pois cria um clima de comunidade em todos que esto envolvidos na mesma experincia imaginria. 17

Ferreiro e Teberosky (1989) relatam que mais fcil para a criana de 4 a 6 anos reconhecer ou antecipar o contedo do jornal do que de livros infantis o que justifica a necessidade de a escola dar maior ateno literatura. Brando e Leal (2007) destacam que numa perspectiva de trabalho de leitura e produo de texto, com a participao ativa da criana, apoiada em sua construo conceitual, necessrio um investimento pedaggico na oralidade, com prticas que envolvam relatos, conversas e contao de histrias. Tambm necessrio o favorecimento de situaes em que as crianas possam desenvolver atividades de produo e compreenso de textos orais. As autoras destacam que o desenvolvimento da habilidade de desenvolver um tema, uma ideia ou opinio pode ser fortalecido na escola a partir de situaes significativas para a criana. Como destacam Val e Barros:O domnio da modalidade oral da lngua, que significa a capacidade de interpretar e produzir adequadamente textos falados, no ambiente social cotidiano, a base sobre a qual se assenta o processo de construo e desenvolvimento dos conhecimentos necessrios interao verbal mediada pela escrita (2003, p. 136).

O que se pretende destacar no presente estudo que a perspectiva de narrar oralmente no se ope ao estmulo leitura, atividade presente na creche ou pr-escola com a leitura de livros infantis e de outros gneros literrios. Pretende-se, sim, enfatizar que a narrao oral uma dimenso presente na vida afetiva e cognitiva da criana, revelada em seu desfrute e embevecimento e que, de forma consequente, enriquece sua linguagem e imaginao, e acaba por favorecer o gosto pelos livros. A mediao do professor e a atividade de ensino, qualquer que seja a rea, apresentam complexas dimenses. Se a escola possibilita a explanao dos conceitos, das ideias, das relaes, deveria possibilitar, ao mesmo tempo, a ampliao do mundo da imaginao e da fantasia, e emocionar a criana por meio dos contos, das histrias, das lendas; assim tambm h lugar para as narrativas literrias. Baseado no que foi exposto, este estudo tem como objetivo identificar e descrever processos de construo e desenvolvimento do discurso narrativo literrio em crianas a partir de experincias sociointerativas com contao de histrias, ou seja, investigar como as crianas, a partir da experincia com a narrativa oral literria, ouvindo histrias em grupo, podem organizar seu discurso, reproduzindo as histrias contadas.

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De forma especfica, este estudo foi proposto para descrever e analisar o posicionamento das crianas diante das narrativas literrias, apontando como elaboram os fatos narrados e conflitos presentes nas histrias, na interface com sua prpria histria e com a do grupo, construindo significados partilhados, por meio da mediao do narrador. Foi proposto, ainda, descrever e analisar o recontar das histrias pelas crianas, considerando as interaes com o narrador e o prprio grupo, assim como compreender o papel do narrador, enquanto mediador, numa situao planejada que leva em considerao os conhecimentos prvios das crianas e instiga a troca entre parceiros de mesma idade. Cabe destacar que a anlise das situaes de contao de histrias orientada em dois eixos igualmente significativos e importantes no estudo: (a) o papel do adulto, narrador, como mediador, com intencionalidade pedaggica, que vai potencializando a apropriao da histria pelas crianas a partir da interao com elas; (b) e a anlise da interao de crianas, sujeitos ativos no processo de ouvir e recontar as histrias. Nessa perspectiva, olhando a construo que se estabelece a partir da interao criana-criana, possvel uma reflexo sobre a construo do conhecimento, saindo de uma perspectiva adultocntrica e assumindo a perspectiva de quem valoriza a capacidade das crianas em produzir conhecimento. Em termos de estrutura, o texto est subdividido em quatro captulos, alm dessa introduo, das consideraes finais, das referncias e apndices. O primeiro e segundo captulos apresentam a perspectiva terica adotada para compreender o fenmeno pesquisado. Especificamente no primeiro captulo apresentado o estudo da criana na perspectiva de seu desenvolvimento e evoluo de seu pensamento a partir da concepo sociointeracionista. Essa concepo oferece a base para compreender os processos de construo do pensamento verbal e discurso narrativo da criana na interface com um meio social rico, diversificado e instigante. Na primeira parte deste captulo, intitulada De que universo estamos falando, o foco do texto o universo da criana, que, imersa num ambiente social e cultural, vai se apropriando dos conhecimentos veiculados ao seu redor. Nesse universo, as brincadeiras, o faz de conta, as histrias so elementos fundamentais, e o compartilhamento adultocriana e criana-criana condies para a construo de significados. A segunda parte do captulo, Contando uma histria: o lugar da interao no desenvolvimento da criana, traz as posies dos tericos do sociointeracionismo Vygotsky e Wallon, respaldando o valor e o papel da interao no desenvolvimento da criana. Tambm 19

aponta as contribuies de Tomasello para o estudo da criana a partir das referncias desse autor sobre o papel da instruo ativa por parte dos adultos, da imitao e das cenas de ateno conjunta na aprendizagem da criana. Na terceira parte do captulo, A creche como contexto de desenvolvimento, o espao da creche ou pr-escola apresentado dentro do cenrio da Educao Infantil, como um lugar possvel de construo de conhecimento a partir de interaes com intencionalidades educativas, podendo explorar a narrativa oral. O segundo captulo, E por falar em faz de conta, tem como foco as narrativas orais a partir de vrios olhares, desde sua origem, passando pela relao entre as narrativas e o contador de histrias, at o seu papel enquanto construo cultural, social e na interface da educao. Na primeira parte deste captulo, intitulada Um pouco de histria, o foco o surgimento dos contos de literatura oral. A seguir, na segunda parte, denominada Contando histrias e encantando pelas palavras, o texto discorre sobre a fora da palavra na contao de histrias, palavra que se vincula a um modo de dizer, a uma relao muito particular entre o contador e o conto. Na terceira parte do captulo, O contador de histrias: quem ele?, O texto descreve o contador como um arteso da palavra, como diz Benjamim (1993), e o ato de narrar ao constituda a partir de diferentes performances, dependendo do estilo do narrador. Na quarta e quinta partes desse captulo, denominadas As narrativas como uma construo social; e Narrativas: entre a criana e o mundo, o foco do texto a forma como a criana desenvolve a capacidade de narrar, aqui apontada pelos autores Bruner, Vygotsky e Perroni como parte de uma prtica discursiva. Finalizando esse captulo, tem-se a sexta parte, A narrativa oral na interface da educao, que aborda o seguinte argumento: a contao de histrias pode apresentar-se para a educao como um caminho para o desenvolvimento da linguagem oral e escrita, levando-se em conta que a constituio do leitor passa pela atividade inicial do escutar e do dizer. O terceiro captulo explicita os procedimentos metodolgicos adotados nesta pesquisa de natureza qualitativa, com destaque para o recurso da videogravao no registro dos dados. O quarto captulo apresenta a anlise e discusso dos dados, apresentados em dois grupos principais: anlise e discusso do contar e anlise e discusso do recontar. Essas anlises e discusses foram apoiadas em recortes das videogravaes dos momentos

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de contao das histrias que foram mais significativos, emergncia de aspectos relevantes, considerando os objetivos do estudo. Nas consideraes finais, so retomadas as ideias chave e os principais resultados desta pesquisa para traar algumas reflexes apoiadas nesse percurso, bem como para apontar sugestes a fim de contribuir para o uso da narrativa oral no contexto da Educao Infantil.

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2 PRIMEIRO CAPTULO - ERA UMA VEZ... O UNIVERSO DA INFNCIA

2.1. De que universo estamos falando? O poeta Manoel de Barros no auge de seus 91 anos, mas sem perder sua essncia de menino diz que a criana sente pra falar, em vez de falar para depois sentir, conforme fazem os adultos. A criana filha do desenho. Escreve com a liberdade da mo esquerda. Pensa com a mo esquerda. Porque a mo esquerda continua a inocncia, no precisa acertar sempre como a mo direita, pode errar e ser verdadeira. Essa afirmao nos faz refletir sobre o universo da criana, povoado de experincias, sensaes, diversidades e informaes. Imersas nesse universo, elas vivem despreocupadas com a lgica e a racionalidade da vida. Para o poeta, nos dilogos dos pequenos, imagens que nunca se cruzavam firmam sbitas amizades. As crianas misturam cenas observadas e aprendidas numa rede onde a hierarquia a emoo. Sonham com os olhos arregalados, despreocupados da funcionalidade e da verticalidade das ideias. Essa disponibilidade para as experincias do mundo explicitada na medida em que ela tem o olhar direcionado para o ldico, a fantasia, a explorao do novo. As experincias no mundo vo se construindo na vida da criana logo que elas nascem. Desde muito pequena, a criana capaz de se situar no seu ambiente social e cultural, explorando de forma ativa o meio ao qual est inserida a partir dos momentos ldicos que vivencia. Assim, pode ser concebida como pessoa que cria e transmite cultura desde os anos iniciais, e demonstra uma compreenso do entorno social, o que a leva a constantes ajustamentos em relao aos seus parceiros de interao. Ativa nesse processo de apropriao do meio, a criana tem no ldico um lugar de prazer e intensas descobertas. Os bebs comeam a conhecer o mundo a partir das relaes que constituem com os que esto a sua volta, e a brincadeira possibilita as interaes e experimentaes com o prprio corpo, objetos e pessoas. O brincar com o prprio corpo ou com materiais que esto ao seu alcance promove ao beb o pegar, bater, agarrar e sentir. A presena do outro, pela sua voz, seu gesto, seu toque, sua palavra, mobiliza-o a perceber, descobrir e conhecer o mundo que o rodeia com prazer (DORNELLES, 2001).

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O brincar pode ser visto como uma atividade de alta prioridade para ela, para brincar ela usa estratgias que concretizem a ao junto aos parceiros (PEDROSA, 2005); (CARVALHO e PEDROSA, 2002). As brincadeiras perpetuam e renovam a cultura infantil, potencializando formas de convivncia social, modificando-as e recebendo novos contedos. No jogo possibilitado pelo brincar, a criana saboreia a vitria da aquisio de um novo saber fazer, que incorporado a cada novo brincar (DORNELLES, 2001). Em estudos sobre os diversos contextos de desenvolvimento, Carvalho e Lordelo (2002) constataram que o brincar aparece em todos os contextos. As atividades motoras amplas e o faz de conta so as atividades ldicas prevalentes nos conjuntos estudados, o que demonstra a relevncia para a criana dessa vivncia. Muitos estudos vm sendo realizados no sentido de investigar a interao de crianas de mesma idade durante brincadeiras de faz de conta. Esses estudos direcionam o olhar para o que se d entre os parceiros com relao aquisio de conhecimentos relativos ao mundo social. A condio de paridade nos interesses favorece o sentimento de compartilhamento dos aspectos afetivos implcitos na interao na brincadeira de faz de conta (FARIA, 2007). As crianas nas situaes de compartilhamento de brincadeiras trazem para o contexto expresses do prprio corpo, como mmica, vocalizaes, bem como personagens e situaes vividas em outros momentos. Essas situaes so atualizadas no grupo, ganhando um novo sentido, sentido este permitido pelo compartilhamento de significados (COELHO E PEDROSA, 1995). Para essas autoras esse compartilhamento se evidencia na construo conjunta de uma brincadeira, onde as crianas vo recortando partes das aes umas das outras e incorporando-as sua prpria ao, seja parcialmente, seja integralmente, e at acrescentando ou substituindo algo. Ainda sobre o comportamento compartilhado, as autoras afirmam que o mesmo contribui para manuteno da sequncia interacional na qual as crianas esto envolvidas, possibilitando inclusive uma maior complexificao do brincar. Numa brincadeira como o faz de conta, elas agem como num mundo imaginrio, transformam objetos deslocando-os de seu uso cannico. Um lpis pode se transformar numa espada de soldado, servindo de representao para uma realidade ausente, possibilitando uma outra relao entre o objeto e seu significado. O brincar em

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grupo, possibilita a troca de pontos de vista diferentes, bem como o estabelecimento de interesses comuns entre as crianas, frutos da interao. Como diz Dornelles, (2001):Aos poucos, os jogos e brincadeiras vo possibilitando s crianas a experincia de buscar coerncia e lgica nas suas aes governando a si e ao outro. Elas passam a pensar sobre suas aes nas brincadeiras, sobre o que falam e sentem, no s para que os outros possam compreend-las, mas tambm para que continuem participando das brincadeiras (p. 105).

Nesse contato com o mundo social, a literatura entra na vida da criana pequena bem antes da idade escolar, como funo ldica. Esse contato iniciado desde o bero, nos acalantos, nas cantigas de roda, brincadeiras com as palavras, parlendas, nas histrias contadas e recontadas, numa parceria construda com mltiplos parceiros. (PEREIRA, 2007). O meio social o contexto necessrio para a adaptao da criana. No lidar com o mundo social, ela adquire estratgias de cooperao e de resoluo de conflitos. Em vrios estudos apresentados por Carvalho e Lordelo (2002), evidente o papel da interao criana-adulto e criana-criana no desenvolvimento de reas como compartilhamento exploratrio, habilidades de gerenciamento dos relacionamentos sociais e engajamento nos agrupamentos sociais. No projeto integrado de pesquisa, do qual a presente investigao faz parte, tem-se evidenciado que, mesmo pequenos, entre 2 e 3 anos, as crianas compreendem as relaes sociais de seu grupo social, usando estratgias adequadas para conseguir seus intuitos, bem como assimilando e transferindo regras de sua microcultura. (PEDROSA, 2007). No caso da interao criana-criana, o ganho se d no que entre elas se estabelece com relao habilidade comunicativa, cooperao e defesa, que so consideradas essenciais nas transaes humanas (CARVALHO e BERALDO, 1989; CARVALHO E CARVALHO, 1990). Carvalho e Lordelo constatam que existe uma deficincia de ateno por parte do adulto com relao s crianas nesses ambientes sociais, o que um risco potencial para o desenvolvimento das mesmas. necessrio pensar sempre na qualidade e intensidade das interaes. O adulto deve atuar como um facilitador, promovendo significados para as experincias vividas pela criana.

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Analisar o espao e o mundo fsico da criana, portanto, no possvel sem considerar as caractersticas de seu mundo social imediato, em diversos sentidos: a natureza dos relacionamentos, a proteo ou risco que estes oferecem criana, a autonomia ou as restries que lhe impem (CARVALHO E LORDELO, 2002 p. 24).

A partir dessas consideraes possvel pensar que no espao escolar, onde se d a educao formal da criana, a interao entre pares propicia processos de construo de significados envolvidos na aprendizagem. A potencialidade do meio interacional, porm, no se esgota nos aspectos cognitivos; na interao tambm esto envolvidos processos e mecanismos de carter motivacional, afetivo e relacional que contribuem, igualmente, para explicar a efetividade na aprendizagem e aquisies de diversos tipos. Uma vez que esse estudo pretende investigar como as crianas, a partir da experincia com a narrativa oral literria, ouvindo histrias em grupo, podem organizar seu discurso, reproduzindo as histrias contadas, faz-se necessrio uma reflexo sobre seu desenvolvimento e as origens de seu pensamento numa perspectiva sociointeracionista, acreditando-se que essa abordagem a mais adequada para o presente estudo. Edgar Morin (2004), discorrendo sobre uma nova educao, defende a necessidade de que seja considerado e principalmente respeitado o carter mltiplo do ser humano, integrao entre o homo sapiens ao homo demens, imaginarius e ludens, ou seja, da afetividade, do mito, do imaginrio, do delrio, do jogo. Nessa perspectiva, a criana olhada e compreendida em suas diversas dimenses, que se desenvolvem e se presentificam na e a partir da interao com o mundo social e cultural. 2.2 Contando uma histria: o lugar da interao no desenvolvimento da criana Tratar sobre o desenvolvimento da criana numa perspectiva

sociointeracionista significa fundamentalmente pensar que o sujeito interage ativamente com o meio social e que ambos se modificam nessa relao. De forma diversa, as posies de Vygotsky e Wallon coincidem quanto ao valor dado ao papel constitutivo do ser humano pela interao social, mas se diferenciam por certos aspectos do desenvolvimento que so enfocados em cada teoria. Vygotsky mostra a criana introduzida na cultura por parceiros mais experientes, e Wallon destaca o valor da afetividade na diferenciao que a criana aprende a fazer entre si mesma e os outros.

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Ambos defendem a existncia de uma reciprocidade entre criana e meio social, na perspectiva do desenvolvimento. Ou seja, ao construir seu meio, atribuindo-lhe, a cada momento, significado, a criana por ele constituda, absorve os padres culturais e transforma, assim, sua forma de agir. Quando a criana est envolvida numa dada atividade sociocultural, inicia-se uma sequncia de trocas com o ambiente, que lhe fornecer um feedback de sua ao. J modificado por ele, a criana novamente age sobre o ambiente. Assim, pressupe-se que ela constri e reconstri ativamente seu ambiente, como tambm faz uso do que construiu (Macedo e Sperb, 2007). A ideia central da teoria Walloniana sobre o desenvolvimento da criana e que se relaciona com a Pedagogia que a evoluo se d entre as relaes estabelecidas pelo ser e pelo meio e que modificam-se ambos. Assim possvel compreender o papel da instituio educacional como condio para a integrao das atividades infantis, num sistema que tenha uma unidade. Para isso fundamental ter como eixo norteador o conhecimento das necessidades da criana e, principalmente, das mudanas de objetivos de seu comportamento, considerando idades e situaes diferentes (WEREBE E NADELBRULFERT, 1986). Para Vygotsky, a natureza humana o resultado de um processo de interiorizao da experincia cultural que transmitida atravs das geraes. Portanto, a chave da compreenso do desenvolvimento humano est nas relaes dialticas que ocorreram entre o indivduo e seu meio. A natureza influi na conduta humana, ao mesmo tempo em que o ser humano modifica e cria suas prprias condies de desenvolvimento. Assim, a construo do pensamento e da subjetividade um processo cultural. A natureza humana se constitui na interfase dos usos de signos e do emprego de instrumentos elaborados atravs da histria (CUBERO E LUQUE, 2004; VYGOTSKY, 1984; POZO, 1998). Vygotsty analisa os processos de mudana no comportamento humano a partir de um olhar sobre o prprio desenvolvimento, suas origens e transformaes. A explicao da natureza do desenvolvimento humano fundada em trs pontos (WERTSCH 1985, apud CUBENO E LUQUE, 2004): 1. O desenvolvimento se d como um processo em saltos, ou seja, o conjunto de transformaes no obedece a uma acumulao progressiva. Tambm as mudanas no

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ocorrem a partir de um nico princpio, mas diversas foras atuam de forma diferente em momentos diferentes, originando mudanas qualitativas. 2. Novas organizaes no indivduo esto relacionadas com o surgimento de novas formas de mediao dos processos psicolgicos ao longo do desenvolvimento. Ou seja, novos instrumentos remetem a novas estratgias de resoluo de problema que o indivduo vai formulando e absorvendo. 3. O funcionamento intelectual humano se d em quatro domnios genticos: filogentico, sociogentico, ontogentico e microgentico. A ideia central do pensamento de Vygotsky, com relao s origens dos processos psicolgicos superiores na vida social, d-se a partir das interaes e na participao em atividades reguladas culturalmente. A compreenso de como ocorre essa transio do social para o individual dada a partir do conceito de interiorizao, de zona de desenvolvimento proximal (ZDP) e apropriao. A interiorizao uma reconstruo em nvel intrapsicolgico de uma operao interpsicolgica, graas s aes dos signos.pg. 98

(Vygotsky, 1978, apud Cubero e Luque, 2004). Esses processos no ocorrem por O conceito de zona de desenvolvimento proximal diz respeito ao espao de

cpia, mas sim transformao. construo de conhecimentos a partir de trocas interativas. A criana transforma as informaes que recebe de acordo com as estratgias e conhecimentos por ela j adquiridos, a partir das diversas situaes vividas com outros parceiros mais experientes. Mais do que pessoas, os agentes ativos na ZDP incluem tambm artefatos, como livros, vdeos, suportes informticos (CUBERO E LUQUE, 2004; ONRUBIA, 1996). Onrubia (1996) destaca que a ZDP determinada pelo nvel de desenvolvimento das crianas e pelas formas de ensino envolvidas na atividade, tambm que uma zona dinmica, com construo interativa.O processo de construo, modificao, enriquecimento e diversificao dos esquemas de conhecimentos desencadeados pela participao na ZDP pode dar margem a uma reestruturao duradoura e a um nvel superior desses esquemas (p. 128.).

O conceito de andaime, trazido por Wood, Bruner e Ross (1976, apud CUBERO e LUQUE, 2004), aponta para a necessidade de se considerar a competncia da

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criana submetida ao apoio do adulto; assim, a transferncia de responsabilidade na tarefa vai ocorrendo progressivamente de acordo com o que a criana pode. Numa anlise da ZDP, no contexto educacional, destacam-se as intervenes de todos os participantes em uma atividade e no s do mais competente, como inicialmente acreditava Vygotsky. Vista dessa forma, a escola considerada um meio rico para a construo do conhecimento, e as atividades que envolvem cooperao entre pares iguais, criana-criana, potencializadoras, mesmo estando no professor o papel de mediador das situaes. A noo de ensino como ajuda, e com a ideia de ele mesmo atuar como processo de criao de zonas de desenvolvimento proximal trazida por Onrubia (1996). Essa ajuda deve conjugar duas grandes caractersticas. Primeiro, considerar onde est o aluno em termos de conhecimentos, o que ele dispe em relao a esse contedo. E segundo, provocar desafios que o levem a questionar os significados e sentidos, gerando novos conhecimentos e autonomia na criana. A ideia promover uma ajuda ajustada, que toma como base os chamados desafios abordveis para o aluno. Fazendo uma reflexo a partir dessa colocao, podemos pensar no uso da narrativa oral com crianas na escola como um recurso de construo de conhecimentos coletivos em situaes de interao aluno aluno mediado pelo professor, que assume o papel de narrador da histria e instigador da temtica no grupo. Ou seja, o prazer advindo do jogo ficcional ultrapassa as fronteiras do deleite, que por si s j justificaria o seu uso na escola, para mostrar que as estruturas organizadas em narrativas so construtoras de sentido, e assim possibilitam o desenvolvimento da criana. A interao a base para se pensar e discutir o desenvolvimento e aprendizagem da criana. A palavra interao tem um sentido amplo, que significa ao exercida reciprocamente entre dois objetos, ou entre dois sujeitos, ou at entre sujeito e objeto (Carvalho, 1988). importante pensar o termo interao social com a ideia de ao entre dois ou mais indivduos de mesma espcie. A autora assume episdios de interao como unidade de anlise mais adequada para os estudos de interao social, pois dessa forma, acredita ela, que a anlise deixa de ser no indivduo e passa a ser no interindivduos.Interao social influncia ou regulao recproca, ou seja: cada um, ou a ao de cada um, diferente, pelo fato de se dar com o outro, do que seria isoladamente; no se explica pelo que cada um (ou faz), mas por seus efeitos recprocos (p. 111).

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Wallon traz reflexes sobre a funo da emoo, a emergncia da conscincia de si mesmo e o desenvolvimento social, mostrando o quanto a criana vai se desenvolvendo a partir da diferenciao do seu eu e do outro. Ao estudar a criana, descreve que o seu desenvolvimento e aprendizagem so construdos ao longo do tempo, por intermdio de interaes estabelecidas com adultos, e com outras crianas no seu meio social (WEREBE E NABEL-BRULFERT, 1986; WALLON, 1989). O meio um conjunto mais ou menos durvel das circunstncias fsicas, humanas e ideolgicas em que ocorrem as existncias individuais. Na relao do indivduo com o meio, h a incluso do espao psquico, que para Wallon o campo das necessidades e desejos, onde ocorrem as reaes, impresses e representaes do indivduo. (WALLON, 1949, apud WEREBE E NADEL-BRUL FERT, 1986). Porm cada ambiente modifica a criana momentaneamente. A atitude da criana torna-se complementar s atitudes tomadas ao seu redor. O papel e o lugar que ela tem no grupo so determinados, em parte, por suas disposies e tambm a partir das exigncias do grupo. Assim, as reaes da criana vo se modificando para ajustar-se ao grupo. Essa inter-relao criana-grupo vai repercutindo em seu desenvolvimento, em sua aprendizagem (WALLON, 1979). Werebe e Nadel-Brulfert (1986), partindo dos estudos de Wallon (1949), afirmam que a influncia de indivduos participantes dos mesmos acontecimentos, em um mesmo ambiente, extremamente sutil e tnue. Ela pode estar vinculada aos locais e s circunstncias, gerando efeitos muitas vezes bem posteriores s situaes vividas. Essas situaes so marcadas, segundo as autoras, a partir das representaes que a criana vai construindo ao longo do contato com o meio. Wallon aponta que j no segundo ano de vida da criana ela capaz de realizar antecipao relativa s respostas dos outros, demonstrando, assim, sua capacidade de se constituir enquanto interlocutora (WEREBE E NADEL-BRUL FERT, 1986). Ele defende a existncia de uma reciprocidade entre criana e meio; nessa perspectiva, h uma construo permanente, a partir de sua atividade de adaptao ao meio, ou seja, ao construir seu meio, atribuindo, a cada momento, significado aos objetos e eventos, a criana tambm por ele constituda, pois assimila bens culturais do meio em que vive, transformando, assim, sua forma de refletir e agir (WALLON, 1963). A criana capaz de atribuir significados a eventos; o que Bruner (2001) chama de biologia do significado. O significado simblico depende da capacidade humana de significar a linguagem e utilizar seu sistema de sinais como um interpretante. Para isso 29

tem-se que conceber que os seres humanos possuem uma possibilidade inata para a linguagem. O autor traz trs alegaes sobre a aquisio precoce da linguagem: 1 - Papel de assistncia, do outro, na interao. A linguagem adquirida pela criana atravs do uso. O que conta no o que dizer, mas como, onde, para quem e sob que circunstncia. 2 - Determinadas funes ou intenes comunicativas esto bem posicionadas antes que a criana tenha dominado a linguagem formal para express-las linguisticamente. Ex: indicar, solicitar e enganar. 3 - A aquisio de uma lngua sensvel ao contexto. Assim, mais fcil observar os progressos quando a criana j capta, de algum modo pr-lingustico, o significado do que est sendo falado ou da situao na qual a fala est ocorrendo. Ou seja, a importncia da fala inserida dentro de um contexto singular, significativo, que traga para a criana referncias. Tomasello (2003) acrescenta que os seres humanos esto inseridos num ambiente social, que denominado cultura. O autor estabelece duas maneiras pelas quais o ambiente cultural humano cria o contexto para o desenvolvimento: habitus e a instruo ativa por parte dos adultos. Ou seja, a participao da criana num habitus particular determina o tipo de interaes sociais a que ela estar submetida, ou seja, os tipos de experincias de aprendizagens e de oportunidades que encontrar. O habitus a matria-prima com a qual a criana trabalhar. O que o autor observa que, no caso do meio social humano, os adultos tm um papel muito mais ativo, intervencionista no desenvolvimento, do que em outras espcies. Em todas as sociedades humanas, considera-se que algumas tarefas ou parcelas de conhecimento so to importantes que os adultos tm que ensin-las diretamente. Essas aprendizagens variam de acordo com a cultura da sociedade especfica na qual a criana est inserida. Wallon compartilha desse princpio ao apontar o desenvolvimento humano como o resultado de uma dupla histria, fuso das condies do sujeito nas sucessivas situaes nas quais ele se envolve desde o nascimento. Preocupado em estudar objetivamente a conscincia, procurou compreender o desenvolvimento humano numa perspectiva psicogentica, estabelecendo comparaes entre a criana normal e a criana patolgica, sem desconsiderar, nos seus estudos, o vis histrico-cultural em que elas estavam inseridas (MAHONEY E ALMEIDA, 2000). 30

Para Wallon (1963,1986) a criana nasce com a capacidade de interagir com o outro, isto , uma caracterstica biolgica associada ao sistema sensitivo-motor. A motricidade seria o substrato de toda a atividade mental, ligada emoo, resultado de uma primeira troca da criana com o entorno humano, e anterior interao com o mundo objetivo. A expresso emotiva considerada um estgio primitivo de comunicao com o mundo e gradualmente integra-se s atividades psquicas superiores, num processo descontnuo. Assim, cada indivduo constitudo de um sistema que envolve motricidade, afeto e cognio, denominados conjuntos funcionais. Eles vo alternando a predominncia, dependendo do estgio em que a criana se encontre. A princpio, esses conjuntos se mostram de forma sincrtica, ou seja, reagem como um todo indiferenciado aos estmulos que recebem, sejam internos ou externos. Aos poucos, a partir dos esforos da criana na sua troca com o meio, os conjuntos vo se diferenciando (WALLON, 1963,1986). Ao interagir como o meio, as crianas aprendem sobre suas capacidades e limitaes comportamentais, podem assim regular suas aes, bem como o efeito de suas aes sobre o mesmo. Tomasello (2003) comenta que, nas sociedades humanas, existem duas formas bsicas de sociognese nas quais algo de novo criado atravs da interao social de dois ou mais indivduos em interao cooperativa. A primeira forma o efeito catraca, atravs do qual ocorre a transformao do uso de uma ferramenta ou smbolo lingustico. Essa modificao, segundo o autor, no se d no tempo real, mas no tempo histrico, quando aquele determinado indivduo imagina a funo que o artefato tinha para os usurios anteriores, e como ele tem que ser adaptado para a funo atual. A segunda a de colaborao simultnea de dois ou mais indivduos ao tentarem resolver, juntos, um problema. Aqui o que ocorre que os indivduos numa situao de interao vo construindo um produto que nenhum sozinho poderia ter inventado. Isso porque um responde s sugestes inventivas do outro. Para Tomasello (2003), aos 9 meses, a criana tem possibilidade de compartilhar a ateno e de aprender imitativamente atravs de seus coespecficos [nova ortog.]; nesse processo ela adquire smbolos lingusticos bem como outros smbolos. Esses smbolos lingusticos so o resultado do que as geraes anteriores de seres humanos consideraram como importantes para categorizar e interpretar com relao ao mundo para 31

fins da comunicao interpessoal. Por volta de dezoito a vinte meses, as crianas j desenvolveram uma compreenso profunda e flexvel das outras pessoas como seres intencionais e portanto se encontram aptas para compreender uma ampla variedade de situaes comunicativas. Essa capacidade de compreenso por parte da criana tem origens diversas, segundo Wallon (1989). Frequentemente, a criana no sabe precisar com clareza de onde vm as noes de que faz uso no cotidiano, o que gera, muitas vezes, diversas situaes onde ela se contradiz nas explicaes de fatos. A construo do pensamento reflexivo vai se formando na interface entre as experincias pessoais e o que de novo ela apreende por meio do outro. Nessa constante tenso eu/outro (meio) vo surgindo as oposies necessrias a essa construo. A partir da formulao de hipteses, de acertos e erros, de variaes nas experincias pelas quais passa, a criana vai reordenando seu pensamento, processo no qual a linguagem assume um papel fundamental porque articula significaes, mobilizando-a na busca do entendimento.H os contos oferecidos a sua imaginao, a sua curiosidade, as opinies que so trocadas ao seu redor e h os ensinamentos da escola. Se ela no estivesse inclinada a se deixar monopolizar totalmente por cada uma de suas ideias sucessivas, com excluso das que precediam, sua confuso e, provavelmente, seu desnimo seriam grandes diante da inconcilivel diversidade delas (WALLON, 1989, p. 96).

As trocas afetivas estabelecidas pela criana desde cedo vo habilitando-a no uso de uma linguagem emocional, no s no sentido de influir sobre seus parceiros, mas tambm no de reagir s situaes que vivem. Essas relaes vo alargando os horizontes sociais da criana, tornando suas aes cada vez mais intencionais. O perodo de um a trs anos, denominado estgio sensrio-motor e projetivo, caracteriza-se pela explorao intensa do mundo exterior pela criana, bem como pela aquisio simblica e incio da representao (MAHONEY E ALMEIDA, 2000). A etapa projetiva, entre dois a trs anos, caracterizada por realizaes ideomotoras, ou seja, ato mental projetando-se em atos motores, que mostram a criana usando os gestos para se expressar, para dar forma aos seus pensamentos. Nesse percurso, as condutas de imitao e simulacro so fundamentais. A imitao a induo de um ato por um modelo exterior. A criana reproduz modelos ou situaes que lhe agradam. Segundo Wallon (1979), a reproduo desse modelo necessariamente no ocorre imediatamente; pode aparecer tempos depois. A

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imitao realizada pela criana no uma reproduo igual, um desdobramento do ato. Ou seja, a criana, quando imita, de alguma forma transforma. O simulacro a representao ainda incipiente. Pelo gesto a criana simula a presena do objeto sem t-lo. Ambos os movimentos (imitao e simulacro) servem de apoio narrativa da criana permitindo-lhe lidar com a fico, com seus desejos de inveno e de criao. A presena da linguagem nesse perodo fundamental para o ingresso no mundo dos smbolos (MAHONEY E ALMEIDA, 2000). Entre trs a seis anos, encontra-se o marco da diferenciao EU-OUTRO, fundamental para a constituio da pessoa. Isso s possvel a partir da conscincia corporal adquirida juntamente com a capacidade de simbolizao. Progressivamente, a criana vai adquirindo a capacidade de se diferenciar e ter autonomia em suas aes. Nesse momento h o predomnio da afetividade, no lidar com os conflitos, conquistas, contradies, crises. Trs fases distintas so referidas pelas autoras, Mahoney e Almeida (2000), baseadas nos estudos de Wallon: oposio, seduo e imitao. A oposio visa afirmao de si, ou seja, a diferenciao em relao aos outros com as quais convive. Na seduo, surge na criana a necessidade de ser admirada, a necessidade da aprovao do outro. Na imitao, a criana busca a incorporao do outro, com apropriao de qualidades e mritos, para ampliao de suas possibilidades como pessoa. Esse movimento se d a partir de uma interiorizao e exteriorizao, o que produz uma transformao enriquecida das caractersticas que a criana imitou. Sobre imitao, Tomasello (2003) comenta que ela assume inicialmente a forma de reproduo da criana do universo das convenes culturais da sociedade em que vive. Atravs da imitao, a criana apropria, transforma, e cria novas formas de ao. Esse processo intermediado pela linguagem, que uma ferramenta cultural importante na efetivao desse processo. O processo de aprendizagem por imitao para aprender a usar o smbolo comunicativo diferente da imitao de outros tipos de aes intencionais. Por meio da linguagem, o adulto chama a ateno da criana para algo que ele quer mostrar, assim dirige sua ateno. Para a criana no basta substitu-lo, pois dessa forma estar direcionando a fala para si mesmo. Para que isso se d de forma correta, ela tem que fazer a inverso de papis, ou seja, ela tem que aprender a usar o smbolo, dirigido-se ao adulto como este o fez com ela. A criana tem que colocar o adulto em seu lugar no ato intencional; aqui ocorre o intercmbio de papis. A criana tambm pode aprender novos 33

elementos da linguagem quando observa terceiros conversando entre si (TOMASELLO, 2003).O resultado desse processo de imitao com inverso de papis um smbolo lingustico: um mecanismo comunicativo entendido intersubjetivamente por ambos os lados da interao (p. 147).

Esse processo de aprendizagem garante que a criana entenda que adquiriu um smbolo que socialmente compartilhado. Isso tambm pode ocorrer em relao aos gestos, que imitados pela criana a partir do uso contextualizado do adulto, podem adquirir o status de gestos simblicos. Aprender os smbolos lingusticos amplia a possibilidade de a criana comear a desenvolver aptides e conhecimentos sociais e culturais de sua comunidade. O smbolo lingustico incorpora uma perspectiva particular sobre alguma entidade ou evento. Um mesmo objeto simultaneamente uma rosa, um presente, etc. O processo de aquisio dos smbolos lingusticos vai ocorrendo aos poucos, pela apropriao do discurso lingustico, que a faz refletir e planejar suas aes, se autorregulando. A constituio do discurso lingustico no surge do nada; ela uma instituio social simbolicamente incorporada que surge historicamente de atividades sociocomunicativas preexistentes. Nesse caso, vrias atividades comunicativas no lingusticas [nova ortog.] e de ateno conjunta da qual a criana participou. O enfoque interacionista, que teve como precursor Bruner na dcada de 70, destaca a interao social no processo de aquisio de linguagem, tomando a prpria interao como unidade mnima de anlise. Influenciado pelos estudos da pragmtica, esse autor enfatiza mais o uso da linguagem do que sua forma, ou seja, o processo comunicativo considerado um pr-requisito para a aquisio da linguagem (MASSI, 2001). Para Bruner (2001), a criana desde cedo partilha com o adulto regras de comunicao por meio de trocas ritualizadas, jogos e rotinas que fazem parte do seu cotidiano. a me quem interpreta e d sentido aos gestos iniciais da criana, at o surgimento dos turnos conversacionais. Assim, a aquisio da linguagem passa a ser entendida como um processo interindividual. Os atos lingusticos das crianas so precedidos de atos comunicativos. Para que esse processo de apropriao da linguagem ocorra, necessrio que a criana compreenda os diferentes papis vividos na cena de ateno conjunta, ou seja,

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falante e ouvinte, bem como a inteno comunicativa do adulto na situao, levando-a, assim, a tambm saber exprimir algo para outras pessoas, da mesma forma pela qual isso lhe foi expresso (TOMASELLO, 2003). importante destacar que a cena de ateno conjunta fornece o contexto subjetivo por meio do qual vai se estabelecer o processo de simbolizao. essa subjetividade a contextualizao, que vai agir de forma direta na simbolizao. Ou seja, tem que existir entre os interagentes a clareza sobre os objetivos interativos um do outro expressos por meio da execuo de aes significativas e previamente entendidas. Essas aquisies da criana ocorrem a partir daquilo que tem sentido para ela (TOMASELLO, 2003). A compreenso e assim aquisio da linguagem por parte da criana se d a partir da compreenso sociopragmtica que as crianas tm das intenes comunicativas dos adultos em contexto. A forma como isso se d na prtica muitas vezes bastante sutil e complexa, j que as crianas tm de identificar as intenes comunicativas do adulto no fluxo da interao social e do intercmbio discursivo em andamento. Para a criana pequena, sons somente se tornam linguagem quando elas entendem que os adultos esto fazendo aquele som com inteno de que prestem ateno a algo. Ou seja, a linguagem como um tipo particular de ato intencional dentro de uma cena de ateno conjunta. Ato comunicativo que expressa uma inteno comunicativa (TOMASELLO, 2003) p. 143.Apenas a criana que consegue monitorar os estados intencionais dos outros para com ela na verdade, para com seus prprios estados intencionais pode entender uma inteno comunicativa (p. 144).

As pistas sociopragmticas que indicam o referente pretendido pelo adulto ao se dirigir criana (verbos indicando aes) so bem mais sutis, complexas e variadas do que em contextos de denominao ostensiva de objetos, mudando de situao para situao (TOMASELLO, 2003). O autor conclui que a criana, para adquirir o uso convencional de um smbolo lingustico, precisa ser capaz de determinar as intenes comunicativas do adulto, envolvendo-se, assim, num processo de imitao com inverso de papis. A principio isso aparece em cenas de ateno conjuntas repetidas e previsveis; porm, medida que a criana ganha aptido na determinao das intenes comunicativas do adulto, no se fazem mais to necessrios formatos fortemente estruturados. 35

Essa possibilidade de uso dos artefatos simblicos pela criana garante a ela um ganho de possibilidades, ou seja, facilidade nas interaes cognitivas e sociais. Garante principalmente uma nova possibilidade de ver o mundo, de interagir com o mesmo. As representaes simblicas so especiais porque so intersubjetivas (smbolo social partilhado com outras pessoas) e porque possibilitam perspectivas diferentes de ver o fenmeno. Pensando nessa passagem da imitao ao uso das prprias estratgias cognitivas e no papel da linguagem nessa transio, na experincia da narrativa oral a criana pode, a princpio, imitar a linguagem dos personagens, reproduzir as falas e situaes vividas na histria e depois que se apropriar, provavelmente ela criar com o apoio desse modelo, reforado pela interao entre pares de mesma idade, at chegar produo de histrias coletivamente. A funo de representao indispensvel para pensar as coisas, e por meio dela a criana introduz novas possibilidades. Segundo Wallon (1979), representar articular o plano concreto e do sensvel ao plano das ideias, do pensamento e das imagens. A representao permite ao homem sair da experincia bruta e individual para um outro lugar de significao. A representao insere-se em todo um conjunto que pode ser denominado como funo simblica. A funo simblica estabelecida a partir da capacidade de estabelecer para um objeto a sua representao, e para essa representao um signo (WALLON, 1989). Por fim, a representao no se depreende diretamente de uma atividade prtica sobre o mundo; ela s se torna possvel devido interveno da linguagem, produto eminentemente social. Portadora de signos, por excelncia, a linguagem principia com um longo ajuste de movimentos e sequncias de movimentos imitados, a possibilidade de a criana conceber as coisas, desprendidas das situaes e do espao fsico e, consequentemente, a trabalh-las, classificando-as e ordenando-as no espao mental. Assim a linguagem vai permitir a construo dos alicerces do mundo conceitual (TOMASELLO, 2003).O aperfeioamento das habilidades de comunicao lingustica das crianas d a elas a possibilidade de participar de interaes discursivas complexas, nas quais pontos de vista explicitamente simbolizados dos interagentes se chocam e, por isso, tm que ser negociados e resolvidos. Esses tipos de interaes podem levar as

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crianas a comear a construir algo como uma teoria da mente de seus parceiros de comunicao, e, em alguns casos especiais de discurso pedaggico, internalizar instrues do adulto e comear assim a se autorregular e refletir sobre seu prprio pensar (p. 13).

Como diz Maingueneau (1989), a linguagem elaborao da mensagem; ela constitutiva do pensamento. um processo criador em que organizamos e informamos as nossas experincias. Atividade constitutiva, social, fundamental na produo do conhecimento e, portanto, no desenvolvimento do homem. Com relao forma como a linguagem constitui os sujeitos, Geraldi (1995) aponta dois aspectos: O primeiro a interferncia que a sistematizao aberta da lngua produz na construo de raciocnios lgico-lingusticos. Ex: a criana diz cabeu, fazi, e ao refletir sobre a lngua tende a obedecer a certas formas estabelecidas nos sistemas lingusticos. O segundo diz respeito construo de sistemas de referncia. Ou seja, pelo fato de nascermos num mundo de discursos preexistentes e de incorporarmos os sistemas de referncia que esses discursos revelam, ns nos constitumos enquanto sujeitos. Esses dois aspectos so contemplados no contexto da contao de histrias, espao propcio ao desenvolvimento da habilidade lingustica, construo ativa dos signos lingusticos. Bakhtin (1992) comenta que esse signo vivo que usamos nasce da experincia exterior para compor a atividade mental. Ou seja, a conscincia no se organiza no interior do indivduo, mas fora dele, a partir da palavra do outro.Tudo que me diz respeito, a comear pelo meu nome, e que penetra em minha conscincia, vem-me dos outros ( da me, etc), e me dado com a entonao, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo conscincia de mim, originalmente, atravs dos outros, deles recebo a palavra, a forma e o tom que serviro para a formao original da representao que terei de mim mesmo [...] assim como o corpo se forma originalmente dentro do seio (do corpo) materno, a conscincia do homem desperta envolta na conscincia do outro (BAKHTIN, 1992, p. 378).

Tomasello (2003) destaca, no que se refere aquisio da linguagem, dois aspectos: o primeiro aspecto diz respeito s primeiras fases de aquisio da linguagem, nas quais a criana descobre que existem muitos modos diferentes de olhar para a mesma situao, ou seja, o adulto escolheu um modo de simbolizar a cena referencial. Aprende que um smbolo lingustico incorpora um modo particular de interpretar as coisas, moldado por certas situaes comunicativas, mas no por outras. Em sua produo de

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linguagem, as crianas dessa idade conseguem pegar um determinado objeto e atribuir-lhe diferentes propriedades. Ex: molhado, ou azul, ou meu.Portanto, os smbolos lingusticos representam para perspectivas que tm certa liberdade em relao perceptual, no sentido de que outros smbolos poderiam ter sido escolhidos para indicar a mesma para outros fins comunicativos (p. 168). as crianas situao lingusticos experincia

Como segundo aspecto, o autor destaca a capacidade de contrastar expresses lingusticas entre si na mesma situao comunicativa. Isso desempenha um papel-chave na aprendizagem de novas palavras, sobretudo aquelas com significados mais especficos. A compreenso do uso de contraste pela criana caracterizada por Tomasello como um princpio pragmtico aprendido sobre como as pessoas usam os smbolos lingusticos. Essa capacidade de contrastar significados diferentes das palavras possibilita a aquisio de novas palavras pela criana. As inferncias que as crianas fazem nesse processo de aprender novas expresses lingusticas so sempre pragmticas, ou seja, se baseiam na compreenso que elas tm de por que o adulto escolheu empregar aquela palavra daquela maneira na presente frase, na presente cena de ateno conjunta. Essa capacidade aumenta na criana medida que domina mais a linguagem. Tomasello (op.cit) continua sua explicao dizendo que importante pontuar que a intersubjetividade dos smbolos lingusticos revela-se para as crianas pequenas muito cedo no processo de aquisio da linguagem, mas a natureza perspectiva emerge de forma mais gradual medida que a criana percebe que existem modos alternativos de ver as coisas e falar sobre elas. Os smbolos lingusticos so intersubjetivos e perspectivos. intersubjetivo no sentido de que algo que o usurio produz e entende que o outro entende. Esse smbolo lingustico se distingue de outros smbolos humanos por sua natureza perspectiva, ou seja, a aptido humana de adotar diferentes perspectivas sobre a mesma coisa para propsitos comunicativos diversos. Segundo o autor, o processo de aquisio de linguagem e uso dos smbolos lingusticos transformam enormemente a natureza da representao cognitiva humana. A partir da constatao de que essa diferenciao entre a representao sensrio-motora e a simblica ocorre, ele chama a ateno para a necessidade de aprofundamento dos estudos e discusses.

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A capacidade dos organismos processarem no apenas com percepes do ambiente, mas tambm com representaes sensrio-motoras do ambiente, notvel nas espcies. Isso possibilita que elas tirem proveito das experincias vividas via memria e categorizao. Porm, os seres humanos adultos criam e as crianas vo usando essas outras formas de representao, socialmente constitudas. A hiptese que o autor coloca que esse trabalho com as representaes culturais externas em interaes sociais tem implicaes importantes para a natureza das representaes individuais internas (TOMASELLO, 2003). Possivelmente o autor chama a ateno para a importncia de a criana viver, estar inserida dentro dessas possibilidades de representaes culturais externas, como potencializadora de seu desenvolvimento. Assim, as experincias vividas vo se internalizando como experincias constitutivas das representaes internas e estas sero singulares para cada uma. Quando a criana internaliza um smbolo lingustico, junto com ele existe toda a perspectiva humana que foi incorporada nesse smbolo, ao longo do seu uso na histria, ou seja, a criana ento representa no s os aspectos perceptuais ou motores de uma situao, mas tambm uma das maneiras como se poderia interpretar a situao. Esta a diferena entre os smbolos lingusticos em relao s representaes perceptuais ou sensrio-motoras diretas: os smbolos esto vinculados natureza social. A representao lingustica abre a possibilidade de interpretar algo de vrias maneiras, e essa interpretao ter como base o seu objetivo no que se refere ao interesse e ateno do ouvinte em relao quele objeto ou quela atividade. O falante sabe que o ouvinte tambm dispe dessas mesmas escolhas de interpretao (TOMASELLO, 2003).Essa natureza exterior abre a possibilidade de uma camada adicional de representaes cognitivas quando as crianas percebem esses smbolos lingusticos sendo usados e constroem categorias e esquemas deles na forma de categorias e construes lingusticas abstratas tais como substantivos e verbos ou as construes transitivas em ingls que conduzem a habilidades to incrivelmente importantes como a capacidade de interpretar metaforicamente objetos como aes, aes como objetos, e todo tipo de entidades com relao a outras entidades (p. 178).

O autor acrescenta que a natureza pblica dos smbolos lingusticos abre a possibilidade de as crianas tratarem suas interpretaes cognitivas como objetos de interesse, ateno e reflexo mental por conta prpria.

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A intersubjetividade dos smbolos lingusticos humanos, com sua natureza perspectiva, no retrata o mundo de forma direta; as pessoas compreendem que podem induzir outras ao interpretarem certas situaes perceptual-conceituais, de uma maneira e no de outra. Uma mesma cena pode ser interpretada de vrias maneiras, e essa noo clara para os usurios dos smbolos lingusticos. A participao da criana nesse mundo comunicativo propicia a internalizao: a criana vai aprendendo a usar os meios simblicos que os adultos usam para tambm representar (TOMASELLO, 2003).Ao aprender por imitao das outras pessoas um smbolo lingustico dessa maneira, internalizo no s a inteno comunicativa delas (a inteno delas de que eu compartilhe a ateno) mas tambm a perspectiva especfica que elas adotaram. Quando uso esse smbolo com outras pessoas, tambm monitoro sua manifestao de ateno em funo dos smbolos que emiti, e portanto passo a ter minha disposio (a) os dois focos reais: o meu e o do parceiro de comunicao, e (b) os outros possveis focos simbolizados em outros smbolos lingusticos que poderiam potencialmente ser usados nessa situao (p. 179).

Para Wallon (1989) a linguagem interfere nas impresses perceptivas da criana. O vocabulrio exerce influncia sobre a imaginao bem como ocorre o inverso, ou seja, a influncia de uma imagem ou de uma situao sobre o sentido das palavras. A criana pode ter uma assimilao de imagens perceptivas entre objetos muito diferentes por intermdio de uma palavra. A criana em contato com a linguagem no meio social vai acumulando um vocabulrio de palavras, que esto associadas a objetos ou usos que ela v ou compartilha com o adulto, tornando-os assim familiares. Porm, sua experincia ainda limitada e concreta e assim nem sempre as imagens que as palavras trazem correspondem circunstncia vivida.O saber verbal precede, em muitos casos, as possibilidades imaginativas da criana, ainda incapaz de transpor sua experincia concreta e particular em imagens mais despojadas que sejam suscetveis de se combinarem em conjuntos mutveis e diversos de circunstncias (WALLON, 1989 p. 101).

A aquisio da linguagem na criana contribui na formao de conhecimentos e compreenso das coisas a sua volta. Conflitos se estabelecem entre a linguagem e a experincia vivida pela criana e essa tenso vai ampliando sua capacidade de interpretar, de criticar e de representar. Para compreender como os seres humanos produzem significados, Bruner (2001) prope um olhar para a ao, especialmente o carter situacional da ao. Ou seja, 40

o dizer, o fazer e o contexto vivido pelos sujeitos so o ponto da investigao, analisados de forma indissocivel. Para esse autor, o contexto social est envolvido na construo do nosso conhecimento; esse conhecimento no est isolado, ele surge e transita por diversos lugares. A linguagem tem um papel fundamental, sendo uma ferramenta no processamento do mundo, no planejamento e ao humana, assim como na modernizao da mente atravs da histria e da cultura. Portanto, para compreender o funcionamento mental humano e sua ao no mundo, fundamental considerar as informaes biolgicas, evolutivas, psicolgicas individuais e culturais, numa perspectiva situacional. A narrativa seria o princpio organizador da experincia humana. Explor-la seria revelador do modo de raciocnio presente, considerando que as diferentes formas e contedos das narrativas esto implicados na cultura (BRUNER, 2001). A perspectiva da narrativa como organizadora da experincia humana ser tratada em um outro momento, pela importncia que tem para o presente estudo. A seguir sero feitas algumas consideraes sobre o universo da creche e pr-escola enquanto espao de desenvolvimento da criana. 2. 3 A creche ou pr-escola como contexto de desenvolvimento Foram muitas as transformaes que ocorreram no modelo de educao infantil ao longo das dcadas. De uma concepo mais assistencialista, em que as cuidadoras tinham apenas a funo de substituio da me nos cuidados das crianas e pouco era exigido delas, com relao a conhecimentos sobre o desenvolvimento infantil e sobre o educar, passa-se para um modelo higienista, que defendia a formao de puericultoras ou beraristas com conhecimentos e habilidades voltados ao desenvolvimento fsico das crianas, e ainda chega-se no modelo recreacionista, que trazia a ideia de preparo de animadores culturais, orientando as crianas no lazer, dentro dessas instituies (OLIVEIRA, 2007). O modelo educacional, que defende a preparao de professores polivalentes que interajam com as crianas desde cedo, traz uma perspectiva mais atual, concebendo a criana como agente ativo na construo de significados, processo este que envolve afetos e conhecimentos, e que se d a partir da interao das crianas, mediada pelos adultos. Para que se construa uma ao educacional nesses moldes, no somente necessrio que o educador infantil se profissionalize, mas tambm reflita e analise as situaes e

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experincias que vive no universo da creche e do pr-escolar. Para que isso ocorra de forma efetiva, necessrio que o educador conhea a criana na perspectiva de seu desenvolvimento (OLIVEIRA, 2007). A implementao desse novo modelo na Educao Infantil ainda no uma unanimidade. Segundo Oliveira (2007), ainda existe uma viso assistencialista quando se trata de creches para filhos de trabalhadores de baixa renda, enquanto que particularmente para grupos sociais privilegiados, h uma preocupao das creches e pr-escolas serem organizadas visando garantir a aprendizagem e o desenvolvimento global das crianas desde o nascimento. necessrio, segundo a autora, a superao dessa dualidade de vises, assumindo-se a Educao Infantil como um lugar de desenvolvimento, aprendizagem, construo de significados. Como pensar esse modelo? Qual a sua abrangncia na perspectiva da criana? Como pode contemplar a narrativa oral enquanto possibilidade de desenvolvimento e aprendizagem para a criana? preciso, inicialmente, superar a ideia que permeia a Educao Infantil, a de que ela preparatria para o Ensino Fundamental, pois, visto dessa forma, a criana um ser do vir a ser, do futuro e, no compreendida em seu momento presente, com motivaes, necessidades e possibilidades atuais. Na perspectiva do enfoque preparatrio, a criana sempre olhada como em dbito, pois sempre comparada com o que ela vai aprender ou conseguir. Valorizam-se, em excesso, as competncias cognitivas e se perde a perspectiva socioafetiva. Por exemplo, o brincar visto como um meio para aprendizagem e nunca uma atividade prazerosa que deve acontecer na creche o