A Natureza a Margem da Lei.pdf

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Titulo original: LA NATURE HORS LA 1.01 Autor: FRANÇOIS OST © Copyright: ÉDITIONS LA DECOUVERTE, 1995 Direitos reservados para a língua portuguesa INSTITUTO PIAGET Av. João Paulo II, Lote 544, 2.® - 1900 LISBOA TEL. 837 17 25 Colecção: DIREITO E DIREITOS DO HOMEM sob a direcção de ANTÔNIO OLIVEIRA CRUZ Tradução: JOANA CHAVES Capa: DORINDO CARVALHO Paginação: L. F. G. Montagem, Impressão e acabamento: GRAFIRODA, LDA. DEPÓSITO LEGAL N.» : 113 448/97 ISBN: 972-8407-24-6 A u tor: Ost, François Título : A natureza à margem da lei : a ecologia à prova do d ( 349.6 085n) Registro : 031924 Ex: 1 Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer processo electrónico, mecânico ou fotográfico incluindo fotocópia, xerocópia ou gravação sem autorização prévia e escrita ao editor

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  • Titulo original:LA NATURE HORS LA 1.01

    Autor: FRANOIS OST

    Copyright:DITIONS LA DECOUVERTE, 1995

    Direitos reservados para a lngua portuguesa INSTITUTO PIAGET

    Av. Joo Paulo II, Lote 544, 2. - 1900 LISBOA TEL. 837 17 25

    Coleco:DIREITO E DIREITOS DO HOMEM

    sob a direco de ANTNIO OLIVEIRA CRUZ

    Traduo: JOANA CHAVES

    Capa: DORINDO CARVALHO

    Paginao: L. F. G.

    Montagem, Impresso e acabamento: GRAFIRODA, LDA.

    DEPSITO LEGAL N. : 113 448/97

    ISBN: 972-8407-24-6

    A u to r : Ost, Franois

    T tu lo : A natureza margem da le i : a ecologia p rova do d

    ( 349.6 085n)Registro : 031924 E x : 1

    Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer processo electrnico, mecnico ou fotogrfico

    incluindo fotocpia, xerocpia ou gravao sem autorizao prvia e escrita ao editor

  • FRANOISOST

    A NATUREZA MARGEM

    DA LEIA ECOLOGIA

    PROVA DO DIREITO

    INSTITUTOPIAGET

  • INTRODUO

    O VNCULO E O LIMITE

    Crise ecolgica? Avaliemos os factos: em Janeiro de 1972, o conselho municipal de Los Angeles decide plantar novecen- tas rvores de plstico ao longo das principais avenidas da cidade. So invocados bons argumentos: na atmosfera poluda da cidade, resistiro melhor do que as rvores verdadeiras (ou ser melhor dizer, de agora em diante, as de madeira?) e, pelo menos, aquelas um facto confirmado no perdem as folhas no Inverno1. No decurso do mesmo ano de 1972, tambm na Califrnia, uma outra histria de rvores: para se opor implantao, por parte da sociedade Walt Disney, de uma estao de desportos de inverno no Mineral King Valley, clebre pelas suas se- quias centenrias, uma associao de defesa do ambiente, o Sierra Club, apresentou uma aco na justia, logo rejeitada por falta de interesse pessoal pela causa. Em reaco ao sucedido, um jurista americano, Ch. Stone, redige imediatamente um artigo que viria a ganhar uma reputao universal, e no qual ele pro-

    1 Este facto relatado pelo Times de 8 de Fevereiro de 1972 ; sobre este assunto, consultar L. H. T R IBE , Way's not to think about plastic trees: new foundations for environmental law, The Yale LawJournal, vol. 83 , n. 7, Junho de 1974, p. 1315 e seguintes.

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    \|pe que se conceda s prprias rvores o direico de pleitear2. O artigo foi publicado precisamente antes do Supremo Tribunal de Justia pronunciar a sua deciso sobre o assunto; a tese de Stone ser rejeitada por uma escassa maioria de quatro juizes contra trs. Depois das rvores de plstico, eis pois as rvores pleiteantes!

    Se se preferir os animais s rvores, duas outras histrias. Um co havia sido enterrado na vala comum de um cemitrio para animais de Long Island, embora os seus donos tivessem pedido uma sepultura individual. Incumbido da aco judicial para reparao do prejuzo sofrido pelos donos, um juiz americano condena o director do cemitrio a pagar-lhes uma indemnizao de um milho de dlares por perdas e danos. O animal dever ento ser considerado como uma pessoa? No momento em que se poderia colocar esta questo, tomava-se conhecimento, por outro lado, que o Gabinete americano de patentes acabava de conceder uma patente aos investigadores da Universidade de Harvard pela criao de um animal transgnico: o rato Myc Mouse, cujo patrimnio gentico havia sido modificado com vista a implantar-lhe um gene hereditrio responsvel por tumores cancergenos3. Ser ento o animai, um objecto de laboratrio, um simples material de experimentao?

    Eis a crise ecolgica: a desflorestaco e destruio sisrem rira Has~espcies animais, sem dvida: mas, antes de mais e sobre- tudo, a crise cTa nossa representao da natureza, a crise da nossa relrnXhtureza. Comentando a deciso do conselho muni- cipal de Los A n g e l e s H . Tribe coloca a questo: W hats wrong with plastic trees4?; a propsito das rvores pleiteantes poder-se-ia igualmente colocar a questo: W hats wrong with standing trees? Ou, por outras palavras, o que que nos choca nestas histrias de rvores e animais, ora reduzidos a simples arti-

    2 Originalmente publicado em 1972, na Southern Califrnia Law Review, este estudo foi objecto, dois anos mais tarde, duma publicao sob a forma de ensaio: Ch. STONE, Should Trees have Standing? Toward Legal Rights for Natural Objects, Los Altos, Califrnia, 1974. O texto seguido da deciso do Supremo Tribunal de Justia (Sierra Club v. Morton, 19 de Abril de 1972).

    3 B. EDELMAN, Le droit et le vivant, La Recherche, n. 212 , Julho-Agosto de 1989, p- 966 e seguintes.

    4 /\rt. citado, p. 1318.

  • fcios, ora identificados como pessoas? Teremos ns perdido a natureza e o sentido da nossa relao com ela, que tenhamos de a trazer para ns prprios ou de a transformar em artefactos tecnolgicos? .-

    Esta crise simultaneamente a crise do vnculo e a crise do limite: uma crise de paradigma, sem dvida. Crise do vnculo: j no conseguimos, discernit-a que nos liga ao-animal ^ao que tem

    I;~te: j no conseguimos discernir o

    Este livro aborda a crise ecolgica sob o ngulo tico e jurdico; coloca portanto, inevitavelmente, a questo axiolgica: O que devemos ns fazer? Mas esta questo aqui tratada dentro do quadro que traa a problemtica cultural do vnculo e do limite. E efectivamente nossa convico que, enquanto no for repensada a nossa relao com a natureza e enquanto no formos capazes de descobrir o que dela nos distingue e o que a ela nos liga, os nossos esforos sero em vo, como o testemunha a to relativa efectividade do direito ambiental e a to modesta eficcia das polticas pblicas neste domnio.

    Considere-se o vnculo: o que liga e obriga (ligar, do latim ligar). So as linhas (tramas), as cordas, os ns, os laos, as ligaes, as afinidades, a aliana, a unio (emparehamento) e a filiao. As razes. O vnculo, ou o que permite a existncia duma oportunidade: um enraizamento, um lugar numa transmisso. O vnculo, ou a parte ligada, isto , o contrrio da parte inteira: ou, por outras palavras, a prpria possibilidade da alteridade e da partilha. Assim, o vnculo revela a sua natureza dialctica: se ele ancoragem e enraizamento, no pressupe menos a possibilidade do movimento e da separao. S se pode ligar o que , por natureza, distinto e virtualmente destacvel. A identrj dade procurada pelo vnculo , assim, condio da libertao/"*7 que, por sua vez, condio da obrigao livremente assumida;

    Considere-se o limite. Ele fronteira, barreira, confins e raia.O ponto onde qualquer coisa pra, ou mesmo o limiar que nunca ultrapassaremos, como o valor limite dos matemticos. Ele marca uma diferena que no podemos suprimir, a distncia entre um antes e um depois, um aqui e um acol. E no entanto o lim ite, tal como o horizonte, revela-se igualmente um conceito

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  • dialctico: princpio de encerramento, ele de igual modo princpio de transgresso. Se, por um lado, assegura a demarcaCH permite por outro a passagem. Ele ponto de permuta e, sim ulj taneamente, sinal de diferena. ^

    Assim: o vnculo, ou a identidade aberta; o limite, ou a diferena implcita (quer-se dizer: uma diferena relativa, ligada e separada). A tese fupHamenral r W a obra que a nossa poca j

    j perdeu, pelo menos depois da modernidade, o sentido do vnculojI edo limite das- suas letTcom a natureza. As duas grandesj '[representaes"ctualmente observveis dest relao so dissojjI t estem uiia: a que f:,7 da n a tn r m nm objecto e a que, por uma isimples alterao de signo, a transforma em sujeito.\ Ser necessrio tomar a medida exacta^desta dupla reduo, antagnica e contudo solidria, para colocar de novo e em novos moldes a questo ecolgica. A dialctica do vnculo e do limite ajudar-nos- nesse propsito, o que permitir definir os termos duma natureza-projecto: o que fazemos da natureza e o que ela faz de ns. Esboa-se a um novo campo de interdependncia, que designamos como meio, e em relao ao qual a questo do justo pode ser recolocada com alguma hiptese de sucesso.

    A modernidade ocidental transformou a natureza em ambiente: simples cenrio no centro do qual reina o homem, que ' Se utproclm~dono e senhor. Este ambiente cedo perder toda a consisencia ontolgica, sendo desde logo reduzido a um simples reservatrio de recursos, antes de se tornar em depsito de resduos - em suma, o ptio das traseiras da nossa tecnosfera. O que certo que o projecto moderno pretende construir uma supranatureza, medida da nossa vontade e do nosso desejo de poder. Em comparao com esta supranatureza, a natureza ainda natural faz figura de entrave incmodo. Galileu, o primeiro, liberta-se dela, recusando a linguagem dos sentidos e reescreven- do o mundo numa linguagem matemtica; Bacon refugia-se na utopia (a Nova Atlntida) para descrever o projecto moderno da tecnocincia; Descartes segue-lhes os passos e recria o mundo com um pouco de matria e de movimento. E o reinado do artifcio, da mquina e da automatizao, que assim se inaugura e triunfa hoje na unio entre o biolgico e o tecnolgico. A engenharia gentica produz matria viva de forma controlada em

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    laboratrio, enquanto que a indstria da comunicao integra o homem e o computador. Com as mquinas de produo da realidade virtual, a modernidade reencontrou o seu conceito: a realidade pode desaparecer, e o homem, acoplado ao aparelho, encerra-se numa liberdade sem paralelo. Ado (etimologica- mente, em hebreu: o filho da terra5) morreu; Cyborg (o organismo ciberntico) nasceu6. Com algum atraso, sem dvida, o jurista acompanha esta evoluo, e, quando apresenta ao corpo legislativo, a 17 de Janeiro de 1804, aparte do Cdigo Civil consagrada propriedade, Portalis pde celebrar uma instituio que permitir, a partir de ento, a plena apropriao dos recursos ambientais, a sua livre cesso e livre transformao sem qualquer entrave. A Holanda aqui elevada a paradigma da apropriao por transformao: pois no ela uma terra inteiramente obra dos homens7? Dois sculos mais tarde, o direito encerrar o crculo ao aceitar a patenteao da matria viva, incluindo as clulas humanas.

    No teria o projecto moderno de domnio tecnolgico triunfado bem de mais? Esta a primeira questo colocada pela crise ecolgica. No ter a supranatureza transformado a sua congnere em natureza morta? Tal como o aprendiz de feiticeiro de Goethe, parecemos ter perdido a fala e ameaam-nos novos cataclismos8.

    Quando as autoridades de Lekkerkerk - uma encantadora cidadezinha holandesa, da qual veio a saber-se um dia ter sido construda sobre um depsito de resduos altamente txicos impem a palavra de ordem de que no h qualquer contacto com o solo, somos levados a meditar sobre o que ser uma terra inteiramente obra dos homens e dir-se-ia que entre a subs

    O termo latino homo deriva, por sua vez, do indo-europeu (dhjghom-on aparenta-do com dhghem, que significa terra.Sobre Cyborg e realidade virtual consultar H. A CH TERH U IS, De illusie vangroen. Over milieucrisis en defixatie op techniek, Amsterdo, 1992, p. 36 e seguintes.

    7 Naissance du Code Civil, Flammarion, Paris, 1989, p. 274.Arrte, arrte! hlas! Je men aperois bien! Malheur! J ai bien oubli le mot! Hlas! et Cent Fleuves se dversent sur moi (G O ETH E, Ballades, trad. por L. Mis, Paris, 1924 , p. 125).

  • Vtncia total e a substncia pensante, o dualismo radical de Descartes levou bem longe a sua misso sombria. E quando uma jurisdio americana admite a patenteao das clulas humanas e o direito, para o interessado, de com elas fazer comrcio ento o homem transforma-se desde logo, ele prprio, em ob- jecto de laboratrio e em fundo de comrcio - , interrogamo-nos

    onde ter ido parar a pessoal. Descartes confessava princesa Tsabtir3"Bomia, que o cBrcava de questes sobre este ponto, que era necessrio renunciar ao dualismo para conceber a unio da alma e do corpo10. Pelo menos, julgava assim preserv- -lo para o que constituam as relaes entre o homem e o mundo. A crise ecolgica revela-nos hoje que, tambm neste domnio, o dualismo leva a um impasse.

    E agora bastante claro: este dualismo determina a perda do vnculo com a natureza, ao mesmo tempo que suscita a ilimi- tabilidade do homem. E o reinado da desmesura que se instala, da qual sabemos desde os Gregos ser, sob a forma de vppi, virtualmente trgica. Para reencontrar o sentido da mesura, ser antes de mais necessrio aceitar que ainda existe o dado, pois esse o sentido primeiro da natureza. A natureza precisamente. tanto na cpvci grega como na natura latina, o que nasce, o qne no cessa Hr fy-^h^r evicrm aq- n qnp cp d permanentemente. O dado igualmente um dom que apela, antes de mais, passividade do acolhimento e abertura da gratido. Este dom, que relembra que nem tudo est disponvel e fabricvel, tambm condio do simblico: uma vez que nem tudo passvel de ser dominado, abre-se um desvio onde tm origem o sentido e o trabalho de significao. Sem mesmo falar do sagrado, muito simplesmente a possibilidade de fazer sentido que garante o vnculo reconhecido em relao ao dado natural11.

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    9 Moore v. The regents of the Universicy of Califrnia, 249 Cal. Rptr (Cal. App.2 D ist. 1988).

    ^ Correspondance, citada por F. A LQ U I, artigo Descartes, in Encyclopaedia Universalis, Paris, 1976, p. 248.

    1 1 Neste sentido, E. de FONTENAY, Quelque chose comme du donn..., in La responsabilit. La com.uion de notre huvianit, Autrement (srie Morales), Paris, 1994, pp. 127-131.

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    Em compensao por este enraizamento perdido, a modernidade sonhava com um mundo novo produzido pelo cogito soberano. Depois de ns, o melhor dos mundos, pensar-se-ia. Mas interrogamo-nos, hoje, se este projecto de ilimitabilidade no seria to irresponsvel como a atitude dos que dizem depois de ns, o cataclismo. Os modernos tinham razo em pensar que o homem no se reduz natureza, e que a sua libertao em relao a esta o sinal mais seguro da sua humanidade; mas fizeram mal em esquecer queo limite (aqui a diferena hnmem-n^ tureza), se por um lado separae distingue Trnhm ngniloqnc liga. O limiteTuma diferena implcita, dizamos ns. Reten- ^dpenas a diferena e ocultando a implicao, os modernos con- duziram-nos pela via da ilimitabilidade e da irresponsabilidade.

    Em compensao, e em aplicao da lei da bipolaridade ds erros12, alguns defendem hoje uma inverso completa de perspectiva: no a terra que pertence ao homem, o homem que, pelo contrrio, pertence terra, como acreditavam os antigos. Esta tomada de conscincia, que se reclama de deep ecology (ecologia radical) por oposio sballow ecology (ou ambientalismo reformista)1-1, alimenta-se de um impulso romntico extraordinrio de retorno natureza, verdadeiro paraso perdido, to depressa adornado de todas as sedues da virgindade como da majestosidade do sagrado. relao cientfica e manipuladora com a matria, que uma relao de distanciamento e de objecti- vao, substitui-se uma atitude fusora de osmose simultaneamente culto da vida e canto potico, naturalizao do corpo e personalizao da natureza.

    E assim reactivada a mais antiga e mais poderosa de todas as fantasias: o deseio de retorno s origens. Atormentado pela angstia que suscitam as suas prprias empresas, o homem moderno retoma o discurso das origens sob a sua forma mais arcaica: a

    1 2 G. BA C H ELA RD , La Formation de lesprit scientifique, V rin , Paris, 1977 ,

    n p' m3 A. NAESS, The shallow and the deep, long-range ecology movement. A summary, Enquiry, 1976, n. 16, p. 95. Sobre esce movimento, consultar a sntese de R. F. N ASH , The Rights ofNature. A History of Environmental Ethics, Wisconsin, 1989 -

  • regresso no seio da prpria natureza, a Gaia genetrix das origens14. Desenvolve-se uma conscincia aguda da identidade entre todos os seres vivos, bem como entre estes e a terra que os suporta uma conscincia que j no apenas de ordem cientfica (a mensagem globalizante da ecologia erudita), mas, tambm e sobretudo, da ordem do mito fundador que confina com o pan- tesmo; alguns no hesitam em afirmar que o esprito no um privilgio da humanidade, mas uma propriedade planetria global.

    O homem deixa ento de ser a medida de todas as coisas: esta alarga-se, com efeito, ao universo inteiro (widening the circle, alargar o crculo, uma das palavras de ordem constantes do movimento). O homem , assim, descentrado e recolocado na linha de uma evoluo, no seio da qual no tem qualquer privilgio particular a fazer valer. Trata-se de adoptar, a partir de agora, o ponto de vista da natureza (pensar como uma montanha, poder-se-ia dizer), em que a organizao fonte de toda a racionalidade e de todos os valores (nature knows best, a natureza sbia, dir-se-ia tambm). As suas leis de cooperao, de diversificao e de evoluo impem-se como o modelo a seguir. Enquanto elemento deste mundo vivo, cada espcie, cada lugar, cada processo, revestido de um valor intrnseco. No plano jurdico, tratar-se- de reconhecer-lhe a personalidade e conferir-lhe os direitos subjectivos que lhe so necessrios, como o direito de pleitear.

    O universalismo substituiu-se assim ao individualismo, p n monismo ao dualismo. Assim se explicam os numerosos desvios que se verificam na deep mlaw do homem para as coisas, dn es- pirito para o vivo, das leis da cidade para as leis da natureza. Tendo o crculo sido desmedidamente alargado, toda a distino entre o interior e o exterior abolida. Do mesmo modo, tendo sido suprimida toda a noo de hierarquia, instala-se o reinado da imanncia: tudo faz sentido de forma igual, o curso dos astros como a cultura, as migraes das aves como os preceitos da tica.

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    ^ P. V ILLA N I, La nacure-origine: le fantasme de la cration, in Analyses et reflexiom sur la nature, Eipses, Paris, 1990, p. 8 e seguintes.

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    Enquanto que, na escola do direito natural moderno, a insegurana do estado da natureza era invocada para justificar a passagem ao estado civil, garante da paz social sob o imprio de uma lei comum, aqui o argumento funciona ao contrrio: a evocao das ameaas engendradas pelo modelo industrial de crescimento que justifica a defesa do retorno a qualquer coisa como o estado da natureza, sob o imprio de uma lei natural reencon-

    ^trada. A. Leopold apela a uma cidadania bitica, e considera que a tica do solo (land ethic) que a inspira tomar por modeloo instinto animal15. Quanto a K. Meyer Abich, este evoca a constituio de um Estado natural (Naturstaat), no seio do qual seria consagrada a igualdade dos direitos de todos os membros da comunidade jurdica natural (natrliche Recktsgemein- schafi)16.

    Compreende-se facilmente porque que este modelo de na- tureza-sujeito no consegue superar o modelo da natureza-objec- to, no pensar do vnculo e do limite que caracterizam a relao do homem com a natureza. Tornando ilimitado o reino do natural, a pretexto, nomeadamente, de uma poderosa mitologizao da vida, suprime-se por completo a parte do cultural; ou, o que vai dar ao mesmo, ocultando integralmente as duas esferas, abstemo-nos de pensar os seus vnculos: com efeito, s podem existir vnculos entre elementos previamente reconhecidos. Assim, este confusionismo identitrio gera dois erros opostos e, no entanto, solidrios: o naturalismo e antrnpomnrfkmn F.m virtude do primeiro, a natureza projectada na cultura que acaba em absorver por completo. Ela no somente princpio de vida, mas tambm norma de conhecimento e regra de aco. De modo inverso, em virtude do antropomorfismo, o homem projecta na natureza a sua viso das coisas, uma determinada viso das coisas, necessariamente datada e localizada. Encerramo-nos, assim, numa dupla contradio performativa. Condenando o homem

    15 A. LEOPOLD, A Sand County Almanac, Nova Iorque, 1966 (1.* edio, 1949),

    16 P - 2 1 9 'K . M EYER A BICH , Dreissig thesen zur praktischen Naturphilosophie, in L BBE e ST R K ER (edts.), kologische probleme im kulturellen Wandel, 1986 , p. 104.

  • imanncia absoluta da ecosfera, recusando-lhe toda a possibili- dade de libertao e qualquer outra historia que no a da pvnln. natural, torna-sc nupensvel e impossvel a expanso da moralidade c du conhecimento que reclamam a tica e 0 direito pr parte do indivduo lespunsvel. Dc niudu inverso, fugindo ao a p a g a m e n r o diante da voz da natureza, no podemos abs- ter-nos de lhe ditar as notas da partitura. Seja como for, mesmo que se atribuam direitos natureza, como o direito de pleitear

    - - - J - * ---- i tr: xr_ii__o- -----------I que Ch. Stone reclamava para as sequias do Mineral King Valley, 'seremos sempre ns a dar voz natureza. \

    O retorno das coisas, que a deep eclgy pretende operar, no , portanto, um retorno justo das coisas. Mais do que alargar levianamente a categoria do sujeito, com o risco de perder o homem, convm estabelecer a parte das coisas e encontrar, assim, o sentido do vnculo e do limite nas nossas relaes com a natureza. A nica maneira de fazer justia a um (o homem) e a outrl

    i(a natureza), afirmar simultaneamente a sua semelhana e a sua\ [diferena. Se o homem um ser vivo, ele tem tambm - o que um privilgio exclusivo - a capacidade de liberdade e gerador de sentidos, sujeito de uma histria, autor e destinatrio de regras. Se a natureza, no decorrer da sua evoluo, produziu a espcie humana qual assegura diariamente as condies de sobrevivncia, ela tambm, para o homem, completamente diferente, absolutamente estranha. Homem e natureza tm um vnculo, sem que, no entanto, se possam reduzir um ao outro.

    Ao dualismo e ao monismo, essas duas abordagens reducio- nistas e, em ltima anlise, complementares, necessrio contrapor uma ideia da mediao, uma ideia do meio que assegura o retorno do terceiro. Monismo e dualismo engendram a ex- ciusSTttTterceiro sendo, alm disso, teorias potencialmente mortferas. Porque do terceiro e do espao intermdio, que o seu espao de criao, que vm a vida, o sentido e a histria. Para determinar este terceiro das relaes homem-natureza. ser n e c e s s r i o comear por elaborar um saber ecolgico realmente n t e r d i s c i p l i n a r : no uma cincia da natureza, nem uma cincia do homem, mas uma cincia das suas relaes17. A questo da

    q j jvro publicado sob a direco de M. JO LLIVET, Entre nature et socit: les

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    paisagem (essa bela palavra que parece resultar da sobreposio de pas e imagem) pode servir aqui de paradigma: pois no , indistintamente, realidade fsica e produto social? Enquanto resultado, em constante transformao, dos costumes sociais de um determinado local, a paisagem evolui entre natureza e sociedade; ela simultaneamente natureza-objecto e natureza-sujeito. Neste sentido, a ecologia poderia ser a cincia por excelncia dos hbridos estudados por Bruno Latour: hbridos, quase objec- tos, terceiro estado, imbrglios de natureza-cultura que frustram a grande partilha que os modernos tinham acreditado poder instaurar entre coisas em si, objectos do conhecimento, e humanos entre si, sujeitos da aco18.

    Por sua vez, este saber interdisciplinar pressupe a adopo de uma viso do mundo dialctico. A dialctica , por excelncia, a ideia dos vnculos e dos limites. Ela , por exemplo, o ponto de vista adoptado por Edgar Morin, quando este diz que o homem guia e segue simultaneamente a natureza19; igualmente dialctica a posio do astrofsico-filsofo Hubert Reeves, para quem o homem, dentro e fora da natureza, pode ser considerado hoje como conscincia da natureza, voz da natureza, e, nesta qualidade, forado a tomar a seu cargo o futuro da complexidade20.

    A dialctica esta filosofia, simultaneamente muito antiga e muito moderna, para a qual os elementos apresentados como antagnicos (o masculino e o feminino, a vida e a morte, mas tambm o homem e a sociedade, a sociedade e a natureza...) tm, na realidade, um vnculo, no passando um sem o outro. Sem dvida, porque c ad a u m destes elemenLQS-Xontm^-pelo-me-nos virtualmente, uma parte do outro (o homem tambm um peda- ~cfd natureza e, em contrapartida, a natureza produz a homi- nizao). Daqui resulta um jogo permanente de interaces, que contribuem para redefinir os termos existentes, surgindo em

    passeurs de frontieres (CN RS, Paris, 1992), pode ser considerado como uma das obras mais avanadas nesta perspectiva.B. LATOUR, Nous n avons jamais t modernes, La Dcouverte, Paris, 1991 , p. 20 .

    19 E. M O RIN , La Mthode. La vie de la vie, Le Seuil, Paris, 1980, p. 96.~ H. REEVES, Malicome, Le Seuil, Paris, 1990, pp. 157 e 162.

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    ltima anlise como determinante da sua prpria identidade, a relao transformativa que se estabelece entre eles.

    A esta relao, propriedade emergente da ligao home -natureza, chamamos meio. Eis o nosso hbrido, quase objec- t quase sujeito, como se queira, que determinar os vnculos e traara us limites. J no se trata aqui de pensar em termos d ambiente (natureza-objecto: o homem no centro, rodeado por um reservatrio natural, talhvel e avassalvel discrio), nem to-pouco em termos de natureza (natureza-sujeito: no seio da qual o homem imerso, sem que lhe seja reconhecida qualquer especificidade).

    / No espao intermdio entre a natureza e o artifcio, trata- -se de dar corpo a esse campo de transformaes recprocas do humano pelo natural e do natural pelo humano. De igual mod7~ de natureza^proiecto que se fala aqui: o que a natureza faz de ns, o que ns fazemosdeliuTJm suma, uma histria e um senti- doTbcni '-umo uma direco e um significao.

    Esta natureza-projecto no uma nova encarnao do ideal moderno de transformao do ambiente, de que a figura contempornea do especialista eclogo, que determinaria as condies necessrias sobrevivncia numa natureza planificada, seria o arqutipo. Uma vez que o projecto em causa tambm o da natureza, uma natureza que nos lembra o respeito pelo dado. Um dado que d que pensar e que, desde sempre existente, tem origem bem antes de ns e vai bem mais alm, suscitando uma reaco tica da ordem da responsabilidade. A responsabilidade resposta a uma interpelao; a nascente: o apelo de uma natureza que se d e que, enquanto patrimnio precioso, se foi enriquecendo com o trabalho e as significaes trazidas pelas geraes precedentes; a jusante: o apelo das geraes futuras, cuja sobrevivncia depender da transmisso deste patrimnio.O projecto -o tambm: a inscrio na permanncia, a projec- o num futuro razovel; os moralistas falaro de responsabilidade com respeito s geraes futuras, os economistas calcularo as condies de um desenvolvimento sustentvel, os juristas estabelecero os critrios da transmisso de um patrimnio.

    Assim se esboam as condies de possibilidade de um meio justo: a limitao da nossa vontade actual de poder e de usu-

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  • ruto o garante do estabelecimento de vnculos com as geraes que nos precederam e com as que nos sucedero. Longe de ser um meio termo medocre entre dois extremos, o meio justo surge como uma alternativa radical: radicalidade da exigncia tica da partilha, radicalidade epistemolgica do espao intermdio (o. meio como tenso entre objecto e sujeito).

    E temos ento, por sua vez, o jurista mobilizado, intimado a imaginar as condies normativas deste meio justo: o que Reeves designa como uma legislao da complexidade21; no apenas um simples direito do ambiente (inscrito na perspectiva da na- tureza-objecto salda-se necessariamente em prejuzo), mas uma ecologizao do direito que ultrapassa os dualismos clssicos sem cair, no entanto, no confusionismo da deep ecology. Abordaremos este aspecto nos dois ltimos captulos deste livro, consagrados respectivamente s ideias de responsabilidade e de patrimnio, e a partir das quais deveria ser possvel reorientar o direito do meio.

    Mas este intento pressupe uma concordncia prvia quanto ao papel que o direito pode ter na sociedade. Com efeito, pensamos que os muitos reveses do jurdico que se verificam hoje, explicam-se por um desconhecimento ou um esquecimento da sua natureza real. Muito frequentemente, o jurista fica confinado ao papel de escrivo de regras, cujo contedo, seno a forma, so ditados pelos representantes de outras disciplinas. Muito frequentemente, o direito reduzido sano penal, que no lhe contudo essencial, e levado a reboque de dados empricos, que lhe podem ser perfeitamente estranhos. No limiar de um projecto que pretende reflectir sobre a proteco do meio pelo direito, importa, pois, explicar o que temos direito a esperar do jurdico.

    A imagem da justia, associada aos trs smbolos do gldio, da balana e da venda, pode servir aqui de arqutipo de todo o direito. Tomemos o gldio. Ele lembra a existncia de interesses antagnicos e de conflitos, a presena do erro e do inaceitvel, assim como a necessidade de cortar. Por oposio a um

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    unanimismo enganador (todos so amigos do ambiente), o direito no recua diante da manifestao de conflitos. Paradoxalmente, se ele exerce um papel pacificador na sociedade porque permitiu primeiro, que os antagonismos se manifestassem. Aqui, a linguagem do direito distingue-se da linguagem do dinheiro e da nguagem da imagem. O dinheiro induz um modelo de regulao gerencial, que conduz negociao e ao compromisso: o dinheiro esse equivalente universal que permite comprar tudo e compensar tudo, enquanto que, pelo menos em alguns casos o direito fixa os limites do indisponvel. Quanto imagem, a qual induz um modelo de regulao meditico hoje cativante, funciona igualmente como um equivalente universal, agora de tipo fascinatrio ou hipntico: o quadro idlico de uma natureza virgem, com que nos iludem hoje os media, distancia-nos da realidade a pretexto de dela nos fazer aproximar.

    Tomemos a balana. Ela sugere a operao que consiste em equilibrar, comparar, pr em equivalncia. O jurista, semelhana do juiz, pratica a arte da considerao sistemtica de todos os pontos de vista pertinentes. Assim sendo, relativiza uns em relao aos outros: ajusta-os e coloca-os em proporo. A sua arte a arte da medida, no duplo sentido de apreciao de uma grandeza e de uma limitao. Neste sentido o direito, que h pouco surgia sob a sua faceta autoritria (fazendo-se passar por autoridade, em nome de valores superiores), revela-se agora sob um outro ngulo: ele igualmente capaz de tomar em conta os factos empricos pertinentes e os diferentes interesses afectados. Se bem que se sirva do gldio quando preciso, o direito sabe igualmente assegurar a gesto funcional dos subsistemas sociais.

    Mas o terceiro atributo da justia, a venda, que revela o segredo deste subtil equilbrio entre o gldio e a balana. A venda antes de mais, obviamente, a imparcialidade que se espera por parte do juiz e da justia - o vu da ignorncia de que John Rawls faz hoje a condio de uma negociao equitativa22. Os olhos vendados suscitam o olhar interior que se volta para a verdade e para a justia, como o do adivinho Tirsias na tragdia de

    22 j RAWLS, Thorie de la justice, trad. por C. Audard, Le Seuil, Paris, 1977.

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    Sfocles. Para o jurista, no quotidiano o smbolo da venda implica uma metodologia da dvida, que o leva no apenas ao questionamento sistemtico do ponto de vista minoritrio (audi et alteram partem) mas tambm resistncia aos paradigmas cientficos dominantes, bem como pseudo-evidncia dos factos. A sua tarefa administrar a justia e no descrever a realidade: afirmar o direito implica uma arbitragem entre verdades mltiplas, que se articulam frequentemente em planos distintos23. De igual modo, o jurista no dever deixar-se ir a reboque destas, ainda que incorra nas acusaes de legalismo e de falta de realismo.

    Se, por um lado, deve recolher cuidadosamente a opinio do especialista eclogo ou economista, o legislador ou o juiz no devero, no entanto, decalcar a regra pela norma tcnica que aqueles propem, sob pena de se enfeudar ao eco-poder de que fala P. Lascoumes24.

    que, mais concretamente ainda, a venda lembra o facto de que o direito instituio, no sentido mais profundo do trmo. Ele institui a sua realidade, ele impe a sua viso das coi-

    \sas. ainda que tomando-a por fico. Pouco importa, desde que a fico seja operatria e traduza um sentido colectivamente decidido. Essa a funo essencial do direito, tantas vezes esquecida hoje em dia: afirmar o sentido da vida em socied a d e Para alm das suas funes repressivas e administrativas, o direito , antes de mais, isso mesmo: uma palavra, socialmente autorizada, que denomina, classifica e arbitra. O modo que lhe prprio no , por conseguinte, tanto o indicativo que descreve ou o imperativo que ordena (a ordem tambm aco do tirano), mas sim o performativo que cria uma realidade, pelo simples facto de a enunciar. Assim, o direito poder qualificar determinados

    D Neste sentido, consultar A. SUPIOT, Critique du droit du travail, PUF, Paris, 1994, p. 264: O jurista dever sempre recordar a existncia de outras normas face normatividade dominante, quer esta advenha das cincias sociais (como hoje a economia e a gesto no domnio do trabalho) ou das cincias exactas (como hoje a cincia mdica que domina nas comisses de tica).P. LASCOUM ES, Uco-pouvoir. Environnements et politiques, La Dcouverte, Paris, 1994.

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  • !elementos da natureza de patrimnio comum da humanidade, impor deveres em nome de uma responsabilidade com respeito s geraes futuras, ou ainda declarar indisponvel o corpo humano, mesmo que as prticas efectivas vo no sentido contrrio e que a realidade no d crdito a tais fces. Produtor de fices operatrias, o direito atribui o social a uma transcendncia que se ope simples instrumentalizao da lei, prestando-se simultaneamente a uma reinterpretao permanente sob a forma do debate argumentado: a transcendncia em causa no conduz, com efeito, a um absoluto saturante (neste caso, haveria evidncia da verdade e a venda seria retirada), mas actua antes como uma casa vazia, um princpio irresolvel, que autoriza a busca permanente da sua formulao mais justa.

    Entendido assim como arte de decidir sobre um fundo de irresolubilidade, o direito surge particularmente adaptado para a tarefa que consiste em ligar os vnculos e demarcar os limites. O direito articula o vnculo social e procede dele. Impe uma lei comum, que atribui a cada coisa o seu lugar e a cada pessoa o seu papel. Assim, ele define a rede das obrigaes, o labirinto das alianas, a linha das filiaes, tudo noes directamente derivadas do ligare latino. Mas se ele formula esta lei comum, porque ele prprio dela procede: a histria ensina-nos que, antes da lei vem o contrato, ou a obrigao espontaneamente assumida. O direito natural moderno, que articula a seqncia estado de natureza (guerra e insegurana) contrato social (lei), no faz, a este respeito, mais do que redescobrir a seqncia bblica: cataclismo (caos e indistino)-aliana (recortes nonicos da lei). O que est primeiro e permite libertarmo-nos da indistino e da violncia originais, , pois, o sponsio, o acto jurdico de promessa e de compromisso que, ligando o vnculo social, assina a responsabilidade e a obrigao. Assim, antes de dedicar toda a sua ateno lei, como o faz habitualmente, o jurista deveria debruar-se sobre as condies de xito deste compromisso liminar.

    Assumir a sujeio do vnculo tambm aceitar o traado dos limites. O direito surge, a muitos ttulos, como a arte de estabelecer este traado. Fazendo a separao das coisas, determina o meu e o teu, desenha as fronteiras entre Estados e traa os limites das heranas privadas.

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    22

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    E no atribui Michel Serres a origem do direito interveno, no Egipto antigo, dos arpedonaptas, funcionrios reais agrimen- sores e gemetras que, aps cada cheia do Nilo, mediam de novo as terras amalgamadas pela lama e pelo lodo para as redistribuir ou atribuir as suas partes25 ? Mais concretamente, o direito estabelece as distines entre as categorias, fixa hierarquias entre os valorei, ifllbe prioridades: assim, luta permanentemente conrra a mdiferenciao e a confuso. Ele lembra, por exemplo, que o hmem nao e um anmal~ou ainda, que o vivo no pode redu- zir-se ao artificial. Recorde-se, a este respeito, o exemplo de Antgona: no apenas se separa ela prpria, por um gesto de rebelio, da confuso totalitria qual ope o direito justo, como, assegurando uma sepultura ao seu irmo Polinices, separa o homem (ainda que traidor da sua ptria) do animal e o vivo do morto. Como salienta M. Vacquin, ela regenera as distines fundamentais, restitui sentido e vida s palavras e s coisas. Uma nova oportunidade para a cultura, uma nova criao26.

    Quando necessrio o direito ope-se assim desmesura, fixando limites e interditos (subentendendo a propsito dos direitos fundamentais que, em nome da liberdade, somos muito naturalmente levados a absolutizar), assim como assume a rdua tarefa de julgar e, por vezes, de condenar (julgamento, condenao e punio so ainda uma forma de praticar a arte do limite: com efeito, atravs deles pe-se termo ao ciclo, virtualmente infinito, da violncia, bem como ao abismo do ressentimento e da culpabilidade).

    Alm disso, o direito pratica tambm, em relao a si mesmo, essa arte do vnculo e do limite. Se, por um lado, consegue restringir e impor a sua lei, por vezes mesmo com a ajuda da sano, sob a forma do direito positivo, tambm consegue, por outro, desdobrar-se e anular-se, distinguindo o direito natural d

    s direito positivo. O direito natural esse outro eu do direito, a sua parte ideal e no escrita, que poderia muito bem ser o seu

    5 M. SERRES, Le Contrat naturel, Franois Bourin, Paris, 1990, p. 87.M. VACQUIN, prefcio de La Responsabilit. La constitution de notre humanit, op. c i t p. 1 2 .

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    futuro e o seu prprio princpio de legitimidade. No um direito escrito na natureza, como o professa a deep ecology, mas por vezes um direito para a natureza.

    Situada no cruzamento entre o direito natural e o direito positivo, esta obra pretende, por seu turno, jogar o jogo do vnculo e do limite, e assim dar alguns passos no sentido da instituio de um meio justo.

    n

  • 1A NATUREZA-OBJECTO

  • CAPTULO 1

    O ARTIFCIO, PARADIGMA DE UM NOVO MUNDO

    Em 1644, Descartes estabelece uma analogia entre mecanismo de relojoaria e maturao dos frutos. Um mundo novo abre-se assim, ao Ocidente racionalista, o mundo do artifcio, o qual logo se imaginar ser, em muitos aspectos, superior ao mundo natural.

    NATUREZAS MORTAS CALIF0RN1ANAS

    Quando, em 1972, o conselho municipal de Los Angeles decide plantar novecentas rvores de plstico ao longo das principais avenidas da cidade, o vaticnio de Roland Barthes junta- -se ao sonho de Descartes: o mundo inteiro pode ser plastificado1. Bem entendido, uma tal transformao implica igualmente algo como uma plastificao das mentalidades, para ser aceite como

    R. BARTH ES, Mithologies, Le Seuil, Paris, 1957, p. 173. R. Barthes explica ainda que a artificializao do mundo, tornada possvel pelo plstico, transforma at a prpria funo da natureza: esta deixa de ser a ideia a reencontrar ou a imitar, a partir do momento em que uma matria artificial, mais fecunda que todos os jazigos do mundo, a substitui, comandando a prpria inveno das formas A hierarquia das substncias abolida, uma nica substncia subs- titui-as a todas.

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  • A N A TU R EZA M A R G E M DA LEI

    natural. A revista Science, que consagra um artigo aprovador deciso tomada pela municipalidade de Los Angeles, escrever, a este propsito, que a necessidade de natureza selvagem manifestada pela populao educa-se e manipula-se, e que compete s polticas pblicas fazer uso de substitutos susceptveis de suscitarem um sentimento de natureza a custos reduzidos^.

    Mas a Califrnia e a Florida faro ainda melhor na via do falso natural. As rvores de plstico no so ainda seno um artifcio natural, o falso grosseiro, o subterfgio aparente. A perfeio do simulacro atingida, em contrapartida, quando se consegue produzir uma natureza artificial: ou seja, uma verdadeira natureza fisiolgica, biolgica, ecolgica - inteiramente falsas. Umberto Eco, perito em falso, percorreu alguns destes novos parasos artificiais, que tm por nome Sea World, Wild Animal Park, Jungle Gardens, Marineland '. Nestas disneylndias para animais, tudo verdadeiro e tudo falso. Em nenhum outro lugar os animais selvagens dispem de tanto espao; o seu cenrio natural reconstitudo at ao mnimo dos detalhes. O prprio visitante tem que caminhar horas e horas para tentar descobrir este ou aquele animal como o rarssimo koala australiano, smbolo do Zoo de San Diego, dedicado s espcies em vias de extino, que se esconde nas suas plantaes de eucaliptos. O prprio facto de no ser garantida a sua descoberta faz parte da encenao, e no ser esta a melhor forma de sugerir que o koala est realmente livre, num ambiente verdadeiramente natural?

    Noutros locais, no entanto, o propsito mais claramente moralizador, como se importasse dissipar os restos de culpabilidade que inspiraria, talvez ainda, a nossa maneira de tratar a natureza. Assim, no Marine World de So Francisco est instalado um Ecology Theater, onde se exibe todos os dias a representao da nova fbula ecolgica, diante de um pblico apaziguado e comovido, assistentes exibem tigres, leopardos e lees, tambm eles calmos e serenos, porque vivem num ambiente amigo,

    ^ Citado por L. H. T R IB E , art. cit., p. 1316.* U. ECO , cologie 1984. Et le Coca-Cola s est fait chair, in La Guerre du faux,

    Grasset, Paris, 1985, p. 74 e seguintes.

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    explicam elas; as crianas so mesmo convidadas a virem acariciar as feras. Assim se celebra, quotidianamente, a festa da nova paz natural, de agora em diante conseguida entre os homens e os animais, enfim reconciliados. O que de artificial e de correc- o foi necessrio (inclusive por parte do pblico) para se chegar aqui, est, como evidente, cuidadosamente dissimulado. Somente os espritos mais inquietos se preocuparo com um mundo onde, para sobreviver como, nas suas prprias terras, os ndios confinados s suas reservas os animais selvagens so, a partir de agora, constrangidos a aceitar o mercado que lhes impe a indstria da falsificao: a sobrevivncia pelo preo da colaborao, o sustento pelo preo da docilidade.

    De resto, os ltimos escrpulos sero ultrapassados pela representao, em contraponto destes parasos artificiais, de infernos artificiais, destinados a estigmatizar a selvajaria brutal da natureza e a exorcizar os nossos medos ancestrais a seu respeito, pela celebrao do triunfo final do homem sobre a fera: a algumas centenas de quilmetros dos Marine World californianos encontram-se os estdios de Hollywood, onde se filmam Les Dents de laMer e outros Jurassic Park... Tubares assassinos e dinossauros enfurecidos lembram-nos as virtudes da ordem do mundo imposta pela pax humana.

    Arvores de plstico, zoos de cinco estrelas, monstros assassinos: trs verses de um mundo mais verdadeiro que o natural, que revela, como uma gigantesca metfora, o tipo de relao que estabelecemos com a natureza: o substituto plastificado, porque mais cmodo e menos dispendioso, o paraso ecolgico para conservar o sonho de uma idade de ouro naturalista, o thriller pr- -histrico, para nos convencermos dos benefcios da civilizao homindea. Que tudo isto repousa, em ltima anlise, em trunca- gens, passa depressa despercebido, to eficaz a conjuno do conforto de uma antroposfera totalmente fabricada e da doura da promessa de uma biosfera virgem e consentidora.

    Dupla manipulao, dupla falsificao: no apenas o artefacto concreto dado pelo natural concreto, como tambm o sonho (ou o pesadelo) substitudo, no plano das representaes, pela experincia real que se pode ter com a natureza. Ser porque o homem urbano encontra to raramente a natureza, ou porque a

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    natureza est de tal modo degradada, que ele se deve satisfazer com estes sucedneos e estas miragens? E, no entanto, embora doente ela existe. Por agora (mas por quanto tempo mais?), no nos satisfazemos verdadeiramente com estas leas de rvores artificiais: o Times das semanas seguintes notava uma vaga de vandalismo sem precedentes, que constrangia a municipalidade a abandonar o seu programa de plantao. Podemos ento colocar a questo semelhana de L. H. Tribe: Whats wrong with plastic trees? O que que nos choca neste caso? Responder a esta questo leva-nos a reflectir sobre o tipo de relao que estabelecemos com a natureza, incluindo a nossa prpria natureza. No basta, como evidente, dizer que esta relao se economizou, reduzindo-se a um clculo de custos-benefcios. Para alm desta primeira reduo, ser necessrio demonstrar que ela se antropo- morfizou, sendo a natureza reduzida aos interesses exclusivos da espcie humana, e, finalmente, que se individualizou por completo, sendo os prprios interesses humanos medidos em funo de preferncias individuais.

    Para alm da racionalidade utilitarista, o que aqui triunfa, em definitivo, uma concepo da liberdade isenta de toda a espcie de constrangimentos, tanto sociais como naturais; uma liberdade sem corpo, sem dono nem terra, uma liberdade que se nutre a si prpria, apoiada na fora exclusiva do desejo que a inspira e na vontade que a exprime.

    m MUNDO A NOSSA IMAGEME em Descartes e noutros pensadores eruditos do seu sculo

    que procuraremos os indcios, mais claros, do redemoinho que conduz hoje a uma tal ruptura entre o homem e a natureza. Mas o movimento remonta ainda mais longe e mais alm. De certa forma, desde a origem, desde a apario da espcie humana, que o homem transforma a natureza. Como qualquer outra espcie natural, o homem, s pela sua presena, pesa sobre os ecossistemas que o abrigam; como qualquer outro ser vivo, o homem retira recursos para assegurar a sua sobrevivncia e rejeita matrias usadas. Alm disso, e ao contrrio das outras espcies, o

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    homem simboliza; no se contentando nunca em registar o espectculo da natureza, ele forja uma determinada representao desta, um conjunto de imagens que condicionaro os usos que se achar autorizado a fazer dela.

    Assim, o homem humaniza a terra, imprime-lhe a sua marca fsica e reveste-a de smbolos que a fazem falar uma linguagem para ele inteligvel. Mas, ao contrrio do homem moderno, que, liberto de todas as amarras cosmolgicas transforma descomedidamente o mundo natural com a sua tecnologia, o homem primitivo no se arrisca a perturbar a ordem do mundo seno mediante infinitas precaues, consciente da sua pertena a um universo csmico, no seio do qual natureza e sociedade, grupo e indivduo, coisa e pessoa, praticamente no se distinguem. Os antroplogos evocam os inmeros ritos, por meio dos quais as sociedades tradicionais procuram reconciliar-se com os elementos naturais ou recompensar as perdas operadas: as moedas atiradas aos cursos de gua antes de os atravessar, as autorizaes solicitadas aos espritos da floresta antes de proceder s queimadas, o estatuto marginal reservado s vilas de ferreiros (muitas vezes prisioneiros de guerra), cuja arte sacrilgio que consiste em retirar o metal das entranhas da terra e transform-lo depois de aquecido4.

    Tudo isto se explica no quadro de uma representao holista, para a qual o homem no tem existncia fora do grupo, do mesmo modo que o grupo humano apenas pode ser compreendido no quadro da sua pertena natureza. Mesmo a nossa separao moderna entre as coisas e as pessoas no tem lugar num tal universo: por detrs das pedras, das rvores e dos cursos de gua perfilam-se deuses e espritos, enquanto que as coisas prolongam as pessoas, como as terras da linhagem, que so inalienveis, ou os utenslios da vida corrente que acompanham o defunto na sua sepultura. Pela magia, actua-se sobre as coisas para atingir as pessoas; pelos sacrifcios, actua-se sobre as pessoas para se conseguir a conciliao com as coisas.

    Assim, a natureza permanece encantada, ordenada para fins que ultrapassam o humano, no podendo este conceber a sua sobrevivncia seno na submisso aos seus ritmos e s suas leis.

    ^ N. ROULAND, Aux confins du droit, Odile Jacob, Paris, 1991, p. 242.

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    O que no impede que, desde o incio, Prometeu se tenha libertado. Ainda que, a princpio, o ignorasse ainda ou preferisse ignor-lo, o homem decide-se, pelo menos a partir do momento em que se instauram as primeiras civilizaes agro-pastorais, pela via de uma dupla transformao da natureza: transformao simblica pelo sentido que impe sua aliana com o mundo, mutao ecolgica resultante da sua maneira to especfica de ordenar os ecossistemas que habita.

    pois, desde h milnios, que o homem polui o seu ambiente e o submete ao dzimo. O oposto comprovado por antigos interditos rituais e tabus sazonais, de que eram objecto alguns recursos frgeis, e que testemunham uma preocupao bastante precoce por uma gesto duradoura da natureza. Do mesmo modo, textos muito antigos revelam a ancianidade das questes ambientais e a vontade dos homens em as solucionar: o direito florestal nasceu na Babilnia em 1900 antes da nossa era; o cdigo hitita, redigido entre 1380 e 1346 a. C., contm uma disposio relativa poluio da gua (uma multa de trs siclos de prata ser cobrada por qualquer contaminao de um reservatrio ou de um poo comum). Em 1370 a. C., o fara Akhenaton ergue a primeira reserva natural; no sculo III antes da nossa era, um imperador indiano, Asoka, adopta um dito sem dvida o primeiro da Histria - que protege diferentes espcies de animais selvagens5.

    Como contraponto destes textos, pode-se deduzir a realidade da presso a que o homem sujeita o seu ambiente: o desenvolvimento da agricultura, da criao de animais, da silvicultura, do artesanato pr-industrial, implicam a secagem das zonas hmidas, a desflorestao das zonas arborizadas, a rarefaco de numerosas espcies selvagens e a reduo da variedade das espcies vegetais. claro, no entanto, que a densidade ainda fraca da populao humana, assim como a relativa discrio das suas actividades transformativas, explicam que a presso exercida sobre os meios naturais seja ainda moderada e parcelar. Ao que se acrescenta o facto, realmente essencial, da antropomorfizao da

    5 S. LYSTER, International Wildlife Law, Cambridge, 1985, p. xxi.

  • r0 artifcio, paradigma de um novo mundo

    natureza se exercer a um ritmo extremamente lento, o que permitir s espcies, tanto vegetais como animais, o tempo necessrio adaptao. As espcies melhor adaptadas encontraro mesmo, graas a estas demoras, oportunidade para alargarem os seus nichos ecolgicos. Os pases que sofrem hoje os mais graves desequilbrios ecolgicos so, pois, aqueles que conheceram as rupturas mais brutais, como o caso dos pases no europeus, onde, paradoxalmente, a industrializao mais recente. A, a natureza no beneficiou do tempo necessrio para se adaptar. A extino, em alguns decnios, das manadas de bisontes e a eroso dramtica das terras do Oeste americano, em conseqncia de uma explorao excessiva, constituem exemplos, entre outros, desta desagregao6.

    Desde a origem, portanto, que o homem transforma o mundo que o rodeia. Transformao discreta e como que carregada de culpabilidade num primeiro tempo, que depressa se tornar brutal, macia e dominadora. Numerosos autores imputam uma grande parte da responsabilidade s religies judaica e crist, nesta mudana de atitude em relao natureza.

    Ser exacto afirmar ter sido a Bblia a libertar o homem de todo o comedimento na sua forma de habitar o mundo? Em trs passagens, um facto, a narrativa do Gnesis descreve a maneira como Deus confia ao homem o dominium sobre a criao. Gnesis (i, 26): Ento Deus disse: Faa-se o homem nossa imagem e semelhana. Que este reine sobre os peixes do mar, sobre as aves do cu, sobre o gado e sobre toda a terra. [...] Deus criou o homem sua imagem; criou-o imagem divina, criou o macho e a fmea. E Deus abenoou-os: Frutificai-vos, disse, multiplicai- -vos, povoai a terra e dominai-a. Reinai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos cus, e sobre todos os animais que se arrastam sobre o solo. E Deus disse: Dou-vos toda a erva que semeia toda a superfcie da terra, bem como todas as rvores de fruto com semente; este ser o vosso alimento. No segundo relato do Gnesis (n, 20) Deus apresenta ao homem os diferentes animais

    Neste sentido, consultar N. de SADELEER, La conservation de la nature au- -del des espces et des espaces: 1 'mergence des concepts cologiques en droit international, in Iniages et usages de la nature en droit, op. cit, pp. 16 7 - 168 .

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    da Criao, para que este lhes d um nome. O privilgio de conceder um nome, sendo por excelncia sinal da autoridade exercida, traduz da melhor forma possvel a ideia de que o homem investido de poder sobre a terra. Finalmente, a mensagem repetida uma terceira vez, depois do episdio do Dilvio, quando Deus abenoa No e os seus filhos: Sejai fecundos, multiplicai-vos e povoai a Terra. Vs sereis objecto de temor e de assombro para todos os animais da terra, todas as aves do cu, tudo o que se arrasta sobre o solo e todos os peixes do mar: eles so entregues nas vossas mos. Tudo o que se move e vive vos servir de alimento, dou-vos tudo isso como j vos dei a erva verde (iGnesis ix).

    Seria limitativo interpretar estes textos como conferindo ao homem um poder absoluto sobre a Criao. A Bblia contm muitas outras passagens, que incitam moderao e responsabilidade na utilizao dos recursos naturais. De resto, a passagem do nono captulo do Gnesis, que acabmos de citar, imediatamente seguida pelo relato da Aliana que Deus estabelece, no apenas com os homens mas com a prpria terra; no apenas com os homens, mas com todos os seres vivos que esto vossa volta (Gnesis ix, 9). Daqui se pode deduzir toda uma doutrina do mandato limitado: se, por um lado, o homem tem mandato de gesto dos recursos naturais, os seus poderes no so, contudo, os poderes ilimitados do proprietrio soberano, mas antes os do administrador prudente que dever apresentar contas ao senhor. No sculo v da nossa era, Santo Agostinho lembrar aos cristos que apenas tm direito ao usufruto dos bens terrestres e que deles devem dar contas a Deus. E no sculo xn, So Toms coloca ainda a questo: Supondo que o juiz me atribui a propriedade de uma terra, de ouro, o que que eu recebi? A terra ou o ouro? Nenhum, porque todas as coisas pertencem a Deus. No est na minha posse alterar a sua natureza... No recebi o poder de deles usufruir por meu livre arbtrio7. Na mesma linha de pensamento, recorde-se ainda o ensinamento dos Franciscanos que recusa

    7 Somnn thologique, citado por M. VILLEY, Le Droit et les droits de 1homme, PUF, Paris, 1983, p. 76.

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    vam a propriedade dos seus bens, e Francisco de Assis, ecologista avant la lettre, que celebrava o nosso irmo Sol e a nossa irm Lua.

    No se pode negar, contudo, que as trs grandes religies do Livro Sagrado (judasmo, cristianismo e islamismo) tenham contribudo para uma dessacralizao decisiva da natureza. A partir do momento em que esta concebida como criao, o seu valor necessariamente relativo, subordinado omnipotn- cia do seu Criador. Pela sua prpria transcendncia, Deus separou-se da natureza, que surge ento como uma criao enfeudada vontade do seu autor.

    E, neste modelo, o homem ocupa claramente uma posio intermediria: criado semelhana dos outros seres vivos, ele dispe, no entanto, do privilgio exclusivo de participar no plano de Deus, enquanto criado sua imagem. Desde logo, tudo parece dever passar-se de acordo com uma lgica de delegao em escada: Deus cria o homem sua imagem, enquanto que, por sua vez, a natureza subordinada vontade do homem, de modo a que este a molde para seu usufruto. Dupla separao (entre Deus e a Criao, o homem e a natureza), qual corresponde uma dupla hierarquia. O domnio que o homem chamado a exercer sobre a natureza reflecte uma ordem do mundo ditada por Deus, como se, depois do seu exlio do paraso original, o homem tivesse sido chamado, pelo seu trabalho e pelos seus esforos, a continuar indefinidamente a obra divina da Criao. O poder desta representao tal que, em face dela, a tradio franciscana permanecer sempre minoritria no seio da Igreja Catlica.

    0 CULO DE GALILEU

    o sculo x v i i europeu que constitui a verdadeira viragem no movimento progressivo de apropriao da natureza pela espcie humana. A 3 de Maro de 1616, a obra de Coprnico, que sugeria que a Terra rodava em torno do Sol e no o inverso, colocada no ndice expurgatrio pela Cria Romana. O astrnomo toscano Galileu (1564-1642) apaixona-se, no obstante, pelo assunto: aperfeioando consideravelmente o seu culo de obser-

  • A N A TU R E ZA M A R G E M D A LEI

    vao, aponta-o para os cus e a descobre um pululamento de estrelas, e deixa desta vez perceber que o movimento dos astros generalizado: todo o Universo que est em movimento, dispondo o Sol apenas de uma centralidade relativa. Resta escrever, em linguagem matemtica, o discurso que contm o grande livro da natureza. Evidentemente, Galileu foi, por sua vez, condenado pelo Santo Ofcio em 1633, mas esta condenao alargar ainda mais o prestgio da sua vtima. O movimento da cincia positiva lanado e bem lanado na perseguio do movimento dos prprios astros, que ser alcanado nesse dia de Julho de 1969, em que um homem pousar o p sobre a Lua, realizando assim uma predio feita por Fontenelle j em 1686.

    Colocando a Terra em movimento, Coprnico e Galileu no se contentavam em desmentir a astronomia ptolemaica e a fsica aristotlica; eles privavam o homem da referncia estvel, geo- cntrica, que durante sculos havia ancorado solidamente a viso do mundo dominante. A partir de agora condenado a errante csmico, iria o homem perder o seu lugar e o seu papel no Universo? Aconteceu precisamente o contrrio; como se, por se saber liberto dos vnculos naturais que lhe designavam um lugar fixo e imutvel no Universo, o homem no descansasse, a partir de agora, enquanto no compreendesse e dominasse esse movimento. A sua grandeza tem a ver com a conscincia da sua limitao, a sua fora com a explorao que seria capaz de fazer dos seus limites. O seu ponto de vista seria, a partir de agora, o de Srius, um ponto de vista de domnio e de superioridade, observatrio demirgico, o qual depressa se compreendia ser o do prprio Deus.

    Um dos primeiros autores a traar o programa cientfico- -poltico deste novo projecto de sociedade foi o chanceler ingls Sir Francis Bacon (1561-1626).

    O Estado moderno deve ser concebido, explica, como uma repblica cientfica, onde o poder exercido pela associao dos sbios filantropos, cujo objectivo o de chegar a um domnio integral da natureza, com vista a melhorar a sorte do gnero humano. Como fazer passar melhor esta mensagem, do que com a ajuda de um relato utpico, que, como convm, se desenrola numa ilha - a ilha de Bensalem? Bacon dar o nome de Nova

    Sfi

  • 0 A R T IF C IO . P A R A D IG M A DE U M N O V O M U N D O

    Atlntida a este relato8; o propsito prometeano da obra deixa- -se desde logo adivinhar neste ttulo, que parece evocar o anti- cataclismo: ao inverso de todas as terras submersas que sublinhavam a passividade dos homens face natureza, a ilha de Bensalem parece surgir das guas para firmar o novo domnio adquirido sobre os elementos. A trama do relato reduz-se ao seguinte: no final de uma longa deambulao martima, os viajantes chegam acidentalmente a uma ilha desconhecida. Convidados a pisar terra, sero gradualmente iniciados nos segredos da organizao que lhes assegura a ordem e prosperidade. So as descobertas dos sbios da Casa de Salomo, que se consagram ao estudo de toda a Criao, que explicam este xito. Pela sua boca se exprime o programa de Bacon e, mais generalizadamente, de toda a modernidade: O objectivo da nossa instituio a descoberta das causas e o conhecimento da natureza ntima das foras primordiais e dos princpios das coisas, com vista a alargar os limites do imprio do homem sobre toda a natureza e a executar tudo o que lhe possvel9.

    O programa assim delineado bem o da tecnocincia moderna: conhecimento e domnio do Universo. Num primeiro tempo trata-se de compreender, penetrando o segredo das causas e dos princpios; em seguida imita-se a natureza; algum tempo depois aperfeioa-se a natureza; depois chegar o momento em que ela transformada; por fim cria-se o artifcio, o autmato, a supranatureza. A ilha de Bensalem, sob a batuta dos sbios da Casa de Salomo, no seno um gigantesco laboratrio onde se realizam as diferentes fases deste programa. Aqui, so subterrneos onde os corpos so subtrados da aco do Sol e do ar exterior: a, dedicam-se transformao de coisas de diferentes espcies, imitao dos minerais e fsseis naturais, produo de novos metais artificiais (est longe o tempo em que os ferreiros eram, como proscritos, mantidos margem da sociedade; em Bensalem eles so mestres). Ali, so altas torres, onde so criadas cascatas e moinhos destinados a provocarem toda a espcie de

    8 Nova Atlantis, obra pstuma; trabalhmos a partir duma traduo francesa publicada em 1981 , em Paris, pela Vrin (F. BACON, Nouvelle Atlantide).F. BACON, Nouvelle Atlantide, op. cit., p. 23.

  • A N A TU R E ZA A M A R G E M DA LEI

    movimentos. Mais alm, so pomares e jardins, onde so produzidos frutos maiores ou com um gosto mais agradvel do que tm normalmente. Podemos mesmo modificar as coisas, explicam os nossos sbios filantropos, para lhes dar propriedades medicinais. Temos igualmente mtodos para produzir diferentes espcies de plantas, sem ter que as semear [...]. Conseguimos at transformar as rvores ou as plantas de uma espcie em vegetais de uma outra espcie10. Certamente que as rvores de plstico no esto assim to longnquas... Mas os nossos viajantes ainda no viram tudo: eis que so conduzidos aos locais de criao de animais, onde so praticadas diversas experincias anatmicas e medicinais.

    A passagem seguinte merece ser relatada em extenso: Conseguimos por vezes, por meio da arte, dar-lhes uma dimenso maior e sobretudo mais alta do que a que tem normalmente, e, por vezes tambm, interrompendo o crescimento dos animais reduzimo-los a uma dimenso extremamente pequena, criando assim espcies ans. Tornamos uns mais fecundos face ao que so naturalmente, e outros menos fecundos ou mesmo completamente estreis. Sabemos produzir as variedades mais singulares na cor, na forma, no temperamento, na actividade [...]. Podemos dizer com exactido que, combinando tais espcies de matria e por tal processo, produziremos tal espcie de animal11. E a viagem continua na terra da supranatureza: s casas de ptica e de perspectiva sucedem-se os laboratrios acsticos; aqui, imita-se o voo das aves, ali, ensaia-se a navegao submarina; acol, aper- feioam-se autmatos para imitarem o movimento dos animais. Mais alm ainda, procura-se, por mil e um novos artifcios, enganar os sentidos, aplicando ao mesmo tempo pesadas multas, queles que tentassem dar um ar de prodgio a efeitos puramente naturais. Toda a filosofia moderna est contida nesta ltima frase, como se a eficcia da interveno tcnica sobre o mundo exigisse o seu desencantamento prvio.

    O programa traado por Bacon ser realizado para alm de todas as expectativas; no h uma nica das suas antecipaes que

    25.11 I b i d pp. 25-26.

    33

  • 0 AR T IF C IO , PA RA D IG M A DE U M NOVO M UNDO

    no se tenha realizado em trs sculos e meio de tecnocincia. Uma soma prodigiosa de invenes tcnicas resultaria do programa, bem como uma considervel melhoria das condies de vida, pelo menos no que respeita s populaes do hemisfrio Norte do planeta. Uma frase de Bacon lana, contudo, uma sombra bem negra sobre a sua cidade radiosa: A natureza, escreve ele, uma mulher pblica. Devemos dom-la, penetrar os seus segredos e subjug-la nossa vontade12. Em termos menos duros, Descartes dir a mesma coisa: comportarmo-nos como se fossemos donos e senhores da natureza. Tambm aqui, tudo comea como uma fbula.

    DESCARTES E A FABULA MUNDI

    Em Novembro de 1633 Descartes fica bastante incomodado: acabara de terminar o seu Traitdu Monde] \ onde expunha as suas principais opes astronmicas, quando toma conhecimento da condenao de Galileu, cujos pontos de vista ele partilha; dever renunciar publicao da obra? Depois de pensar durante alguns minutos em queimar os seus papis14, logo afastar os seus escrpulos ou os seus temores, pelo que dispomos hoje de um opsculo, em determinados aspectos bem mais sulfuroso revolucionrio do que a teoria galileana das revolues celestes. No nada menos que a uma cosmognese mecnica que Descartes nos convida efectivamente a assistir.

    Esta a Fabula Mundi: a histria da criao do mundo, liberto das suas obscuridades, das suas eventualidades, das suas desordens e das suas controvrsias, uma histria exposta aqui, de forma to clara e to inteligvel, que se pode mesmo arriscar a hiptese: Sem cair no erro do milagre da Criao, precisa Descartes, de que pelo seu prprio movimento as coisas que so puramente materiais teriam podido, com o tempo, transformar-se

    12 Citado pot N. RO ULAN D, Aux confins du droit, op a . , pp. 70-71 .13 r DESCARTES, Trait du monde, in Discours de la mthode, Flammarion, Paris,

    1966 , p. 221 e seguintes.Carta a P. Mersenne, ihid. , p. 235.

  • A NATUREZA M ARG EM DA LEI

    tal como as vemos hoje15. Um texto decisivo que, simultaneamente, sela a morte de Deus (excepto na utilizao, como se ver, da imagem de um Deus garante) e instala deliberadamente o homem moderno na posio de demirgico. Desenvolvendo a fbula de um novo mundo, Descartes consegue trs objectivos de uma s vez: ele pode aspirar a iludir a censura romana entrincheirando-se atrs da gratuidade da fico; serve-se de um processo literrio que lhe permite fazer uma exposio racional dos princpios da fsica partindo das causas e dos princpios, para chegar, segundo uma ordem rigorosamente dedutiva, exposio dos efeitos derivados; finalmente e sobretudo, torna tangvel a viso do mundo que preside, a partir de agora, na cincia moderna. Uma viso de aparncia humilde e modesta (uma humildade evidente face ao Criador, que se continua a evocar, maneira de um rival que se estima; modstia em relao natureza, modelo que ser sempre difcil imitar), mas na realidade convicta da sua superioridade, pelo menos prospectiva, da suprana- tureza de que se elabora o projecto. Como se o desvendar, pouco a pouco, os segredos da natureza natural, conferisse a certeza de se chegar um dia a construir uma natureza mais performante. Mais cedo ou mais tarde, o mundo construdo leva-lo- ao mundo dado; o autmato revelar-se- superior ao vivo, o artificial destronar o natural.

    A fbula do mundo comea, como todas as grandes histrias, com uma morte simblica: trata-se de liquidar o antigo (pvcn, a ideia at ento dominante da natureza como fora de vida, poder de criao, princpio de todo o nascimento. A natureza no , para o cogito cartesiano, mais do que uma determinada quantidade de matria: Notai, pois, que por natureza no entendo aqui, de modo algum, uma deusa ou qualquer outra espcie de Poder imaginrio, mas que me sirvo sim, deste termo, para designar a matria16.

    Eis, portanto, a fbula: suponhamos que Deus dispe, partida, de uma quantidade de matria como a que ocupa hoje todo

    ld., Discours de la mthode, op. cit., pp. 70-71.ld., Traitdu monde, op. cit., p . 2 2 8 .

  • 0 AR TIF C IO , PARAD IG M A DE UM NGVO M UNDO

    o espao disponvel, como um corpo pleno e homogneo; suponhamos de seguida que, depois de a ter agitado em todos os sentidos, ele produz um caos original sem igual; suponhamos, finalmente, que Deus, depois de tudo isto, deixa actuar as leis da natureza: a matria deixa-se decompor em todas as partes e figuras imaginveis, e cada uma destas partes recebe uma determinada quantidade de movimento. Aps o que, pelo simples efeito deste mecanismo (a matria dividida e o movimento), as coisas se disporo a si prprias numa ordem to perfeita, que corresponder em todos os aspectos ao mundo que conhecemos.

    Para qu ento, poder-se-ia pensar, recorrer ao processo da fbula, se era necessrio voltar ao ponto de partida? E que entretanto, como pudemos perceber, Descartes tomou o lugar do Criador e a matria mecanizada fez recuar o caos natural. No desenrolar da fbula, so as leis da natureza que o mtodo origina. Da sua aco constante derivaro sempre os mesmos efeitos; quando muito, Deus serve aqui de garante.

    Ler o grande livro do mundo no mais pr-se escuta da natureza ou mergulhar no seu interior, mas sim, como o sugeria Galileu, declin-la em linguagem matemtica e reproduzir as suas leis racionais da Criao.

    Bastante revelador desta nova abordagem da natureza o pequeno texto que Descartes consagra ao arco-ris. Desse fenmeno potico e simblico (pois no sinal da harmonia ecolgica, promessa de reconciliao entre Deus e o Universo?), Descartes deu antes a explicao cientfica, preldio da fabricao de arco-ris artificiais. Certo da observao, segundo a qual se produziam por vezes pequenos arco-ris na proximidade das fontes, Descartes avana a hiptese explicativa: eles procedem apenas de... (salientamos). Foi-me fcil verificar que eles procedem apenas da forma como os raios de luz actuam contra as gotas, e da se dirigem para os nossos olhos17. Da experincia, passa-se de seguida experimentao: Achei melhor utilizar uma bem grande (uma garrafa que far o efeito de uma grande gota), para a poder examinar melhor. E tendo, para o efeito, enchido de gua uma

    ld., Dioptrique, op. cit., p . 1 8 5 .

  • A NATUREZA A M ARGEM DA LEI

    grande garrafa de vidro, redonda e muito transparente [ ,..}18. Animado por este primeiro sucesso, Descartes imagina, pouco tempo depois, dispositivos susceptveis de fazerem aparecer no cu sinais muiticolores e luminosos, que parecero prodgios: todo um dispositivo de fontes e de cascatas que, reflectindo-se pelo efeito da luz sobre diferentes tipos de leos que fluiriam neste dispositivo, produziria no cu cruzes, colunas ou qualquer outra coisa que constitua fonte de admirao19. Eis como Descartes, que tanto desconfiava das iluses dos sentidos, acaba por se investir em mestre ilusionista, sem dvida para exorcizar a sua ameaa, e eis como o cantor do racionalismo acaba por projectar no mais alto dos cus o flamejar das suas fantasias, em forma de cruzes e de colunas...

    0 MTODO TRANSAMAZONIANO DO PENSAMENTO

    Conhecemos os ingredientes do mtodo cartesiano: a dvida metdica, a hiptese do gnio maligno, a concentrao sobre a nica coisa certa: o cogito (ele prprio garantido pela ideia de perfeio divina). Contra os ardis do gnio maligno, que parece esforar-se por nos enganar atravs da representao de falsas certezas sensoriais, Descartes pratica uma terapia radical: o mundo inteiro que ele recusa, imagem desse bocado de cera que, com grande jbilo intelectual, v fundir-se ao aproxim-lo da chama20. Supremacia do cogito que capta a essncia da coisa, a sua ideia clara e distinta, para l da curva das aparncias. Eis o ponto de Arquimedes necessrio para transportar o mundo para outro lugar: a certeza de que sou uma coisa pensante (res cogitam); eis a nova certeza do mtodo: s conhecemos realmente as coisas atravs do entendimento e no pela sensao ou pela imaginao21. O que concebemos clara e distintamente confirma-se como verdadeiro.

    18 Ibid., p. 186.19 ibid., p. 199.20 Id., Mditations mtaphysiques, Flammarion, Paris, 1974, pp. 45 -4 6 .21 Ibid., pp. 37 e 51.

  • 0 AR TIF C IO , PA RA D IG M A DE UM NOVO M UNDO

    O modelo aplicado explicitamente o da geometria analtica: um mtodo fundamentado sobre a intuio (que oferece viso intelectual representaes claras e distintas), a diviso (que pressupe que as coisas se deixem dividir em unidades de medida iguais, em quantidades comparveis), e a deduo (que implica a ordem ou a passagem lgica de uma grandeza a outra). Assim, as regras do mtodo podero substituir o caos da experincia por uma representao coerente do mundo; as longas cadeias de razes, todas simples e fceis, de que os gemetras tm por hbito servir-se22, explicaro com xito os problemas mais complexos, a partir do momento em que a natureza reduzida a uma coisa vasta (res externa), somatrio de matria fixa, divisvel em partes determinadas percorridas de movimentos constantes.

    A metfora bem reveladora da relao que o mtodo mantm com respeito natureza; Descartes explica, com efeito, que antes de chegar formulao clara dos seus princpios desenvolvera uma moral a ttulo provisrio, a fim de se desembaraar o melhor possvel das falsas doutrinas que reinavam sua volta. Uma das mximas desta moral consistia em no se afastar mais de uma resoluo uma vez esta adoptada, ainda que duvidosa. Assim imitava, explica ele, os viajantes perdidos na floresta, que tm todo o interesse em no mudar nunca de direco; se no chegassem ao local pretendido, pelo menos chegariam a algum lado ou provavelmente, estariam melhor no meio de uma floresta23. Para Descartes, o agrimensor-gemetra, a floresta j no , como outrora, fonte de sabedoria e reservatrio de saber; ela representa o erro e a obscuridade. Descartes procura incessantemente alcanar a claridade da plancie, a certeza dos grandes espaos vazios: as longas cadeias de razes servir-lhe-o aqui de caminho (mtodo significa caminho em grego antigo), como uma linha recta traada na mais profunda das florestas, como uma ferida aberta na carne da floresta. Polmico, Harrison interroga: Como sair da floresta em linha recta? Resposta: Desflorestao metdica24.

    22 ld., Discours de la mthode, op. cit., p. 47. f . l b i d . , p. 53.

    R. HARRISON, Forts. Essai sur 1imaginaire Occidental, Flaminarion, Paris, p. 42.

  • A NATUREZA A MARGEM DA LEI

    O propsito ser exagerado? No podemos contudo, negar, que Descartes sonha, em cada pgina, em fazer tbua rasa de tudo o que o precedeu. No apenas da floresta que preciso escapar o mais rapidamente possvel. Do mesmo modo que no gosta das grandes florestas, Descartes no aprecia as velhas cidades, cuja desordem o incomoda: tendo crescido com o decurso dos sculos, elas so bastante mal compassadas (medidas a compasso, proporcionadas) em relao s praas regulares que um engenheiro traa, na sua fantasia, num espao amplo. Foi a sorte (o acaso) que presidiu sua planificao, e no a vontade de alguns homens usando da razo25. Aqui transparece ainda o fantasma do engenheiro-arquitecto-demiurgo, para o qual tradio e patrimnio no tm qualquer peso diante da vontade e da razo do individualismo triunfante. Na mesma passagem, surge ainda uma outra figura de demiurgo, desta vez sob os traos do codificador. Assim como as cidades cresceram ao acaso, o mesmo se passou com as leis jurdicas, que se acumularam sem um plano de conjunto, ao sabor das necessidades dos homens, que s se foram civilizando pouco a pouco; nunca sero to bem civilizados como aqueles que, desde a origem, observaram as constituies de algum prudente legislador.

    As plancies contra as florestas, o urbanismo geomtrico contra as velhas cidades, as constituies modernas e uniformes contra a tradio costumeira: trs razes que explicam, sem dvida, porque o autor do Discurso do Mtodo eleger domiclio na Holanda um pas que, alm do mais, tal como a Nova Atlntida, de Bacon, parece dever a sua existncia apenas resoluo feroz dos seus habitantes em reconquist-la incessantemente ao mar. Um pas mecnico, em suma, cuja prosperidade artificial (quer-se dizer: criada pelo homem) assenta na aco que os seus diques opem fora das mars, no trabalho das suas bombas de drenagem e de irrigao, que canalizam a energia das correntes, na pacincia dos seus moinhos, que transformam o vento em energia motriz. Um mundo de exlio e tambm de solido, pelo menos para Descartes, onde se poderiam consumar todas as rup-

    25 R. DESCARTES, Discours de la mcthode. op. cit., p. 42.

  • 0 AR TIF C IO , PARAD IG M A DE UM NOVO M UNDO

    turas de que se nutre o individualismo do cogito soberano e semamarras.

    UM COGITO SEM AMARRAS OU 0 CADVER DE VESLIO

    O mundo assim estabelecido por Descartes o mundo do monismo absoluto, paradoxalmente gerador de todos os dualis- mos. De um lado, o cogito, do outro tudo o resto. O cogito reina, qual soberano solitrio, no meio de um deserto. O seu poder advm unicamente de si mesmo; as suas relaes com o exterior so relaes de superioridade e de sujeio. Como um piloto, um fontainier ou um relojoeiro (tudo expresses retiradas de Descartes), o homem percorre a Criao para lhe regular os movimentos sua convenincia; nada, nem mesmo o prprio Deus, se v livre da imposio de um papel determinado no vasto cenrio do teatro mecnico.

    E certo que, por vezes, se trata de Deus, na obra de Descartes, mas preciso no cair num engano: este deus j o deus vedado da metafsica, frio como uma hiptese, impessoal como um teorema. A partir do momento em que toda a certeza deriva da existncia do cogito, e apenas dela, o homem quem cria deus e no o inverso. Um deus, contudo, ainda necessrio para certificar a verdade das nossas representaes26, e para permitir ao meu ser imperfeito conceber a ideia da perfeio27: uma ideia, portanto, e no uma pessoa. Ora, se uma pessoa interpela a partir do exterior, a ideia uma produo interna. Se ainda existe transcendncia no universo cartesiano, trata-se de uma autotrans- cendncia, saltando, de alguma maneira, por cima dos seus prprios ombros, o homem imagina a ideia de Deus para permitir- -se pensar o infinito.

    Ento e o Deus Criador, perguntar-se-? Vimos qual era a sua sorte na Fabula Mundi. Se bem que o arrebatamento inicial no

    26 ld., Discours de la mthode, op. cit., p. 64.Ibid., p. 61, Mditations mtapbysiques, op. cit., pp. 68 e 78.

  • A NATUREZA A MARGEM OA LEI

    seja negado, deriva, tambm ele, da fico cientfica (suponhamos que Deus cria uma quantidade determinada de matria...); mais: a obra divina depressa surge como completamente subjugada s leis da natureza e s necessrias lgicas da mecnica, que seguem inexoravelmente o seu curso.

    A partir do momento em que o movimento perptuo (como o sublinha Descartes na formulao das suas leis da inrcia)28, o primeiro motor perde toda a utilidade, que no a histrica; apenas so ainda necessrios os engenheiros para canalizar a sua energia. O deus de Descartes est, assim, suficientemente distante da natureza, para permitir fazer dela, de ora em diante, todas as utilizaes e todas as transformaes, permanecendo simultaneamente guardada como reserva terica, para servir, se for caso disso, de parapeito ao cogito. Em todo o caso, este ltimo que se mantm senhor do jogo.

    Tendo-se libertado de Deus, compreende-se que Descartes no tenha depois tido qualquer dificuldade em libertar-se de tudo o resto, submetendo-o sua vontade. A comear pelo prprio corpo. Nada mais do que uma simples esttua ou uma mquina de terra, na qual foram dispostas as peas necessrias para fazer com que andasse: nela, os nervos so comparveis aos canos das mquinas das fontes, a respirao como os movimentos de um relgio ou de um moinho, que o curso normal da gua pode tornar contnuo29. Para este corpo autmato necessrio, obviamente, um dono: este ser a alma racional que a ter o seu lugar, no crebro, e que actuar como o fontainier^0. Na linha do seu dualismo radical que ope a res cogitans res extensa, Descartes dir, ainda, que este eu, ou seja, a alma atravs da qual sou o que sou, completamente distinta do corpo31.

    Sobre este ponto surge, contudo, uma dificuldade, que conduzir Descartes a verdadeiras contradies (sinal, segundo ns, das aporias s quais conduz necessariamente o monismo-dualis- mo). E que Descartes falar, simultaneamente, de unio e mis

    ld., Mditations rnthapbysiques, op cit., pp. 229-230 .^ ld., Traitdu monde, op cit., p. 231-233.3 Ibid., p. 234.3 ld., Discours de la mthode, op cit., p. 60 (sublinhamos).

  • 0 AR TIF C IO , PA RA D IG M A DE UM NOVO M ONDO

    tura do esprito com o corpo32, a fim de compor um verdadeiro homem33. Mas como unir e misturar o que, de incio, se distin- guiu radicalmente? O nosso autor no o conseguir fazer e fechar- -se- em enleios, que tm pelo menos o mrito de revelar a amplitude do questionamento do sistema proposto: no ir ele ao ponto de sustentar que no basta (sublinhamos) que a alma seja colocada no interior de um corpo humano, como um piloto no seu navio34, enquanto que, ainda h pouco, falava da alma como fontainier. que regula, sua convenincia, os diversos movimentos da mquina? Em resposta s questes embaraosas que lhe coloca, a este respeito, a princesa Elisabeth da Bomia, Descartes acabar por admitir que utilizando unicamente a vida e as conversaes banais, e abstendo-se de meditar, que se consegue conceber a unio da alma e do corpo; renunciando mesmo regra da distino das ideias, ele convidar Elisabeth a procurar atribuir matria e extenso alma, pois isso no seno conceb- -la unida ao corpo35. No seria possvel reconhecer, de forma mais clara e honesta, as limitaes do dualismo. A linha recta do mtodo, que pretendia arrancar-nos da floresta, conduziria assim a um impasse?

    Este reconhecimento apenas ter, no entanto, no sistema cartesiano, conseqncias reduzidas. Sem dvida, frustra a ideia do homem verdadeiro, remetido vida e s conversaes banais; ao menos, o triunfo conseguido com a transferncia para o resto da natureza.

    Aqui se demonstra, pensa ele sem dvida, o verdadeiro sucesso do mtodo. Como negar, efectivamente, a condio inferior do animal, por exemplo, uma vez que se tem a certeza de que este, ao menos, no possui essa alma to incmoda: simples mquina contudo, bem fabricada; frequentemente mais aperfeioada do que o prprio homem. Mas apenas uma mquina, que se deixar montar e desmontar como um relgio: as experincias trans-

    2 0

    3 ld., Trait du monde, op cit., p. 123.^ ld., Discours de la mthode, op cit. , p. 81.

    Ibid. e Mditations mthaphysiques, op. cit., p. 81.Citado por F. ALQUI, artigo Descartes, in Encyclopaedia Universalis, Paris, p. 248.

  • A NATUREZA MARGEM DA LEI

    gnicas de Bacon j o haviam anunciado. E o que certo para o animal, tambm o a fortiori para a natureza. Nesta, no h qualquer poder misterioso, qualquer princpio vital oculto: o mecanismo cartesiano extirpa os derradeiros traos de vitalismo aristotlico, os derradeiros vestgios dos segredos da alquimia. A natureza, vimo-lo, desenrola-se diante dos nossos olhos substncia extensa, matria e movimento , entregue a todas as nossas manipulaes, como esse cadver rgido e lvido representado por Rembrandt em A Lio de Anatomia (1632), que no apresentar em breve j qualquer mistrio, sob o escalpelo de Veslio e dos seus discpulos30.

    O cadver autopsiado poderia muito bem ser a representao mais exacta do naturalismo cartesiano, como se a natureza devesse primeiro morrer para poder revelar os seus segredos e assim ter alguma utilidade. Pois esse o verdadeiro objectivo da nova cincia que se anuncia: esta no conduzir por si prpria, nem salvao, nem sabedoria, nem ao conhecimento; a sua ambio prtica, o seu triunfo tcnico. O que certo que ela se revelar til, semelhana do mtodo que permitia reconstruir um mundo novo sobre as runas do antigo. Ela ser garantia de poder para o sujeito moderno, que se instalou na posio de demiurgo. E assim que o Discurso do Mtodo termina, com a passagem tantas vezes citada, que exprime a quinta essncia da cincia moderna, que pretende tornar-se dona e senhora da natureza: Elas [as noes gerais relativas fsica] fizeram-me ver que possvel chegar a conhecimentos que sejam consideravelmente teis vida, e que, em lugar dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, se pode achar uma prtica, atravs da qual, conhecendo a fora e as aces do fogo, da gua, do ar, dos astros, dos cus e de todos os outros corpos que nos rodeiam, to claramente como conhecemos as diversas matrias dos nossos artesos, as poderamos empregar do mesmo modo para todas as utilizaes s quais se adequam, e assim tornarmo-nos donos e

    3 A Lio de anatomia a do professor Tulp. Quanto a Veslio, havia sido condenado pela Inquisio espanhola, em 1561, por ter praticado a dissecao de um homem vivo.

  • 0 AR TIF C IO , PA RADIG M A DE U M NOVO M UN D O

    senhores da natureza3 ' . Ter-se- notado: o trabalho do arteso que serve de modelo ao progresso cientfico e no o inverso, porque a cincia moderna tecmcista e j no especulativa. O seu objectivo no conhecer o mundo, mas fabricar um outro mundo, mais avanado. Assim se inicia, conquistadora e triunfante, a era do artifcio.

    0 LVIATHAN DE HOBBES E A MARQUESA DE FONTENELLE

    Descartes morre em 1650. No ano seguinte, o filsofo poltico ingls Thomas Hobbes publica o seu Lviathan, que ser para a filosofia poltica o que as Regras do Mtodo foram para a teoria do conhecimento. Aqui como ali, trata-se de substituir um mundo antigo, solidrio, tradicional e imutvel, por um mundo novo, completamente artificial, imagem do Lviathan que d ttulo obra: um deus mortal, um homem artificial que simboliza a soberania, convencional e constituda, da mquina estatal. Assim se inicia a obra: A natureza, essa arte pela qual Deus produziu o Mundo e o governa, nisto imitada pela arte do homem , como em muitas outras coisas, de modo que uma tal arte pode produzir um animal artificial. Aps a inevitvel referncia aos autmatos em geral e ao relgio em particular, Hobbes prossegue: Porque a arte que cria esse grande Lviathan a que chamamos Repblica ou Estado (civitas em latim), o qual no mais do que um homem artificial, embora de uma estatura e de uma fora maiores que as do homem natural, para a defesa e produo do qual foi concebido; nele, a soberania uma alma artificial38.

    O homem, calculista e interessado, o arteso desta maquinaria, na qual v a garantia da sua segurana e da sua prosperi

    ' R- DESCARTES, Discours de la mthode, op cit., p. 84. E Descartes acrescenta: O que no apenas desejvel para a inveno duma infinidade de artfices, que fariam com que usufrussemos, sem qualquer esforo, dos frutos da terra e de todas as comodidades que a existem, mas tambm e sobretudo para a conser- vao da sade.T. H O BBES, Lviathan, trad. por F. Tricaud, Sirey, Paris, p. 5.

  • ?dade; e, do mesmo modo como o sujeito cartesiano havia recriado o mundo na Fabula Mundi, o povo hobbesiano gerar, pelo contrato social, a constituio poltica: Os pactos e as convenes pelas quais as partes deste corpo poltico foram inicialmente produzidas, reunidas e unificadas, assemelham-se ao Fiat ou ao Faa-se o homem pronunciado por Deus aquando da Criao^9. Descartes havia libertado a natureza da incmoda presena divina; Hobbes expurga de igual modo a sociedade; e eis uma e outra disponveis, maleveis, a cincia positiva de um lado e o direito positivo do outro.

    O sucesso deste mtodo agora incontestvel: no decurso do mesmo ano de 1686 sero publicadas duas obras particularmente importantes, uma de cincia fundamental, os Princpios Matemticos da Filosofia Natural, de Isaac Newton, a outra de vulgarizao cientfica, os Entretiens sur la Pluralitdes Mondes, de Bernard Fontenelle.

    Nesta obra, a meio caminho entre o jogo amoroso e a teoria cientfica, Fontenelle (que ser, diga-se de passagem, secretrio fixo da Academia das Cincias, de 1699 a 1757) conversa sobre cosmologia com uma marquesa, de esprito curioso mas pouco informado sobre a cincia moderna. Uma excelente ocasio para divulgar, sem grande esforo, os novos princpios do mtodo positivo. Tudo comea - o jogo amoroso oblige como na pera: Imagino sempre que a natureza um grande espectculo, que se assemelha ao da pera40. Mas o nosso Pigmalio no ficar muito tempo no seu lugar: o sujeito moderno no se contenta com o papel passivo de espectador. E ei-lo que conduz a sua marquesa pelos bastidores e se apressa a elucid-la, revelando-lhe todos os mecanismos do teatro: cordas, polias e contrapesos, que asseguram os movimentos da cena.

    Como dissera Descartes, se Faetonte se eleva nos ares, porque, por detrs da cortina, um peso maior desce simetricamente. Assim, primeira lio: Quem vir a natureza tal qual ela , ver apenas os bastidores do teatro da pera41. Ao contrrio da maior

    A NATUREZA A M ARGEM DA [E l

    39 lbid., p. 6 .4B. FON TENELLE, EwrM/Vwj sur la pluralit des mondes, inOeuvres, Paris, 1825,

    p. 134.41 lbid., p. 134.

    50

  • 0 A R T IF C IO , PA RAD IG M A DE U M NOVO M UN D O

    parte das pessoas que sustentam um falso maravilhoso, e s admiram a natureza porque a vem como uma espcie de magia, onde nada inteligvel, a marquesa parece apreciar este novo realismo e a cortina pode levantar-se para um espectculo totalmente diferente.

    Segue-se depois uma fascinante demonstrao de astronomia: Ptolomeu enviado para as trevas do obscurantismo, Coprnico e Galileu que espalham as Luzes pelo Universo. E l vai a nossa marquesa arrastada pela ronda prodigiosa das estrelas. Re