A NATUREZA NA POESIA DE SAULO MENDONÇA I

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RIOS – REVISTA CIENTÍFICA DA FACULDADE SETE DE SETEMBRO ano 7 n. 7 dezembro de 2011 ISSN 1808-9321 A NATUREZA NA POESIA DE SAULO MENDONÇA: um Olhar Ecocrítico Maria do Socorro Pereira de Almeida Doutoranda em Literatura e Cultura pela UFPB, Mestre em Literatura e Interculturalidade pela UEPB, professora de Literatura portuguesa, popular e infantil na Faculdade sete de setembro – Paulo Afonso-BA RESUMO Com este estudo analisa-se a poesia de Saulo Mendonça, no intuito de observar as inovações do poeta diante do tradicionalismo da forma literária do haikai desde a origem Japonesa. Pretende-se perscrutar os espaços de natureza, buscando observar como se revelam os aspectos naturais na obra do autor, através do livro Luz de musgo, uma vez que o ambiente natural faz parte originalmente do estilo poético haikai. Palavras-chave: Ecocrítica. Natureza. Poesia. Haicai. ABSTRACT This study analyses Saulo Mendonça’s poetry, and intend to observe his innovations face to traditional literary shaped of haiku since Japanese origins. It aims to scan nature spaces, looking for understanding how the natural aspects are revealed in the author’s work, based on the book Luz de musgo, once the natural environmental is part of the haiku poetic style originally. Keywords: Ecocritical, Nature, Poetry, Haiku INTRODUÇÃO Quando se vivencia tempos de transformações constantes, em que o homem vive entrelaçado numa rede de mutações e materialidades, a Literatura, como uma forma de representação do olhar dele para o mundo não se furta em revelar os aspectos da também chamada

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ano 7 n. 7 dezembro de 2011 ISSN 1808-9321

A NATUREZA NA POESIA DE SAULO MENDONÇA: um Olhar Ecocrítico

Maria do Socorro Pereira de Almeida

Doutoranda em Literatura e Cultura pela UFPB, Mestre em Literatura e Interculturalidade pela UEPB, professora de Literatura portuguesa, popular e infantil na Faculdade sete de setembro – Paulo

Afonso-BA

RESUMO Com este estudo analisa-se a poesia de Saulo Mendonça, no intuito de observar as inovações do poeta diante do tradicionalismo da forma literária do haikai desde a origem Japonesa. Pretende-se perscrutar os espaços de natureza, buscando observar como se revelam os aspectos naturais na obra do autor, através do livro Luz de musgo, uma vez que o ambiente natural faz parte originalmente do estilo poético haikai.Palavras-chave: Ecocrítica. Natureza. Poesia. Haicai.

ABSTRACTThis study analyses Saulo Mendonça’s poetry, and intend to observe his innovations face to traditional literary shaped of haiku since Japanese origins. It aims to scan nature spaces, looking for understanding how the natural aspects are revealed in the author’s work, based on the book Luz de musgo, once the natural environmental is part of the haiku poetic style originally. Keywords: Ecocritical, Nature, Poetry, Haiku

INTRODUÇÃO

Quando se vivencia tempos de transformações constantes, em que o homem vive entrelaçado numa rede de mutações e materialidades, a Literatura, como uma forma de representação do olhar dele para o mundo não se furta em revelar os aspectos da também chamada “modernidade líquida” (BALMAN, 2007, p. 07). Não que a literatura se dilua no tempo, mas revela, assim como outras formas de arte, um contexto técnico, material, cibernético de um cotidiano conflituoso, tumultuado e denso.

Diante desse contexto é possível encontrar uma janela aberta para outros encantamentos do mundo, da natureza; da reflexão; da filosofia de ser. Assim, em um momento de supremacia técnica a poesia pede espaço para a natureza e abre alas à leveza e ao olhar de alumbramento para o mundo, se recriando a cada instante.

É possível afirmar que literatura e natureza caminham juntas desde que o homem tentou traduzir o mundo, como se vê nos ideogramas pré-históricos. “Sempre houve, por parte do homem, uma tentativa de explicar o universo e suas complexidades. Assim, o meio ambiente, que ora parece tão distante da arte literária, sempre a acompanhou e alimentou de inspiração os seus criadores”. (ALMEIDA, 2008, p. 15)

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Ressalta-se, porém que no Ocidente, com o advento da Renascença, surge também um novo homem, um novo ser e com ele uma nova maneira de olhar para o mundo e para o outro. Observa-se aí a ruptura entre homem e natureza. A relação de integridade e cumplicidade entre ambos é dirimida em troca do poder que ora o homem tenta adquirir sobre ela. Ele se exclui e passa a observá-la como algo, do qual possa usufruir conforme, não mais sua necessidade, mas como lhe ordena o ego.

Em meio a tudo isso é interessante trazer aos estudos literários, autores que, indo de encontro a todos esses conflitos, trazem a reflexão através da poesia e da natureza como é o caso de Saulo Mendonça que, além de trazer uma forma de poesia ainda pouco difundida na literatura brasileira, nos proporciona momentos de deleite diante da relação de intimidade entre homem e natureza, através dos haicais.

1 CONHECENDO O HAICAI

Por ser ainda pouco conhecido é interessante saber um pouco sobre essa forma poética antes de adentrar a obra do autor. O haicai é uma forma poética de origem japonesa que nasce da derivação de outra forma: a Renga. Conforme mostra Teiiti Suzuki (1979), a renga nasce com o nome de tanka, esse estilo reunia o lirismo e os aspectos satíricos ao mesmo tempo: “O fato mostra que na época surgia ao lado do diálogo em tanka, o diálogo travado como emprego de duas partes – a estrofe anterior e a posterior, [essa forma] mais tarde toma o nome de renga (ao pé da letra, versos encadeados).” Suzuki (1979, p. 92).

Por volta do século XII, a renga se divide em duas partes, uma é a renga curta, com apenas duas estrofes e outra comprida em que é acrescentada outra estrofe posterior. No que condiz a renga comprida havia duas correntes, uma com aspectos líricos clássicos e outro com os aspectos satíricos, originários do folclore cantado. Ainda de acordo com Suzuki, a partir do século XVI essas duas correntes receberam denominações diferentes e a de aspectos satíricos passou a se chamar de haikai.

Observa-se com o exposto que o que conhecemos hoje como haicai nasce de uma tradição oral e ganha status e lirismo ao ser registrado ao longo do tempo. Esses aspectos assemelham-se ao repente que conhecemos hoje como se verifica nas palavras de Suzuki (1979, p. 94):

O haicai constitui uma das diversões que fascinavam o povo. Organizavam-se os grupos de haicai chamado Kô, que se reuniam periodicamente na casa do organizador da sessão chamado Tô, função essa que se revezavam os membros do grupo. As sessões eram orientadas por mestres profissionais que davam notas aos versos improvisados pelos participantes.

Ressalta-se, porém de acordo com Paulo Franchetti et all (1996) que toda poesia japonesa tem base na métrica de cinco e sete sílabas, mesmo a prosa se mantém na cadência rítmica. Durante muito tempo muitas regras foram estabelecidas para conciliar as duas vertentes da renga que a brevidade deste texto não nos permite minunciar.

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O haicai começa a ser registrado ainda no século XVI e a partir do século XVII ele se expande e atinge todas as camadas sociais, sem se levar muito em conta as regras de produção. Já em meados desse século, um dos grandes nomes do Renga, Teitoku tentou organizar as regras do haicai, mas houve uma revolução vanguardista contra o tradicionalismo do mestre. Outros haicaistas brigam por espaço, mas não conseguem muito êxito. Em meio ao entrevero de opiniões surge o poeta Matsuo Bashô que consegue descobrir o caminho para essa forma poética, dando-lhe lirismo e elevando o nível da linguagem como se ver a seguir:

Ao longo de sua vida atribulada o poeta errante, transformou o haicai em um novo gênero poético. Mantendo as características populares do haicai, empregando as palavras “ordinárias”, mas sublimando-as a um nível estético elevado criou um lirismo inédito nas letras japonesas.( SUZUKI, 1979, p. 103)

Segundo Franchetti, (1996), foi a partir de Bashô que o Haicai atingiu o status do sado _ caminho do chá - enquanto forma iniciática da disciplina do exercício espiritual. O haicai introduzido por Bashô foi o que nos chegou e que vem sendo desenvolvido no Brasil até hoje. Nota-se que a expressão da natureza, é uma das principais características dessa forma poética, essa natureza, na maioria das vezes, é dita pelas estações do ano, de forma indireta, através de elementos que as identifique. Esses aspectos são enfatizados no fragmento abaixo:

Tradicionalmente, a menção à natureza é feita através de um termo- de- estação, mais conhecido pela palavra japonesa kigo. Pode-se questionar a validade das quatro estações no Brasil, mas é inegável a existência de um ciclo anual, ao qual os vegetais e os animais se moldam, e dentro do qual o homem organiza suas atividades, mesmo que este ciclo não possa ser caracterizado como uma sucessão de quatro estações à maneira européia. Entendido de uma maneira ampla, o kigo é a palavra ou expressão associada a uma entidade natural, capaz de disparar associações afetivas a partir de uma cena concreta, de maneira muito econômica. (BEMTEVI, 2009, p. 01).

Observa-se também que, no haicai, a natureza se encontra entrelaçada ao ser humano, ou seja, ele se apresenta inserido no contexto natural e não externo a ele. É interessante perceber isso nos haicaistas contemporâneos como o poeta em questão, uma vez que a cultura ocidental desde o Renascimento se firmou observando o homem fora do ambiente natural e dono dele. Ou seja, aquele que pode se apropriar dos bens naturais em benefício próprio.

2 - O HAICAI NO BRASIL

Inicialmente é interessante observar que a ocidentalização do haicai reafirma a globalização e evidencia a interculturalidade que se dá por diversos fatores, entre eles o interesse de fortalecimento das relações capitalistas. Sobre esses aspectos Luiza Lobo afirma que “a sociedade capitalista se viu premida ao aceitar a alteridade, a diferença, o outro, podendo esse outro ser oriental, mulher ou negro”. (1993, p. 09)

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Assim, enquanto há um esgotamento em todos os campos de atividade, inclusive o cultural, que impulsiona o olhar para os emergentes, o pensamento oriental antes não aceito pelo materialismo ocidental vai ganhando espaço. A crise pós-moderna, como já foi visto, “provoca um sentido de desilusão, de fracasso de utopias, bem como de ausência de discussão ideológica”. (LOBO, 1993, p.12).

Nesse contexto, a reflexão trazida pela poesia japonesa, orientada pelos aspectos budistas e confucionistas ganha importância e sentido de esperança. Lobo fala da crise metafísica que acompanha a crise capitalista ocidental no momento dito pós-moderno, isso implica na valorização de uma arte do pensamento como é o caso do haicai. Segundo ela, assim como há a atração atual dos rituais japoneses, a literatura acompanha e, no caso, é o haicai, com sua forma misteriosa e intrigante que atrai os intelectuais brasileiros no momento em que se busca uma alternativa a reprodução capitalista.

Na verdade os desencontros de ideias sobre as contradições capitalistas vêm de longe. Marx (2001) critica a técnica como produtiva para o fortalecimento capitalista. Por outro lado Benjamin (1994) observa o princípio de uma nova geração através da produção em série. De mãos dadas a esse movimento está a Mídia que incita o consumo da massa, restando à sociedade inconformada e aos grupos menos alienados, a busca de alento. Assim, os interesses das minorias étnicas, das mulheres, homossexuais e orientais emergem, afinal a crise é, sobretudo, de valores éticos e morais. Dessa forma a busca da saída da “caverna”, lembrando aqui o Mito da Caverna, de Platão, pode está na tentativa de conscientização do homem.

O Brasil como participante dessa crise também adere aos novos interesses. Dessa forma, percebe-se que o haicai, é cultivado no Brasil já algum tempo. Nos anos de 1920, depois de uma crise econômica no Japão, chega ao Brasil, como imigrante, um poeta chamado Kenjiro Nenpuku Sato. Filho de comerciantes japoneses que conheceu e se apaixonou pelo Haiku (como era conhecido o haicai), através do seu mestre catedrático Mizuno Nakata, de quem recebeu a incumbência de semear essa forma literária em terras brasileiras. No Brasil foi cultivador de café, arroz e algodão, mas não deu certo. Passou então a criar gado e conseguiu êxito. Com a vinda da seca ele passa a visitar as comunidades, fazendo conferências e “pregando” essa forma poética japonesa.

Nenpuku Sato morreu em outubro de 1979 em Bauru-SP, aos 81 anos. Deixou duas antologias publicadas: Nenpuku-Kushu nº 1 e Nenpuku-Kushu nº 2. Chega-nos às mãos, o livro Trilha forrada de folhas (1999), uma antologia selecionada por Futaro Sato, filho do poeta, e traduzida por Maurício Mendonça, de onde foram tiradas as informações acima. Nenpuku dedicou sua vida a cultivar o haiku que, ao adentrar no Brasil, fica conhecido como haicai ou haikai. Um dos seus poemas feito em terras brasileiras foi em homenagem ao irmão que morreu de acidente de trem quando chegava ao Brasil:

Tsuchi Kure ni rosoku tatenu Kusa no tsuyuVela sobre a terraVida que se esvai

Orvalho nessa relva(Nenpuku Sato, 1999, p. 125)

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Paulo Franchetti em O Haicai no Brasil (2008), afirma que em 1925, os introdutores do Modernismo no Brasil davam à luz aos livros Pauliceia desvairada, de Mario de Andrade e Pau Brasil, de Mario de Andrade, suspiros poéticos prefaciados por Paulo Prado que, para justificar a inovação da poesia brasileira e a necessidade de concisão, bem como de uma linguagem menos arrogante, coloca em sua fala um haicai. Usou como forma de inovação e ruptura com a colonização cultural européia que sempre permeou a literatura brasileira. Franchetti afirma que nesse contexto:

O haicai japonês aparece, então, como ideal de coloquialidade, de registro direto da sensação e do sentimento e como forma adequada ao tempo rápido do presente. E também como modelo literário não-europeu para o projeto nacionalista brasileiro, que visava, nas suas palavras, romper os laços que nos amarram desde o nascimento à velha Europa, decadente e esgotada. (2008, p. 2)

Esclarece-se, no entanto que o tipo de poesia usada pelos modernistas não condizia com o haicai japonês. Segundo Franchetti, trata-se apenas de um terceto, o poema de Prado foge tanto à forma quanto ao conteúdo do poema japonês como se vê a seguir:

Diz a haïkaï japonês, na sua concisão lapidar.Grande dia esse para as letras brasileiras.

Obter, em comprimidos, minutos de poesia.

De acordo com Franchetti a primeira experiência fiel do haicai no Brasil é de Afrânio Peixoto, através da obra Trovas populares brasileiras (1919), “assimilando a forma japonesa à trova popular, Peixoto apresentava o haicai como um "epigrama lírico", reconhecendo não a bizarrice da forma, mas um "encanto intraduzível”.(2008, p. 4). Foi, porém, com Guilherme de Almeida que o haicai entrou definitivamente para o Brasil. Almeida busca tanto o teor quanto a forma japonesa para dar vida aos seus poemas, mas colocou nele a rima para melhor acomodar ao gosto brasileiro, assim ficaria “uma a unir o primeiro com o terceiro verso, e outra interna ao segundo verso, ocupando a segunda e a última sílaba.

Desfolha-se a rosa.Parece até que floresce

O chão cor-de-rosa

É dessa forma que a poesia japonesa começa a cair no gosto de alguns poetas, entre outros se observa essa forma poética entre os poemas de Manuel bandeira, Leminski, Claber Araujo e Pedro Xisto. Esses poetas empregam a realidade brasileira, como a política e a condição social, como se vê em: “Barrocas vinhetas/ anjos gordos nas igrejas/Magros nas sarjetas”. de Pedro Xisto.(193?)

De acordo com Luiza Lobo (1993), a partir da década de 1960 os irmãos Campos exploram a condição visual do haicai para sua teoria concretista que já fora iniciada por Ezra Pound com o imagismo. A partir de 1970 a geração beat, na busca de sentido para a vida de forma exotérica e empregando uma irreverência poética e crítica, adere também ao haicai. É nesse ínterim que

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Paulo Leminski adota essa forma poética e dar-lhe um tom irônico e ousado e une o haicai ao Concretismo como mostra os versos seguintes:

Ai pra BashôSem PNem mãe

Ais

Leminski também traduziu Bashô e contribuiu para a difusão do gosto por essa forma literária. Há muitos “anônimos” do haicai, alguns que lhe dão dedicação como é o caso do poeta Saulo Mendonça, que se encaixa em um misto de tradição e modernidade; conservadorismo e autenticidade como veremos nesta breve investigação.

3 O HAICAI DE SAULO MENDONÇA1

Ao entrar em contato com a poesia de Mendonça a sensação é de leveza, de deleite e de prazer. São poemas de três versos que facilitam o interesse pela leitura. O haicai traz, desde sua origem, algumas características que atraem o publico: a concisão e a linguagem acessível. Aliado a isso Mendonça é possuidor de uma sensibilidade que aflora entre os versos, contemplativa e de um sentimento que é passado sem exageros. O seu olhar de encantamento para o mundo é constante, ele personifica os elementos da natureza, dando dinâmica precisa aos versos que prende o leitor à visão e à reflexão do meio.

O Livro Luz de musgo já revela no título uma relação com o que traduz em seus versos: a luz, uma luz que resiste, que transgride tal qual o musgo, haja vista a capacidade desse tipo de vegetal de nascer em lugares escassos de luz e de solo, como pedras e tronco de árvores. Assim, essa luz na obra de Mendonça, em uma sociedade alienada e cega, como já expressou Saramago (2002), conota também a luz do pensamento, traz o homem de volta ao seu reduto, ao seu ninho: à natureza.

No ambiente pós-moderno em que a arte retorna ao passado como observa Lyotard (2006), percebe-se que a desconstrução é constante e a sátira carnavalesca é um dos elementos característicos da contemporaneidade. Nessa perspectiva, vê-se que a poesia de Mendonça traz o passado de forma que, em meio às contradições do presente, ela seja o que falta: o alento, a tranqüilidade, a união do homem com ele mesmo, uma vez que renegou até a si em prol do bem material. Dessa forma, o autor abre espaço para a natureza e contempla, juntamente com o leitor, a dinâmica que existe tanto externo quanto internamente como se percebe nos poemas a seguir:

À tardinha, no SanhauáO velhinho fitava o rioCom seu olhar poente.

1 Nos poemas analisados o livro Luz de Musgo será exibido apenas com as inicias L.M. e a página em que está o poema, uma vez que a data da edição da obra se encontra nas referências.

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(L. M. p. 9)

A natureza se apresenta sob o olhar de um eu observador e reflexivo a um fato passado (fitava), porém pela colocação do verbo, pretérito imperfeito, no início do poema, vê-se que a ação era repetida pelo velhinho. Se ao invés do artigo definido a no início do poema, fosse usado o indefinido uma o ato se resumiria a uma vez, mas a ação fica em aberto como se fosse costume do velhinho observar o rio todas as tardes. A partir daí já se tem uma nuance de um ciclo, de um cotidiano.

Permeiam no poema contrariedades de naturezas. Os elementos da natureza externa se relacionam com a natureza humana. A tarde, no primeiro verso, representa o fim do dia. No segundo verso o velhinho, no fim da vida, se contrasta com o rio que representa a dinâmica da vida, corrente, movimento, renovação, ciclo. No último verso, o olhar poente, finalizando o poema, revela também o fim do dia refletido no olhar velho, olhar esse, cansado, triste e reflexivo como quem, no fim da vida, passa a observá-la através do rio.

O ciclo vital vai se revelando aos poucos, entrelaçando o homem à natureza como sendo mais um elemento dela, é a fusão homem e meio ambiente e o humano revelado pelos fenômenos da natureza. Há um espaço aberto como se o olhar poético abrangesse além do que é possível ver; no entanto, a paroxítona com som aberto no final do 1º verso, abre o espaço que se fecha no último verso com a palavra poente, de som fechado e nasalizado. O ciclo vital está na própria estrutura do poema a morte é representada pela (tarde), vida (rio), morte (poente).

A percepção da relação da água com o ambiente também é um elemento muito forte no poema. A água percebida ao cair da tarde é escura e turva. O ambiente é sombrio já pela leveza do sol e do vento que sopra, tornando esse ambiente mais frio. Assim, a sensação é de melancolia. Ao contrario, pela manhã, quando o sol argenteia as águas até ferir os olhos, a quentura do sol, com a imagem observada, provoca sensação de alegria.

Dessa forma, a tarde no poema, vem conferir as afirmações acima pela reflexão do velhinho ao fitar o rio. Mendonça também reafirma isso através do som enfatizado pelo diminutivo e pela nasalização existente nos três versos: (inha), (anha), (inho), (ente). Observa-se também a quebra da estrutura clássica do haicai que seria de dezessete sílabas poéticas: 5,7,5, uma vez que o poeta coloca oito sílabas nos dois primeiros versos e seis no terceiro, totalizando 22 sílabas poéticas. Assim, ele se diferencia também no não uso das redondilhas, já que a métrica mais usada é sete e cinco sílabas. Vale ressaltar que a ordem decrescente do poema também remete simbolicamente ao fim, a morte. A forma do poema induz ao estreitamento do espaço. Algo que vai enfraquecendo, se findando como se fosse o fio da vida debilitando, perdendo a força. Esses aspectos se encontram com o último verso também pela colocação do olhar poente, reafirmando a idéia de fim.

Com isso o poeta imprime um olhar para o mundo, dá cores que levam não à imaginação, mas à introspecção, à volta ao eu, à reflexão. Os valores são atribuídos subliminarmente pelo olhar poente quando há o encontro do “morrer” do sol e o fim da vida do ser humano. Vão fluindo incessantemente, imagens, ideias, sem repetição, mas com tonalidades induzidas que pululam o imaginário e o sentimento.

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Na colheita de laranjasMulheres lentamente

Colhem a tarde bem madura(L. M. p. 13)

O poema acima se trata de um haicai com estrutura de sete, cinco e sete sílabas, totalizando dezenove sílabas poéticas. A imagem do poema traz um espaço aberto e induz a primavera pelo kigo colheita. A aliteração em (L) provoca a sensação de boca cheia, especialmente pelos dígrafos (lh) que são explorados ao longo do poema. Mendonça não utiliza metáforas, mas oferece uma viagem através da linguagem imagética que carrega o leitor para o outro lado, a colher laranjas lentamente como se saboreasse-as enquanto saboreia o poema.

É uma reflexão sem pressa para que o amadurecimento aconteça como mostra o último verso. É uma colheita de ações que foram pensadas, cultivadas assim como as frutas. O eu poético leva-nos a imaginar que, assim como as laranjas, tudo tem seu tempo e a tarde, o fim do dia, pode representar o amadurecimento do homem na vida, ou seja, colhe-se o que se planta e se não plantar com zelo não se pode saborear a colheita, pois os frutos não estarão em bom estado.

Veja-se que a tarde é colhida bem madura. O advérbio de modo chama atenção para o momento certo e para a qualidade do fruto que se relaciona com o tardar da vida, o momento de colher o que se plantou. Observa-se aí uma intertextualidade com o provérbio, “quem semeia vento colhe tempestade”. Em meio ao inteligível, a inspiração, a sensibilidade, que unem a “intencionalidade e o acaso” como bem observa Amador Ribeiro (2001), o poeta mostra que da qualidade do que se planta depende o “lucro” da colheita.

No referido poema vê-se, mais uma vez homem e natureza unidos para uma reflexão de vida, de tempo, de ser e de estar no mundo. Mais uma vez percebe-se que o ciclo vital se faz presente na poética de Mendonça e mostra que o fator tempo também é um elemento presente e importante em sua poesia.

Chuva passandoTarde escurecendo...É tempo de tanajura!

(L. M. p. 21)

Deduz-se do poema que o homem lê a vida através da natureza. É interessante notar que sempre foi assim, mas poucos se dão conta disso, daí a crueldade de muitos humanos com os elementos naturais. Se adentrarmos as formas artísticas, especialmente a literatura percebemos como a relação homem/natureza é intrínseca. Em Vidas secas, de Graciliano Ramos, por exemplo, é sempre a natureza que, de alguma forma, guia o homem, comunica-se com ele, avisa-lhe sobre a iminência de algo. No último episódio, são as arribações que avisam Fabiano da vinda da seca e por isso ele tem tempo de sair do lugar para não morrer de sede. Observando a música do Rei do baião encontramos a Asa branca que avisa tanto a chegada da seca “Asa branca” quanto da chuva “Volta da asa branca”.

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Em um haicai de dezesseis sílabas poéticas, de estrutura crescente (4,5,7), Mendonça não se furta a esse aspecto e mostra que a comunicação da natureza externa com o homem é evidente. O tempo de tanajura, como consta no poema, é o aviso das primeiras chuvas, é hora de se preparar para o inverno. A estrutura crescente pode prenunciar também essas chuvas que virão de forma mais densa e mais constante. A tarde escurecendo tanto pode ser pelo finalizar do dia, como pode ser também pela quantidade de chuva, e mais uma vez o fator tempo, que vai passando, ou seja, mais uma vez chama-se a atenção para passagem do tempo com os gerúndios do segundo e terceiro versos, para, quem sabe, um melhor aproveitamento dele.

Concerto de inverno:Chuva no telhadoSapos assobiando

(L. M. p. 25)

No poema anterior temos a tanajura que prenuncia a chuva e o tempo passando. Quatro páginas depois encontramos o inverno em seu ápice. A estrutura crescente do poema anterior, com a reticência logo após o verbo escurecendo, evidencia o presente no momento da ação, ou seja, algo que ainda está sendo feito e complementado, se encontra essa finalização com o cume do inverno. Aliado a isso a imagem linguística descrevendo o som leva-nos à memória auditiva de escutação do som do inverno.

A aliteração em (S) do último verso dá o som do assobio. Observa-se também que os dois primeiros versos de cinco sílabas são quebrados pelo último com seis que, se transformado em som, vão dar um ritmo musical com a escala maior no último verso. Assim, tem-se a percussão com as batidas da chuva no telhado e o instrumento sonante através do assobio que acompanha a percussão e vai além.

Teus beijos de invernoTem gosto de verão

E me enchem de primavera(L. M. p. 41)

Quebrando certa tradição do haicai, o eu poético dirige-se a uma segunda pessoa. Mais uma vez observa-se a fusão homem/natureza, porém com um toque de ironia quando se observa a comparação dos sentimentos que essa segunda pessoa provoca no eu poético. De certa forma esse fator remete à origem do haicai antes de sua autonomia lírica. Vê-se que três estações estão presentes no poema e atribuem valor aos sentimentos.

Numa primeira leitura o poema sugere beijos que, embora em tempo frio, de inverno têm o calor do verão, são acalorados pela paixão. Dessa forma, é como se avivasse a alma desse eu poético que se enche de esperança, de vida, de alegria, sentidos que são representados pela primavera, que finaliza o idílio de amor.

Por outro lado, outro olhar pode ser lançado ao poema. É perceptível certo paradoxo em relação ao beijo. Beijos de inverno, provavelmente beijos frios, sem interesse por parte da outra pessoa. Essa percepção se sustenta pela locução adjetiva (de inverno) que remete à qualidade do beijo

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frio. Ao mesmo tempo são beijos que têm gosto de verão, logo, imaginam-se beijos calientes, ardentes, mas essa sensação é idealizada pelo eu poético em virtude do sentimento e do valor que são atribuídos à pessoa amada, ou seja, os beijos daquela pessoa são especiais e por isso, para ele, são ardentes. Essa leitura torna-se possível ao considerarmos, no terceiro verso, a palavra primavera como a que fomenta a ideia de esperança. Assim, o eu poético recebe os beijos frios, mas idealiza-os como sendo de paixão e a primavera representa a esperança de que um dia esses beijos venham a ser de real interesse da outra parte, ou seja, realmente calientes.

Fogão de lenhaCarne seca, pão assando

E a brancura de Júlia.(L. M. p. 43)

O poema possui estruturalmente uma enumeração de elementos: percebe-se que essa quantidade expressa tem como propósito mostrar o bem estar, a felicidade. Por outro lado, tudo é simples, básico, como se o eu poético quisesse mostrar que a felicidade não está nas coisas inatingíveis, por que a felicidade está, não nas coisas em si, mas na maneira como as vemos.

O poema possui dezessete sílabas, porém não estão arrumadas tradicionalmente, está dividido em 4,7 e 6 sílabas e o que se observa, subliminarmente, até pela colocação dos versos, é que o que foi enumerado basta, a vida está completa. O primeiro verso começa a enumeração que cresce no segundo verso, mas o último, diminui, complementa, é o bastante.

Júlia é o ser amado, mas representa também a paz, a serenidade pela maneira como é associada ao poema “a brancura de Júlia”. Os sentidos se evidenciam, ou seja, o poema vem carregado de sinestesia que remete ao prazer. A quentura do fogão, que leva ao aconchego, ao ninho. A carne e o pão que são símbolos de prazer e de vida e ao mesmo tempo o alimento, a sobrevivência, mas que, da forma que estão expressos, aguçam também o paladar. Finalmente a visão, a imagem de Júlia. Assim, mostra-se uma vida de aconchego, de calor, o alimento na mesa, com o prazer que faz parte da condição humana e a paz e tranquilidade ao lado da mulher amada.

Aviõezinhos decolando ao léu...Levaram meu jogo de bilaE meus sonhos de papel.

(L. M. p. 59)

Implicitamente já se percebe a passagem do tempo e junto com ele o que era motivo de sonho e de felicidade. O eu poético provoca o olhar para o presente e compara-o com o passado. Antes havia o domínio do brinquedo, havia um limite e sabia-se para onde ir. A criança produzia um aviãozinho de papel e o lançava em uma determinada direção. Com a modernidade e a evolução tecnológica os brinquedos ganham vida própria e saem do controle do ser humano. Dessa forma, os sonhos esvaídos deixam sem rumo também o indivíduo, numa verdadeira crise de sentido.

A palavra léu, no primeiro verso, acompanhada de reticências, contraria todo equilíbrio anterior. Vêem-se os elementos do poema (aviõezinhos) sob uma condição de esgarçamento do destino,

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do rumo e da fratura de identidade, tal qual o homem contemporâneo, como lembra Stuart Hall (2005), para o qual o homem contemporâneo é levado a uma crise de identidade em virtude de um processo de mudança da sociedade que abala as estruturas sócio-culturais pré-existentes e coloca o indivíduo numa condição instável no que concerne a sua identidade. Nesse processo, com a velocidade das informações e a descentralidade das identidades culturais de classes, etnias, sexualidades e nacionalidades é humanamente impossível a estabilidade identitária, daí a fragmentação do sujeito.

O poema sugere essa transformação social e cultural em que se encontram submetidas às brincadeiras de criança. O eu poético nos remete à modernidade, mas também à desordem que assola o mundo em virtude do processo de transformação sócio-cultural. Coloca também a troca da originalidade e simplicidade das brincadeiras que, no texto, são representadas pela bila e pelo papel; por estruturas tecnológicas, complexas, verdadeiros simulacros que enganam pela imagem. É como se os sonhos fossem levados pela velocidade desse presente futurístico, representado pelos aviões.

É interessante observar na estrutura do poema uma ordem decrescente: ele está composto por três versos: 10, 8 e 7 sílabas. Essa ordem enfatiza a involução do homem. É como se o eu poético, de forma sutil, como requer o haicai, lamentasse pela perda do passado feliz, dos sonhos que se esvaíram. Sonhos de papel, essa colocação remete à fragilidade dos sonhos e ao mesmo tempo à impotência de ação perante a força tecnológica e o poder da máquina que invade a vida moderna.

Na casa do meu avôO tempo era longo.

A noite chegava devagarinho.(L. M. p. 65)

Guimarães Rosa, no conto Fita verde no cabelo, diz “era um lugar onde o tempo parecia não passar”. O autor se refere a um lugar pacato, interiorano, onde se vive sem pressa. Ao ler esse haicai, abrem-se as rasgaduras do tempo e o espaço encurta, porque há o transporte até a casa que seria o lugar de memória de quem o lê. É como se o prazer fosse infinito e se esperasse a noite para que outro dia acontecesse. É como se o dia fosse bem aproveitado e o tempo fosse diferente dos outros lugares. É interessante como casas de avós parecem ser todas iguais, um espaço divinizado, do qual o leitor consegue partilhar.

Ao olhar para a estrutura do poema encontra-se o primeiro verso com sete sílabas, o segundo com cinco e o terceiro com dez. No primeiro, a exposição do espaço, em seguida a objetividade da situação, verso menor, mais conciso. No entanto percebe-se que esse verso se finda com uma paroxítona, a palavra longo que dá a sensação de morosidade, de lonjura. O terceiro verso vem abrir esse tempo, essa noite que demora a chegar e alonga também o verso preguiçoso enfatizado pelo pretérito imperfeito (ava) e pelo diminutivo do adjunto adverbial de modo que indica a vagareza do tempo.

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Mais uma vez se observa a relação lírica do poema e o saudosismo. Também se percebe a percepção do tempo antes em relação a velocidade expressa pela vida moderna que faz com que, pelos inúmeros afazeres diários, percebamos o tempo mais rápido.

Ao perscrutar a obra veem-se curiosamente dois poemas no meio do livro, que possuem treze sílabas, são dois haicais enxutos, concisos e objetivos:

A moça nubenteResolvida, despe-se:

Mais um sim.(L. M. p. 29)

Árvore tombadaDesenhada a giz:

Quadro negro(L. M. p. 67)

Em ambos os poemas existem os dois pontos que pausam a explicação conclusiva do último verso sobre o que é exposto nos dois primeiros. Nos dois poemas o primeiro verso é composto de duas palavras que mostram o sujeito e a situação em ele que se encontra: (nubente), (tombada).

Com o olhar um pouco mais atento vê-se que se trata de dois sujeitos femininos em situação passiva. Esse aspecto se evidencia no 1º poema, no último verso “mais um sim”. Apesar da concordância (despe-se), há uma aceitação, um quê de permissividade, de passividade. O outro poema mostra uma árvore tombada, caída, derrubada e “desenhada a giz”. Ao pensarmos giz, memorizamos um objeto fálico que tocará a tombada árvore, no mesmo contexto ao imaginarmos o outro sim e a noiva, percebemos para que ação ela dirá o outro sim. O sim para ser tocada, penetrada.

Observa-se ainda que, tanto a noiva quanto a árvore, são “tombadas” pelo masculino o que mostra a condição da mulher perante o homem, condição essa formada pelo imaginário social. Nesse contexto, mais uma vez se evidencia a fusão humano/natureza através da condição do feminino.

Por outro lado a árvore tombada transforma-se em quadro negro em que se escreve a giz: essa é a conclusão literal, mas não literária se imaginarmos que a palavra quadro também remete à imagem. Ao analisar a simbologia da palavra negro no imaginário social pode-se perceber que o quadro negro pode ser a cena de uma árvore sendo derrubada, a tristeza e a destruição da natureza.

A Amazônia fremeEsvaindo em líquidoSeu sangue branco

(L. M. p. 73)

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Tomo aqui o último poema do livro. O que se encontra é um eu poético que, assim como a luz de musgo, invade as sombras da floresta para chamar a atenção e direcionar o olhar humano para a natureza que espera mais preservação e menos crueldade do homem. O látex, que alimenta parte do capitalismo é retirado de forma inescrupulosa das veias das árvores. Como uma mãe que amamenta seu filho, a Terra oferece seu “sangue”, seus frutos suas “tetas” para que o homem sobreviva, mas a ganância é um lobo esfaimado e insaciável que, para sanar a fome, pode matar até a melhor amiga, como bem mostra a fábula O Lobo e a Ovelha, de Bocage.

Veja-se a personificação da natureza ao evidenciar-se o sofrimento, a agonia da moribunda floresta. O verbo do primeiro verso apresenta o sentido convulsivo que antecede a morte. O segundo verbo, no segundo verso, chama atenção para a perda do que é vital para existência: o sangue. O poema contém apenas 14 sílabas poéticas, é o último poema e está dividido em cinco sílabas no primeiro verso, cinco no segundo e quatro no terceiro. Assim, observa-se que essa forma decrescente finda o livro com a última sílaba menor, revela não só o fim da obra, mas também o fim da natureza e, consequentemente, do homem, se nada for feito.

A repetição da quantidade de sílabas do primeiro e segundo versos mostra as ações repetidas, a não mudança de atitude das pessoas. É como se o fim fosse chegando aos poucos, como se a vida fosse se findando à medida que vai sendo sugada pelo homem. A estrutura do poema está concatenada com a proposta dele e da obra. É uma tentativa de fazer vir à luz a consciência do homem que está mergulhado nas sombras da alienação do poder.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo da leitura dos Haicais de Saulo Mendonça vê-se um poeta autêntico, inspirado e comprometido com a sua condição enquanto elemento dessa engrenagem a que chamamos mundo. O poeta encurta o espaço, busca a poesia oriental, atravessa o tempo e resgata a tradição, mas dá-lhe autenticidade e inovação.

Saulo faz sua própria forma, molda a estrutura conforme suas necessidades poéticas e disposição anímica. Desconstrói uma métrica, mas acomoda outra dentro de uma ideologia que, essencialmente, não foge à filosofia dos grandes haicaistas japoneses, como Bashô e Nempuku, de fazer o homem olhar para si enquanto olha para a natureza. À medida que se entra nas entranhas dos poemas percebe-se que não se trata apenas de um haicaista, mas de alguém que tem como uma de suas propostas poéticas: mostrar que homem e natureza são partes de um mesmo todo.

A luz de musgo, aos poucos, vai mostrando os espaços de natureza através dos elementos e dos fenômenos. Insinua que a natureza humana, assim como a natureza externa, também tem seus mistérios, porém o poeta busca justamente o que difere ambas: a consciência humana. Assim, a luz de musgo que resiste, persiste e se evidencia na escuridão, que amacia as superfícies mais duras e aviva solos inférteis, vem à procura de uma fresta na consciência do homem para fazê-lo ver além das paredes de concreto e resgatá-lo da ilusão da virtualidade para onde foi abduzido.

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Dessa forma, observa-se que a escolha de Mendonça pelo haicai não é à toa pois, ao conhecer melhor essa forma poética, percebe-se que se trata de uma das maiores representantes da natureza em forma de poesia.

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