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A NEGATIVA DE ATENDIMENTO NO ÂMBITO DA POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO ÀS URGÊNCIAS NA SAÚDE: uma análise da tese da reserva do possível à luz das contribuições de Luhmann Miguel Ribeiro Pereira 1 1 e-mail: [email protected] 1

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A NEGATIVA DE ATENDIMENTO NO ÂMBITO DA POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO ÀS URGÊNCIAS NA SAÚDE: uma análise da tese da reserva do possível à luz das contribuições de Luhmann

Miguel Ribeiro Pereira1

1 e-mail: [email protected]

1

1 INTRODUÇÃO

Dentre as várias políticas públicas instituídas no âmbito do Sistema Único de

Saúde destaca-se a política nacional de atenção às urgências com impacto em todo o território

nacional.

Atualmente, segundo esta política, as urgências sanitárias no Brasil devem ser

socorridas por uma ampla rede de instrumentos, desde o atendimento móvel, realizado através

de várias ambulâncias e centrais de regulação, até as Unidades de Pronto Atendimento

(UPAs) e hospitais, distribuindo-se, segundo o princípio da descentralização, por uma rede

hierarquizada e regionalizada, tentando-se garantir no âmbito dos Municípios e Estados o

mais integral atendimento a estas demandas.

O Sistema Único de Saúde, nesta e em outras políticas, desde o seu modelo

constitucional, incorpora a previsão do atendimento sob o pálio da regionalização,

hierarquização, descentralização e integralidade, com atividades preventivas e assistenciais,

garantindo a participação da comunidade.

Entretanto, estas diretrizes não estão sendo cumpridas em sua totalidade

havendo dificuldades para que o atendimento se verifique, de forma integral, nos grandes

centros urbanos, sendo praticamente inexistente em alguns centros populacionais, apesar de

garantido constitucionalmente percentual de gasto mínimo na saúde, devido pelos entes

federados e a despeito da grande quantidade de serviços e equipamentos envolvidos no

Sistema Único de Saúde:

O SUS envolve cerca de 6 mil hospitais , 440 mil leitos contratados, 63 mil unidades ambulatoriais, 26 mil equipes de saúde da família, 215 mil agentes comunitários, 13 mil equipes de saúde bucal. Ocorrem anualmente cerca de 12 milhões de internações hospitalares, mais de 1 bilhão de procedimentos em atenção primária em saúde 150 milhões de consultas médicas, 2 milhões de partos, 300 milhões de exames laboratoriais, 1 milhão de tomografias computadorizadas , 9 milhões de exames de ultras sonografia, 140 milhões de doses de vacinas que constituem um excelente programa de imunizações.2

2 Em:< http://www.apm.org.br>. Acesso em: 28 junho 2013 2

Segundo dados do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde há grande

déficit no atendimento e decrescente investimento de parte das instâncias públicas, em

especial a União:

Entre 1980 e 1990 a União era responsável por mais de 70% do gasto público com saúde. Em 2000 estava em torno de 60% e em 2003 e 2004 essa participação caiu para cerca de 50%. Ou seja, a participação dos estados e dos municípios no financiamento da saúde cresceu, consideravelmente, nos últimos anos.3

Neste cenário de dificuldade de assistência no Brasil às diversas demandas na

saúde o Brasil vem apresentando déficit também nos recursos humanos:

Ao longo dos últimos dez anos, o número de postos de emprego formal criados para médicos ultrapassa em 54 mil o de graduados no País. De 2003 a 2011, surgiram 147 mil vagas neste mercado de trabalho, contra 93 mil profissionais formados, conforme dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).

A este quadro de carência de profissionais, soma-se a perspectiva de contratação de 26.311 médicos para trabalhar nas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) cuja construção está sendo custeada com recursos do Ministério da Saúde até 2014.

Com estes dados, o Brasil tem 1,8 médico para cada mil brasileiros, índice abaixo de outros latino-americanos como Argentina (3,2) e México (2). Para igualar-se à média de 2,7 médicos por mil habitantes registrada na Inglaterra, país que está sendo utilizado como referencial, por possuir, depois do Brasil, o maior sistema de saúde público de caráter universal orientado pela atenção básica, o Brasil precisaria ter hoje mais 168.424 médicos.4

Neste panorama de recursos financeiros e humanos escassos o atendimento às

urgências também se apresenta comprometido já que, se por um lado o Ministério da Saúde,

através de suas diversas portarias, determina que devem ser estruturadas as redes de atenção

às urgências nos Estados e Municípios na perspectiva da integralidade e regionalização, por

outro lado, diante da tese da reserva do possível, tem havido negativa de atendimento a

pacientes sob a alegativa de esgotamento da capacidade instalada.

Utiliza-se a tese da reserva do possível para que pacientes levados pelas

ambulâncias do sistema móvel de urgência (SAMU) não sejam atendidas nos demais pontos

3 Conselho Nacional dos Secretários de Saúde. Para entender o SUS. Coleção Progestores, Brasília, 2007, p. 85

4 Ministério da Saúde. Diagnóstico da realidade médica no país 2013. Em:< http://portalsaude.saude.gov.br/portalsaude/arquivos/pdf/2013/Mai/23/ppt_provab2305_final.pdf> Acesso em: 28 junho 2013

3

que compõem a rede de urgências: UPAs e Unidades Hospitalares, situação presenciada

recentemente em localidades brasileiras5.

Segundo o jornal Folha de São Paulo as UPAs vêm se recusando a receber os

pacientes encaminhados pelo SAMU sob a alegativa de inexistência de leitos:

Em junho, uma mulher que sofria de obesidade mórbida, hipertensão e diabetes foi levada com dores a uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) administrada pelo governo estadual em São Luís, no Maranhão, esperou uma hora na porta e só entrou após intervenção da Polícia Militar.

O impasse ocorreu porque ela havia sido encaminhada em uma ambulância do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), gerido pela Prefeitura de São Luís.

Na cidade, pacientes transportados pelo serviço estão proibidos de ser atendidos nas UPAs. Quem precisa de atendimento de urgência tem de chegar por meios próprios, como carro ou mesmo a pé.

O veto contraria portaria do Ministério da Saúde, segundo a qual as UPAs têm de trabalhar em conjunto com o Samu. (...)

A situação, diz a Promotoria, já motivou casos de pacientes deixados pelo Samu perto de unidades estaduais, para depois seguirem de táxi ou carregados por parentes.(...)

Hoje, todos os pacientes transportados pelo Samu, inclusive os de menor complexidade, são levados diretamente aos dois prontos-socorros municipais.

Os Socorrões, como são chamados, sofrem há anos com a superlotação. O modelo de UPA idealizado pelo ministério pretendia justamente desafogar os prontos-socorros.

Em São Luís, afirma o Ministério Público, ocorre o contrário. A recusa do atendimento de pacientes do Samu faz as UPAs operarem “de forma tranquila”, deixando os Socorrões lotados.

Em nota, a Secretaria Estadual de Saúde afirmou que Estado e município fizeram um acordo para que as UPAs “se abstivessem de receber pacientes do Samu, devido à superlotação das mesmas, decorrente da precária situação dos serviços da prefeitura”.

“A decisão vale até que a prefeitura invista nas suas unidades”, afirmou.

A prefeitura negou ter feito qualquer acordo.

5 TUROLLO JR, Reynaldo. Em São Luís, Estado recusa doente levado pela prefeitura. Folha de São Paulo, São Paulo, 19 jul. 2012.

4

As portarias do Ministério da Saúde adotam a lógica da reserva do possível

como motivação para que não sejam atendidos pacientes, usando a sistemática do

esgotamento da capacidade instalada.

Entretanto, em variadas e recentes decisões judiciais o Supremo Tribunal

Federal tem afastado a tese da reserva do possível em direção a uma possibilidade de

efetivação concreta do direito à saúde, defendendo a possibilidade de uma argumentação

baseada em provas, não se contentando apenas com a negativa de orçamento ou de estrutura,

recorrendo em suas decisões judiciais aos consensos científicos no campo da saúde.

Vale dizer, tem se norteado a mais alta corte de justiça no país pela lógica de

que as normas jurídicas que conduzem ao atendimento na área da saúde não podem ser tão

herméticas a ponto de não possibilitar uma conexão com os demais conhecimentos

estabelecidos, a exemplo das Ciências da Saúde, cujos especialistas deveriam ser ouvidos

previamente a normas jurídicas e decisões judiciais tão sensíveis como aquelas relacionadas a

internações e tratamentos de saúde, inclusive quanto à verificação do esgotamento da

capacidade instalada de determinada unidade de saúde.

Assim é que um dos objetivos da presente tese é identificar se a portarias do

Ministério da Saúde que tratam sobre a política nacional de urgências no que tange à alegativa

da reserva do possível, sob a motivação de esgotamento da capacidade instalada, representam

entraves à efetivação do direito à saúde ou se abrigam, em si mesmas, possibilidade de

conformação ao direito à vida, à saúde e à própria dignidade da pessoa humana.

Ainda se propõe este estudo científico a realizar abordagem sistêmica da

matéria verificando-se a possibilidade de adoção de um referencial teórico, a partir da obra de

Niklas Luhmann, que possa conciliar as leis, os demais comandos normativos, inclusive as

portarias do Ministério da Saúde, os orçamentos públicos e os consensos científicos, como

bem lembrado pelo Supremo Tribunal Federal, para que não restem violados, a um só tempo,

o princípio da dignidade da pessoa humana, os direitos à vida e à saúde.

Para a consecução de tais objetivos apresentam-se a seguir, inicialmente, os

marcos normativos instituidores da Política Nacional de Atenção às Urgências que moldaram

a rede nacional de atenção às urgências, fundamentados sobre a tese da reserva do possível, o

5

que tem possibilitado aos gestores negar o atendimento mesmo em casos urgentes, quando

não houver capacidade instalada suficiente na unidade.

Posteriormente, será analisada a tese da reserva do possível e a evolução no

contexto da doutrina jurídica brasileira que tem mitigado esta motivação para negativa do

atendimento à saúde. Finalmente, apresenta-se a teoria de Luhmann, como possibilidade

teórica de garantia do direito à saúde e à vida, permitindo um novo tratamento da matéria a

partir de um sistema de saberes não calçado apenas nas leis e portarias, mas em direção à

constatação de que a modernidade se caracteriza pela especialização nos diversos campos do

conhecimento, sendo a decisão no campo jurídico tanto mais legítima quanto mais aliada aos

conhecimentos específicos em cada matéria, cabendo estabelecer uma ponte entre o Direito e

as ciências da saúde, no quesito específico do atendimento às urgências da saúde.

2 OS MARCOS NORMATIVOS INSTITUIDORES DA POLÍTICA NACIONAL DE

ATENÇÃO ÀS URGÊNCIAS: a lógica da reserva do possível

Em 29 de setembro de 2003 o Ministério da Saúde publicou a Portaria GM nº

1863, que instituiu a Política Nacional de Atenção às Urgências, a ser implantada em todas as

unidades federadas.6

Como razão para instituição desta política dispõe o Ministério da Saúde que há

a necessidade de estruturar uma rede de serviços regionalizada e hierarquizada de cuidados

integrais às urgências de qualquer complexidade ou gravidade, desconcentrando a atenção

efetuada exclusivamente pelos pronto socorros.

O Ministério da Saúde identifica que o Sistema de Saúde deveria garantir aos

pacientes a possibilidade de atendimento sem solução de continuidade desde o nível de

serviço móvel de atendimento de urgência ( SAMU) até as unidades básicas de saúde e

unidades hospitalares de média e alta complexidade.

Constata-se já nos consideranda desta portaria a intenção de realizar a mais alta

sintonia entre os diversos níveis de atendimento aos pacientes que não poderão restar

6 Brasil. Portaria n° 1863/GM/MS, de 29 de setembro de 2003. Institui a Política Nacional de Atenção às urgências / Ministério da Saúde. Brasília, 2006.

6

desamparados quando migrarem do atendimento realizado no serviço móvel de urgência

(SAMU) para os demais componentes de atendimento no âmbito do SUS, incluindo as

Unidades de Pronto Atendimento ( UPAs). Atualmente, na matéria, vigora a Portaria nº 1.600,

de 7 de julho de 2011 que reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a

Rede de Atenção às Urgências no Sistema Único de Saúde (SUS).

No âmbito desta política o Ministério da Saúde vem editando vários marcos

normativos: Portaria n° 737/GM/MS, de 16 de maio de 2001, que institui a Política Nacional

de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências; Portaria n° 344/GM/MS, de 19

de fevereiro de 2002, que institui o Projeto de Redução da Morbimortalidade por Acidentes de

Trânsito - Mobilizando a Sociedade e Promovendo a Saúde; Portaria n° 2048/GM/MS, de 05

de novembro de 2002, que regulamenta tecnicamente as urgências e emergências; Portaria n°

2.657/GM/MS, de 16 de dezembro de 2004, que estabelece as atribuições das centrais de

regulação médica de urgências e o dimensionamento técnico para a estruturação e

operacionalização das Centrais do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192);

Portaria nº 1600, de 7 de julho de 2011, que reformula a Política Nacional de Atenção às

Urgências e institui a Rede de Atenção às Urgências no Sistema Único de Saúde (SUS) e

Portaria nº 2.648, de 7 de novembro de 2011, que redefine as diretrizes para implantação do

Componente Unidade de Pronto Atendimento (UPA 24h) e do conjunto de serviços de

urgência 24 (vinte e quatro) horas da Rede de Atenção às Urgências, em conformidade com a

Política Nacional de Atenção às Urgências.

Na portaria GM 1.600, de 7 de julho de 2011 são dispostas as diretrizes

máximas desta política, destacando-se a integralidade do atendimento às urgências e a

distribuição dos recursos assistenciais em uma rede regionalizada com a participação de

Estados e Municípios no atendimento a esta demanda7:

CAPÍTULO I

DAS DIRETRIZES DA REDE DE ATENÇÃO ÀS URGÊN- CIAS

7 Brasil. Portaria nº 1600, de 7 de julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção às Urgências no Sistema Único de Saúde (SUS)

7

Art. 2° Constituem-se diretrizes da Rede de Atenção às Urgências:

I - ampliação do acesso e acolhimento aos casos agudos demandados aos serviços de saúde em todos os pontos de atenção, contemplando a classificação de risco e intervenção adequada e necessária aos diferentes agravos;

II - garantia da universalidade, equidade e integralidade no atendimento às urgências clínicas, cirúrgicas, gineco-obstétricas, psiquiátricas, pediátricas e às relacionadas a causas externas (traumatismos, violências e acidentes);

III - regionalização do atendimento às urgências com articulação das diversas redes de atenção e acesso regulado aos serviços de saúde;

A mesma portaria dispõe sobre a Rede de Atenção às Urgências que deverá

articular todos os entes federados, através da junção de seus equipamentos para garantir a

integral prestação de serviços na área das urgências, definindo, ainda, quais são estes

componentes:

Art. 3º Fica organizada, no âmbito do SUS, a Rede de Atenção às Urgências.

§ 1 º A organização da Rede de Atenção às Urgências tem a finalidade de articular e integrar todos os equipamentos de saúde, objetivando ampliar e qualificar o acesso humanizado e integral aos usuários em situação de urgência e emergência nos serviços de saúde, de forma ágil e oportuna.

§ 2º A Rede de Atenção às Urgências deve ser implementada, gradativamente, em todo território nacional, respeitando-se critérios epidemiológicos e de densidade populacional.

§ 3º O acolhimento com classificação do risco, a qualidade e a resolutividade na atenção constituem a base do processo e dos fluxos assistenciais de toda Rede de Atenção às Urgências e devem ser requisitos de todos os pontos de atenção.

§ 4º A Rede de Atenção às Urgências priorizará as linhas de cuidados cardiovascular, cerebrovascular e traumatológica.

Art. 4º A Rede de Atenção às Urgências é constituída pelos seguintes componentes:

I - Promoção, Prevenção e Vigilância à Saúde;

II - Atenção Básica em Saúde;

III - Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192) e suas Centrais de Regulação Médica das Urgências;

IV - Sala de Estabilização;

V - Força Nacional de Saúde do SUS;

VI - Unidades de Pronto Atendimento (UPA 24h) e o conjunto de serviços de urgência 24 horas;

VII - Hospitalar; e

8

VIII - Atenção Domiciliar.8

Assim, diante da necessidade de estreitar todos os elos que compõem a

complexa cadeia da Política Nacional de Atenção às Urgências acima citada, desde o

atendimento de urgência pré-hospitalar foi criado o serviço de atendimento móvel de urgência

( SAMU) com financiamento e custeio em todo o território nacional, sendo instituído através

da aquisição de ambulância, construção de centrais do SAMU e estruturação de laboratórios

de ensino.

Desde a Portaria 2048/GM de 5 de dezembro de 2002, foi determinado a todas

as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde que todos os serviços de urgência, incluindo o

SAMU, deverão obedecer o Regulamento Técnico instituído por esta Portaria que adquire,

portanto, caráter de norma nacional, valendo para todos os entes federados.

No âmbito deste sistema de urgências, no mencionado regulamento, ainda foi

estipulado que, além das ambulâncias do SAMU, os Municípios-sede de módulo assistencial

contem com unidades não-hospitalares de atendimento às urgências e emergências que

funcionam como estruturas intermediárias entre Unidades Básicas de Saúde e Unidades de

Saúde da Família e os Hospitais permitindo, portanto, o atendimento imediato aos pacientes

em situação de urgência e emergência, levados pelas ambulâncias do SAMU:

Unidades Não-Hospitalares de Atendimento às Urgências e Emergências Estas unidades, que devem funcionar nas 24 horas do dia, devem estar habilitadas a prestar assistência correspondente ao primeiro nível de assistência da média complexidade (M1). Pelas suas características e importância assistencial, os gestores devem desenvolver esforços no sentido de que cada município-sede de módulo assistencial disponha pelo menos uma, destas Unidades, garantindo, assim, assistência às urgências com observação até 24 horas para sua própria população ou para um agrupamento de municípios para os quais seja referência. 2.1 Atribuições Estas Unidades, integrantes do Sistema Estadual de Urgências e Emergências e de sua respectiva rede assistencial, devem estar aptas a prestar atendimento resolutivo aos pacientes acometidos por quadros agudos ou crônicos agudizados. São estruturas de complexidade intermediária entre as unidades básicas de saúde e unidades de saúde da família e as Unidades Hospitalares de Atendimento às Urgências e Emergências, com importante potencial de complacência da enorme demanda que hoje se dirige aos prontos-socorros, além do papel ordenador dos fluxos da urgência. Assim, têm como principais missões: • Atender aos usuários do SUS portadores de quadro clínico agudo de qualquer natureza, dentro dos limites estruturais da unidade e, em especial, os casos de baixa complexidade, à noite e nos finais de semana, quando a rede básica e o Programa Saúde da Família não estão ativos; • Descentralizar o atendimento de pacientes com quadros agudos de média complexidade;

8 Id. Ibid. 9

• Dar retaguarda às unidades básicas de saúde e de saúde da família; • Diminuir a sobrecarga dos hospitais de maior complexidade que hoje atendem esta demanda; Ser entreposto de estabilização do paciente crítico para o serviço de atendimento pré-hospitalar móvel; • Desenvolver ações de saúde por meio do trabalho de equipe interdisciplinar, sempre que necessário, com o objetivo de acolher, intervir em sua condição clínica e referenciar para a rede básica de saúde, para a rede especializada ou para internação hospitalar, proporcionando uma continuidade do tratamento com impacto positivo no quadro de saúde individual e coletivo da população usuária (beneficiando os pacientes agudos e não-agudos e favorecendo, pela continuidade do acompanhamento, principalmente os pacientes com quadros crônico-degenerativos, com a prevenção de suas agudizações freqüentes); • Articular-se com unidades hospitalares, unidades de apoio diagnóstico e terapêutico, e com outras instituições e serviços de saúde do sistema loco-regional, construindo fluxos coerentes e efetivos de referência e contra-referência; • Ser observatório do sistema e da saúde da população, subsidiando a elaboração de estudos epidemiológicos e a construção de indicadores de saúde e de serviço que contribuam para a avaliação e planejamento da atenção integral às urgências, bem como de todo o sistema de saúde.9

A Portaria 2.648, de 7 de novembro de 2011 continua tratando sobre as

unidades não hospitalares acima citadas que se interpõem no sistema entre as Unidades

Básicas de Saúde e as Unidades Hospitalares, entretanto, conferindo a elas a denominação de

UPA (Unidade de Pronto Atendimento 24h):

Art. 1º Esta Portaria redefine as diretrizes para implantação do componente Unidade de Pronto Atendimento (UPA 24h) e do conjunto de serviços de urgência 24 (vinte e quatro) horas da Rede de Atenção às Urgências.

Art. 2º A UPA 24h é o estabelecimento de saúde de complexidade intermediária situado entre a Atenção Básica à Saúde e a Rede Hospitalar.10

A portaria 2048/GM/2002, entretanto, define que o atendimento na Unidade

não-hospitalar ( UPA) deve ser feito dentro dos limites estruturais da unidade:

São estruturas de complexidade intermediária entre as unidades básicas de saúde e unidades de saúde da família e as Unidades Hospitalares de Atendimento às Urgências e Emergências, com importante potencial de complacência da enorme demanda que hoje se dirige aos prontos-socorros, além do papel ordenador dos fluxos da urgência. Assim, têm como principais missões: • Atender aos usuários do SUS portadores de quadro clínico agudo de qualquer natureza, dentro dos limites estruturais da unidade e, em especial, os casos de baixa complexidade, à noite e nos finais de semana, quando a rede básica e o Programa Saúde da Família não estão ativos;

9 Brasil. Portaria n° 2048/GM/MS, de 05 de novembro de 2002. Regulamenta tecnicamente as urgências e emergências. Política nacional de atenção às urgências/ Ministério da Saúde. Brasília, 2006.

10 Op. Cit.

10

Apesar de a mesma Portaria 2048/GM de 5 de dezembro de 200211 definir que

os serviços de atendimento móvel de urgência (SAMU) devem ter a retaguarda da rede de

serviços de saúde, na qual se incluem as UPAs, a mesma norma define que estas detêm

capacidade máxima instalada, o que possibilita a negativa de atendimento, mesmo em casos

de comprovada urgência. É o que consta inclusive do item 3.4 da Portaria 2048/GM, de 5 de

dezembro de 2002 e da Portaria GM 2657, de 16 de dezembro de 200412, ambas do Ministério

da Saúde que atribuem ao serviço médico receptor a função de comunicar quando esgotada a

capacidade de atendimento da unidade de saúde:

3.4 Responsabilidades/Atribuições do Serviço/Médico Receptor Ficam estabelecidas as seguintes responsabilidades/atribuições ao Serviço/Médico Receptor: a) Garantir o acolhimento médico rápido e resolutivo às solicitações da central de regulação médica de urgências; b) Informar imediatamente à Central de Regulação se os recursos diagnósticos ou terapêuticos da unidade atingirem seu limite máximo de atuação;

(...)

A REGULAÇÃO MÉDICA DAS URGÊNCIAS

Quando tomamos a regulação das necessidades imediatas como referência, estamos considerando o seu potencial organizador sobre o funcionamento geral do sistema e sua visibilidade junto aos usuários como marcadoras de sucesso ou fracasso do SUS. A Regulação Médica das Urgências, operacionalizada através das Centrais de Regulação Médica de Urgências, é um processo de trabalho através do qual se garante escuta permanente pelo Médico Regulador, com acolhimento de todos os pedidos de socorro que acorrem à central e o estabelecimento de uma estimativa inicial do grau da urgência de cada caso, desencadeando a resposta mais adequada e equânime a cada solicitação, monitorando continuamente a estimativa inicial do grau de urgência até a finalização do caso e assegurando a disponibilidade dos meios necessários para a efetivação da resposta definitiva, de acordo com grades de serviços previamente pactuadas, pautadas nos preceitos de regionalização e hierarquização do sistema. É importante lembrar que, a fim de garantir resposta efetiva às especificidades das demandas de urgência, as grades de referência devem ser suficientemente detalhadas, levando em conta quantidades, tipos e horários dos procedimentos

11 O serviço de atendimento pré-hospitalar móvel deve ser entendido como uma atribuição da área da Saúde, sendo vinculado a uma Central de Regulação, com equipe e frota de veículos compatíveis com as necessidades de saúde da população de um município ou uma região, podendo, portanto, extrapolar os limites municipais. Esta região de cobertura deve ser previamente definida, considerando-se aspectos demográficos, populacionais, territoriais, indicadores de saúde, oferta de serviços e fluxos habitualmente utilizados pela clientela. O serviço deve contar com a retaguarda da rede de serviços de saúde, devidamente regulada, disponibilizada conforme critérios de hierarquização e regionalização formalmente pactuados entre os gestores do sistema loco-regional.

12 Brasil. Portaria n° 2.657/GM/MS, de 16 de dezembro de 2004. Estabelece as atribuições das centrais de regulação médica de urgências e o dimensionamento técnico para a estruturação e operacionalização das Centrais do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192). Política nacional de atenção às urgências/ Ministério da Saúde. Brasília, 2006.

11

ofertados, bem como a especialidade de cada serviço, com este todo organizado em redes e linhas de atenção, com a devida hierarquização, para fins de estabelecermos a identidade entre as necessidades dos pacientes atendidos pelo Samu 192 e a oferta da atenção necessária em cada momento. As grades de atenção deverão mostrar, a cada instante, a condição de capacidade instalada do sistema regionalizado e suas circunstâncias momentâneas.

As portarias do Ministério da Saúde limitam o atendimento nas Unidades não-

hospitalares, restringindo a recepção de pacientes no âmbito das UPAs quando não houver

capacidade instalada suficiente. Tal ordem normativa contém conceitos indeterminados já que

não esclarece o que pode ser considerado como capacidade instalada ou limite máximo de

atuação, o que pode levar à conclusão, em uma leitura mais apressada, que as portarias

deveriam ser aperfeiçoadas. Entretanto, em um olhar mais atento, observa-se que a atribuição

de identificar se já esgotada a capacidade máxima de atendimento na unidade de saúde é do

médico receptor, especialista na matéria, que avaliando os diversos componentes envolvidos,

pode averiguar se mais pacientes recebidos impactarão no tratamento daqueles que já se

encontram em atendimento na UPA.

A Portaria 2048/GM, de 5 de dezembro de 2002 ainda define que mesmo

não havendo leitos vagos os pacientes deverão ser encaminhados para referidas unidades

(UPAs), o que é chamado de Política de vaga zero, desde que determinado por médico

regulador:

Ao médico regulador também competem funções gestoras – tomar a decisão gestora sobre os meios disponíveis, devendo possuir delegação direta dos gestores municipais e estaduais para acionar tais meios, de acordo com seu julgamento. Assim, o médico regulador deve: - decidir sobre qual recurso deverá ser mobilizado frente a cada caso, procurando, entre as disponibilidades a resposta mais adequada a cada situação, advogando assim pela melhor resposta necessária a cada paciente, em cada situação sob o seu julgamento; - decidir sobre o destino hospitalar ou ambulatorial dos pacientes atendidos no pré-hospitalar; - decidir os destinos hospitalares não aceitando a inexistência de leitos vagos como argumento para não direcionar os pacientes para a melhor hierarquia disponível em termos de serviços de atenção de urgências, ou seja, garantir o atendimento nas urgências, mesmo nas situações em que inexistam leitos vagos para a internação de pacientes (a chamada “vaga zero” para internação). Deverá decidir o destino do paciente baseado na planilha de hierarquias pactuada e disponível para a região e nas informações periodicamente atualizadas sobre as condições de atendimento nos serviços de urgência, exercendo as prerrogativas de sua autoridade para alocar os pacientes dentro do sistema regional, comunicando sua decisão aos médicos assistentes das portas de urgência; 13

13 Id. Ibid. 12

Da leitura dos diversos excertos de portarias até agora mencionadas resta

patente a adoção pelas portarias do Ministério da Saúde da lógica da reserva do possível que,

entretanto, não se encontra isolada como justificativa para negativa de atendimento. Ao lado

desta premissa ainda se constata o recurso à opinião dos experts, os médicos envolvidos no

serviço de atendimento às urgências: médico receptor e médico regulador. A eles foi

conferido o poder de definir a possibilidade de recepção de pacientes no âmbito da UPA,

tomando como base o definido na portaria: o esgotamento da capacidade máxima instalada.

A portaria não definiu o que pode ser considerado como limite estrutural da

unidade, mas pelo conjunto das normas até agora aqui reproduzidas constata-se que tal tarefa

foi deixada ao encargo de profissionais mais indicados para definir tal situação, diante de sua

formação: os médicos.

A seguir cabe identificar se as portarias, assim estruturadas, representam

agressão ao direito à vida, ou se estão compatíveis com os cânones formadores do edifício

constitucional brasileiro, passando-se a verificar se a tese da reserva do possível e a

participação dos peritos médicos ( médicos receptores e reguladores), dispostos nas normas

que compõem a Política Nacional de Atenção às Urgências, são aceitáveis e compatíveis com

a salvaguarda da saúde.

3 LIMITES À TESE DA RESERVA DO POSSÍVEL NO CAMPO DO DIREITO À

SAÚDE: os sistemas não totalmente fechados de Luhmann

Ao destacar os direitos sociais, que possuem caráter eminentemente

prestacional, a exemplo do direito à saúde, ensina Sarlet que referidos direitos se apresentam

com íntima conexão com as possibilidades financeiras do ente público, ao contrário dos

direitos de defesa, cuja faceta econômica não se apresenta tão importante numa primeira

análise:

Apesar disso seguimos convictos - , como de resto, esperamos demonstrar nas páginas que seguem – que, para efeito de se admitir a imediata aplicação pelos órgãos do Poder Judiciário, o corretamente apontado fator custo de todos os direitos fundamentais, nunca constituiu um elemento impeditivo da efetivação pela via jurisdicional ( no sentido pelo menos da negativa da prestação jurisdicional) quando em causa direitos subjetivos de conteúdo “ negativo”. É justamente neste sentido que deve ser tomada a referida “ neutralidade” econômico-financeira dos direitos de defesa, visto que a sua eficácia jurídica ( ou seja, a eficácia dos direitos fundamentais na condição de direitos negativos ) e a efetividade naquilo que depende da possibilidade de implementação jurisdicional não tem sido colocada na dependência da sua possível relevância econômica. Já no que diz com os direitos

13

sociais a prestações, seu custo assume especial relevância no âmbito de sua eficácia e efetivação, significando, pelo menos para a significativa parcela da doutrina, que a efetiva realização das prestações reclamadas não é possível sem que se despenda algum recurso, dependendo, em última análise, da conjuntura econômica, já que aqui está em causa a possibilidade de órgãos jurisdicionais imporem ao poder público a satisfação das prestações reclamadas.14

Portanto, reconhecida a dependência destes direitos sociais à disponibilidade

financeira, dispõe a doutrina pátria que existe a chamada reserva do possível15:

(...) firmou-se jurisprudência no sentido de que a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável. (...)

A partir do exposto, há como sustentar que a assim designada reserva do possível apresenta pelo menos uma dimensão tríplice, que abrange a) a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c) já na perspectiva ( também ) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade, e nesta quadra, também da sua razoabilidade.16

Diante da reserva do possível e dos recursos escassos, segundo Canotilho, a

decisão sobre os recursos deveria ser deixada aos órgãos políticos, vale dizer: ao legislador.

A ele caberia definir sobre a aplicação dos recursos, segundo determinação constitucional: “ao

legislador compete, dentro das reservas orçamentais, dos planos econômicos e financeiros,

das condições sociais e econômicas do país, garantir as prestações integradoras dos direitos

sociais, económicos, culturais.”17

14 Sarlet, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6 ed, Livraria do Advogado, 2006, p. 299, p. 299

15 “As prestações - objeto dos direitos fundamentais correspondem, pois a bens materiais economicamente relevantes e consideráveis, cuja efetivação - é certo - depende da disponibilidade econômica do Estado, que é a rigor, o principal destinatário da norma. Vale dizer, o objeto dos direitos sociais depende da existência de recursos financeiros ou meios jurídicos necessários a satisfazê-lo. Daí se sustentar, em doutrina, que os direitos sociais sujeitam-se a uma reserva do possível aqui entendida como a possibilidade de disposição econômica e jurídica por parte do destinatário da norma.” (Cunha Júnior, 2004, p. 285) 16 Op.cit. p. 302

17 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Constituição Dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: 1982, p 369.

14

A esta posição de Canotilho, contrapõe interessante argumento Sarlet quando

relembrando os ensinamentos de Alexy, define que a reserva do possível não pode ser assunto

apenas do Poder Legislativo, ou seja, a competência orçamentária do Poder Legislativo não é

absoluta:

Importante é que se tenha em mente – de acordo com Alexy – que o princípio da competência orçamentária do Legislativo não assume ( e nem poderia) feições absolutas, já que eventualmente direitos individuais podem vir a preponderar, sem desconsiderar que até mesmo direitos de liberdade por vezes apresentam relevância econômica.18

É como também se posiciona a doutrina de Gustavo Amaral19, Ana Paula de

Barcellos20 e Flávio Galdino21 para quem deve ser respeitado mínimo existencial não devendo

sobre ele prevalecer a tese da reserva do possível. Para Ana Paula de Barcellos a saúde

encontra-se neste mínimo existencial e pode ser exigida diante do Poder Judiciário, mesmo

que não constando do orçamento em vigor:

o mínimo existencial que ora se concebe é composto de quatro elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça. Repita-se, ainda uma vez, que esses quatro pontos correspondem ao núcleo da dignidade da pessoa humana a que se reconhece a eficácia jurídica positiva e a fortiori, o status de direito subjetivo exigível diante do Poder Judiciário.22

Entretanto, interferir na esfera do poder legislativo sobre a definição

orçamentária, ultrapassando a tese da reserva do possível demanda limites como já pontuado

por Alexy em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, devendo ser realizada apenas quando a

garantia material do padrão mínimo em direitos sociais puder ser tida como prioritária e se

tiver como consequência uma restrição proporcional dos bens jurídicos colidentes, não

podendo sacrificar outros direitos23.

18 Op. cit. p. 366 19 AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e escolha. Em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas.Rio de Janeiro. Renovar, 2001 20 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro, Renovar 2002 21 GALDINO, Flávio. Direitos não nascem em árvores. Rio de Janeiro: Lumens Juris, 2001 22 Op. cit. p. 258 23 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2 ed. São Paulo: Malheiros , 2011

15

Sarlet24 reconhece que a reserva do possível tem como finalidade garantir o

núcleo essencial de outro direito fundamental, o que se aplica à questão tratada na presente

tese visto que realizar a internação ilimitada de vários pacientes nas unidades não-hospitalares

pode atingir o direito de outros pacientes, representando a reserva do possível importante

limite garantidor do tratamento já existente em referidas unidades.

Em brilhante passagem, entretanto, Sarlet reconhece que a reserva do possível

não se impõe em duas situações:

" ( …) constata-se a possibilidade se reconhecerem, sob determinadas condições, verdadeiros direitos subjetivos a prestações, mesmo independentemente ou para além da concretização do legislador. Neste particular, assume especial relevo a íntima vinculada - destacada especialmente pela doutrina estrangeira - de vários destes direitos com o direito à vida e com o princípio da dignidade humana(…) Lembrando-nos de que, se atentarmos contra a dignidade, estaremos, na verdade, atentando contra a humanidade do indivíduo. Além disso é preciso ressaltar que ao Estado não apenas é vedada a possibilidade de tirar a vida (…) mas também que a ele se impõe ativamente o dever de proteger ativamente a vida humana, já que esta constitui a própria razão de ser do Estado, além de pressuposto para o exercício de qualquer direito ( fundamental, ou não)25

Dispõe, então, Sarlet, que sempre quando verificada possibilidade de agressão

à vida ou à dignidade estará configurada hipótese de desconsideração da reserva do possível,

alertando, na esteira de Alexy e Canotilho, que apenas no caso concreto isso será de possível

aferição, partindo-se da noção de mínimo existencial.

Aos poucos a doutrina pátria vai estabelecendo os limites em que a reserva do

possível não pode ser invocada, como bem acentuado por Sarlet26:

"Embora tenhamos que reconhecer a existência destes limites fáticos ( reserva do possível) e jurídicos ( reserva parlamentar em matéria orçamentária) implicam certa relativização no âmbito da eficácia e efetividade dos direitos sociais prestacionais que, de resto, acabam conflitando entre si, quando se considera que os recursos públicos deverão ser distribuídos para atendimento de todos os direitos fundamentais sociais básicos, sustentamos o entendimento que aqui vai apresentado de modo resumido no sentido de que sempre onde nos encontramos diante das prestações de cunho emergencial, cujo indeferimento acarretaria o comprometimento irreversível ou mesmo o sacrifício de outros bens essenciais, notadamente - em se cuidando de saúde - da própria vida, da integridade física e de

24 SARLET, Ingo Wolfang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6 ed, Livraria do Advogado, 2006, p. 302 25 Id. Ibid. p. 369

26 SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à

saúde na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, n. 10, p. 13

16

dignidade da pessoa humana, haveremos de reconhecer um direito subjetivo do particular à prestação reclamada em Juízo".

Entretanto, apesar da notável contribuição referente à técnica da ponderação no

caso concreto e o alerta quando à necessidade de conferir-se o mínimo existencial, entende-se

que ainda restam fluidos os critérios que nortearão o caso concreto, bem como os limites do

mínimo existencial27.

Isto porque mesmo sabendo-se que a decisão sobre o direito subjetivo será

realizada no caso concreto, ainda resta a perplexidade quanto aos critérios que nortearão essa

decisão visto que no caso concreto vários direitos são confrontados, a exemplo de duas ou

mais emergências necessitando de internação que se apresentam em uma UPA, discussão esta

que se acentua quando a capacidade em determinada unidade de saúde já se encontra

esgotada, devendo haver a decisão, nos termos da portaria do Ministério da Saúde, quanto às

demais internações mesmo não havendo vaga, cabendo ainda identificar se esta internação

não afetará os direitos dos demais pacientes.

A situação posta é constatada pela doutrina que alude, inclusive, à mediação

legal para solucionar esta falta de maior especificação de como devem ser satisfeitos os

direitos sociais:

Em compensação, as obrigações em exigir podem ser cumpridas de modo diferentes. Os direitos fundamentais não estabelecem o que deve acontecer em cada caso. Eles regulamentam o "que", mas não o "como", ou quando o fazem, apenas de forma muito limitada. Por isso, direitos fundamentais sociais dependem de mediação legal. Eles só se transformam em exigências exequíveis por meio de ação legislativa e não por meio da prescrição por direito fundamental dessa ação. Aqui, diferentemente do caso dos direitos de liberdade, a lei é constitutiva para se alcançar a finalidade. Também dela depende a imposição judicial de direitos fundamentais sociais."28

Dieter Grimm ainda alerta para o fato de que apesar da necessária mediação

legal esta não é a última instância detendo os tribunais importante papel concretizador, dando

a última palavra, através da interpretação, reconhecendo que estes direitos detêm prioridade,

27 "Carece o mínimo existencial de conteúdo específico. Abrange qualquer direito, ainda, que originariamente não-fundamental ( direito à saúde, à alimentação etc), considerado em sua dimensão essencial e inalienável. Não é mensurável, por envolver mais os aspectos de qualidade que de quantidade, o que torna difícil estremá-lo, em sua razão periférica, do máximo de utilidade (…) que em princípio ligado à idéia de justiça e de redistribuição da riqueza social. Certamente esse mínimo existencial, "se quisermos determinar precisamente, é uma incógnita muito variável" (TORRES, 2009, p. 358) 28 GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 250.

17

mas devem ser colocados no plano da aplicação, destacando-se, portanto, o Poder Judiciário

com papel de destaque no atual contorno dos direitos fundamentais sociais.

Portanto, diante desta constatação sobre o importante papel concretizador do

Poder Judiciário cabe identificar qual a atitude mais adequada quando havendo política social

já em curso, a exemplo da Política Nacional de Atenção às Urgências, necessitar-se realizar a

proteção dos pacientes que se encontram com necessidade de atendimento nas unidades não-

hospitalares ( UPAs) em situação de esgotamento da capacidade instalada.

No campo majoritário da doutrina pátria e estrangeira, como já disposto nesta

tese, resta patente que a reserva do possível não pode ser alegada para negar a satisfação

prestacional no campo do direito à saúde quando houver possibilidade de agressão à

dignidade da pessoa humana e à vida. Entretanto esta mesma doutrina define que tal decisão

deve ser realizada no caso concreto, já havendo a proposta na doutrina pátria de que caso a

caso deve ser dada prioridade aos casos emergenciais, entendendo-se, entretanto, que cabe

evoluir-se no sentido de identificar quais seriam essas situações emergenciais que teriam

prioridade e ainda, diante de vários casos emergenciais quais os critérios definidores daquele

prioritário dentre eles.

Sabendo-se que diante do esgotamento da capacidade instalada nos mais

diversos serviços públicos poderá surgir o conflito de direitos de igual hierarquia como o

conflito entre direitos à vida de titulares diferentes e considerando o que já destacado pela

doutrina pátria e alienígena que dispõe não haver um critério unificado de mínimo existencial

e verificando-se que em cada caso concreto pode haver uma solução diferente, parte-se para

discutir se a solução identificada nas normas que compõe a Política Nacional de Atenção às

Urgências se apresentam como adequadas.

Dispõe a portaria 2048 do Ministério da Saúde que cabe inicialmente ao

médico receptor identificar o esgotamento da capacidade instalada e, posteriormente, ao

médico regulador definir que, mesmo não havendo existência de leitos na unidade, deverá ser

garantida a internação.29

29 Brasil. Portaria n° 2048/GM/MS, de 05 de novembro de 2002. Regulamenta tecnicamente as urgências e emergências. Política nacional de atenção às urgências/ Ministério da Saúde. Brasília, 2006, p. 64.

18

A portaria do Ministério da Saúde define que cabe ao médico regulador apontar

a melhor saída para a internação nestes casos, ou seja, se mesmo não havendo leitos, poderia

ser realizado o atendimento na unidade de saúde, sem afetar o atendimento aos demais

pacientes. Neste momento identifica-se que o critério decisivo não será mais eminentemente

jurídico, socorrendo-se a norma jurídica – portaria – da expertise de outro ramo do

conhecimento, cabendo, à presente tese, verificar se adequada esta solução encontrada no

âmbito do sistema de atendimento às urgências.

Nesta análise toma-se como ponto de partida metodológico a teoria dos

sistemas de Luhman para quem os sistemas sociais são caracterizados como sistemas

fechados, que, entretanto, permitem a comunicação com outros sistemas, o que garante ao

Direito também, nesta perspectiva, a comunicação com as ciências da saúde.

Segundo Marcelo Neves 30, que tão bem trabalha no Direito a teoria

luhmaniana, " na teoria sistêmica de Niklas Luhmann, a diferença ‘sistema/ambiente’

desempenha um papel fundamental para a compreensão da sociedade moderna”.

Para Luhman tudo que ocorre pertence ao mesmo tempo a um sistema ( ou a

vários sistemas) e ao ambiente de outros sistemas:

O paradigma central da nova teoria dos sistemas chama-se `sistema e ambiente`. Correspondentemente, o conceito de função e a análise funcional não se referem a `o sistema` ( no sentido de uma massa que é conservada ou de um efeito a ser causado) mas sim à relação entre sistema e ambiente. A referência última de todas as análises funcionais reside na diferença entre sistema e ambiente.31

Como observado por Marcelo Neves32, Luhmann adotou como ponto de

partida o conceito de autopoiese com fundamento em Maturana e Varela. Para estes

autopoiese representa a construção de sistemas fechados em que os próprios elementos do

sistema colaboram para sua autoreprodução, daí o nome autopoiese: autos ( por si próprio) e

poiese ( produção).

30 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 59 31 LUHMANN, Niklas.Soziale Systeme: Grundriss einer allgemeinen Theorie. Frankfurt sobre o Meno: Suhrkamp [trad. esp.: Sistemas sociales: lineamentos para uma teoría general. 2 ed. Barcelona: Anthropos: México: Universidad Iberoamericana/ Santafé de Bogotá: Ceja, 1998, p. 243 32 Op. cit. p. 60

19

Entretanto, Luhmann avançou em relação a Maturana e Varela já que nas

ciências sociais Luhmann33 propõe não ser possível um fechamento completo do sistema,

como propunham Maturana e Varela, sendo necessário o contato com outros sistemas nas

ciências sociais.

A teoria de Luhmann para as ciências sociais, propõe, portanto, uma abertura

das mesmas, havendo necessidade de contato com o ambiente, sem esquecer seus

fundamentos que acabarão por guiar a aceitação dos condicionantes externos, vale dizer: a

ciência jurídica deve estar aberta a outros sistemas, como os sistemas médicos - opinião

médica no caso da internação em unidades hospitalares em caso de ausência de vaga -

entretanto, o sistema jurídico deve atribuir a forma como estas informações externas devem

ser aceitas:

A incorporação da diferença "sistema/ambiente" no interior dos sistemas baseados no sentido ( a auto-observação como "momento operativo da autopoiese") possibilita uma combinação de fechamento operacional com a abertura para o ambiente, de tal maneira que a circularidade da autopoiese pode ser interrompida através da referência ao ambiente. 34

Segundo Neves "na teoria dos sistemas autopoiéticos de Luhmann o ambiente

não atua perante o sistema nem meramente como condição infraestrutural de possibilidade da

constituição dos elementos nem apenas como perturbação, ruído, bruit, constitui algo mais, ‘o

fundamento do sistema’. Em relação ao sistema, atuam as mais diversas determinações do

ambiente, mas elas só são inseridas no sistema quando este, de acordo com os seus próprios

critérios e código-diferença, atribui-lhes sua forma."35

A teoria de Luhmann nos auxilia na presente questão à medida que possibilita

não enfrentar esta intricada matéria apenas à luz do Direito, mas permite uma comunicação

com outros ramos do saber no sentido de garantir uma melhor solução calçada sobre os

referenciais mais afinados à matéria.

Luhmann, segundo Marcelo Neves, defende, então, que o caráter autopoiético

dos sistemas parciais da sociedade não pode, porém ser esclarecido desse mesmo modo, pois

a comunicação é a unidade elementar de todos os sistemas sociais: há comunicação no

33 Op. cit. p. 64 34 Id. Ibid. 35 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 62

20

ambiente dos subsistemas da sociedade, nos quais se desenvolvem, portanto, não apenas

comunicações sobre o seu ambiente, mas também com este.36

O que se propõe, portanto, como critério de análise para a presente questão é

que não seja visto o assunto das vagas de leitos em unidades não-hospitalares apenas como

uma matéria jurídica, mas que haja a possibilidade de comunicação intensa e contínua entre o

sistema jurídico e o sistema médico garantindo que o atendimento aos pacientes seja o mais

adequado dentre as disponibilidades existentes.

Apesar de já contar o sistema da Ciência Jurídica com uma importante doutrina

já produzida sobre a prestação dos serviços de saúde, encontrando-se esta dentre as

prioridades na ciência jurídica, verifica-se que os serviços de saúde são os mais variados,

assim com a situação de cada paciente, não sendo possível aos magistrados aferirem caso a

caso quais as prioridades que devem ser atendidas em situações de esgotamento da capacidade

instalada, diante, ainda, da escassez de recursos, sendo fundamental, neste passo, segundo a

lógica, autopoiética e os ensinamentos de Luhmann, que se recorra ao sistema do saber

médico, dotado este de todos os conhecimentos específicos aptos a definir dentre as diversas

prioridades existentes qual aquela que realmente deve merecer a prioridade no atendimento, já

que falta aos magistrados o conhecimento médico para saber qual o paciente que deve ter

prioridade.

Observa-se na doutrina pátria que há um norte apresentado no sentido de que a

reserva do possível não basta para afastar o deferimento das prestações de serviços de saúde,

devendo-se garantir o atendimento em face da necessidade de concretizar-se o direito à vida

dos pacientes, o que deve ser tutelado pelo Poder Judiciário. Entretanto, exigir ao Poder

Judiciário, diante de situações extremadas como a falta de leitos, havendo diversos pacientes

necessitando dos mesmos, que o mesmo garanta a saúde e a vida de todos seria ilusório em

razão da falta de capacidade instalada nas unidades de saúde em alguns casos, devendo

socorrer-se o magistrado do auxílio médico no sentido de definir a ordem de prioridades.

Esse contato entre a ciência jurídica e as ciências da saúde é uma das grandes

características da pós-modernidade em que se presencia a especialização crescente nos

diversos ramos do saber, surgindo peritos nas mais diversas áreas, não havendo mais a

36 Id. Ibid. p. 67 21

possibilidade de que todo o conhecimento resida apenas em uma profissão ou cargo, havendo

diversos sistemas que controlam parte do saber, como bem acentuado por Antony Giddens:

Os sistemas abstratos desqualificam – não só no local de trabalho, mas em todos os setores da vida social que atingem. A desqualificação da vida social cotidiana é um fenômeno alienante e fragmentador no que diz respeito ao eu. Alienante porque a intromissão dos sistemas abstratos, especialmente os sistemas especializados, em todos os aspectos da vida cotidiana solapa as formas preexistentes de controle local. Na vida muito mais fortemente local da maioria das sociedades pré-modernas, todos os indivíduos desenvolviam muitas habilidades e tipos de “saber local”, no sentido de Geertz, relevantes para suas vidas cotidianas. A sobrevivência dependia de integrar tais habilidades em modos práticos de organizar as atividades nos contextos da comunidade local e do ambiente físico. Com a expansão dos sistemas abstratos, porém, as condições da vida diária se transformam e recombinam em porções maiores de tempo e espaço, e tais processos de desencaixe são processos de perda. Mas seria errado ver essa perda como a transferência de poder de alguns indivíduos ou grupos para outros. Transferências de poder ocorrem dessa maneira, mas não são exaustivas. Por exemplo, o desenvolvimento da medicina levou à exclusão do saber e das habilidades curativas outrora possuídos por leigos. Os médicos e outros tipos de peritos derivam poder das reivindicações ao saber que seus códigos de prática incorporam. Mas como a especialização inerente ao saber significa que os peritos são leigos na maior parte das situações, o advento dos sistemas abstratos constitui modos de influência social que ninguém controla diretamente. É justamente esse fenômeno que está por baixo do surgimento dos riscos de alta consequência.”37

Os peritos se especializam em determinada área do saber, mas acabam leigos

em outros temas, o que se aplica ao caso aqui tratado já que os magistrados são peritos na

ciência jurídica, entretanto, no que tange à emergência na área de saúde, acabam sendo leigos,

necessitando do contato com o sistema de saber médico.

O Supremo Tribunal Federal, sensível a esta realidade, já vêm realizando

várias audiências públicas para ouvir os experts ( peritos), inclusive nas questões relacionadas

à saúde, contando com a opinião dos mesmos para definir a prestação jurisdicional para não

comprometer a prestação dos demais serviços no âmbito do SUS.

O ministro Gilmar Mendes decidiu as Suspensões de Tutela (STA) 175, 211 e

278; as Suspensões de Segurança 3724, 2944, 2361, 3345 e 3355; e a Suspensão de Liminar

(SL) 47. Antes de proferir seu voto o ministro ouviu diversos segmentos ligados ao tema na

audiência pública sobre a saúde, ocorrida em abril de 2009.

Apesar de julgar favoravelmente aos pacientes que precisam de medicamentos

e tratamentos de alto custo, o ministro Gilmar Mendes foi cauteloso para que cada caso seja

avaliado sob critérios de necessidade. Decidiu que obrigar a rede pública a financiar toda e

37 GIDDENS, Antony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002, p. 127 22

qualquer ação e prestação de saúde existente geraria grave lesão à ordem administrativa e

levaria ao comprometimento do SUS, de modo a prejudicar ainda mais o atendimento médico

da parcela da população mais necessitada.

O ministro foi acompanhado, em seu voto, por todos os demais ministros

presentes à sessão. Concluiu o Supremo Tribunal Federal que o direito à saúde não é um

direito absoluto a todo e qualquer procedimento necessário para a proteção, promoção e

recuperação da saúde, independentemente da existência de uma política pública que o

concretize. Decidiu que a garantia judicial da prestação individual de saúde, está condicionada

ao não comprometimento do funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS), o que, por

certo, deve ser sempre demonstrado e fundamentado de forma clara e concreta, caso a caso. E

como contribuição principal para o presente estudo decidiu pautar-se pelo consenso científico

vigente, o que, resta como norte de decisão para possíveis conflitos de interesses no âmbito da

saúde, devendo socorrer-se das ciências da saúde mais próximas do caso. Em boa hora, o

Supremo Tribunal Federal, ainda nesta decisão, pontuou que a despeito de opinião médica, há

possibilidade de decisão diferente pelo Judiciário, o que se adéqua ao princípio da

inafastabilidade da jurisdição, cabendo ao magistrado cercar-se da cautela de consultar outros

peritos no assunto para melhor decidir.

Quando se analisa o direcionamento tomado pelo conjunto de portarias que

instituíram a Política Nacional de Atenção às Urgências no âmbito do Sistema Único de

Saúde, em especial a Portaria n° 2048/GM/MS, de 05 de novembro de 2002 observa-se

adequação à linha argumentativa defendida no presente trabalho, bem como à orientação

jurisprudencial acima referida.

Isto porque a norma produzida no âmbito do Ministério da Saúde, mesmo

considerando que as Unidades de Pronto Atendimento apresentam uma capacidade máxima

de atendimento, observa que tal decisão deve ser deixada a cargo do corpo médico envolvido

na situação, citando a portaria o médico receptor e o médico regulador.

A reserva do possível como tese a ser esposada pelos gestores para não

atendimento não vem a calhar nas situações de urgência, como bem acentuado pelo conjunto

de portarias instituidores desta política de atenção às urgências já que elas, expressamente,

definem que mesmo não havendo leitos, poderá haver o atendimento, desde que recomendado

pelo médico regulador, tudo com o objetivo de garantir a preservação da vida.

23

Entende-se, entretanto, que a despeito de ter sido conferido grande poder

decisório ao médico regulador e ao médico receptor, cujas atribuições estão citadas nas

portarias definidoras da política de urgências, não se deve descurar do princípio da

inafastabilidade da jurisdição, cabendo ao Judiciário sindicar, inclusive as decisões originadas

no âmbito do médico regulador e do médico receptor, desde que se acautelem os magistrados

ouvindo outros peritos médicos, quando couber, que poderão fornecer argumentos mais

adequados em uma situação tão peculiar e especializada como aquela ligada à salvaguarda da

vida. Diante, ainda, dos princípios instituidores do Sistema Único de Saúde, mesmo

verificando-se que existe esgotamento da capacidade de internação em determinada unidade,

tal fato não pode ser tomado como motivo que exima todos os responsáveis pela gestão da

saúde, em identificar imediatamente na rede do SUS outro ponto de internação condizente

com as necessidades do pacientes, e, caso, não identificado, socorrer à rede privada, já que

como já pontuado pela doutrina pátria, deve-se garantir o mínimo existencial, através da

salvaguarda da vida.

4 CONCLUSÃO

A Política Nacional de Atenção às Urgências foi gestada no Brasil como forma

de viabilizar recursos financeiros, infra estruturais e humanos para combater o esgotamento da

capacidade de atendimento dos diversos entes federados no que tange à defesa da saúde e da

vida.

Diante da prioridade que se deve conferir ao atendimento das urgências diante

das demais ocorrências que se dirigem ao Sistema Único de Saúde o Ministério da Saúde vem

editando diversas portarias que visam estruturar o funcionamento da atenção às urgências,

estabelecendo o serviço de atendimento móvel (SAMU) e as Unidades de Pronto

Atendimento ( UPAs) que devem trabalhar em conjunto servindo estas para acolher os

pacientes encaminhados por aquele.

Entretanto, em casos concretos noticiados recentemente não se percebe esta

integração entre os componentes do sistema de atendimento às urgências, sob a alegativa dos

24

gestores de que as unidades de saúde ( UPAs) não dispõem de capacidade instalada para

atender os pacientes levados pelo SAMU.

As portarias do Ministério da Saúde, a exemplo da Portaria n° 2048/GM/MS,

de 05 de novembro de 2002 definem que as unidades de saúde como as UPAs apresentam

capacidade máxima de atendimento, o que pode ser atestado por um médico receptor, norma

esta que possibilita a recusa do atendimento a pacientes, mesmo em estado grave.

Entretanto, a mesma portaria, tratando da função de médico regulador, dispõe

que este poderá determinar a internação, mesmo não havendo leitos.

Esta série de normas apontadas funciona como verdadeiro controle dentro do

sistema de saúde, em que apesar de definido por um médico que não há mais capacidade de

atendimento, outro poderá determinar a internação, visando a salvaguarda da vida, por se

tratar de situação de urgência.

Nestes casos, entende-se não ser possível o uso da tese da reserva do possível,

como bem reconhecido no texto da portaria, sob pena de sacrificar-se a vida do paciente. Não

obstante, se houver prejuízo aos pacientes já encontrados na Unidade de Pronto Atendimento

( UPA) com a internação de mais pacientes, cabe a recusa dos mesmos e encaminhamento a

outras unidades de saúde que possam realizar o tratamento.

A solução da portaria, ao conferir ao corpo médico o poder de definir a recusa

ou atendimento do paciente, diante da capacidade da unidade de saúde, coaduna-se com a

percepção de que o sistema jurídico não apresenta regras para todas as situações, cabendo, em

diversos casos, socorrer-se de demais ramos do saber, devendo estabelecer laços

comunicacionais com outras ciências que possam estabelecer critérios mais seguros de

decisão.

Sendo assim, observa-se que o Direito não pode ser tomado como um sistema

fechado, mas adotando-se a teoria de Luhmann dos sistemas, entende-se que a Ciência

Jurídica contém possibilidade de comunicação com a Ciência Médica, no sentido de ambas

funcionarem em prol do direito à vida, cabendo ao corpo médico definir sobre a possibilidade

de atendimento no âmbito da unidade.

O princípio da inafastabilidade da jurisdição deve ser também lembrado

garantindo-se a análise pelo Poder Judiciário sempre das decisões tomadas pelo médico

25

receptor e pelo médico regulador, buscando-se a aproximação ao máximo do consenso

científico, na esteira, inclusive dos últimos julgados do Supremo Tribunal Federal no campo

do direito à saúde, quando foram ouvidos vários peritos das ciências da saúde.

26

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2 ed. São Paulo: Malheiros , 2011

AMARAL, Gustavo. Direito, Escassez e escolha. Em busca de critérios jurídicos para lidar com a escassez de recursos e as decisões trágicas.Rio de Janeiro. Renovar, 2001

ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE MEDICINA. Exposição de motivos de Projeto de lei complementar modificador da Lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012. Disponível em: < http://www.apm.org.br>. Acesso em: 28 junho 2013

BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro, Renovar 2002

BRASIL. Portaria n° 737/GM/MS, de 16 de maio de 2001. Institui a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências. Política nacional de atenção às urgências/ Ministério da Saúde. Brasília, 2006, 256 p.

________ Portaria n° 344/GM/MS, de 19 de fevereiro de 2002. Institui o Projeto de Redução da Morbimortalidade por Acidentes de Trânsito - Mobilizando a Sociedade e Promovendo a Saúde. Política nacional de atenção às urgências/ Ministério da Saúde. Brasília, 2006, 256 p.

________. Portaria n° 1863/GM/MS, de 29 de setembro de 2003. Institui a Política Nacional de Atenção às urgências / Ministério da Saúde. Brasília, 2006, 256 p.

_________ Portaria n° 2.657/GM/MS, de 16 de dezembro de 2004. Estabelece as atribuições das centrais de regulação médica de urgências e o dimensionamento técnico para a estruturação e operacionalização das Centrais do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192). Política nacional de atenção às urgências/ Ministério da Saúde. Brasília, 2006, 256 p.

__________ Portaria nº 1600, de 7 de julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção às Urgências no Sistema Único de Saúde (SUS)

__________ Portaria nº 2.648, de 7 de novembro de 2011, que redefine as diretrizes para implantação do Componente Unidade de Pronto Atendimento (UPA 24h) e do conjunto de

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serviços de urgência 24 (vinte e quatro) horas da Rede de Atenção às Urgências, em conformidade com a Política Nacional de Atenção às Urgências

_________Portaria n° 2048/GM/MS, de 05 de novembro de 2002. Regulamenta tecnicamente as urgências e emergências. Política nacional de atenção às urgências/ Ministério da Saúde. Brasília, 2006, 256 p.

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