A Noção de Pessoa

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O O QUE QUE É SER SER PESSOA PESSOA? No mundo ocidental, a noção de pessoa formou- se a partir do cristianismo e do direito romano. A palavra latina persona corresponde em grego a prósôpon (cara, rosto). Esta palavra significava originalmente a máscara do actor teatral, o qual se tinha de identificar com o seu papel ou representar uma personagem. A persona, como máscara, permitia: desempenhar diferentes papéis, por isso, a persona ao mesmo tempo que esconde o que há de mais íntimo, de mais pessoal, em cada ser humano, dá-lhe a possibilidade de desempenhar diversas funções e papéis sociais, funcionar, simultaneamente, como caixa de ressonância permitindo ampliar o som. REFERÊNCIA EFERÊNCIA À EVOLUÇÃO EVOLUÇÃO HISTÓRICA HISTÓRICA DA DA NOÇÃO NOÇÃO DE DE PESSOA PESSOA O vocábulo tem, como se vê, uma origem remota e ilustre: surgiu no mundo clássico referido ao teatro; e manteve-se, através do tempo, ligado a personagem, isto é, aquela máscara ou disfarce que, ao longo da vida, usamos nas nossas relações sociais consoante as funções ou papéis que desempenhamos. Foram, porém, os autores cristãos medievais que, pela necessidade de explicarem a Encarnação - e, portanto, as relações entre Deus e o homem - elaboraram pela primeira vez o conceito filosófico de pessoa. E quem melhor o exprimiu foi Boécio, nos séculos V-VI d. C., utilizando uma fórmula que ainda hoje não está abandonada: a pessoa é a substância individual de natureza racional. Ou seja, a pessoa é o indivíduo suposto racional. O termo manteve-se com maior ou menor sucesso - e nem sempre com o mesmo significado - ao longo da história do pensamento; Comediante representando o papel de escravo numa comédia: usa uma máscara cómica que lhe A reacção aos acontecimentos trágicos do séc. XX, particularmente a Segunda Guerra Mundial, dá-se em todos os domínios da cultura.

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O que ser pessoa?

No mundo ocidental, a noo de pessoa formou-se a partir do cristianismo e do direito romano. A palavra latina persona corresponde em grego a prspon (cara, rosto). Esta palavra significava originalmente a mscara do actor teatral, o qual se tinha de identificar com o seu papel ou representar uma personagem. A persona, como mscara, permitia:

desempenhar diferentes papis, por isso, a persona ao mesmo tempo que esconde o que h de mais ntimo, de mais pessoal, em cada ser humano, d-lhe a possibilidade de desempenhar diversas funes e papis sociais,

funcionar, simultaneamente, como caixa de ressonncia permitindo ampliar o som.

Referncia evoluo histrica da noo de pessoa

O vocbulo tem, como se v, uma origem remota e ilustre: surgiu no mundo clssico referido ao teatro; e manteve-se, atravs do tempo, ligado a personagem, isto , aquela mscara ou disfarce que, ao longo da vida, usamos nas nossas relaes sociais consoante as funes ou papis que desempenhamos.Foram, porm, os autores cristos medievais que, pela necessidade de explicarem a Encarnao - e, portanto, as relaes entre Deus e o homem - elaboraram pela primeira vez o conceito filosfico de pessoa. E quem melhor o exprimiu foi Bocio, nos sculos V-VI d. C., utilizando uma frmula que ainda hoje no est abandonada: a pessoa a substncia individual de natureza racional. Ou seja, a pessoa o indivduo suposto racional.O termo manteve-se com maior ou menor sucesso - e nem sempre com o mesmo significado - ao longo da histria do pensamento; e surgiu no sculo XX com um fulgor inigualvel. Desde logo, porque desde ento sucederam-se possivelmente as maiores tragdias da histria da humanidade: duas guerras mundiais devastadoras, os regimes polticos mais opressores de que h memria, a tentativa premeditada do extermnio de povos, a situao miservel de milhes de seres humanos...Tudo isto contribuiu para o progressivo aparecimento de movimentos que, nos diversos campos da cultura, afirmam o valor supremo e absoluto da pessoa: chamamos personalismo a toda a doutrina e a toda a civilizao que afirmam o primado da pessoa humana sobre as necessidades materiais e as instituies colectivas que sustentam o seu desenvolvimento (E. Mounier). Pessoa e Sociedade

no seio da sociedade, na comunicao com os outros homens, que a pessoa se constitui.

A pessoa realiza-se na prpria auto-realizao livre. A realizao de mim mesmo sempre ao mesmo tempo a realizao do meu outro. Auto-realizao e realizao mundana constituem uma unidade dialctica. Mas o ponto primrio de relao da realizao pessoal a outra pessoa. O outro do homem primariamente o outro.

A realizao pessoal de mim mesmo acontece na relao pessoal com o outro. S na comunho humana, o homem chega a si mesmo e se realiza pessoalmente a si mesmo.E. Coreth, o Que o Homem?, Lisboa, Ed. Verbo, p. 192

Ser pessoa significa, portanto, uma tendncia essencial para o ser pessoal do outro.

O primeiro movimento que, na primeira infncia, revela o ser humano o movimento para outrem; a criana de seis a doze meses, saindo da vida vegetativa, descobre-se nos outros, aprende nas atitudes que a viso dos outros lhe ensina. S mais tarde, roda do terceiro ano, vir a primeira vaga do egocentrismo reflexo.

Quando pensamos na pessoa, somos influenciados pela imagem de uma silhueta. Colocamo-nos ento diante da pessoa como diante de um objecto. Mas o meu corpo tambm esse olhar vazio perscrutando o mundo, tambm eu prprio, esquecido. Pela experincia interior, a pessoa surge-nos como uma presena voltada para o mundo e para as outras pessoas, sem limites, misturada com elas numa perspectiva de universalidade. As outras pessoas no a limitam, fazem-na ser e crescer. No existe seno para os outros, no se conhece seno pelos outros, no se encontra seno nos outros. A experincia primitiva da pessoa a experincia da segunda pessoa. O tu e, adentro dele, o ns, precede o eu, ou pelo menos acompanha-o.Emmanuel Mounier, o Personalismo, Lisboa, Ed. Moraes, pp. 63-64

Os homens nascem e desenvolvem-se no seio da sociedade humana. Por isso, o processo de personalizao implica sempre um processo de socializao. A necessidade que o homem tem de reconhecimento dos outros um dos elementos essenciais que faz dele uma pessoa humana. S no cumprimento dessa relao pessoal com o outro, o homem alcana a sua realizao e desenvolvimento plenos.

A pessoa define-se por oposio a coisa.

Se verdade que a pessoa , desde as suas origens, movimento para os outros, ser-para, verdade tambm que, sob um outro aspecto nos surge caracterizada, em oposio s coisas, pelo pulsar de uma vida secreta onde incessantemente parece destilar a sua riqueza.

Emmanuel Mounier, o Personalismo, Lisboa, Ed.. Moraes, 1976, p. 81

A pessoa surge, assim, como movimento para os outros, ser-para, em oposio a coisa, ou seja, como um sujeito livre e autnomo. Esta autonomia da pessoa reflecte-se no plano psicolgico, visto que os actos autenticamente humanos e pessoais no esto submetidos causalidade da natureza. Aquilo que radicalmente novo na pessoa humana a realizao de actos sujeitos a uma lei autnoma face a toda a causalidade vital psquica. Embora dependa e esteja condicionado por factores fsicos e psquicos, o homem, no mais profundo do seu ser, no est submetido s leis naturais. A pessoa no est portanto sujeita s foras mecnicas do mundo fsico como as coisas, nem aos impulsos espontneos dos instintos que dirigem os animais. A pessoa conhece os fins do prprio acto e os meios que a eles conduzem; tem o poder de iniciativa e o domnio dos seus actos. Possui vontade livre e, por isso, orienta o seu agir atravs de caminhos originais, que no esto contidos no determinismo da natureza dos instintos, e o seu conhecimento que lhe d o sentimento da responsabilidade pela convico de que somos ns mesmos os autores dos nossos actos.

A dignidade da pessoa radica, portanto, na liberdade e autonomia. 1 Exemplo (Franois Jacob)

O que me intriga na minha vida isto: como cheguei a ser o que sou? Como se elaborou esta personagem eu que reencontro todas as manhs e qual terei de acomodar-me at ao fim? Mas esta vida, como agarr-la? Como descrev-la sequer? (...)

Mais do que como uma continuidade, vejo a minha vida como uma sequncia de personagens diferentes, quase diria de estranhos. Na ponta da fila avisto o rapazinho, o filho nico, acarinhado por uma me muito terna, amimado por todos, brincando, o mais das vezes s, mastigando palavras que ensaia e deforma at ao infinito. Depois o adolescente, inchado de vaidade, repleto de ambio, um pouco atrasado perante as raparigas. Depois o estudante de medicina, preparando-se para ser cirurgio. O guerreiro das Foras Francesas Livres (...) apanhado, retalhado por granadas que, de regresso a Paris, tenta sete ofcios. O estreante no Instituto Pasteur, que descobre com estupefaco a pesquisa e a biologia.

Todo um bando a avanar de enfiada... Custa-me imaginar que, chamada deste nome Franois Jacob , todas essas personagens tenham podido levantar-se num mesmo impulso e responder: Presente! (...)

O que acima de tudo me interessa nestas personagens da minha vida so as suas transformaes e as suas relaes. Como emergiu o jovem homem do adolescente, e substituiu uma viso grosseira do mundo pela intransigncia de um idealismo? Por que desvios acabou o adulto por mudar de valores, por submeter-se ao interesse geral e jogar um jogo que, ainda na vspera, denunciava energicamente? Intrigam-me tambm as relaes entre aquele que sou hoje e os seus antepassados: Em que que o Professor do Colgio de Frana ainda o estudante de medicina? Pode escolher continuar a s-lo ou no? E quer? Serei solidrio do guerreiro de vinte anos ou terei trado as suas esperanas e os seus desprezos? possvel eu continuar a acreditar, ou sequer a lembrar-me do que deu sentido minha juventude? E o adolescente: preocupar-se-ia ele, simplesmente, com o que hoje me importa?

E contudo, por mais diferentes que possam surgir-me agora estas personagens que compem a minha vida, durante mais de sessenta anos elas reconheceram-se todas as manhs, ao acordar. Reencontraram-se, com a sensao de, de cada vez, retomar o papel aps o intervalo da noite, exactamente no ponto onde na vspera ele tinha ficado. (...)

E depois, como no ver que todas as personagens da minha vida passada desempenharam o maior papel, e tanto maior quanto era mais precoce, na elaborao dessa imagem secreta que, no mais fundo de mim, dirige os meus gostos, os meus desejos, as minhas decises? (...)

Trago assim, em mim, esculpida desde a infncia, uma espcie de esttua interior que d continuidade minha vida, e que a parte mais ntima, o ncleo mais duro do meu carcter. Essa esttua, toda a vida a modelei. Nunca parei de lhe dar retoques. Aperfeioei-a. Poli-a.Franois Jacob, A Esttua Interior, Publicaes D. Quixote, Lisboa.

2 Exemplo (Fernando Pessoa)Sim, sou eu, eu mesmo, tal qual

[resultei de tudo, ()

Quanto fui, quanto no fui,

[tudo isso sou,

Quanto quis, quanto no quis,

[tudo isso me forma,

Quanto amei ou deixei de amar

[ a mesma saudade em mim.

Fernando Pessoa

Heternimos de Fernando Pessoa

lvaro de Campos

Entre todos os heternimos, Campos foi o nico a manifestar fases poticas diferentes ao longo de sua obra. Era um engenheiro de educao inglesa e origem portuguesa, mas sempre com a sensao de ser um estrangeiro em qualquer parte do mundo.

Comea sua trajectria como um decadentista (influenciado pelo Simbolismo), mas logo adere ao Futurismo. Aps uma srie de desiluses com a existncia, assume uma veia niilista, expressa naquele que considerado um dos poemas mais conhecidos e influentes da lngua portuguesa, Tabacaria.

Ricardo Reis

O heternimo Ricardo Reis descrito como sendo um mdico que se definia como latinista e monrquico. De certa maneira, simboliza a herana clssica na literatura ocidental, expressa na simetria, harmonia, um certo bucolismo, com elementos epicuristas e esticos. O fim inexorvel de todos os seres vivos uma constante em sua obra, clssica, depurada e disciplinada.

Segundo Pessoa, Reis mudou-se para o Brasil em protesto proclamao da Repblica em Portugal e no se sabe o ano de sua morte.

Alberto Caeiro

Caeiro, por seu lado, nascido em Lisboa teria vivido quase toda a vida como campons, quase sem estudos formais, teve apenas a instruo primria, mas considerado o mestre entre os heternimos. Morreram-lhe o pai e a me, e ele deixou-se ficar em casa com uma tia-av, vivendo de modestos rendimentos. Morreu de tuberculose. Tambm conhecido como o poeta-filsofo, mas rejeitava este ttulo e pregava uma "no-filosofia". Acreditava que os seres simplesmente so, e nada mais: irritava-se com a metafsica e qualquer tipo de simbologia para a vida.

Possua uma linguagem esttica directa, concreta e simples, mas ainda assim, bastante complexa do ponto de vista reflexivo. O seu ideal de vida resume-se no verso H metafsica bastante em no pensar em nada. A sua obra est agrupada na colectnea Poemas Completos de Alberto Caeiro.Comediante representando o papel de escravo numa comdia: usa uma mscara cmica que lhe deforma o rosto (sc. II a. C.).

A reaco aos

acontecimentos trgicos

do sc. XX, particularmente a Segunda Guerra Mundial,

d-se em todos os

domnios da cultura.

O mais clebre quadro de

Picasso Guernica um espantoso protesto contra todas as formas de violncia.

Emmanuel Mounier (1905-1950) filsofo cristo de esquerda

que foi, em Frana,

o grande promotor

do Personalismo.

Franois Jacob

(n. 1920) francs de origem judaica. Mdico e investigador no campo da gentica, foi galardoado com o Prmio Nobel da Medicina em 1965.

Os heternimos de Fernando Pessoa

correspondem a vrias personalidades

vividas pelo poeta.