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A NOÇÃO DE FATO PSÍQUICO ROBERT BLANCHÉ Introdução A doutrina segundo a qual existe uma realidade mental oposta à realidade física por caracteres específicos, mas acessível como ela, ainda que de outra maneira, à observação, submetida como ela ao determinismo da natureza e entrando com ela na composição do universo, esteve ligada estreitamente à concepção de uma Psicologia científica, tal como ela se constituiu, ao longo do século XIX, como ciência dos fatos mentais e de suas leis. Sabe-se das dificuldades que fez nascer esta doutrina, notadamente quanto ao tema das relações entre os fenômenos físicos e os fenômenos psíquicos. Após ter tentado resolvê-las por toda uma floração de hipóteses, os psicólogos acabaram por renunciar a ocupar-se deste problema, remetendo-o aos filósofos. Mas os embaraços que criava a idéia de uma realidade mental justaposta à realidade física convidavam naturalmente a repor em questão esta idéia mesma. Como contestar, no entanto, a existência dos fatos mentais? Fazê-lo, seria não somente expor-se à censura de cultivar o paradoxo, mas também cobrir-se de ridículo, negando a possibilidade de uma Psicologia empírica justamente no momento em que esta se achava em pleno desenvolvimento. Ora, desde há quase um século a situação modificou-se. As dificuldades de que falamos subsistem, sem ter recebido solução. Em compensação, a Psicologia passa por uma crise na qual a concepção clássica de uma ciência dos fatos mentais pouco a pouco se apaga. Seria difícil encontrar hoje psicólogos que aceitassem sem reserva tal definição: eles a julgariam ou estreita demais ou mesmo inteiramente falsa. O laço que, de início, tinha unido, de modo aparentemente indissolúvel, a Psicologia científica e o realismo psicológico começa a se desatar. Por isso mesmo, o valor do realismo psicológico cessa de impor-se aos espíritos com a força de uma evidência, e sua negação, se bem que transtorne ainda nossos hábitos de pensamento, não parecerá mais tão paradoxal. O momento parece, então, apropriado para um minucioso exame deste postulado da Psicologia clássica. Que a Psicologia contemporânea tenda a renunciar a este postulado não basta para tornar tal exame precocemente caduco. A dissociação do laço que unia realismo psicológico e Psicologia científica já começou, mas está ainda longe de ter terminado. Seria contribuir para sua plena realização tentar pôr a nu as obscuridades, as confusões de idéias e os equívocos gerados pela noção de

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A NOÇÃO DE FATO PSÍQUICO ROBERT BLANCHÉ

Introdução

A doutrina segundo a qual existe uma realidade mental oposta à realidade física por caracteres específicos, mas acessível como ela, ainda que de outra maneira, à observação, submetida como ela ao determinismo da natureza e entrando com ela na composição do universo, esteve ligada estreitamente à concepção de uma Psicologia científica, tal como ela se constituiu, ao longo do século XIX, como ciência dos fatos mentais e de suas leis. Sabe-se das dificuldades que fez nascer esta doutrina, notadamente quanto ao tema das relações entre os fenômenos físicos e os fenômenos psíquicos. Após ter tentado resolvê-las por toda uma floração de hipóteses, os psicólogos acabaram por renunciar a ocupar-se deste problema, remetendo-o aos filósofos. Mas os embaraços que criava a idéia de uma realidade mental justaposta à realidade física convidavam naturalmente a repor em questão esta idéia mesma. Como contestar, no entanto, a existência dos fatos mentais? Fazê-lo, seria não somente expor-se à censura de cultivar o paradoxo, mas também cobrir-se de ridículo, negando a possibilidade de uma Psicologia empírica justamente no momento em que esta se achava em pleno desenvolvimento. Ora, desde há quase um século a situação modificou-se. As dificuldades de que falamos subsistem, sem ter recebido solução. Em compensação, a Psicologia passa por uma crise na qual a concepção clássica de uma ciência dos fatos mentais pouco a pouco se apaga. Seria difícil encontrar hoje psicólogos que aceitassem sem reserva tal definição: eles a julgariam ou estreita demais ou mesmo inteiramente falsa. O laço que, de início, tinha unido, de modo aparentemente indissolúvel, a Psicologia científica e o realismo psicológico começa a se desatar. Por isso mesmo, o valor do realismo psicológico cessa de impor-se aos espíritos com a força de uma evidência, e sua negação, se bem que transtorne ainda nossos hábitos de pensamento, não parecerá mais tão paradoxal. O momento parece, então, apropriado para um minucioso exame deste postulado da Psicologia clássica. Que a Psicologia contemporânea tenda a renunciar a este postulado não basta para tornar tal exame precocemente caduco. A dissociação do laço que unia realismo psicológico e Psicologia científica já começou, mas está ainda longe de ter terminado. Seria contribuir para sua plena realização tentar pôr a nu as obscuridades, as confusões de idéias e os equívocos gerados pela noção de

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uma realidade mental suscetível de fornecer alimento a uma “Física” do espírito. Para justificar a oportunidade de nosso trabalho, gostaríamos de mostrar, por alguns exemplos, como o realismo psicológico, ainda que não mais exibido tão ingenuamente quanto outrora, permanece vivo na Psicologia contemporânea: um curso de Psicologia recentemente publicado continua a apresentar a distinção tradicional entre os fatos psíquicos e os fatos físicos, a delimitação da Psicologia como ciência dos fatos mentais ou dos fatos de experiência interna, a simetria desta experiência interna com a observação sensível, em suma, a idéia de que o universo se compõe de duas espécies de realidades (ou pelo menos de uma realidade se manifestando sob dois aspectos), das quais uma é objeto da Física, a outra da Psicologia; abrindo o VIII Congresso Internacional de Psicologia, Heymans, após ter lembrado as tendências recentes dos psicólogos a abandonar a idéia de leis mentais e a constituir uma Psicologia na qual o mental não tivesse mais lugar, vê nisso um acesso passageiro de desencorajamento, convida a retomar a “via régia da Psicologia”, a encarar seu campo de trabalho “sob o ângulo da hipótese do paralelismo universal”, e a buscar os “fatos mentais capazes de entrar em leis mentais”; um psicólogo importante como Claparède rejeita, como desprovidas de valor para o psicólogo, certas definições mais novas, voltando à definição tradicional do psíquico como inextenso, não localizável no espaço, irredutível ao movimento, interno, subjetivo e afetado de egoidade, por oposição à espacialidade, à exterioridade, à objetividade, à existência independente de nós dos objetos físicos, que podem sempre ser, no fim das contas, reduzidos a movimentos materiais; será preciso lembrar o quanto as concepções de Freud, que tão poderosamente contribuíram para renovar a Psicologia, permanecem impregnadas de realismo? Deixando de lado, agora, os autores que continuam a definir a Psicologia, por oposição à Física, como a ciência dos fatos mentais, voltemo-nos para aqueles que a concebem como a ciência do comportamento dos organismos. Há várias maneiras de entendê-la, mas a idéia que esta definição quer sugerir é sempre a de uma ciência que, em lugar de opor-se à Física como a ciência dos fenômenos internos e espirituais à ciência dos fenômenos externos e materiais, situa-se, ao contrário, para além da Biologia, no prolongamento da Física, incidindo como ela, e como todas as ciências, sobre fenômenos acessíveis à experiência coletiva. Uma tal Psicologia repudiou o realismo psicológico? Há, sem dúvida, behavioristas intransigentes. Mas, justamente, a maior parte dos psicólogos protesta contra o behaviorismo radical, acusando-o de negar paradoxalmente a existência da mente. Fora raras exceções, a Psicologia dita objetiva admite, então, ela também, que a realidade física se duplica de uma realidade mental cujos traços característicos permanecem sendo a interioridade e a subjetividade. É, com efeito, porque esta realidade mental não cai sob a

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experiência sensível e objetiva, é porque ela não pode ser inserida na rede espacial que se preconiza, para atingi-la, um método indireto. O método mudou, o alvo derradeiro permaneceu o mesmo. Apesar de apresentar-se como uma simples extensão da Biologia, a Psicologia do comportamento mantém a pretensão de nada deixar escapar do objeto da Psicologia clássica, estendendo seu domínio até às atividades intelectuais. Através do comportamento, é, então, a atividade mental que ela, no fim das contas, se propõe essencialmente estudar, e da maneira a mais realista. Para convencermo-nos disto, basta ler o trabalho no qual Piéron, representante qualificado em França da Psicologia objetiva, expôs as grandes linhas desta Psicologia. Aí veremos que a noção tradicional de “fatos mentais” concebidos como “internos” permanece tão vivaz que o autor não estaria muito longe de pô-los no mesmo plano dos fenômenos fisiológicos que se ocultariam no “interior” do organismo. Aí veremos, ainda, como a concepção de uma Psicologia do comportamento, muita clara quando diz respeito a reações elementares, com as quais não se deixa o determinismo biológico, se obscurece quando se chega às “reações intelectuais”: ela se dobra então no sentido da Psicologia clássica e restaura a idéia de um “determinismo mental”. Mesmo na Psicologia do comportamento, o realismo psicológico subsiste, então, pelo menos em estado latente. Nada talvez mostre melhor a sobrevivência deste realismo na Psicologia contemporânea do que a natureza das reservas que são constantemente formuladas pela maioria dos psicólogos à forma intransigente da Psicologia do comportamento. Faz-se notar que o estudo do comportamento puro e simples, abstração feita de sua significação, nada teria em comum com o que se costuma entender pela palavra Psicologia. Mas acrescenta-se que só o recurso à introspecção permite dar um sentido a um comportamento. O sentido do comportamento é, então, tomado por uma realidade mental escondida atrás de sua realidade material e revelada, diretamente, apenas ao sujeito. A dualidade da realidade e do pensamento se transforma assim no dualismo ôntico do físico e do mental, característico do realismo psicológico contemporâneo. Deste gênero de argumento, e desta transposição, qualquer um achará, facilmente, exemplos. Tomaremos um, de um curto artigo no qual Charles Blondel reivindica a “vida interior” como o objeto autêntico de toda Psicologia, mesmo a do comportamento: “As Psicologias do comportamento, escreve ele, não fazem, talvez, abstração da mente e de seus estados, tão completamente como desejariam. Se, entre os comportamentos, elas contam o verbal, é óbvio que elas entendem por isso um comportamento verbal inteligível. Mas as palavras que empregamos não têm sentido para nós nem para nossos ouvintes se não são os signos de todo um jogo de experiências que forçoso é, de qualquer modo, qualificar de mentais, e, para compreender o que nos dizem, e mesmo o que dizemos, é preciso que façamos, mais ou menos deliberada e conscientemente, uma volta a nós mesmos que se assemelha muito à introspecção”. E ele conclui

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que toda obra psicológica deve, no fim das contas, chegar a uma “referência necessária à experiência interior”, dando como exemplo particularmente característico os estudos de Lévy-Brühl, que, analisando o pensamento dos primitivos, nos informaria assim de sua “vida interior”. Ou nos enganamos muito ou esta assimilação do pensamento à vida interior, da intelecção à introspecção não é senão uma forma um pouco mais sutil da confusão, favorecida aliás pelo duplo sentido da palavra reflexão, que fazem os estudantes de Psicologia quando tomam por um caso de introspecção a meditação do filósofo ou do matemático, quando tomam pela contemplação de uma realidade mental a própria atividade do espírito. Até aqui deixamos de lado o caso daqueles dentre os behavioristas que são bastante intrépidos para ir até a negação da existência dos fatos mentais. Pelo menos repudiaram eles, assim procedendo, o realismo psicológico? Após o que acabamos de dizer compreender-se-á como, sem buscar o paradoxo, podemos sustentar que, pelo contrário, esta negação mesma, no sentido em que eles a entendem, é dele uma nova manifestação. Para os behavioristas, tanto quanto para seus adversários mentalistas, a negação ou afirmação da realidade psíquica não se distingue da negação ou afirmação da espiritualidade do pensamento. Toda a controvérsia limitando-se, então, a se perguntar se a atividade do pensamento se reduziria a uma atividade corporal ou se consistiria numa série de fenômenos especificamente mentais, irredutíveis a fenômenos físicos. Mas, que as operações do pensamento sejam assimiláveis a fenômenos da natureza é algo sobre o que não paira a menor dúvida, o ponto litigioso sendo apenas o de saber se esses fenômenos são físicos ou psíquicos. Aí estaria, entretanto, toda a questão, a assimilação dos pensamentos a fenômenos naturais sendo justamente a essência do realismo psicológico. Digamo-lo logo, a oposição entre os behavioristas e os mentalistas é uma falsa alternativa na qual pretendemos não nos deixar encerrar, rejeitando tanto a negação do pensamento quanto a afirmação de uma realidade mental. Mas a única maneira de escapar disto é precisamente abandonar o postulado realista. Ponham que o pensamento é uma realidade, a questão não será mais do que decidir se esta realidade é física, e apreensível pelos sentidos numa experiência objetiva, ou psíquica, e apreensível por introspecção numa experiência estritamente subjetiva. Desde então, vocês não poderão evitar as dificuldades da última tese senão caindo na absurdidade da primeira. Rejeitem, ao contrário, o postulado realista, dissociem as idéias de pensamento e de realidade e vocês poderão dar razão ao mesmo tempo ao behaviorista, quando ele nega a existência de fenômenos mentais específicos, e a seus adversários mentalistas, quando eles sustentam que a palavra pensamento designa outra coisa que não simples fenômenos físicos. Nós nos explicaremos sobre esse ponto no curso de nosso ensaio. Gostaríamos apenas de assinalar, aqui, como a controvérsia que se instituiu a respeito do behaviorismo, não tendo sentido a não ser pela adoção do postulado realista, testemunha da igual

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persistência deste postulado nos dois campos. Tentar, como vamos fazê-lo, a crítica deste postulado, tentar mostrar que a possibilidade de pesquisas psicológicas não está ligada à existência de fatos mentais específicos, não será, então, em vista do estado atual da Psicologia, um empreendimento supérfluo1. Repudiar o realismo é perfilar-se ao lado daqueles a que a tradição chama idealistas. Mas, é preciso considerar que entre as doutrinas geralmente recobertas pelo nome idealismo há uma que não podemos qualificar de outro modo que como realista. Isto é, não podemos dar nenhum abrigo à noção de idealismo ontológico. Situando nossa tese na corrente idealista, referimo-nos apenas a um idealismo epistemológico. Mas, importa, no limiar deste exame, assinalar um singular engano que mais de uma vez se cometeu a respeito deste último. Se o fazemos, não é apenas para evitar nele recair, é também porque ele nos dá um novo testemunho da facilidade com a qual o espírito deixa-se ir em direção ao realismo. Trata-se da curiosa confusão pela qual o idealismo epistemológico, que implica a rejeição do realismo psicológico, é identificado justamente a ele: como se a essência do idealismo consistisse em reduzir toda existência à existência mental. Certamente, tal era bem a significação do idealismo ontológico, pois as idéias às quais reduz ele as coisas são por sua vez concebidas como coisas mentais, não como atos de intelecção. Mas, criticar o idealismo epistemológico, tomando-o pelo idealismo ontológico, como o faz por exemplo Russel, é enganar-se completamente de endereço. Suas objeções incidindo, na verdade, contra um realismo psicológico de tendências subjetivistas, nada de espantoso que esta transposição se revele inconsistente, e que o idealismo epistemológico possa, aqui, concordar com seu adversário na repulsa a tal concepção. Se nos reportarmos, por exemplo, às críticas que Russel formula em relação ao idealismo, veremos que este poderia subscrever todas as proposições com as quais Russel imagina fulminá-lo. “O que estabelece a

1 É necessário precisar que se acontece, por abreviação, chamarmos simplesmente psicólogos os que admitem o realismo psicológico, nosso estudo não é de maneira alguma dirigido contra a Psicologia, mas apenas contra certa tese de que a Psicologia clássica permaneceu solidária sem ver seu caráter metafísico, e da qual a Psicologia atual teria, acreditamos nós, todo interesse em se libertar. Não se deve esquecer que a afirmação de uma Psicologia científica limitada ao estudo dos fenômenos não era em sua origem senão o reverso da negação de uma Psicologia metafísica que pretendia provar pela observação interior a substancialidade da alma. Esta negação conserva hoje ainda toda sua força. Mas a alternativa do substancialismo e do fenomenismo que os psicólogos clássicos se compraziam em estabelecer é tão falsa quanto o é, no interior do fenomenismo, a que faz nascer a discussão do behaviorismo, e precisamente pela mesma razão. Que se trate, com efeito, de realidade substancial ou de realidade fenomenal, é sempre às voltas com uma concepção realista do espírito que estamos, e é essa concepção, ela própria, que, uma vez que impõe a escolha entre teses opostas e igualmente embaraçantes, deveria, de saída, ser posta em discussão. À alternativa do substancialismo e do fenomenismo, que permanece no plano do realismo, é necessário substituir, ainda uma vez, a do realismo e de seu contrário.

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Lógica, declara ele, ainda que se tenha o costume de chamá-lo leis do pensamento, é tão objetivo, incidindo tão pouco sobre o mental quanto a lei da gravitação”. “Seja a proposição 2+2=4. Para os idealistas, esta proposição exprime uma lei do pensamento: quer dizer, que se será sempre forçado a crer que há 4 coisas quando há 2 e 2, ainda que de fato possa ocorrer que haja 5 ou 3, ou antes, que, à parte o espírito, as coisas não tenham número. Ora, é evidente que o conteúdo do que se crê quando se crê que 2+2=4, não é que o espírito possui certa propriedade; então, se 2+2=4 fosse uma lei do pensamento, seria uma lei que nos forçaria a crer no que pode bem ser falso”. O idealista epistemológico não diria outra coisa, pois sua tese se situa exatamente nas antípodas deste realismo psicológico, com a única diferença de que ele não reconheceria como suas as teses que lhe são atribuídas. E Russel conclui: “A Matemática é composta de proposições que não contêm nenhum constituinte real, seja mental, como querem os idealistas, seja físico, como dizem os empiristas. Há dois mundos, o da existência e o do pensamento. O erro capital do idealismo consiste em querer achar para o mundo do pensamento um lugar no mundo da existência, a saber, no espírito”. Situar a verdade no mundo da existência, fazer dela uma realidade mental, é uma tese que nos parece merecer propriamente o nome de realismo psicológico, é uma tese que o idealismo epistemológico repele. A confusão destas duas teses opostas, a facilidade com a qual se interpreta a segunda em função da primeira, revela a força do que não se pode chamar de outro modo senão de preconceito realista. Empregando esta expressão, queremos apenas afastar previamente, como nula e inaceitável, toda crítica que não ultrapasse o ponto de vista deste realismo espontâneo. Que as críticas desse gênero não sejam raras, eis o que mostraria ainda a oportunidade de uma tentativa de denunciar as dificuldades do realismo quando ele se aplica a uma concepção do espírito e de suas relações com a matéria. Seria inútil multiplicar exemplos da confusão que acabamos de assinalar. Permitir-nos-ão, entretanto, dar um outro, e analisá-lo com algum detalhe, pois, desta vez, trata-se de um esforço positivo para resolver o problema que está no centro de nosso próprio trabalho, o das relações entre o físico e o psíquico. Em seu livro sobre A Alma e o Corpo, Binet ora fala a linguagem do dualismo epistemológico, pelo qual se chega ao idealismo, ora a do dualismo psicofísico, com o qual instalamo-nos em pleno realismo, e deste casamento inconsiderado nasceu uma teoria verdadeiramente monstruosa. A idéia central da obra, que subscreveríamos de bom grado, é bem a de criticar o emprego do dualismo ôntico físico/psíquico na definição do que sejam matéria e espírito. E substituí-lo pela dualidade epistemológica objeto conhecido/ato de conhecer. “Nós não conhecemos outra coisa que não sensações. É então impossível fazer uma distinção entre a natureza física e o objeto de conhecimento contido em toda sensação. A linha fronteira do físico e do psíquico não pode passar por aí, uma vez que ela separaria fatos idênticos”.

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Erram, então, aqueles que põem um abismo entre as modificações cerebrais e as sensações, uma vez que a sensação, enquanto objeto de conhecimento, se confunde com as propriedades da natureza física. É no interior da sensação que deve operar-se o corte, e ele se estabelecerá entre o objeto de conhecimento e o ato de conhecer, entre o conteúdo da sensação e a consciência desse conteúdo, e é esta a distinção a mais geral que se possa traçar no domínio de nossos conhecimentos. Binet faz notar que esta distinção não deve ser entendida no sentido ôntico: “Nós dizemos que a matéria é algo que é sentido, mas não dizemos, simetricamente, que o espírito é algo que sente. Empregamos uma fórmula bem mais prudente, e bem mais justa, pondo o espírito no fato de sentir. Repitamos mais uma vez: o espírito é o ato de saber, não é um sujeito que sabe.” Até aqui, a tese parece nitidamente orientada no sentido do dualismo epistemológico. Mas, em que consiste este ato de conhecer pelo qual Binet define o espírito? Apercebemo-nos, rapidamente, ao lê-lo, que este ato não é efetivamente ativo, sendo tão pouco ativo quanto um movimento material: como o seria para quem reduz a idéia à imagem, explica a universalidade e a necessidade de certos juízos por associações não desmentidas, e assimila o raciocínio a um mecanismo mental? A oposição do conteúdo e do ato não pode ter sentido num pensamento empirista, que, por essência, não pode reconhecer senão o dado, o que tem por resultado reduzir o próprio ato a certo conteúdo. Assim, Binet não teme chamar de fenômenos mentais os atos de conhecimento, estabelecendo uma oposição entre fenômenos tais como pedras, grãos de areia, pedaços de ferro, cérebros e outros fenômenos denominados “estados mentais”. O ato de conhecer não é senão um estado mental; a oposição do conteúdo sensível e do ato de pensamento não significa para Binet nada mais que a oposição tradicional entre os fatos físicos e os fatos mentais. Bem entendido, a transposição realista do ato de conhecimento acarreta, por simetria, uma transposição análoga para o objeto conhecido, como a frase que se acaba de ler já bem claramente o indica. E, falando de sua concepção realista da matéria, referimo-nos simplesmente à maneira pela qual ele concebe a realidade física fenomenal. Sua tese central a tinha identificado à sensação, ou, mais precisamente, ao conteúdo da sensação, oposto ao ato de conhecimento; mas, como este ato é agora assimilado ao tradicional “estado mental”, nada mais se pode fazer do conteúdo do que identificá-lo à realidade física, no sentido ordinário do termo. Binet não deixa de fazê-lo; mais exatamente, ocorre-lhe identificá-lo a esta parte do mundo físico que é um movimento cerebral: “A sensação é o fenômeno que se produz e se experimenta quando um excitante age sobre um dos nossos órgãos dos sentidos. Este fenômeno compõe-se, então, de duas partes: uma ação exercida de fora por um corpo qualquer sobre a nossa substância nervosa, e em seguida o fato de sentir esta ação”. Parece-nos que tal maneira de opor o físico ao mental não se distingue da que Binet buscava evitar escrevendo o que lemos já acima: “Nós não conhecemos outra coisa que não

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sensações. É então impossível fazer uma distinção entre a natureza física e o objeto de conhecimento contido em toda sensação. A linha fronteira do físico e do psíquico não pode passar por aí, uma vez que ela separaria fatos idênticos”. A impressão será confirmada se examinamos a maneira pela qual Binet põe o problema da união do espírito e do corpo. Para ele, as principais dificuldades deste problema “provêm destes dois fatos, que parecem incompatíveis: de uma parte nosso pensamento é condicionado por certo movimento intra-cerebral de moléculas e átomos e, de outra parte, este mesmo pensamento não tem consciência deste movimento molecular. Como é possível que nossa consciência ignore este evento fisiológico do qual depende e, como se jorrasse de nosso sistema nervoso, se volte para um objeto longínquo?”. Vê-se que a tese de Binet é desprovida de toda significação, uma vez que ela consagra, finalmente, a distinção tradicional a que ela parecia se opor, levando a enunciar o problema das relações espírito/corpo nos mesmos termos em que o formulava o realismo dualista inerente à Psicologia clássica. Que um autor tenha podido recair no dualismo psicofísico, após ter definido o espírito pela atividade de conhecimento e tê-lo assim distinguido ao mesmo tempo de um sujeito substancial e de todo conteúdo fenomenal, eis o que seria, sem dúvida, inexplicável, se o realismo não tivesse se imposto a ele com toda a força de um preconceito. É porque ele nos dava um exemplo particularmente impressionante deste preconceito, e porque o dava aplicando-se, justamente, ao problema que nos propomos tratar, que julgamos oportuno mencionar aqui seu estudo. Em resumo, se convém, como o dizíamos, liberar a Psicologia da tese do realismo psicológico, isto é, da afirmação de que existe uma realidade mental específica, esta primeira dissociação nos parece solidária de uma segunda, que deveria, desta vez, operar-se na noção confusa de realidade mental, para separar as duas idéias de espírito e de realidade. Assim se explicaria o caráter ilusório de uma Psicologia concebida como “Física” do espírito e a divisão que tende espontaneamente a estabelecer-se entre duas espécies de Psicologia, uma das quais é uma ciência da natureza, mas nada tem a ver com o mental, e a outra um estudo do espírito, mas profundamente diferente das ciências naturais. Ora, esta dissociação entre o espírito e a realidade, nós a encontramos feita nesta forma de idealismo que é o idealismo epistemológico. Explicando a objetividade do real pelas leis que o pensamento impõe aos fenômenos, o idealismo epistemológico, por isso mesmo, distingue a atividade intelectual ao mesmo tempo do dado sensível sobre o qual ela se exerce e do universo objetivo que ela se esforça por construir. Ele evita, assim, confundir a ordem do pensamento e a ordem da existência, e reduzir o espírito a uma espécie de realidade, como o faz este realismo da idéia que se chama idealismo ontológico. Nós não tivemos, por conseguinte, senão que nos deixar guiar por esta corrente de pensamento, o idealismo epistemológico, quer dizer que nós não pretendemos originalidade para as idéias diretoras do nosso trabalho. Restava-nos, somente, uma dupla

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tarefa a realizar. Era preciso primeiro aplicar o princípio idealista ao problema que nós nos púnhamos. Para isso, não bastava extrair deste princípio a condenação do realismo psicológico em geral, nem mostrar que significação ele comandava atribuir à oposição do físico e do mental. É este o objeto de nosso primeiro capítulo, mas ele não é senão preliminar. Era necessário ainda, e sobretudo, seguir as consequências que acarretava o princípio em cada uma das grandes classes de “fatos psíquicos” que a Psicologia clássica tinha distinguido, para denunciar, em cada uma delas, a ilusão realista: donde nossos capítulos sobre a imagem, o pensamento, a vontade e o sentimento. Entretanto, à medida em que quitávamos esta primeira tarefa, a necessidade de uma segunda nos aparecia com insistência. Em cada um de nossos capítulos, parecia-nos, com efeito, que a aplicação do princípio idealista, ao mesmo tempo que permitia superar as dificuldades que acumula o realismo psicológico, revelava uma lacuna no idealismo epistemológico tradicional, desde que, deixando o problema do físico e do mental em geral, girávamos em direção ao problema das relações entre espírito e organismo. Não é seguro que esta questão não passe de um caso particular da precedente, como o idealismo parece geralmente supor. Fomos assim levados a propor, sem nos afastar da linha geral do idealismo epistemológico, uma concepção nova da natureza do corpo próprio.

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CAPÍTULO I Físico e Mental

Quando se põe o problema da distinção entre fatos físicos e fatos psíquicos, considera-se que a dificuldade incide unicamente sobre a diferença que separa o psíquico do físico, como se nenhuma incerteza reinasse quanto ao sentido da palavra fato. Ora, acontece que esse termo é equívoco. É preciso, então, começar por dissipar o equívoco que talvez seja a razão principal da dificuldade, pois seria bem possível que a distinção entre o psíquico e o físico coincidisse, justamente, por uma de suas significações, com a distinção entre os dois sentidos da palavra fato. Que é, então, um fato? Um fato é, primeiramente, o que é suscetível de ser conhecido direta e incontestavelmente, sem a intervenção de nenhuma operação intelectual que lhe sirva de prova; é o que é tal que basta que seja mostrado para que não se possa de nenhum modo duvidar de sua realidade. É um fato quer dizer: é assim e não de outro modo, sem que eu compreenda por quê; impõe-se a mim, limito-me a constatá-lo sem poder explicá-lo. O fato opõe-se, assim, à hipótese ou à teoria como o dado ao realizado. Este sentido da palavra é usual. Mas é preciso notar que o domínio do fato, se se toma a palavra estritamente nesta acepção, reduz-se a muito pouca coisa. Não é um fato que a Terra gire, pois a afirmação do movimento da Terra é uma hipótese, repousando ela própria sobre um grande número de outras hipóteses. Não é um fato que Napoleão tenha sido imperador, pois o passado escapa a toda observação. Não é um fato que vivamos sob o regime republicano, pois um regime não é algo que possa ser visto, tocado, nem constatado imediatamente de nenhuma maneira. Não é um fato que Paris seja uma cidade de França, pois jamais vemos Paris, nem a França, mas apenas casas e campos. Pode-se mesmo dizer que vemos casas e campos ou que a existência de um objeto qualquer seja jamais para nós um puro fato? Afirmar a presença de um objeto é sempre ultrapassar o dado atual. Assim, se quiséssemos achar o fato bruto, puro, livre de toda interpretação, seria preciso buscá-lo aquém da percepção, pela qual afirmamos a existência de objetos, e tender para a pura sensação, pela qual seríamos simplesmente afetados de certa maneira. O fato bruto é o fenômeno, a imagem tal qual se apresentaria a uma consciência de algum modo estúpida. Esta maneira de conceber o fato não esgota, no entanto, a significação do termo. Frequentemente, em lugar de chamarmos fato a imagem, distinguimos, ao contrário um do outro: opomos à simples imagem (subjetiva) o fato (objetivo); à aparência ilusória (ou, pelo menos, incerta, e verdadeira somente a título de aparência), o fenômeno físico; à presença em mim de uma sensação que me é própria, a existência de um objeto exterior, independente de minha sensação. A Terra é aparentemente imóvel, o bastão mergulhado na água está, aparentemente, quebrado: de fato, a Terra gira, o bastão não está quebrado.

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Reencontra-se, assim, a distinção entre o fato psíquico, que não é um fato senão para aquele que se acha por ele afetado, e o fato físico, cuja existência e cuja natureza independem da maneira pela qual aparece às consciências individuais e ao qual, por esta razão, se reserva propriamente o nome de fato. Ei-nos, então, em presença de um outro sentido da palavra fato, repousando, ele também, sobre o uso, e que se distingue do primeiro ou mesmo a ele se opõe. Mas, que significa, exatamente, esta oposição entre o fato e a imagem? Não se trata, para dizer a verdade, de uma separação entre dois tipos de fatos, dos quais um seria totalmente estranho ao outro. A retidão do bastão não se opõe, de modo nenhum, à minha sensação visual, e menos ainda a toda sensação possível. Perceber não quebrado o bastão, enquanto que é quebrada a linha que dá sua imagem visual, é afirmar que o bastão apareceria como não quebrado ao tato, e mesmo à visão se o retirássemos da água. Não é, então, negar a imagem atual; é, ao contrário, afirmar que uma necessidade a liga a outras imagens determinadas. A diferença que separa a imagem subjetiva do fato objetivo não é outra senão a diferença que separa a imagem considerada isoladamente da imagem integrada num sistema no qual cada uma está ligada necessariamente a todas as outras. É, então, a concepção das leis da natureza, leis segundo as quais a presença de cada imagem é determinável em função de outras imagens, que nos permite passar da subjetividade da imagem à objetividade do fato. Uma consciência reduzida, como o quer o sensualismo, a contemplar passivamente uma sucessão de imagens, seria absolutamente incapaz de distinguir o fato da aparência: para ela, não haveria senão aparências, mais ou menos vivas somente. O laço que une as aparências para fazê-las entrar no sistema do conhecimento não pode ser dado, mas apenas concebido. Só o pensamento é capaz de estabelecer relações entre as aparências para assim constituir fatos. O fato é obra do espírito, que explica a presença de cada imagem ligando-a a outras com a ajuda de leis convenientemente escolhidas, e que, compreendendo-a, confere-lhe assim alguma objetividade. Assim, quando dizemos: É um fato, referimo-nos ora à experiência bruta (às imagens tais como seriam dadas antes de toda tentativa de interpretação), ora à experiência organizada (na qual o pensamento conseguiria compreender cada imagem, determinando seu lugar no conjunto das imagens). Para dizer a verdade, a significação habitual da palavra oscila entre essas duas significações extremas, em vez de coincidir exatamente com uma ou com a outra, e esta indecisão favorece a confusão entre os dois sentidos. De uma parte, não há jamais, para nós, fato bruto, não há jamais imagem separada de toda interpretação: pois não há imagem senão para uma consciência que é por ela afetada, e que não pode sê-lo sem saber ao mesmo tempo que o é: em consciência há ciência. Esta pura imagem não é, então, senão um termo ideal, que não pode ser efetivamente dado, uma vez que suporia ao mesmo tempo a vigília e o sono da consciência. Assim, é impossível falar dela propriamente, e

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sem se deixar trair pela expressão. Todas as palavras de que nos servimos põem a dualidade de uma consciência passiva e das imagens que ela acolheria, como a placa fotográfica acolhe as impressões luminosas, enquanto que nesse estado de pura sensação a dualidade do senciente e do sentido desaparece. Isso quer dizer que o fato bruto se reduz a um limite2. Mas o mesmo ocorre com o fato objetivo. Um fato qualquer só seria plenamente objetivo se o espírito fosse capaz de ligá-lo à totalidade dos outros fatos, o que ele só poderia fazer se possuísse o sistema acabado das leis da natureza e o conhecimento perfeito de todas as partes do universo. Pois não basta que uma imagem seja relacionada a algumas outras para que se tenha o direito de conferir-lhe, com certeza, a objetividade: é preciso ainda que esse sistema limitado de imagens venha a ser, por sua vez, inserido no sistema universal. É inútil sublinhar que o desenvolvimento da ciência, ainda que permitindo estender sobre as imagens uma rede de leis cada vez mais vasta e cada vez mais cerrada, recua ao mesmo tempo para um longínquo cada vez mais inacessível o acabamento do sistema que ela trabalha para construir. Devemos, então, rigorosamente falando, duvidar em algum grau da objetividade de todos os fatos, na medida em que não sabemos organizá-los em um sistema único. E assim, tal como o fato bruto, o fato objetivo não passa de um limite, aquele para o qual tende o espírito em seu esforço para constituir a ciência da natureza. Isolando e apresentando em toda sua pureza cada uma das duas significações que comporta, confundidas, a acepção usual da palavra fato, chega-se a essa afirmação: jamais nos achamos em presença de fatos brutos ou de fatos objetivos, mas somente diante de fatos situados numa série que, segundo o sentido em que é percorrida, tende seja para o fato bruto, seja para o fato objetivo. O que chamamos um fato é sempre um tecido de afirmações. Mas, de afirmações que jamais formam um sistema que se possa inserir num sistema total perfeitamente coerente. Nenhum fato é, então, para falar propriamente, bruto, nem objetivo. Todo fato tomará a fisionomia de um ou do outro, conforme for comparado a um sistema mais vasto que o compreenda ou, ao contrário, a um sistema menos vasto nele compreendido. É por isso que nenhum

2 Entendemos por imagem, ou por experiência bruta, o limite ideal para o qual tende uma análise que parte de nosso conhecimento atual, e não um estado que precederia realmente a experiência organizada. Falando de imagens, queremos dizer simplesmente que nosso conhecimento do real não se resolve num sistema de relações puramente formais como aquelas de que se ocupam as matemáticas e a lógica, e que o valor de verdade das proposições físicas vem de que elas incidem sempre, no fim das contas, sobre um dado sensível, mesmo se esse dado é cada vez mais mascarado pelas afirmações que o interpretam. Estamos, então, longe de sustentar que o conhecimento comece, cronologicamente, pela sensação bruta, para elevar-se progressivamente ao pensamento. Da sensação bruta jamais seria possível sair, do mesmo modo que, partindo do começo indefinidamente recuado do tempo, jamais se chegaria ao presente, mas pode-se, idealmente, remontar indefinidamente do presente ao passado e, do mesmo modo, cortar pouco a pouco da percepção atual as afirmações que a envolvem.

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dos exemplos que se possa dar de fato bruto ou de fato objetivo será exatamente conveniente. Mas é útil, e mesmo indispensável, se se quer tranquilizar-se quanto ao risco de confusão, pôr em relevo e apresentar separadamente as duas significações extremas entre as quais oscila a significação ordinária da palavra fato. Que fique entendido, então, que, doravante, quando, em nosso texto, falarmos de fato bruto ou de fato objetivo, estaremos designando unicamente dois limites puramente ideais distinguidos pela análise. Limites estes que são exatamente aqueles entre os quais se move o conhecimento. O conhecimento consiste não em acumular o maior número possível de imagens, menos ainda em achar por trás das imagens uma realidade mais profunda que elas dissimulariam, mas em relacionar, umas às outras, imagens dadas das quais se parte, mediante laços necessários denominados leis da natureza. Em outros termos, a obra do pensamento, primeiro na percepção, em seguida na ciência, consiste em fabricar uma rede de relações que responda à dupla condição de constituir um sistema inteligível e de aplicar-se às imagens dadas, conferindo, assim, por uma mesma operação, ao conhecimento, o valor objetivo, ao real, a inteligibilidade; ou mais exatamente, fabricando ao mesmo tempo o conhecimento, conferindo-lhe um valor objetivo, e o real, conferindo-lhe a inteligibilidade. Estas relações não devem ser consideradas como reais, mas somente como verdadeiras3; elas não são nem fatos brutos, uma vez que os supõem, nem fatos objetivos, uma vez que servem para construí-los. Elas pertencem a uma outra ordem que não a do fato ou da realidade e que se pode chamar a ordem do pensamento ou da verdade. Isso posto, como convém entender a oposição tradicional entre o mental e o físico? Desde logo, a diferença que se estabelece entre a realidade das imagens e a realidade do mundo físico não é, de maneira nenhuma, a que separaria duas espécies de realidade justapostas num mesmo universo, mas a que separa dois planos de realidades, os dois planos extremos, um dos quais marca o ponto de partida e o outro o ponto de chegada, de nosso conhecimento do real. Ou o real é para mim o dado puro e simples, abstração feita de toda afirmação de uma relação entre esse dado e alguma outra coisa: o que é real são então as imagens que constituem o resíduo concreto de meu pensamento atual, de tal maneira reduzindo-se, desse ponto de vista, a essas imagens que ocupam atualmente minha consciência, que, nesse plano inferior de conhecimento, todo o real seria psíquico. Ou o real é o objetivo, é aquilo cuja existência, podendo ser estabelecida pelo pensamento, ultrapassa os limites de minha

3 As denominações são livres, e pode-se, se se quer, empregar real no sentido de verdadeiro. É bem o que se faz, cremos nós, quando se diz que as leis naturais são reais, ou quando se diz que elas existem: tomam-se essas palavras num sentido laudatório, para exprimir que elas não são ilusórias, que elas têm um valor objetivo, numa palavra, que elas são verdadeiras. Mas haveria um erro evidente em passar dessa simples denominação à afirmação de que elas possuem os caracteres do que se entende ordinariamente por realidade.

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individualidade e pode ser legitimamente afirmado por todo ser pensante: o que é real, então, são os objetos materiais, ou antes, uma vez que a existência de um objeto só é certa se esse objeto é ligado por leis à totalidade dos objetos, o que é real é o conjunto do universo. As imagens isoladas perdem, assim, sua realidade: a realidade consistindo na infinidade das imagens ligadas num único sistema por uma rede de relações inteligíveis. Nesse plano superior de conhecimento, a única realidade é a realidade física. Pode-se, então, dizer das imagens que elas são reais, pode-se também dizer do universo material que ele é real, pode-se falar de fatos psíquicos e de fatos físicos, mas é claro que perderemos o rumo se, desconhecendo a dupla significação dos termos dos quais nos servimos, pretendermos justapor, num mesmo plano de existência, a realidade da imagem e a realidade do universo. Seria o mesmo que classificar em duas espécies biologicamente distintas os cães e as células que compõem o organismo do cão. A oposição da realidade da imagem à realidade do universo material reduz-se à distinção entre os elementos concretos irredutíveis do universo material e o conjunto desse universo ele próprio, ou seja, à distinção entre parte e todo. Passar da imagem isolada às imagens ligadas num sistema de objetos físicos não é cessar de considerar uma realidade para voltar-se em direção a outra, mas introduzir na realidade dada as relações que a transformarão numa realidade inteligível, deixando o plano da sensação para tentar atingir o plano de um universo transparente ao pensamento. Assim, o dualismo comumente estabelecido entre o psíquico e o físico não deve ser tratado como um dualismo ôntico, mas como a oposição das duas formas extremas sob as quais o pensamento pode considerar a realidade. Mas esta oposição entre dois planos extremos de realidade implica, por sua vez, uma nova dualidade, a da realidade e do pensamento. O pensamento não pode, com efeito, de nenhuma maneira, ser considerado como real. Ele não pertence à realidade bruta: como esta, por definição, exclui todo pensamento, nenhuma magia conseguirá achá-lo ali nem dali fazê-lo sair, as tentativas sensualistas sendo destinadas, de antemão, ao fracasso. Ele tampouco é, como o queria o materialismo, uma parte da realidade objetiva, que ele tem justamente por missão constituir e na qual, por conseguinte, não pode ser incluído. Mas, se o pensamento não pertence a nenhum plano da realidade, é ele que permite elevar-se de um plano de realidade a um plano superior; se ele não é real, é a condição da realidade objetiva do universo. Pois esta realidade não se distingue da realidade bruta da sensação senão pelas leis que ligam as imagens umas às outras de maneira que cada uma delas apareça como necessária relativamente a todas as outras e seja assim liberada da subjetividade das impressões individuais. E, essa rede de leis pelas quais são ligadas todas as imagens, é o pensamento que as estabelece. Somente, tais laços são laços inteligíveis, de modo nenhum laços reais. As leis da natureza não são uma realidade que viria justapor-se à realidade do universo, como um fio se acrescenta às pérolas para

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compor um colar. As relações estabelecidas pelo pensamento, a menos que se tome por elas as fórmulas que as exprimem, não podem ser dotadas de existência, mas somente de verdade; e como o verdadeiro só é verdadeiro enquanto é compreendido, a inteligência dessas relações e seu estabelecimento são uma única e mesma operação. Estabelecer relações entre as imagens não é, então, acrescentar às coisas uma nova coisa, é tornar inteligível um dado incoerente: o estabelecimento das relações entre as imagens fazendo com que elas ganhem um sentido; é como se, de dois homens em presença do mesmo texto da Ilíada, um soubesse grego e o outro não. Se, então, pode-se dizer que o pensamento está no universo, é somente no sentido de que ele é imanente ao universo, no sentido somente de que a existência do universo supõe como condição a verdade das relações que permitem explicar não importa qual de seus elementos em função dos outros. O pensamento está no universo constituído pela ciência como a intenção do pintor está no quadro concluído. Assim, a tradicional distinção do espírito e do mundo físico se justifica, mas de maneira diversa da justificação concebida pelo realismo psicológico. Ela só se justifica se se renuncia a ver no espírito e na matéria duas espécies de coisas que entram na composição de um mesmo universo, se se faz do espírito, não uma realidade ao lado da realidade do mundo físico, mas uma condição da realidade objetiva desse mundo. Chegamos assim à idéia de duas dualidades solidárias, nenhuma das quais permite pôr como um problema de relações entre fenômenos o problema das relações entre os dois termos que elas opõem. A primeira é a dualidade dos planos extremos entre os quais se move nossa noção do real: é a dualidade da imagem e do universo, que não são duas realidades numericamente distintas que entrariam como ingredientes complementares na composição do universo, mas duas maneiras diferentes de conceber a realidade. A segunda dualidade é a da realidade e do pensamento, que também não são duas realidades, uma vez que a idéia total de realidade forma um dos termos da oposição (que, efetivamente, só se estabelece entre a atividade intelectual, de um lado, e do outro, o dado sobre o qual ela se exerce e ao qual ela se esforça por conferir ao mesmo tempo inteligibilidade e objetividade). A primeira dualidade implica, aliás, a segunda, pois a distinção entre os dois extremos da realidade, significando a distinção de uma realidade cega e de uma realidade penetrada de pensamento, obriga a estabelecer uma nova dualidade, a da ordem da realidade ou da existência e a ordem do pensamento ou da verdade. Ora, a Psicologia clássica confunde esta dupla dualidade sob a única oposição do físico e do psíquico, se representando, além disso, esta oposição como a de duas séries de fenômenos igualmente reais e sobre as relações das quais a ciência da natureza poderia se pronunciar. Misturando a ordem da existência e a ordem da verdade, ela junta, ilegitimamente, para constituir os “fatos mentais”, o dado e o pensado, a realidade bruta que se impõe ao espírito

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passivo e as relações inteligíveis que estabelece a atividade espiritual. Depois, esquecendo que o dado se reduz à pura sensação, e pertence, por conseguinte, integralmente ao mundo mental, esquecendo que o universo tira sua objetividade das leis estabelecidas pelo pensamento, põe, diante da realidade psíquica, tal como a compreendeu, e como uma realidade dada absolutamente distinta da primeira, a realidade física do mundo material. É difícil imaginar confusão maior. Desde logo, os termos reunidos para formar a realidade psíquica são completamente heterogêneos, um deles não podendo, de nenhuma maneira, ser tratado como uma realidade: quando se passa da consideração das imagens à consideração das operações intelectuais, não se passa de uma classe a outra de fatos psíquicos, passa-se da ordem do fato, suscetível de ser dado ou não, à ordem do pensamento, suscetível de ser verdadeiro ou falso. Depois, uma vez que se etiquetou como realidade psíquica tanto as qualidades que nos dão as sensações individuais quanto a afirmação das relações em virtude das quais cada elemento do dado, aparecendo como necessariamente ligado a todos os outros, nos aparece, por isso mesmo, como independente do que há de individual na sensação, nada mais resta para constituir a realidade objetiva do mundo físico. Seu conteúdo (as qualidades sensíveis) e sua forma (o sistema das leis naturais) foram previamente absorvidos pelo que se nomeou a realidade psíquica. O universo físico nada mais sendo do que a realidade bruta das imagens organizadas de dentro pelo pensamento, nada há nele que subsista para formar contraste com o mental. O que há de espantoso se, após uma tal confusão desde o princípio, cresçam os embaraços à medida que se avança, seja querendo estabelecer as leis naturais ligando uns aos outros os diferentes fatos psíquicos (como se tudo o que se junta de qualquer maneira sob esse nome pudesse ser considerado como real), seja se interrogando sobre as relações que eles entretêm com os fatos físicos (como se se estivesse em presença de dois dados)? Mas a oposição dos fenômenos físicos e dos fenômenos mentais, tal como a concebe o realismo psicológico, é, ainda hoje, tão comumente aceita, faz de tal maneira parte dessas noções correntes em torno das quais vêm se organizar milhares de idéias secundárias, que não podemos nos orgulhar de fazer renunciar a ela de um único golpe. Examinemos, então, o que se deve pensar das oposições às quais se liga diretamente a do físico e do psíquico: a oposição do objetivo e do subjetivo e a oposição da experiência externa e da experiência interna. A separação do físico e do mental coincide, para a psicologia clássica, com a do objetivo e do subjetivo. Mas esses termos são equívocos, e, por conseguinte, também o é a correlação que se estabelece entre eles. Num primeiro sentido, a diferença entre o objetivo e o subjetivo, é a diferença entre o que é válido para todos e o que só o é para alguns, é a diferença entre o “sinômico” e o individual. Já encontramos esta distinção: é a das duas formas

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extremas sob as quais o espírito pode considerar a realidade, é a oposição da experiência bruta, ou do real tal qual ele é dado a cada um na pura sensação, à mesma experiência, mas organizada num sistema pelas relações que estabelece o pensamento entre seus elementos e liberada assim das particularidades individuais. A imagem isolada é subjetiva; o universo material é objetivo. Esta distinção entre subjetivo e objetivo é perfeitamente clara; ela concorda com a distinção dos dois sentidos extremos da palavra fato e, por conseguinte, se nos servimos dos qualificativos de psíquico e de físico para precisar estes sentidos, com a distinção do fato psíquico e do fato físico. Mas ela pode também, numa acepção bem diferente, dizer respeito à distinção do pensamento e do objeto pensado. Esta distinção nos é ainda familiar: ela corresponde com exatidão ao dualismo precedentemente reconhecido entre a ordem do pensamento ou da verdade e a ordem da existência ou da realidade. Ela é, ela também, perfeitamente legítima. Somente, é preciso evitar confundi-la com a distinção precedente entre o individual e o universal. Pois o pensamento não tem, como pensamento, nenhum caráter individual; pelo contrário, é ele que, estabelecendo relações inteligíveis e universalmente válidas entre as imagens (até então isoladas), transforma as impressões individuais infinitamente diversas num universo idêntico para todos. Somos então vítimas de uma confusão de linguagem quando reunimos numa mesma realidade mental, a pretexto de serem igualmente subjetivos, os pensamentos e as imagens. Subjetivos eles o são, mas não no mesmo sentido; longe disso, cada um aparece bem antes como objetivo no sentido em que o outro é subjetivo. As imagens são individuais, mas são objetos de pensamento; o pensamento é a atividade que ocorre num indivíduo, mas tem um valor universal e é, por esta razão, condição da objetividade do mundo. A distinção do objetivo e do subjetivo não traz então nenhuma força à distinção tradicional do físico e do mental. Ao contrário, o que toma uma força nova é a obrigação de conceber de outra maneira a oposição do físico e do mental e de separar nitidamente os dois sentidos que acreditamos dever atribuir-lhe, uma vez que a oposição do objetivo e do subjetivo revela, quando examinada, o mesmo equívoco. Igualmente obscura, e por razões análogas, é a diferença estabelecida pela Psicologia clássica entre duas formas irredutíveis de experiência, uma das quais nos revelaria os fatos físicos, a outra os fatos psíquicos. Certamente, o contraste entre dois gêneros de experiência inteiramente dissemelhantes, se fosse nitidamente marcado, traria um argumento fortíssimo para justificar a cisão operada pelo psicólogo entre os fatos que caem sob a experiência externa sensível e aqueles que dá a experiência interna ou psicológica. Mas, esse contraste não é, na verdade, o de duas experiências distintas e completamente heterogêneas; é o de duas formas extremas de uma mesma experiência. Se, relaxando os laços que estende entre as imagens a atividade intelectual, aproximamo-nos do plano inferior de conhecimento no qual o espírito limitar-

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se-ia a acolher estupidamente o dado, toda a experiência torna-se interna e psicológica, pois todo o dado consiste em sensações, isto é, em “estados mentais”, e, nesta atitude de extrema distensão intelectual, nada pode fazer figura de objeto físico nem de mundo exterior. É um turbilhão incessante de imagens que surgem para logo desaparecer, sem nada que ofereça um gancho pelo qual se possa retê-lo; é o perpétuo escoar de um rio de águas sempre renovadas, tema sobre o qual toda uma literatura psicológica bordou infinitas variações. Mas, o progresso da percepção consiste em sair deste torpor contemplativo para substituir pouco a pouco à consideração das imagens a consideração dos objetos, tratando-as não mais como coisas, mas apenas como qualidades das coisas. A realidade à qual a experiência nos faz então atingir é um mundo de objetos físicos que apresenta uma relativa estabilidade, e que o pensamento constrói, ligando, umas às outras, as qualidades que as sensações revelam. A experiência tende assim a tornar-se inteiramente externa e sensível. E ela o seria exclusivamente, se o espírito fosse capaz de reunir, num sistema acabado, a totalidade das imagens, de maneira que cada uma aparecesse como um fragmento necessário da história do universo. Enfim, a diferença entre experiência interna e experiência externa se reduz finalmente à diferença entre dois graus de experiência, porque a diferença entre o psíquico e o físico se reduz à diferença entre dois planos de realidade. Será isto, entretanto, tudo? Não reencontraremos também aí, confundida com a primeira, a diferença entre a ordem do fato e a ordem do conhecimento ? É o que vai mostrar o exame desta curiosa ruptura de equilíbrio pela qual é logo perturbada, na Psicologia clássica, a simetria primeira das duas formas de experiência. Pois a experiência psicológica, que se tinha, de início, simplesmente justaposto, sobre o mesmo plano de conhecimento, à experiência sensível, não tarda a avançar sobre ela, a tal ponto que acaba por recobri-la inteiramente. Quando, pela experiência externa, uma sensação revela um fato físico, esta sensação constitui, por sua vez, um fato psíquico que, como tal, será ele mesmo revelado pela experiência interna. Esta deve, então, aparecer como uma espécie de sentido comum abraçando todos os outros, um olho interior aberto ao mundo dos fatos mentais, e por conseguinte às sensações, como os sentidos são abertos ao mundo exterior. Dir-se-á, então, que a experiência sensível é apenas mediata, uma vez que ela, mesmo ela, é conhecida por intermédio da mente, e que a ciência a mais próxima do fato e, por conseguinte, a menos duvidosa de todas, é a Psicologia; toda a Física não passando, aliás, de um capítulo da Psicologia, ciência universal. A experiência sensível não se opõe mais agora à experiência psicológica, é apenas um de seus casos. Mas, por quê parar aí ? Afirma-se que as qualidades são conhecidas pelas sensações, depois, que as sensações são conhecidas pela mente: por que não uma terceira forma de experiência, pela qual, do mesmo modo que a mente conhece este conhecimento das qualidades que é a sensação, seria por sua vez conhecido este conhecimento das sensações

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que é a mente, e depois uma quarta forma para conhecer esse conhecimento da mente? Não é verdadeiro que, assim como não podemos experimentar uma sensação sem saber que a experimentamos, tampouco podemos saber isto sem saber que o sabemos, e sem saber isto ainda? Este encaixamento ilimitado de experiências, que a experiência sensível, previamente, suporia, é como que uma prova por absurdo do erro que comete o psicólogo quando interpõe, entre o espírito e o conhecimento sensível, um conhecimento introspectivo. Vítima da ilusão realista (que comanda tudo situar no plano da existência), ele toma por uma coisa de uma espécie nova o conhecimento das coisas; de tal modo que ele deverá supor, para explicar que se possa conhecer uma coisa, uma espécie de conhecimento de segundo grau pelo qual se conhece, previamente, esta coisa mental que é o conhecimento da coisa. A verdade é muito mais simples: é que toda experiência supõe a dualidade de um objeto de experiência e de um ato de conhecimento. Os objetos de experiência, os únicos que podem ser dados, são as imagens que nos dão os sentidos, de sorte que toda a experiência é sensível. Mas a sensação supõe, além da qualidade sensível, o espírito ao qual ela seja dada e que a põe como qualidade sensível: é por isso que a pura sensação não é senão um limite inacessível. Em outros termos, não há, falando propriamente, “dados de consciência”, só há dados dos sentidos e a consciência desses dados; consciência, isto é, conhecimento, e não realidade a conhecer; a consciência é um ato, o próprio ato de saber, e não um objeto de contemplação. A oposição da experiência interna à experiência externa, convenientemente interpretada, nada mais significa agora do que a obrigação de distinguir, na própria experiência, o pensamento que conhece e a realidade conhecida. Esta oposição é, então, equívoca: ora ela marca a distância que separa duas maneiras extremas de considerar a realidade, ora ela designa a correlação, no interior de todo conhecimento, do ato de conhecer e do objeto conhecido. Pela terceira vez, chegamos à mesma conclusão: que se examine a oposição tradicional do físico e do mental, ou a do objetivo e do subjetivo, ou ainda a da experiência externa e da experiência interna, por toda parte encontram-se, confundidas numa única dualidade, a dupla dualidade de dois planos extremos de realidade, de um lado, da ordem da realidade e da ordem do pensamento, do outro. Esta confusão sendo reconhecida, nada impede a conservação da distinção entre o físico e o mental, desde que se a traduza, tacitamente, numa ou noutra das duas distinções que ela recobre, de maneira a não aplicar a uma o que só convém à outra. Ora a oposição do físico e do mental significará a oposição do fato objetivo ao fato bruto, ou seja, do universo à imagem; ora designará a oposição da realidade e do pensamento (caso em que seria necessário ainda dar a saber se a realidade que se distingue do pensamento é a realidade da imagem ou a do universo). Qualquer que seja, aliás, dessas duas traduções, a que se adote, jamais se deverá interpretar o dualismo psicofísico como um dualismo ôntico, justapondo num mesmo universo duas espécies de realidades.

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Esta revisão do sentido tradicionalmente atribuído à oposição do físico e do mental acarreta a obrigação de submeter a exame certas idéias conexas, uma delas sendo a concepção que convém fazer do que são pesquisas psicológicas. O “fato psíquico”, propriamente dito, reduzindo-se à sensação, o domínio da Psicologia, se se quisesse continuar a defini-la como a ciência dos fatos mentais, estaria longe de estender-se à totalidade do espírito. No interior do espírito, é preciso traçar uma linha de separação entre as imagens, que, só elas, podem ser dadas ou não, e às quais poderá, por conseguinte, convir o nome de fatos psíquicos, e as operações do pensamento, suscetíveis de ser válidas ou não, mas que não podem ser consideradas como dados, uma vez que seria preciso então supor um pensamento de segundo grau ao qual o primeiro fosse dado, e isto indefinidamente. A Psicologia, na medida em que ela se apresenta como uma ciência de fatos, não pode, então, incidir sobre as operações intelectuais. A idéia de considerar a atividade intelectual como um mecanismo dado, do qual seria possível descrever, a partir de observações minuciosas, todas as engrenagens e explicar em seguida o funcionamento, não é natural senão entre aqueles para quem o próprio pensamento nada mais é do que certa combinação de representações e o espírito uma mera coleção de imagens. Não é por acaso que os criadores da Psicologia clássica foram empiristas. A pretensão de escrever um tratado Da Inteligência seguindo o mesmo método com o qual se escreveria um tratado Do Calor ou Da Respiração supõe a tese de que os atos intelectuais são fenômenos naturais acessíveis à observação, e como só as imagens podem ser consideradas como fatos, envolve a suposição de que os atos intelectuais se reduzem a sucessões de imagens, o que é precisamente uma das afirmações essenciais do empirismo. Assim, não é um medíocre tema de espanto ver uma Psicologia quase oficial, a que expõem a maior parte dos livros destinados ao ensino, tratar das operações intelectuais ao mesmo tempo em que, por um lado, se define como ciência natural e, por outro, rejeita o empirismo. Entre os dois seria preciso escolher; e, se o empirismo parece incapaz de dar conta das operações intelectuais, deve-se ou renunciar a introduzir essas operações no domínio da Psicologia ou cessar de concebê-la como ciência dos fatos mentais. Como, ademais, e isto será visto mais tarde, a vontade e o sentimento não podem ser explicados sem menção à atividade intelectual, seria preciso concluir que a Psicologia, se se persistisse em defini-la como ciência dos fatos mentais, não teria outro objeto que não o mundo das imagens. Pode-se mesmo dizer, propriamente, que ela seria ciência do mundo das imagens no mesmo sentido em que se diz que a Física é a ciência do mundo material? Certamente, é possível estabelecer leis que liguem as imagens umas às outras e constituir, assim, uma ciência das imagens. Mas esta ciência não é a Psicologia, é a Física. Pois, estabelecer leis que permitam calcular cada imagem em função de algumas outras é reunir as imagens em sistemas e compor assim objetos físicos, é deixar o plano da experiência bruta ou psicológica, na qual se

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estaria absorvido na contemplação estúpida do dado, para tentar compreender este dado e, por uma mesma operação, constituir um universo objetivo. A diferença entre a atitude psicológica e a atitude científica é exatamente a que separa as duas atitudes extremas que podemos adotar para considerar a realidade: é ,então, claro que não podemos adotá-las simultaneamente. Ou tomamos as imagens no estado de isolamento no qual cada uma é uma realidade indiscutível, pondo-se por sua mera presença: a realidade que consideramos é então psíquica, mas nossa atitude é a negação mesma da atitude científica; ou, adotando a atitude científica, tentamos explicar cada imagem relacionando-a, segundo leis, a outras imagens: constituiremos assim uma ciência da natureza, a Física (as imagens tornando-se simples qualidades das coisas e a realidade sendo transferida das imagens aos objetos). Enfim, se o dado, na medida em que é dado, é inteiramente psíquico, toda ciência do dado é necessariamente Física. É por isso que a tentativa de constituir, em simetria com a ciência dos fenômenos físicos, uma ciência dos fenômenos psíquicos, buscando as leis que os ligam uns aos outros, tem algo de contraditório. A única ciência possível da natureza é aquela que, partindo dos dados, isto é, das imagens, se propõe a elaboração de um sistema de leis que os liguem uns aos outros, de maneira a torná-los inteligíveis, permitindo ver na presença de cada imagem um efeito necessário da presença das outras. Segue-se daí que a Psicologia pode tomar dois caminhos, dos quais um não leva a nenhum conhecimento verdadeiro, e foi de fato abandonado pelos psicólogos, enquanto que o outro permitiria um saber psicológico autêntico. Pode-se, primeiramente, continuar a dar como objeto da Psicologia a consideração dos “fatos mentais”. A Psicologia se distinguirá, então, das ciências da natureza, não por seu objeto, que será sempre o dado sensível, mas, pela atitude intelectual adotada, que será a inversão da atitude científica. Ao invés de buscar ligar os elementos do dado para entender cada um em função dos outros, renunciará a interpretar as sensações para tentar experimentá-las da maneira a mais ingênua, isto é, dando as costas à ciência, e tendendo para o caos das impressões puras. Desta atitude de distensão o artista poderá tirar proveito, mas não há grande coisa a extrair para o conhecimento. É, então, uma outra direção a que será tomada pelas pesquisas psicológicas, se elas querem chegar à cientificidade, no sentido amplo em que esta palavra designa todo verdadeiro conhecimento. Renunciar-se-á, então, a considerar fatos mentais. Ou o estudo incidirá sobre fatos que se tentará ligar por leis, e então a Psicologia, em lugar de opor-se à Física, será somente um de seus capítulos; ela não se ocupará de um mundo mental distinto do mundo material, ela se ocupará desses fenômenos ou imagens aos quais se reduzem, como todos os fenômenos físicos, os movimentos de um organismo, para tentar ligá-los ao resto das imagens e fazê-los entrar, assim, no sistema do universo objetivo; ela prolongará a Biologia, do mesmo modo que a Biologia não se tornou uma ciência senão prolongando a

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Físico-química. Ou bem é ao psíquico, por oposição ao físico, que ela se aplicará; nesse caso, deixará de considerar as imagens e é para o estudo das operações intelectuais que ela se voltará, renunciando, do mesmo golpe, à cientificidade, no sentido estrito em que esta palavra designa o estudo dos fatos e a busca de leis naturais, e se definindo como um aperfeiçoamento da Psicologia vulgar (aquela que todo mundo pratica, sem o saber, em suas relações com seus semelhantes) e não como um prolongamento da ciência da natureza. Quer dizer que o caminho que podem tomar pesquisas psicológicas bifurca-se desde o início para levar seja a uma Psicologia do comportamento, seja a uma Psicologia da interpretação: a primeira incidirá sobre certos fatos físicos, a segunda, sobre a atividade do pensamento, e as explicações que elas tentarão diferirão exatamente como um fenômeno difere de uma explicação de texto.

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CAPÍTULO II A Imagem

A tese que faz da sensação e do objeto físico duas realidades heterogêneas incluídas no mesmo universo parece, inicialmente, a expressão a mais fiel da experiência corrente. Quando nasce uma sensação, parece difícil negar que estejamos diante de dois termos bem distintos: um objeto material extenso, perceptível por todos, e um fato mental conhecido apenas por quem o experimenta e estranho ao espaço. A distinção se confirma se se considera a relatividade das sensações, ou seja, a diversidade das representações suscitadas por um objeto idêntico que nos obriga a opor a realidade subjetiva dos primeiros à realidade objetiva do segundo. Bem mais, a relação entre estas duas espécies de realidade não parece menos manifesta, à primeira vista, do que sua dualidade. Como basta, quando as condições fisiológicas requeridas são preenchidas, fazer aparecer, variar ou desaparecer o estado mental, tudo se passa como se o objeto fosse, por intermédio dos fenômenos fisiológicos, a causa do estado mental. Esta relação parece mesmo suficientemente precisa para que se tenha querido ver, na relação entre a sensação e o excitante, um caso privilegiado que permite ligar o mundo mental ao mundo físico por uma lei funcional, e de dar assim um primeiro passo para integrar ao domínio da ciência positiva, pelo estabelecimento de um determinismo psicofísico, o velho problema das relações da alma e do corpo. Mas, as dificuldades surgem desde que se tenta precisar a natureza desse determinismo. Pode-se concebê-lo de duas maneiras. Ou os fatos mentais figurarão como elementos constituintes na trama do determinismo universal, tal como os fatos físicos, aos quais, por conseguinte, eles reagiriam. Ou, determinados por certos fenômenos físicos, eles não exercerão sobre eles nenhuma influência recorrente, de sorte que será permitido negligenciá-los totalmente no estabelecimento do determinismo físico o mais rigoroso. A primeira hipótese concorda mal com o princípio da conservação de energia; isso foi tão notado que se invocou, para permanecer em regra com ele, um “equivalente mecânico da mente”, suposição não só gratuita, mas sem sentido numa teoria dualista, uma vez que ela assimilaria a mente a uma força de natureza física. Ademais, os progressos da fisiologia, cerrando, constantemente, as malhas do determinismo físico-químico, afastam, cada vez mais, a idéia de uma intervenção da mente nos fenômenos biológicos. Seria preciso, então, escolher a outra hipótese, que, no entanto, após ter conhecido um momento de voga, caiu hoje num tal descrédito que se pode, sem dúvida, se dispensar de lembrar todas as dificuldades que justificam seu abandono. Acabar-se-á por reter, da hipótese epifenomenista, apenas o que ela tinha de bem fundado, isto é, a afirmação de que o determinismo físico forma um sistema fechado, e deve poder se constituir sem que jamais se tenha que nele introduzir elementos

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mentais. O estudo da sensação tornar-se-á, então, o estudo dos reflexos desencadeados, diretamente ou por via associativa, pela excitação. A própria palavra sensação será evitada, ou, se a empregam, fazem-no unicamente no sentido “objetivo” que vem de ser indicado. Que resta, doravante, da hipótese dualista de que tínhamos partido? Não grande coisa, seguramente. Certamente, sempre se poderá admitir que há, atrás do mecanismo que se descreve, certos estados subjetivos análogos aos que qualquer um experimenta quando abre seus sentidos: tratar o estado mental como negligenciável não equivale a negar-lhe a existência. Somente, não se vai mais saber que fazer dele. Pois, se se recusa a admitir a idéia de fenômenos absolutamente fortuitos, e se, por outro lado, se evita deslizar de novo para hipótese epifenomenista, não restará outro recurso senão o de justapor ao determinismo físico, que se basta a si próprio, um determinismo mental autônomo, e considerar os eventos que se sucedem numa mente como outro sistema fechado, sem laço com o mundo físico. Em vez de recorrer a esse monadismo, será mais simples negar, pura e simplesmente, com os behavioristas mais intransigentes, a existência da mente, e chegar, assim, a um monismo radical em favor do objeto. Mas, essa posição extrema é, por sua vez, insustentável. Pois, se é permitido ao behaviorista tratar todos os seres vivos, aí compreendidos seus semelhantes, como puros autômatos, pelo menos ele, que pensa assim, e justamente porque é pensante, não pode considerar-se a si próprio da mesma maneira. Uma negação radical do pensamento é, ao pé da letra, absolutamente impensável. Assim, quem jamais teria sequer imaginado tomar esta posição desesperada se não estivesse como que acuado pelas dificuldades do dualismo? Ora, o próprio embaraço de tal situação deveria sugerir a porta de saída. Que seja tão impossível acrescentar a mente ao mundo físico, quanto subtraí-la dele, não seria o índice de que a verdadeira questão é muito menos a da escolha entre esta afirmação ou esta negação do que a do sentido a dar à proposição sobre a qual se discute? O que é sujeito à contestação não é bem a tese do monismo do objeto ou a do dualismo do objeto e da sensação, mas a tese realista subjacente às duas outras. Gostaríamos de mostrar como o problema da percepção se esclarece quando se abandona todo realismo e se substitui, ao dualismo de realidades (a física e a mental) justapostas no mesmo plano de existência, o duplo dualismo dos níveis de realidade (imagem e objeto) e das ordens da realidade e do pensamento. Trataremos agora, então, de precisar que relação une a sensação e o objeto. Mas, antes de mostrar que esta relação não é, de maneira nenhuma, assimilável à que une fenômenos e cuja determinação é o alvo das ciências da natureza, convém responder a uma questão prévia. Poderiam, com efeito, recusar audiência a nossa análise, acusando-a de ser antecipadamente desmentida pela existência de uma lei natural, perfeitamente verificável, segundo a qual a sensação varia em função do excitante. A objeção seria pertinente se fosse verificado que o termo ao qual a

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relação dita “psico-física” une o excitante é bem a sensação, realidade psíquica radicalmente heterogênea à realidade física. Poucos psicólogos admitiriam ainda, nos dias de hoje, tal interpretação. Que esta relação tenha um valor científico, não obriga a tomar ao pé da letra, e a aceitar também, como o enunciado de um resultado cientificamente adquirido, o próprio nome que continuou a designá-la. Ela comporta duas interpretações um pouco diferentes, segundo se adote a atitude do sujeito ou a do experimentador. Mas, nem num caso, nem no outro, teremos a comparar fatos psíquicos e fatos físicos como duas realidades igualmente dadas em nossa experiência. Se adotamos a atitude do experimentador, é claro que, fazendo o experimento sobre outrem, jamais atingiremos, para pô-las em relação com outra coisa, suas sensações. Constataremos, apenas, como um fato de comportamento objetivamente verificável, que, se pedimos a uma pessoa comum que julgue os valores relativos de vários excitantes, a série que ela terá ordenado em progressão aritmética, dará, de acordo com as medidas da Física, uma progressão geométrica. Se queremos analisar mais de perto o fenômeno, empregaremos a técnica da Fisiologia, e, medindo as respostas reflexas à excitação, por exemplo, a grandeza da contração da pupila a claridades crescentes, observaremos que ela varia, para as intensidades médias, como o logaritmo do excitante. O que teremos posto, então, em relação, é o excitante e a reação: teremos feito Fisiologia e não “psico-física” (Psicologia). Consideremos, agora, a interpretação da experiência pelo sujeito, e admitamos, para simplificar a exposição, que ele esteja só durante a experiência. Ele tomará intensidades luminosas crescentes. Ele as medirá, primeiramente, apenas com os olhos, de maneira que cada grandeza da série difira das duas vizinhas apenas o bastante para que a diferença seja perceptível. Depois, ele as medirá com o fotômetro, e se dará conta de que, aos valores primitivos 1, 2, 3, 4... corresponde uma nova série, na qual cada valor é obtido pela multiplicação do precedente por um mesmo coeficiente. Mediu ele, no primeiro caso, estados de consciência, e, no segundo, fenômenos físicos heterogêneos aos primeiros? De modo nenhum: é visível que ele mediu sempre as mesmas coisas, intensidades luminosas. Ele apenas empregou dois métodos de medida. De modo que a experiência “psico-física” significa comparar os resultados obtidos medindo grandezas físicas por dois métodos diferentes, dos quais um é o dos crescimentos apenas perceptíveis, o outro sendo tomado de empréstimo à prática corrente dos físicos. Sem dúvida, o primeiro método tem o duplo inconveniente de ser menos preciso e de acarretar, se o adotamos, uma maior complicação das leis em que a intensidade luminosa figura como variável. O físico tem, então, excelentes razões para não empregá-las, e se poderá dizer, por conseguinte, que os resultados aos quais ela conduz não são medidas “físicas”. Mas, isto significa apenas que o físico as negligencia, não que elas seriam medidas extra-físicas, incidindo sobre fenômenos de que não se ocupa o físico. Assim, nem o sujeito, nem o

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experimentador põem uma grandeza física em relação com uma realidade mental essencialmente diferente, estabelecendo como que uma ponte entre dois mundos. O valor da lei dita psico-física não nos obriga, então, de modo nenhum, a afirmar, como um fato de experiência, o dualismo ôntico. Afastado este obstáculo, examinemos, com base num exemplo simplificado, como deve ser interpretada a relação entre a sensação e o objeto. Eis-me aqui imóvel num quarto escuro. De súbito, a luz se acende, e percebo um objeto, uma cadeira se destacando contra uma parede. Há aí um evento que ocorre para mim, e que, ocorrendo apenas para mim, pode ser chamado subjetivo ou psíquico: é que sou afetado de certa imagem visual. Mas, é, para mim, o único evento que ocorre, então. De meu ponto de vista, não me são dados dois fatos, um físico que seria a presença da cadeira iluminada e um psíquico que seria como que o reflexo do primeiro em minha mente. O único fato é a aparição da imagem visual, e se eu permanecesse perfeitamente imóvel, se meu espírito permanecesse absolutamente passivo, a isto se limitaria, para mim, a experiência. Mas, meu espírito não permanece inativo; e se eu estou, por ora, imóvel, não foi sempre assim. Sei que a imagem que me aparece não é um fenômeno inexplicável, sem qualquer relação com o resto da experiência. Sei que esta imagem é ligada a outras; que levantando os olhos numa certa direção, eu seria afetado por uma sensação de luz intensa; que orientando em outra direção meu rosto, eu teria tido em vez da imagem de uma cadeira, a de um homem tocando um interruptor de luz; que se eu me desloco, minha imagem visual se transformará gradualmente em tais outras; que se faço tais movimentos, ela será acompanhada necessariamente de outras imagens igualmente previsíveis. Todos esses juízos, e muitos outros do mesmo gênero, se resumem neste: há diante de mim uma cadeira. A cadeira, cuja existência objetiva assim afirmo, é seguramente distinta da simples imagem visual primeiramente considerada; é mesmo, num sentido, independente dela, uma vez que, mesmo se eu jamais tivesse experimentado essa imagem, mas tivesse experimentado algumas outras, poderia afirmar a existência da cadeira, e da mesma cadeira. Mas, se ela é independente de uma imagem, não o é de toda imagem; e se é outra coisa que não uma coleção de imagens, pelo menos não se põe diante de minha consciência como uma realidade que me seria estranha, uma vez que consiste em imagens ligadas por leis, e que leis não são coisas exteriores ao pensamento, mas relações inteligíveis. O objeto é construído por meu pensamento com a ajuda de minhas sensações, e constituído por essas sensações mesmas, relacionadas umas às outras segundo as leis da natureza. Se minhas sensações não se sucedem segundo as leis que eu tinha afirmado declarando é uma cadeira, o objeto que eu construíra inicialmente será destruído, e meu pensamento se esforçará por construir um outro que me permita dar conta das novas imagens. Suponhamos que me deslocando eu assista a inesperadas

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transformações da imagem visual: buscando ver a cadeira de lado, em lugar de ver aparecer o que esperava, é a face que se estreita regularmente, sem que a perspectiva se modifique. O objeto muda então para mim, e minha imagem primitiva, ainda que permanecendo a mesma, será relacionada a outro objeto, uma pintura sobre uma parede ou ainda, se as imagens táteis diferem das que me faziam prever as imagens visuais, se minha mão atravessa a cadeira sem experimentar resistência, acreditarei num fenômeno de ótica e falarei de uma “imagem virtual”. Enfim, se estas últimas hipóteses são, por sua vez, desmentidas por imagens novas, direi que nada compreendo, e que não sei o que vejo: o que significa, não que eu ignore de que imagem visual sou agora afetado, mas que ignoro a que outras imagens ela se liga, que sou incapaz de prever que imagens farão surgir para mim meus movimentos. Nada nos obriga, então, a falar de um objeto exterior material que subsistiria por si e que se refrataria em minha consciência sob o aspecto de uma sensação: o objeto não é dado, fora das sensações, como sua causa, mas é, ao contrário, com as sensações, que só elas são dadas, que o pensamento busca compor o objeto. Esta conclusão será, entretanto, contestada. É verdadeiro, convir-se-á, que só posso apreender em mim imagens, e que constituo o objeto exterior com as imagens que experimento. Mas, a explicação que precede supõe que sou só no mundo e que o mundo não é senão minha representação. Entretanto, não duvido, de modo algum, que imagens semelhantes afetem outras consciências que não a minha, e que elas sejam função dos objetos exteriores, qualquer que seja o modo que se conceba estes últimos. Suponhamos que, na experiência que se vem de imaginar, eu tenha sido, não o paciente, mas o operador, que eu mesmo tenha acendido a luz. Poder-se-á repetir, a meu respeito, o que se disse do paciente: como ele, apercebi a cadeira, que, admitamo-lo, se reduz para mim a certas imagens de que sou afetado, e a relações fixas que concebo entre elas e outras. Mas há outra coisa na experiência, é a aparição de uma imagem na consciência do paciente. Essa imagem é, sem dúvida, um estado de consciência, mas não de minha própria consciência; e, por outro lado, esta imagem é algo bem diverso da própria cadeira ou de uma parte da cadeira. Eis, então, um fato que nem é um objeto material, nem um estado de minha própria consciência. Não é evidente que é a cadeira iluminada, objeto material, que causa a sensação do paciente? E, nessas condições, não devo eu, a menos que pretenda loucamente fazer de mim o centro do mundo, supor que as coisas se passem exatamente para mim como para ele e que minha sensação é determinada pela presença do objeto exterior4?

4 Tal seria, para dar um exemplo, a opinião de Claparède (Point de vue du psychologue et point de vue du sujet, Archives de psychologie, t. XXIII, no 89, abril 1931). Claparède aceita a identificação da sensação à qualidade sensível quando ela é feita do ponto de vista do sujeito. Mas contesta que ela permaneça válida do ponto de vista do psicólogo, isto é, do cientista que observa o sujeito de fora para estudá-lo. “É só para o sujeito que a sensação coincide com o

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Tal interpretação impõe-se tão pouco do ponto de vista do operador quanto do ponto de vista do paciente. O operador afirma que a cadeira iluminada determina uma sensação visual no paciente. Como deve-se entender esta afirmação? Seguramente, o operador não conhece por uma experiência direta o estado psíquico do paciente. Sua experiência é limitada a algumas imagens: a visão da cadeira iluminada, a do paciente tendo a cabeça voltada para o lado da cadeira, certos movimentos do paciente, por exemplo, movimentos labiais acompanhados do som de certas palavras, tais como, “vejo uma cadeira”. Estas imagens são ligadas umas às outras pelo operador, e ele afirmará que a cadeira iluminada é causa das modificações que ele constata no paciente. Enfim, para o operador, o paciente é um objeto, tal como a cadeira e o aparelho de iluminação: é composto, ele também, por um sistema de imagens ligadas entre si, e em relação com outros sistemas de imagens. A interpretação da experiência é, então, de mesma natureza, seja que nos coloquemos do ponto de vista do paciente, seja que nos coloquemos do ponto de vista do operador. A objeto sentido, pois, para o psicólogo, há sempre duas coisas: o objeto, o excitante, de um lado, e de outro, a reação do sujeito a este excitante (a sensação, a percepção)”. Mas toda a questão seria justamente a de saber se o observador tem o direito de assimilar a reação do sujeito a uma sensação. Claparède escreve que o psíquico, considerado do ponto de vista do psicólogo, “só pode ser algo de inextenso, de não espacial e de interior ao sujeito, designando por “interior” o fato de que os fenômenos desta ordem só são conhecidos do próprio sujeito. Esses caracteres (inextenso, interior, etc), não dependem de qualquer teoria, eles são puramente empíricos. Eles apenas exprimem, apenas descrevem, a situação de fato diante da qual se encontra o psicólogo”. Como pode-se dizer que, afirmando esses caracteres, o psicólogo exprima simplesmente um fato, quando se admite que o fenômeno psíquico, por natureza, lhe escapa, sendo conhecido apenas do próprio sujeito? O fato em presença do qual me encontro aqui, eu psicólogo, é que esses fenômenos psíquicos “se furtam a meus sentidos, que eu não posso esperar, mesmo com os aparelhos de radioscopia mais aperfeiçoados, apercebê-los um dia dentro do crânio do meu sujeito”. Como posso afirmar, então, o que quer que seja? Seria o mesmo que afirmar como um fato de experiência a presença nesta gaveta de um fenômeno inextenso, inacessível aos sentidos, e conhecido apenas da mesa, e alegar como prova a impossibilidade absoluta de percebê-lo. A conclusão normal de experiências negativas desse gênero é que não há nada. A menos que se pense ter razões de crer na existência da sensação no sujeito, e é, evidentemente, o que quer dizer Claparède. Essas razões são as próprias declarações do sujeito, que fazem parte de sua reação ao excitante, e que trariam ao psicólogo uma informação sobre a existência duma realidade que ele próprio não perceberia. Evidentemente, o cientista tem o direito de aceitar as informações que lhe dão testemunhas competentes e de boa fé, mas é preciso que ele interprete corretamente o sentido de suas declarações, mesmo verídicas. Ora, a realidade da qual o sujeito que diz “vejo uma árvore” assinala a existência, é a árvore, objeto físico, e não uma imagem, duplicata psíquica do objeto. Claparède concorda com isto. “Do ponto de vista do sujeito, declara ele, é sempre o objeto que é medido ou avaliado, e não a imagem ou a percepção mentais correspondentes a este objeto. Para o sujeito, a avaliação incide sempre sobre objetos. Para o sujeito, não há sensações, só há excitantes”. Nessas condições, pergunta-se que razões subsistem para afirmar a existência desses “fatos psíquicos” que não são acessíveis a ninguém, escapando tanto ao conhecimento do sujeito quanto à experiência do psicólogo.

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experiência é apenas mais complexa no segundo caso, porque os objetos considerados são mais numerosos, e porque um deles, sendo extraordinariamente complicado, nos é muito difícil, ou antes, totalmente impossível, ligar por leis estritas as imagens que nós lhe relacionamos às que relacionamos aos objetos vizinhos. Mas, num caso como no outro, só algumas imagens são dadas, com as quais o pensamento se esforça por constituir objetos que ajam, uns sobre os outros, segundo leis. Somente, o operador, conservando sua atitude de observação, põe-se, pelo pensamento, na perspectiva do paciente. Ele sabe que, se estivesse em seu lugar, no momento em que se faz a luz, ele seria afetado de certa imagem visual bem determinada, e diferente da que ele experimenta agora. Ele sabe que este objeto que ele tem diante de si e que profere palavras, não é um objeto como uma cadeira, mas também um sujeito como ele próprio. Assim, afirma ele que a cadeira iluminada produz nele não somente certos efeitos físicos, imagens extensas e perceptíveis a todos, de mesma natureza que as que compõem a cadeira, mas também certo efeito interno ou psíquico, conhecido apenas do paciente. Ora, é aqui que se introduz o erro. Uma vez que se admitiu, explicitamente ou não, a tradicional distinção entre objetos extensos e visíveis a todos e as sensações inextensas conhecidas apenas pelo sujeito, esta interpretação da experiência se imporá sem dúvida. Mas, é esta distinção que é inaceitável. A imagem da cadeira não é inextensa, uma vez que ela tem uma forma, recobre outras, cresce ou diminui conforme o sujeito se aproxime ou se afaste; o que não tem forma nem grandeza, não é a sensação, mas os juízos que a acompanham, por exemplo, aquele pelo qual se afirma que tal sensação é experimentada. Por outro lado, esta imagem não é conhecida apenas pelo sujeito, uma vez que o operador afirma sua existência. Sem dúvida, a imagem dada não á a mesma para o paciente e para o operador, pois eles olham o objeto de dois lugares diferentes. Mas o operador sabe que uma imagem visual se deforma quando nos deslocamos, e sabe que essa deformação é regida por leis estritas, mesmo se não tem conhecimento preciso delas. De sorte que ele é capaz de conhecer mais ou menos a imagem do paciente, e que uma ciência suficiente das leis da perspectiva, permitir-lhe-ia calculá-la com exatidão. O que ele chama, por oposição ao objeto, o estado psíquico do paciente, não é, então, de modo nenhum, esta realidade subjetiva e inextensa, propriedade privada e inalienável, que gosta de descrever o realismo psicológico. É, simplesmente, o aspecto que apresenta o objeto a partir do lugar ocupado pelo paciente, aspecto evidentemente aberto no espaço e perceptível a quem quer que tome o lugar apropriado. Nada em tudo isso nos obriga a situar a sensação num outro mundo que não o mundo do objeto. Não encontramos, de modo algum, de um lado, um objeto público e, do outro, uma pluralidade de imagens privadas deste objeto. A única realidade dada são as imagens. Mas, como estas imagens variam segundo

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leis que a ciência pode formular, elas não dependem do capricho individual. Assim, não são pessoais nem incomunicáveis. Pelo contrário, cada uma delas pode, de direito senão de fato, ser calculada com precisão. E é nesta dependência rigorosa em que elas estão umas das outras que consiste a objetividade do mundo. O objeto não é a causa das sensações, ele é construído pelo pensamento com a ajuda das sensações. Certamente, os “objetos” aos quais chega a Física contemporânea não se assemelham aos que nos dá a percepção; pode parecer que toda imagem sensível desapareceu completamente. Mas é evidente que estas construções intelectuais, sob pena de permanecerem inteiramente vãs, devem alcançar, finalmente, a experiência sensível, e que estas redes superpostas de relações inteligíveis só têm valor de verdade porque se estabelecem a partir de dados concretos. Assim, distinguir a sensação ou o estado psíquico da coisa exterior ou objeto físico significa distinguir entre o fato bruto, a imagem dada isoladamente, e o fato objetivo, aquele que a ciência busca construir. Querer estabelecer entre estes dois fatos uma relação de causalidade seria um empreendimento ilusório, uma vez que a palavra fato não tem, nos dois casos, a mesma significação. É claro que não é o segundo termo que é causa do primeiro, uma vez que, pelo contrário, o supõe. Dizer, com o realismo materialista, que o objeto é causa de minha sensação é o mesmo que afirmar que a ciência é causa da experiência. Aliás, seria igualmente irrazoável reverter entre esses dois termos a relação de causalidade. O mundo não é composto de outros elementos que não de imagens, mas é preciso, para que as imagens componham o mundo, que elas sejam relacionadas umas às outras pelo pensamento. Pode-se então dizer, mas em dois sentidos um pouco diferentes, seja que o mundo só é composto de imagens, seja que ele é algo mais que um conjunto de imagens. Do mesmo modo, pode-se dizer de uma casa, seja que ela só é composta de pedras, seja que ela é algo mais que um conjunto de pedras: este algo mais é o plano do arquiteto, que não é um objeto acrescentado às pedras, mas um plano que presidiu a distribuição da pedras. A imagem é comparável à pedra, o objeto físico, à casa. A diferença entre o objeto físico e a sensação não é a de duas realidades heterogêneas que entram como ingredientes na composição de um mesmo universo, é a das sensações ligadas pelo pensamento e da sensação considerada isoladamente. As sensações não são produtos e como que dejetos do mundo, elas são os materiais com os quais o pensamento constrói o mundo. Não se pode então nem distinguir onticamente sensação e objeto, nem reduzir pura e simplesmente o objeto à sensação, nem a sensação ao objeto. A distinção só pode ser a de dois planos de realidade, o que implica a distinção correlativa de duas ordens: a ordem da realidade e a ordem do pensamento.

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CAPÍTULO III O Pensamento

1. O Pensamento Reflexivo

As operações intelectuais podem ser tratadas como eventos ligados entre si e aos outros eventos do universo por leis naturais? A sorte da Psicologia, concebida como uma “Física” do espírito, depende da resposta a esta questão. Aceitar a negativa, não é apenas dar à Psicologia limites estreitos, excluindo de seu domínio uma parte importantíssima do psiquismo; se é verdadeiro, como logo esperamos mostrar, que a vontade e o sentimento não podem ser entendidos sem referência à atividade intelectual, todo o objeto da Psicologia escapará à “Física” do espírito se apenas lhe escapam as operações da inteligência. É por isso que uma das teses principais do realismo psicológico é a assimilação do juízo, operação intelectual fundamental, a um fenômeno natural. Um juízo não é, com efeito, suscetível de ser explicado, como qualquer fenômeno, por fenômenos antecedentes ou concomitantes? Ele não é algo de arbitrário, surgindo de um golpe, subitamente, sem que haja para isso uma razão. Ele é acarretado por percepções, por juízos anteriores, por desejos, paixões, de modo que, estes sendo o que são, o juízo atual não pode não ser, e não ser exatamente como é. Deve, então, haver leis naturais segundo as quais todo juízo é necessariamente ligado a seus antecedentes psíquicos, e, por conseguinte, a ciência que busca estabelecê-las, é perfeitamente legítima. Tal é a tese da Psicologia clássica. Ora, é verdade que um juízo é explicável, que ele nada tem de arbitrário. Mas, passar daí à afirmação de que ele é inevitavelmente decorrente de certos antecedentes psíquicos, segundo uma necessidade natural, é ser vítima de uma confusão de linguagem, porque é identificar duas formas radicalmente diferentes de necessidade. É preciso lembrar aqui a distinção entre a necessidade natural e a necessidade lógica, uma vez que o psicólogo faz como se a ignorasse, ou pelo menos como se a estimasse sem fundamento. Dizemos que uma demonstração acarreta necessariamente certa conclusão; e dizemos, do mesmo modo, que o movimento de uma bola de bilhar acarreta necessariamente o movimento de uma outra com a qual ela se choca. Mas a conclusão não é, de maneira nenhuma, acarretada do mesmo modo que o movimento da bola que recebeu o choque; e a necessidade da qual falamos no primeiro caso não pode ser reduzida à de que falamos no segundo. No caso de um juízo, necessariamente quer dizer normalmente; no caso de um fenômeno físico, quer dizer inevitavelmente. Dizer que certa conclusão é acarretada necessariamente por outros juízos, significa que esse juízo é uma sequência legítima dos primeiros, e não que ele lhes sucederá de fato, no sentido de uma consecução temporal de eventos. Não se trata, então, aí, de uma necessidade natural, como aquela em virtude da qual o movimento da bola que recebeu o choque é

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acarretado inelutavelmente pelo choque. Enquanto que um evento é dito necessário quando ele não pode não ocorrer se tais outros eventos ocorrem, um juízo é dito necessário quando ele não pode não ser verdadeiro se tais outros juízos são verdadeiros. Enfim, a relação que liga entre si vários juízos é uma relação de princípio a consequência, não é de modo nenhum uma relação de causa a efeito. Que um juízo não seja arbitrário, não significa, então, que ele seja determinado segundo uma necessidade natural, mas, ao contrário, que ele é acarretado pela necessidade lógica. E a possibilidade, para o pensamento, de seguir a necessidade lógica, é justamente o que constitui a liberdade do espírito. Os partidários, declarados ou dissimulados, do determinismo psicológico, imaginam sempre que seus adversários defendem não sei que liberdade de indiferença, segundo a qual o espírito poderia arbitrariamente, num momento dado, julgar isso ou bem o contrário disso. Mas a liberdade do juízo não consiste na indiferença e no capricho. Consiste no poder de não ceder senão à ligação lógica, e de resistir vitoriosamente a não importa que força natural, tanto ao que se chama as forças morais, como o constrangimento da opinião pública ou o interesse que apresenta para nós tal verdade, quanto às forças propriamente físicas; ela se manifesta nisto que não há procedimento mecânico capaz de levar o espírito a julgar uma coisa antes que outra, e nisto que o meio mais seguro para modificar uma opinião é o uso do raciocínio. As operações do pensamento são livres, pois nenhuma necessidade natural as comanda, mas nada tem de arbitrário, a necessidade lógica as guia. Nenhum juízo pode, então, ser integrado ao determinismo dos eventos, uma vez que todo juízo, mesmo se logicamente necessário, escapa à necessidade natural. Mas, isto não é tudo. Não encaramos ainda senão o caso mais simples, aquele em que um juízo é extraído, como consequência, de certos princípios já postos. Quando as duas premissas de um silogismo são dadas previamente, quando a demonstração de um teorema está feita, a liberdade de julgar reduz-se, então, ao mínimo. Certamente, é preciso já um esforço de pensamento para apreender a relação entre as duas premissas ou para compreender a demonstração. Mas, se a relação é apreendida, se a demonstração é compreendida, não há lugar, doravante, senão para uma única conclusão. Se tal conclusão é totalmente independente da necessidade natural, pelo menos é necessária logicamente, duma necessidade que exclui qualquer escolha. Mas, em muitos casos, a coisa é bem diferente. Certos juízos sendo postos, o espírito pode afirmar, a partir deles, vários outros novos juízos, diferentes uns dos outros, todos, entretanto, legítimos. É o que acontece sempre que o espírito procede por análise. Quando, partindo de certos juízos, se trata, não mais de achar que juízos eles condicionam, mas, ao contrário, de buscar que juízo ou sistema de juízos pode ser considerado como a condição, há lugar, logicamente, para um número indefinido de soluções. Se se põe que nenhum inquieto é feliz e que todo avarento é inquieto, não se pode legitimamente extrair outra conclusão

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que não a afirmação: nenhum avarento é feliz. Mas, se se põe primeiro que nenhum avarento é feliz e se pede a justificativa deste juízo, não basta mais, para resolver o problema, deixar-se guiar pela necessidade lógica, esperando que ela leve a uma solução determinada, pois há uma multidão de justificações válidas, seu número não tendo outros limites que não os da engenhosidade do pesquisador. Manifesta-se, aqui, o poder de invenção do espírito: ele é livre, não somente nisto que ele não sofre constrangimento físico, mas também nisto que, no interior dos limites que lhe traça a lógica, ele é capaz de criações imprevisíveis. Estas criações não serão equivalentes para a razão, uma vez que umas darão ao problema uma solução mais simples ou mais direta que as outras; mas serão equivalentes do ponto de vista da pura lógica, uma vez que um raciocínio longo e complicado, desde que seja rigoroso, possui o mesmo valor demonstrativo que uma raciocínio curto e simples. Ora, uma atividade desse gênero está longe de ser excepcional. Todos os problemas técnicos, todos os que põe cada homem no exercício de seu ofício, comportam estas operações analíticas, já que consistem em buscar os meios capazes de levar a certos fins, isto é, em remontar do resultado almejado às condições suscetíveis de levar a ele: como obter uma clientela numerosa, como construir tal casa, como curar este doente, como conseguir uma abundante colheita. Nenhum desses problemas comporta uma solução única, de maneira que se possa, conhecendo exatamente as circunstâncias, prevê-la com certeza. Peça a vinte engenheiros o projeto de uma máquina para um uso determinado e tudo o de que você poderá estar seguro é de que vinte projetos diferentes lhe serão apresentados. E se você consegue prever com bastante exatidão, não, certamente, o detalhe do projetos, mas, pelo menos, suas grandes linhas comuns, não foi seguindo no espírito de seus engenheiros não sei que mecanismo psicológico pelo qual se fabricaria neles a invenção da máquina, é que você mesmo, engenheiro ocasional, buscou resolver por seus próprios meios o problema que você lhes tinha posto. Mas esta contingência dos juízos não é limitada à solução dos problemas técnicos; ela se estende por toda parte onde o espírito procede por análise; ela se encontra então no enunciado das leis naturais, planando, assim, sobre o conjunto das ciências da natureza. Os que pretendem descobrir as leis do funcionamento do espírito imaginam que há leis da natureza, perfeitamente definidas e em número bem determinado, e que para descobri-las, basta ao cientista saber lê-las uma a uma na experiência graças a engenhosos métodos. Ora, as leis não são de modo algum estabelecidas previamente, de modo que reste apenas descobri-las; é preciso fazê-las, inventá-las, e nesta invenção da ciência se manifesta o poder criador do espírito. O cientista, em presença dos fatos que ele deve explicar, acha-se numa situação comparável à do homem a quem se pede que formule premissas capazes de justificar um juízo. Todo vigor de uma inteligência preocupada com evitar a menor falta de ordem lógica é aqui impotente para achar uma resposta que se imponha, pois há uma infinidade de respostas

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possíveis. Em particular, quando o sistema das leis físicas está já parcialmente constituído, a liberdade criadora do espírito se acha reduzida na mesma proporção, uma vez que é preciso velar para que o novo princípio não esteja em desacordo com os já estabelecidos. Ocorre ainda que esta restrição pode sempre ser levantada, desde que se tome cuidado de modificar os antigos princípios para pô-los de acordo com o que se quer introduzir. Arriscar-se-ia muito, seguramente, de chegar assim a uma Física extremamente complicada, mas ela permaneceria tão verdadeira quanto a outra, permitindo a previsão dos fenômenos e as aplicações técnicas tão seguramente quanto ela, senão tão facilmente. É mesmo pela invenção de paradoxos desse gênero que por vezes a face da ciência é mudada, e que, em lugar de uma complicação nova, uma simplificação admirável se acha introduzida no sistema das leis naturais: simplificação imprevisível, jamais se teria produzido se tal gênio não a tivesse inventado, ou que seria feita de um modo muito diferente e que não se pode imaginar a menos que se seja o gênio criador e que se invente efetivamente. Todo nossa sistema físico é então radicalmente contingente. Uma infinidade de outros teriam sido possíveis, muitos dos quais, sem dúvida, seriam menos satisfatórios que o nosso, mas, dos quais não é permitido afirmar que nenhum satisfaria mais. A ciência não está inscrita na natureza como um livro, e o cientista não é como o escolar de quem se exige que saiba lê-lo. A construção da ciência é um jorrar de imprevisíveis criações. Essas criações são livres, não somente nisto que nenhuma necessidade natural as determina, mas nisto que a necessidade lógica, ela própria, não permite, partindo de um estado dado da ciência, deduzir seu desenvolvimento futuro. Enfim, enquanto que na síntese dedutiva a liberdade do espírito se manifesta apenas pela obediência à necessidade lógica, em toda operação analítica, esta liberdade comporta, mesmo quanto à lógica, a mais larga indeterminação. Mas, isto não é tudo. Mesmo na dedução se encontra a espontaneidade criadora do espírito. Poder-se-ia desde logo notar que um bom número dos princípios dos quais dependem as deduções resultam de análises prévias, são fruto de um trabalho de criação original do pensamento. Donde resulta que a necessidade lógica jamais constrange absolutamente o espírito, mesmo quando ele segue a ordem sintética. Com efeito, ela não obriga a aceitar uma conclusão senão com a condição de que ele aceite os princípios: ora, há certos princípios que é sempre permitido contestar, porque é sempre teoricamente possível achar outros que preencham também rigorosamente, ainda que talvez com menos simplicidade, o mesmo papel. Mas, sem insistir mais sobre esta nota, e não considerando senão o próprio trabalho da dedução, sem se preocupar com a maneira pela qual são achados os princípios, nem com as razões que se têm para admiti-los, pode-se mostrar que esse trabalho não exclui toda contingência. Certamente, uma vez postos e compreendidos os princípios, não resta mais nenhum esforço de invenção a fazer para tirar a conclusão. Não é aí então que

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se deve buscar a atividade do pensamento que deduz. Justamente porque a conclusão é comandada pelos princípios, o espírito nada mais tem a fazer senão que se deixar levar, de algum modo, pela necessidade lógica. Ainda será preciso que os princípios tenham sido postos, e postos juntos. Se se deixa de lado o caso em que o espírito se limita a seguir um raciocínio dedutivo já feito, o trabalho da dedução consiste precisamente em aproximar os princípios suscetíveis de levar a uma conclusão. Ora, essa aproximação é ainda uma livre criação do espírito, contingente tanto em relação à necessidade lógica quanto em relação à necessidade natural. Quem não poderia citar verdades que conheceu isoladamente durante muito tempo antes que sonhasse em relacioná-las e extrair daí uma conclusão inesperada. A história da ciência, e principalmente a da matemática, forneceria, à vontade, exemplos análogos; se tal matemático não tivesse existido, tal teorema jamais teria sido enunciado, e entretanto ele resulta necessariamente de teoremas já conhecidos, mas era preciso que alguém se desse conta disso. A direção segundo a qual progredirá a cadeia das consequências a partir de um sistema complexo de princípios é contingente, e tanto mais quanto mais complexo é o sistema. A impossibilidade de prever como se desenvolverá uma sequência de raciocínios é então encontrada mesmo no caso em que esses raciocínios são dedutivos. Sendo dado um sistema complexo de princípios, pode-se, quando muito, obter uma previsão grosseira do desenrolar das consequências; e o meio de obtê-lo não é pedir a uma física mental que nos dê as leis segundo as quais calcularemos esse desenrolar; é de desenrolarmos nós mesmos as consequências, raciocinando como o faria, segundo a natureza dos princípios postos, um matemático, um físico, um engenheiro, um advogado. É, então, vão buscar as leis naturais que regeriam o curso do pensamento. O curso do pensamento é livre, e duas vezes livre. Primeiro, nisto que ele é liberado da necessidade natural, e não sofre outro constrangimento que o da necessidade lógica, de sorte que ele não obedece a leis mas a regras. Em seguida, nisto que essas regras deixam lugar à contingência, à possibilidade de sequências diferentes de juízos. É por isso que o conhecimento o mais detalhado das circunstâncias nas quais eclodiu uma obra de arte, uma invenção técnica, uma idéia moral ou um conceito científico, se é útil para compreender sua gênese, jamais poderá dar delas senão uma explicação insuficiente, e mesmo duplamente insuficiente. Primeiro, porque os fatos invocados como causa não exercem sobre o espírito verdadeira causalidade, o espírito sendo subtraído à causalidade natural. Em seguida porque, no próprio interior do espírito, a submissão à necessidade lógica deixa ainda campo livre a uma multidão indefinida de possíveis. Sem dúvida, as operações do espírito não comportam o arbitrário: os pensamentos novos dependem sempre dos antigos, de maneira que se pode sempre, mas só depois, a eles vinculá-los. Mas, dependem como uma solução depende um problema, não como o estado de um sistema mecânico

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depende do anterior. Ora, frequentemente, um problema complexo comporta várias soluções, ou pelo menos, várias maneiras de chegar a uma mesma solução, igualmente válidas do ponto de vista lógico. Nesse caso, encontrar o enunciado do problema permitirá explicar uma das soluções; mas o mesmo enunciado explicaria igualmente bem, quer dizer, igualmente mal, uma das outras soluções. Eis porque a previsão do porvir é, nas obras do espírito, impossível. Não se pode prever senão depois de realizadas, e, de algum modo, a contrapelo, remontando do que é a prever, ou mais exatamente, a explicar, a certas idéias ou circunstâncias antecedentes, de maneira que, entre sua infinidade, a escolha das idéias ou das circunstâncias interessantes seja precisamente ditada pelo conhecimento do que se quer explicar. Ou então, se a previsão pretende se exercer verdadeiramente sobre o porvir, ela só tem chances de sucesso se quem quer prever realiza ele próprio o trabalho intelectual cujo resultado quer antecipar: o que é justamente transformar o porvir em presente, e substituir a previsão pela realização. Mas seria vão buscar prever o curso futuro de um pensamento, e, por exemplo, as obras que farão um matemático ou um filósofo, pela constituição de uma física do espírito. A atividade intelectual resta irredutível ao determinismo da natureza. Esforçando-se por reduzir a dependência lógica à dependência natural, as operações do espírito aos fenômenos do universo, o realismo não empreende apenas uma tentativa quimérica, empreende uma tentativa absurda. Querendo fazer penetrar a necessidade das coisas no espírito, reverte-se a ordem verdadeira. Bem longe de estender-se até o pensamento, a necessidade natural supõe como condições a liberdade criadora do espírito e a necessidade lógica. A atitude do realismo psicológico, consistindo em considerar as operações intelectuais como fatos determinados por outros fatos segundo uma necessidade natural, implica a idéia de que essa necessidade existe por si na natureza, impondo aos fenômenos, como uma legislação inviolável, o rigor de uma ordem preestabelecida. Ora, a natureza não é submetida a uma necessidade desse gênero. Não há nenhuma necessidade nas próprias coisas. A experiência não ofereceria, a um espírito que se supusesse contemplá-la passivamente, mais que um turbilhão de imagens incoerentes sem qualquer laço entre si. Cada imagem dada é dada: impõem-se por si mesma, mas nada impõe além de si mesma. “Qualquer uma pode seguir qualquer outra”. Enfim, a categoria que se aplica à coisa é a da realidade, não a da necessidade. Mas o espírito, em presença do caos das imagens, tenta ordená-lo segundo suas exigências próprias, tenta transformar esta poeira de experiências em uma experiência organizada: é isto a obra da ciência, esboçada no trabalho da percepção. Em que consiste esta obra? O espírito nada pode compreender se não o deduz, segundo a necessidade lógica, de princípios admitidos como verdadeiros. Será preciso então, para explicar a presença de uma imagem, considerar a imagem dada, ou, mais exatamente, a afirmação de que esta imagem é dada, como uma

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consequência da qual trata-se de achar as premissas. Estas premissas se repartirão em dois grupos, segundo esse esquema de raciocínio que é o silogismo. As primeiras, desempenhando o papel da maior, afirmarão as leis universais segundo as quais certas imagens são ligadas a outras. As segundas, desempenhando o papel da menor, enunciarão o estado das imagens antecedentes ou concomitantes. Compreender um fato é então compreender um juízo que põe a realidade do fato; e esse juízo só é compreendido, se se vê que ele resulta, a título de consequência, de certos outros juízos. A necessidade natural, segundo a qual um fato nos parece inevitavelmente acarretado por outros, resulta assim duma aplicação ao dado da necessidade lógica. A afirmação do determinismo dos fenômenos reduz-se à afirmação de que toda asserção verdadeira incidindo sobre um fato decorre, a título de consequência, em virtude da necessidade lógica, de asserções verdadeiras incidindo sobre outros fatos, e da enunciação de leis; ou, mais brevemente, ela se reduz à afirmação da dedutibilidade perfeita do real 5. É verdadeiro que as leis que tornam possível esta dedução consistem, por sua vez, na enunciação de relações necessárias entre as imagens; de sorte que pode parecer que, ao lado da relação lógica de princípio a consequência que liga os juízos, haja lugar para outras relações necessárias que liguem as imagens umas às outras, e que assim se encontra na própria natureza uma necessidade distinta da necessidade lógica. Somente, essas relações não são incluídas na experiência. Entre os fatos tais como eles se apresentam não há relações, pois uma relação não pode ser dada, mas apenas concebida. A observação dos fatos não dá nada mais que o conhecimento dos fatos observados e não permite afirmar a menor relação entre os fatos. O cientista não tem que descobrir na experiência leis naturais que aí estariam já inscritas e que seria necessário apenas distinguir e desembaraçar. Sua obra consiste em fabricar um sistema de proposições universais tais que permitam deduzir, do conhecimento de certos fatos o conhecimento de alguns outros, e por isso mesmo, compreender estes últimos. Ora, há sempre vários sistemas, e mesmo, teoricamente, uma

5 Será necessário sublinhar que se trata aqui de uma dedutibilidade de direito, e não de fato? A afirmação do determinismo, no sentido em que a entendemos, é da ordem da razão “constituinte”, e esta exigência do pensamento deve ser distinguida da concepção positiva que permite se fazer do determinismo o estado da ciência do momento dado de seu desenvolvimento. É por isso que nós não tínhamos que levar em conta o “indeterminismo” da nova física. Nós não temos, com efeito, que nos ocupar das dificuldades com as quais os espírito se choca em seu esforço para entender o universo. O essencial é que ele não se deixa intimidar por elas, e que ele põe em princípio que jamais qualquer uma delas deve ser declarada inultrapassável. Se o estado atual da microfísica obriga modificar alguma coisa em nossa idéia habitual do determinismo da natureza, poderemos falar nesse sentido numa crise do determinismo, que será ao mesmo tempo uma crise do pensamento “constituído”. Mas é claro que nada pode nos obrigar a renunciar a uma exigência tão geral e tão formal quanto a da inteligibilidade do real.

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infinidade, respondendo a esta condição. O estabelecimento das relações pelas quais as imagens se prestam a ser reunidas umas às outras é, então, o resultado de livres criações do espírito. Estas relações são tão pouco inscritas na natureza, que a afirmação de uma delas não é, por si só, nem verdadeira nem falsa: tudo depende do sistema de definições, de princípios e de outras leis no qual elas sejam incluídas. Sem dúvida, o espírito não é livre para afirmar indiferentemente qualquer relação. Destinada a um uso determinado, a criação das leis da natureza é, por isso mesmo, sujeita a certas condições. Estas leis devem ser tais que permitam tirar do conhecimento de certos fatos o conhecimento de outros, e que formem também entre si um sistema tão coerente e tão simples quanto possível. Mas, é este um problema de tão grande complexidade que ele comporta muitas soluções, cada uma das quais não pode ser encontrada a não ser se é verdadeiramente inventada pela atividade criadora do pensamento. As relações entre as imagens, enunciadas pelas leis da natureza, não se acham então de modo nenhum na natureza, mas são estabelecidas penosamente pelo espírito, que só pode compreender alguma coisa ligando-a, a título de consequência, a princípios admitidos, e que se esforça, a fim de tornar o dado inteligível, por conceber proposições universais que lhe possam servir de princípios para deduzi-los. A afirmação da necessidade natural em virtude da qual os fenômenos se determinam uns aos outros, decompõem-se, então, na afirmação de duas espécies de relações, nenhuma das quais existe na natureza, todas as duas supondo um espírito livre da necessidade natural. De uma parte, é afirmar que a relação lógica de princípio a consequência é universalmente aplicável, que nada é em princípio ininteligível, que a totalidade do dado se presta a entrar num vasto sistema dedutivo; é, em outros termos, afirmar o valor ilimitado e incondicional da necessidade lógica. Assim, bem longe de acarretar, como queria o realismo psicológico, a exclusão ou pelo menos a redução da necessidade lógica, a afirmação da necessidade natural consiste em estender a necessidade lógica ao conjunto do universo. Não há razão, então, para invocar o determinismo da natureza como prova de que o curso do pensamento é regido por leis naturais; pois, afirmar o determinismo, é precisamente afirmar que o pensamento não pode aplicar-se à natureza a não ser submetendo-a à necessidade lógica. Mas, a afirmação da dedutibilidade perfeita do real implica, por sua vez, a afirmação de que é possível formular proposições universais suscetíveis de servir de princípios a esta dedução, isto é, leis que enunciem relações entre os diferentes aspectos do dado. Ora, esta segunda espécie de relações, tal como a primeira, não pode ser constatada na experiência. Constata-se que uma imagem é dada, depois outra; mas, o laço que acarretaria a segunda após a primeira escapa a toda observação. Desde há muito mostrou-se quão ilusória é a imaginação vulgar da causalidade, segundo a qual os eventos se produziriam uns aos outros à maneira da geração dos seres vivos, e, entretanto,

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quando pretende introduzir no espírito o determinismo da natureza, o realismo continua a raciocinar como se os fenômenos possuíssem, independentemente de toda afirmação do espírito, uma virtude criadora pela qual eles engendrariam os seguintes. Em realidade, se é permitido conservar, em razão de sua comodidade, o uso da palavra causa, deve-se reduzi-la a significar o conjunto das condições de que fazemos depender a aparição de um fenômeno: a lei sendo escolhida precisamente de maneira a tornar possível o estabelecimento desta dependência. As relações que enunciam as leis da natureza, relações cuja possibilidade é implicitamente afirmada na exigência do pensamento de que a natureza seja inteligível, são obra do pensamento aplicando-se a constituir esta inteligibilidade. Em outros termos, quando se pergunta se há, entre os elementos da realidade, relações necessárias, a resposta não pode parecer duvidosa senão devido ao equívoco ao qual se presta a noção de realidade. Se se fala da experiência bruta, do real tal qual é dado ao pensamento, é claro que ele não pode conter relações necessárias, nem mesmo, mais geralmente, nenhuma espécie de relação, uma vez que uma relação é inseparável de um espírito que a afirme. Se é questão, ao contrário, da experiência objetiva, do real tal qual é construído pelo pensamento, então, sem dúvida, é verdadeiro que ele comporta, entre seus elementos, relações necessárias, uma vez que é precisamente o estabelecimento dessas relações que transforma a experiência bruta numa experiência objetiva; mas, essas leis naturais, longe de sujeitar o pensamento, trazem ao contrário, o mais fulgurante testemunho de seu poder, uma vez que são obra sua. Pouco importa então que se possa conceber, como o implica o projeto de uma “Física” da inteligência, que uma necessidade natural, constituída independentemente do pensamento, penetre até mesmo no espírito para reger suas operações, ou que, pelo contrário, a necessidade natural suponha, ela própria, como condições, a relação lógica de princípio a consequência e a liberdade espiritual criadora das leis físicas. A possibilidade de uma ciência do real, da qual a Psicologia clássica tirava argumento para provar a possibilidade de uma ciência natural do espírito, implica, pelo contrário, a impossibilidade de uma tal ciência, uma vez que uma ciência, qualquer que ela seja, é obra de um espírito livre da necessidade natural e criador desta mesma necessidade. Assim, não devemos nos espantar se a extensão das concepções realistas às operações intelectuais, reduzindo-as a fenômenos naturais, acarreta uma absurdidade manifesta. Tentemos, com efeito, tratar os atos intelectuais como simples fatos, análogos aos fatos físicos, e obedecendo, como eles, a leis naturais. É já bem surpreendente que a necessidade cega que determina a sequência desses eventos tenha justamente levado, por um acaso que se diria prodigioso, a produzir alguns que sejam precisamente tais que contenham a explicação de todos, a sua própria explicação inclusive. Que concurso admirável de circunstâncias não foi necessário para que, em um momento dado

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da história do universo, ocorresse essa série de eventos que é a concepção do realismo psicológico, com a afirmação que ela comporta do determinismo mental? E que probabilidade havia para que entre a infinidade de juízos possíveis, o simples jogo das leis naturais indiferentes à verdade, tenha feito surgir juízos sistematicamente ordenados, e, entre a infinidade do sistemas possíveis de juízo, precisamente o único verdadeiro sistema? Se fosse verdadeiro que os atos intelectuais não são eventos entre outros, seria extremamente pequena a probalidade para que tenha podido produzir-se um dia este evento que seria a própria afirmação de que os atos intelectuais são eventos. Mas não insistamos neste argumento. Sempre se poderia responder que uma probalidade mínima não equivale a uma probalidade nula. É preferível ir direto à dificuldade essencial. Um evento não é verdadeiro nem falso. Tudo o que se pode dizer dele é que é real ou não. Se, então, nossos juízos são apenas eventos, não há mais verdade nem erro. Juízos incompatíveis são igualmente reais, uns e outros existindo tal como existem rosas brancas e rosas vermelhas, sem que se possa atribuir um valor superior a uns ou aos outros. Uma vez que são reputados depender de juízos anteriores e concomitantes, segundo a estrutura psico-fisiológica de cada indivíduo, e mesmo segundo a da humanidade em geral, todos os juízos, cujo conjunto constitui nossa ciência, nada têm que os ponha acima dos que teria formulado uma espécie de seres pensantes cuja constituição nervosa e mental fosse inteiramente diferente da nossa. A menos que se creia que uma Providência expressamente organizou o universo para permitir a aparição final de um animal pensante dotado de uma organização exatamente apropriada à descoberta da verdade, e não de uma outra, dever-se-á, na hipótese realista, negar todo valor de verdade a esta sequência acidental de eventos que é a formulação das regras de nossa Lógica, ou ao encadeamento dos teoremas de nossa Geometria. Enfim, admitindo que os atos intelectuais sejam fatos, chega-se naturalmente a esta conclusão: não há verdadeiro nem falso; e esta conclusão não pode ser afirmada sem absurdidade, uma vez que afirmá-la seria tê-la por verdadeira. Poderia ser dito ainda, para melhor fazer aparecer esta absurdidade: se a tese do determinismo psicológico é verdadeira, ela não é verdadeira, uma vez que resulta da própria tese que não há verdadeiro nem falso. Aqui, um psicólogo não deixaria de invocar a distinção tradicional entre o ponto de vista lógico e o ponto de vista psicológico. Deixando ao lógico o cuidado de estudar em que condições as operações intelectuais são válidas, ele se limitaria, por sua parte, a considerar essas relações como fatos que se trata de explicar ligando-os por leis a outros fatos, sem se cuidar de estabelecer entre eles uma diferença de valor, mas sem negar que haja uma, nem contestar à Lógica a legitimidade das regras que ela formula. Assim como o químico não pretende que não haja diferença de nocividade entre o açúcar e o vitríolo, sob pretexto que eles são igualmente naturais, o psicólogo não pensaria, apesar de

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encarar os juízos como fenômenos dados, em abolir a distinção entre os juízos verdadeiros e os juízos falsos. Enfim, haveria duas maneiras, igualmente legítimas, de tratar de operações da inteligência; o modo explicativo e o modo normativo, longe de se excluírem, se completariam. Consideremos uma obra espiritual como a Crítica da Razão Pura. O lógico pode tomá-la como objeto de estudo. Ele pesquisará como os pensamentos aí se encadeiam uns aos outros, se aplicará a descobrir os paralogismos, a distinguir o que está provado e o que é apenas avançado, a remontar aos princípios implícita ou explicitamente admitidos. Este exame comportará, a cada instante, juízos sobre o valor de tal ou qual parte da obra. Mas, é possível adotar também, em relação à obra, uma outra atitude, a do psicólogo. Considerando-a, agora, como um dado, todas as partes do qual, porque igualmente dadas, apresentando um interesse igual, o psicólogo se proporá a explicá-la, investigará como os pensamentos que a compõem, verdadeiros ou falsos, claros ou confusos, provados ou não, se formaram; recolherá, com este alvo, tudo o que puder saber da vida mental de Kant; sua educação, sua experiência da vida, suas leituras, suas obras anteriores, suas notas, sua correspondência, fornecer-lhe-ão documentos que permitem explicar como as idéias de Kant se elaboraram progressivamente em seu espírito. Uma explicação desse gênero esclarecerá consideravelmente o sentido da Crítica, e constitui mesmo o mais seguro meio de chegar a uma interpretação exata da obra. Uma mesma obra comporta, então, ao lado de um estudo lógico, um estudo psicológico, sem que um prejudique em nada o outro. Esta distinção dos pontos de vista lógico e psicológico é clássica. Mas terá algum fundamento? Não pomos em questão a atitude do lógico. Deve-se, entretanto, fazer, a esse respeito, uma nota indispensável: é que adotar, em relação ao texto da Crítica, o que se chama a atitude do lógico, é exatamente adotar a atitude daquele que se esforça por compreender o texto. Um conjunto de pensamentos não é um objeto que se possa apreender primeiramente, para tentar em seguida explicá-lo e compreendê-lo. Apreender pensamentos é, justamente, compreendê-los, é refazer, por sua própria conta, a mesma série de atos intelectuais que aquele que os formou pela primeira vez. A menos que se faça da Lógica uma concepção caduca, deve-se reconhecer que a explicação lógica de um texto não vem acrescentar-se à inteligência do texto, mas consiste exatamente nessa inteligência, comportando apenas uma formulação refletida das relações lógicas que é preciso espontaneamente apreender para compreender o texto. Nessas condições, a explicação dita psicológica do texto reduz-se, finalmente, a uma explicação lógica, uma vez que tem também por objeto a compreensão dos pensamentos. A única diferença é que, em lugar de tomar em consideração apenas os pensamentos expressos na Crítica, tentará ligá-los a outros pensamentos de Kant, mas, bem entendido, segundo os laços que podem unir pensamentos, isto é, laços lógicos, e, de modo nenhum,

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segundo os laços que unem fenômenos, isto é, leis naturais. A explicação “genética” de um pensamento nada tem de comum com a explicação que se pode dar, por exemplo, da formação de um organismo animal. Não se aprecia de fora o desenvolvimento de um pensamento como se pode apreciar o de um embrião: é preciso refazer em si próprio, e por si próprio, este desenvolvimento, porque um pensamento só pode ser apreendido de dentro, ou, mais precisamente, não pode ser apreendido, mas apenas pensado. A explicação dita psicológica não difere em natureza da explicação lógica, difere apenas nisso de que ela incide sobre um conjunto mais vasto. Quer dizer que não há outra explicação possível, que não se pode dar conta da existência da Crítica ligando-a, segundo leis naturais, a outros eventos do universo? Sem dúvida, uma vez que a obra existe é preciso que ela esteja ligada ao resto da existência. Somente, uma explicação desse gênero incidirá, evidentemente, apenas sobre o que, na Crítica, pode propriamente ser dito existir, isto é, sobre o manuscrito, e ela será, evidentemente, tal como a explicação de qualquer coisa que exista, uma explicação física. Na medida em que existente, a Crítica nada mais é do que um objeto material entre aqueles que compõem o universo, definido por seu peso, formato, cor, desenho das letras, enfim, por um conjunto de imagens. Para explicar a formação deste objeto seria necessário ligá-lo, com a ajuda das leis da natureza, ao conjunto dos eventos do universo. Somente, tal explicação ultrapassa de muito nossa ciência. Somos inteiramente incapazes de saber, por exemplo, que impressão os caracteres do Ensaio sobre o entendimento humano de Hume puderam fazer no cérebro de Kant, que modificações deste cérebro determinaram os movimentos da mão que redigiu a Crítica. Intervém, então, o psicólogo, que, para explicar a influência do Ensaio sobre a composição da Crítica, substitui os objetos materiais que são essas obras por sua significação, mas que, continuando a tratar essas significações como objetos, objetos psíquicos e não mais objetos físicos, imagina que se possa ligar, por leis naturais, a existência do segundo objeto à existência do primeiro. Ele justapõe à causalidade física, uma causalidade psicológica em virtude da qual o pensamento de Hume, encarado como um dado, teria contribuído para produzir o de Kant, encarado como outro dado. É claro, entretanto, que se deixa, assim, de considerar o Ensaio e a Crítica como objetos de pensamento. Ora, o Ensaio e a Crítica não são objetos de nosso pensamento, eles são nosso próprio pensamento. E quando perguntamos como um pôde contribuir para produzir o outro, o que é buscado são as relações lógicas que ligam estes dois conjuntos de idéias. Refazemos, então, o trabalho de pensamento de Hume, depois o de Kant refazendo o de Hume. Longe de seguir, no espírito de Kant, não sei que determinismo psicológico em virtude do qual se fabricaria seu pensamento, nós nos esforçamos por pensar tal como Kant pensou. A explicação tentada pelo psicólogo não passa, então, de uma confusão das duas espécies possíveis de explicação, tratando como fatos, não mais os

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signos verbais, mas, seu sentido, e tentando servir-se do método do físico, destinado à explicação de eventos, para explicar pensamentos. É permitido explicar a verdade de um pensamento ou a realidade das imagens que o exprimem, mas pretender explicar, assim como o quer o psicólogo, a realidade de um pensamento, é o que nos parece não oferecer qualquer sentido. Podemos chamar reais as imagens brutas, reais também os objetos constituídos pelas imagens, mas, em hipótese alguma, o pensamento pode ser tomado por uma realidade. Em resumo, é verdadeiro que uma obra espiritual pode sempre ser considerada de dois pontos de vista diferentes, mas esta dualidade não coincide com a que se estabelece habitualmente entre o ponto de vista da Psicologia e o das ciências normativas. Que se trate de uma escultura, de um ato amoroso, ou de uma descoberta matemática, o trabalho do espírito se manifesta por fenômenos físicos, que podem ser ligados ao resto do universo; é, então, legítimo afirmar que esta obra pode ser encarada do ponto de vista da existência: somente, a realidade que se estuda, então, é física e não mental. Se, agora, negligenciando as manifestações físicas do trabalho intelectual, é este trabalho, ele próprio, que nos propomos apreender, o único meio de chegar a isso é refazer por nossa conta o trabalho em questão. Nesse caso, tampouco é sobre uma realidade mental que incidirá nosso pensamento: seu objeto não será o pensamento de outrem, mas o mesmo objeto que o do pensamento de outrem; não pensaremos o pensamento de outro homem, mas o mesmo problema que outro homem pensou. Considerando uma obra do espírito como uma manifestação de atividade do pensamento cessamos de considerá-la como uma realidade: ela tornou-se a atividade de nosso próprio pensamento e não o objeto dessa atividade. O desdobramento que comporta uma obra do espírito é então a separação entre o pensamento e suas manifestações físicas. Mas, o pensamento não comporta o desdobramento, que nele gostaria de operar o realismo psicológico, entre a existência e a verdade; pensamento e verdade são uma única coisa. Mas eis que, de novo, contra-ataca o psicólogo. Você afirma, diz ele, que todo pensamento é verdadeiro, esquecendo o erro, e esquecendo que os juízos falsos levam a melhor em número sobre os juízos verdadeiros. Você supõe que o espírito humano é pura inteligência, raciocinando sempre segundo as regras da Lógica. Se assim fosse, você teria razão de pretender que a Psicologia se confunde com a Lógica. Ora, como explicar o erro? Quando o espírito se engana, você não pode sustentar que é a necessidade lógica e as conveniências racionais que o guiam, e, se não há, então, razões que tornem legítima sua afirmação, é preciso que haja causas que a tornem explicável. Com efeito, só excepcionalmente os juízos dos homens são justificados de maneira racional, a maior parte deles é acarretada por sentimentos, desejo, paixões. Longe então de absorvê-la, a Lógica não passa de um capítulo da Psicologia, e mesmo de um capítulo da Psicologia da inteligência, a saber, a Psicologia da inteligência pura.

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Enquanto o lógico se pergunta como são determinados os juízos verdadeiros, o psicólogo estuda a maneira pela qual são determinados juízos quaisquer, verdadeiros ou falsos. Será possível justificar dessa maneira a distinção entre Psicologia e Lógica? O interior do espírito representado como comportando a oposição de duas potências hostis comandando as opiniões, uma boa, a outra má, a primeira produzindo a verdade, a segunda o erro? Ora, para que duas potências entrem em concorrência, é necessário pelo menos que tenham, sob sua diversidade, alguma coisa em comum. Compreende-se que dois exércitos se defrontem, compreende-se que uma controvérsia se instaure entre duas teorias científicas; mas como conceber a rivalidade de um exército e de uma teoria? Pois dizem-nos que os juízos são produzidos ora por razões, ora por causas; ora pela necessidade lógica, ora pela necessidade natural. Dualidade incompreensível, porque não há duas espécies de necessidade colocadas lado a lado no mesmo plano, porque nenhuma comum medida pode ser estabelecida entre uma razão e uma causa. Razão pela qual se é levado, a fim de dar à tese a aparência de inteligibilidade, a reduzir razões a causas, a não ver nas regras lógicas senão uma espécie particular de leis naturais, aquelas segundo as quais funcionaria uma inteligência pura. A necessidade lógica nada mais seria, assim, do que um caso particular da necessidade natural6, e a dualidade da Lógica e da Psicologia se reduziria a uma simples diferença de extensão: a Lógica diferiria da Psicologia como a Mecânica, por exemplo, difere da Física. Estranha maneira, é preciso confessá-lo, de distinguir a Lógica da Psicologia: se se quisesse confundi-las, não se procederia de outra maneira. Mas, não é isto o essencial. O essencial é que esta concepção reduz a necessidade lógica à necessidade natural, a verdade à realidade, redução cuja absurdidade esperamos ter mostrado. Em duas palavras, se alguns juízos forem determinados por causas naturais, todos o serão, uma vez que não se pode fazer concorrer com a necessidade natural uma necessidade lógica que dela fosse radicalmente distinta; e se todos os juízos são determinados pela necessidade natural, não há mais verdade. Será preciso, então, negar a influência dos sentimentos sobre as opiniões? Seria negar a evidência. Mas esta influência não se exerce segundo a 6 Goblot, Traité de Logique, Paris, Colin, 1918, § 7, p.22 e 23: “Se eliminamos todas as causas não intelectuais do juízo, as que restam não diferem mais do que se chama uma razão. Isolando a inteligência, obrigando-a a trabalhar sozinha, determinamos o domínio da Lógica, talhado, assim, no da Psicologia. Podemos distinguir das outras causas do juízo as razões, isto é, de suas causas extra-intelectuais suas causas puramente intelectuais. Como elementos puramente intelectuais, isto é, juízos, determinam outros juízos? Este segundo problema é propriamente lógico, e ele é psicológico: quais seriam as formas e os processos de uma atividade intelectual subtraída às influências do sentimento e ao arbítrio da vontade? As leis lógicas não são senão as leis naturais de uma inteligência pura. É porque uma inteligência pura é uma abstração que suas leis parecem outra coisa que não leis naturais, e que a Lógica parece opor-se à Psicologia como uma ciência do ideal a uma ciência do real.”

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causalidade natural; ela reduz-se à influência lógica segundo a qual os juízos condicionam-se uns os outros. O sentimento não é uma realidade psíquica existente por si própria, independente de todo pensamento, e dotada de uma força própria capaz de resistir à força lógica. Se ele goza de um poder sobre o pensamento, este poder é precisamente aquele de que goza o juízo. A raiz de todo sentimento é um juízo de valor admitido como incontestável. Que é o amor, senão a afirmação de que certa mulher é a mais perfeita das mulheres? Que é a cupidez, senão a afirmação de que a riqueza é o maior dos bens? O orgulho, senão o juízo favorável a respeito do próprio mérito? Ora, como é, logicamente, inadmissível que haja contradição entre nossos juízos, se alguém tem por indubitável um juízo como esses, para satisfazer à necessidade lógica, deverá pôr seus outros juízos de acordo com ele. A sequência de seus pensamentos será impecável e, se se concede o princípio, não é possível subtrair-se às consequências. Dizer que o juízo deste homem sobre os atributos que definem a beleza é causado por sua paixão, não significa então que seu juízo seja o efeito de um outro fenômeno psíquico ao qual o liga uma necessidade natural; isto significa dizer que ele é uma consequência lógica de outros juízos. Naturalmente, se o juízo que serve de base é falso, tudo que se seguir será duvidoso: não se dirá, entretanto, que ele raciocinou mal, ou que ele simplesmente não raciocinou. Os erros do apaixonado não provam que suas opiniões sejam desconexas, pelo contrário, são sistemáticas, somente, o sistema depende de um erro inicial, eis tudo. Mas, enfim, insistirão, por que admitiria ele esta primeira idéia falsa, senão precisamente porque está apaixonado? Não será o sentimento a causa deste juízo? “Não sei por que, diz o velhinho, os arquitetos fazem agora as escadas mais íngremes”. Eis um juízo harmonizado com outros juízos do ancião: a consciência de uma dificuldade crescente em subir os degraus, e a crença de que suas forças não declinaram. Mas, este último juízo não seria um efeito já do amor próprio? O sentimento não seria, aqui, a causa do juízo? Não, responderemos, o amor-próprio não é, de modo nenhum, a causa deste juízo, mas consiste justamente na produção de juízos deste gênero. Assim, invocar o amor-próprio para explicar tal juízo é dar uma explicação verbal e vazia, pois poder-se-ia igualmente dizer que é, ao contrário, porque se recusa a ver sua decrepitude que ele tem amor-próprio. As duas explicações se equivalem, reduzindo-se, ambas, a simples tautologias. Do mesmo modo, se um homem pensa que a finalidade da vida é a acumulação de riquezas, em nada se explicará esta opinião dando-lhe como causa a paixão da avareza, pois ser avarento e julgar que a finalidade da vida é a acumulação de riquezas é uma única e mesma coisa. Numa palavra, se é verdadeiro que toda paixão tem por raiz um juízo de valor, não é lícito ver na paixão a causa deste juízo, nem, mais geralmente, ver na paixão uma força psíquica comparável a forças naturais e estranhas ao poder do pensamento.

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Caímos sempre na mesma conclusão. O pensamento não pode ser tratado ao mesmo tempo como verdadeiro e como real, como obediente à necessidade lógica e à necessidade natural, como prestando-se a ser estudado pelo lógico e pelo psicólogo. Das duas uma: ou bem o determinismo psicológico, e, então, a supressão de todo valor, e, por conseguinte, a impossibilidade, entre outras da Lógica; ou bem a legitimidade da Lógica e, então, a liberdade do espírito, e, por conseguinte, a impossibilidade de uma “Física” da inteligência. Ou a Lógica é legítima, ou é legítima a Psicologia, mas entre as duas é preciso escolher. Mas, escolher a Psicologia é absurdo, uma vez que essa escolha, implicando a supressão da verdade, exclui logo a verdade da própria Psicologia. A Psicologia da inteligência, concebida como uma ciência natural do espírito, não pode pretender constituir-se sem que esta pretensão envolva sua condenação. Em definitivo, o erro da Psicologia clássica, desta ciência positiva dos fatos mentais, é o de passar do pensamento à existência, deslizando de pensamos a logo, existem pensamentos. Não vê que só se pode falar de uma existência objetiva se o objeto é ligado por leis ao resto do universo; que essas leis são relações afirmadas pelo pensamento, e que essas relações, condições da existência, não são, de maneira nenhuma, suscetíveis de existência, mas apenas de verdade; e que, assim, toda existência objetiva supõe como condição a verdade e o pensamento.

2. O Automatismo Mental

Mas, talvez, dificuldades sejam evitadas, e grandes, quando, para mostrar que o funcionamento do pensamento não se reduz a um mecanismo natural, escolhe-se, para sobre ele fazer incidir a discussão, o pensamento reflexivo, isto é, a forma de pensamento a mais afastada do automatismo. Muitos psicólogos renunciaram a tentativa de reduzir toda atividade intelectual a um puro mecanismo mental. Certamente, esta renúncia vem limitar grandemente o domínio da Psicologia: o estudo dos fatos mentais e das leis naturais que os regem deixa agora escapar as operações intelectuais propriamente ditas. Pelo menos resta ainda lugar (ao lado ou abaixo da atividade pela qual o espírito se esforça por organizar seus juízos num sistema inteligível) para o jogo anárquico das representações abandonadas a si mesmas. Quando a atenção se relaxa, as idéias não cessam, por isso, de se suceder na mente; e, uma vez que esse curso de pensamentos não obedece mais às conveniências lógicas, é preciso que ele seja regido por um mecanismo mental, cujas leis restaria descobrir. Haveria, assim, como que dois graus de pensamento, um pensamento disciplinado e um pensamento anárquico, o segundo dos quais, pelo menos, reduzir-se-ia a um automatismo, objeto de estudo para uma Psicologia positiva. Mas, como conceber esta dualidade no funcionamento do pensamento? A hipótese que se apresentaria em primeiro lugar seria de fazer simplesmente com que se

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alternassem no espírito esses dois modos de pensamento. Nos momentos de distensão, como por exemplo no devaneio, as idéias se sucederiam segundo as leis estritas do automatismo, e nos momentos de atenção essas sequências incoerentes de idéias seriam substituídas por uma sucessão inteligível. Ora, como admitir que as mesmas idéias possam ser submetidas alternadamente a duas legislações absolutamente heterogêneas, e que, de fenômenos naturais, levados à existência por uma necessidade cega, elas venham subitamente a mudar-se em verdades cujo encadeamento seria regido pelas exigências lógicas? Um determinismo natural cujo curso pudesse a todo instante ser suspenso por um simples decreto da vontade cessaria, por isso mesmo, de ser um determinismo: a idéia de uma necessidade facultativa é uma absurdidade. Se certos objetos são uma vez submetidos ao determinismo da natureza, sempre o serão. De resto, sem ter necessidade de invocar este argumento teórico, é fácil constatar não só que há intermediários entre o mais relaxado devaneio e o pensamento o mais refletido, mas que, mesmo nos momentos de forte tensão intelectual as idéias não surgem imediatamente na ordem a mais satisfatória para o espírito, e que, inversamente, as imaginações as mais descabeladas jamais são tão descosidas que não ser possa nelas achar alguma lógica. É, então, impossível admitir a alternância no espírito de dois modos absolutamente diferentes de sucessão de idéias. Se se quer manter a distinção entre pensamento reflexivo e pensamento anárquico, é de outro modo que será preciso concebê-la. Há, com efeito, uma outra maneira de dar lugar, no funcionamento do pensamento, ao automatismo e à reflexão: a aparição das idéias na mente, tanto na investigação mais atenta quanto nos mais desatados dos sonhos, é sempre determinada pelo jogo de certas leis naturais, o papel da atenção consistindo apenas em reter, no caos das idéias automáticas, as que apresentam alguma relação lógica com a questão que se examina, deixando escapar todas as demais7. O argumento essencial invocado em favor desta tese é que atividade judicativa só pode exercer-se se dispõe, previamente, de algo sobre o que se exercer: as ligações lógicas entre idéias, longe de serem causas de sua aparição, supõem que as idéias se ofereçam previamente ao espírito. O pensamento reflexivo seria, então, diverso do automatismo, mas deveria ao automatismo todos os materiais sobre os quais trabalha, sem que ele próprio nada possa mudar na ordem de sua apresentação: esta ordem, independente da reflexão, seria inteiramente submetida à legislação da natureza. Tal hipótese é tão pouco satisfatória quanto a precedente. A separação entre a atividade judicativa e os materiais sobre os quais ela se exerce seria legítima se coincidisse com a distinção pensamento/imagem. Ora, é claro que aqui, uma vez que é a existência de um pensamento automático que se quer provar, ela é entendida de um outro modo. Os materiais sobre os quais se exerce

7 W. James, Précis de psychologie (1892), chap. XVI (trad. Fr., Paris, Rivière).

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a reflexão não são somente imagens, mas, sobretudo, juízos. Quando minha atenção se concentra para resolver um problema prático ou teórico não é de imagens que tenho necessidade, tampouco de conceitos isolados; o que me vem ao espírito são conhecimentos, suscetíveis de verdade ou de erro. E, sem dúvida, eu não caio imediatamente sobre aqueles de meus conhecimentos que seriam os mais apropriados à resolução do problema; sem dúvida, eles surgem com certa desordem, de sorte que eu deveria em seguida fazer escolhas entre os que se tiverem apresentado e organizar de uma maneira nova os escolhidos. Mas, enfim, é já sobre pensamentos que se exerce minha reflexão, e não sobre dados puros e simples; e esses pensamentos, submetidos à norma do verdadeiro e do falso, não é possível tratá-los como objetos da natureza situados no plano da existência. Se, então, a ordem da aparição das idéias difere da ordem que a reflexão estabelecerá depois entre elas, pelo menos esta diferença não pode ser radical. As idéias, sendo afirmações e não realidades, não se evocam segundo uma necessidade natural que faria existir esta após aquela; sua evocação só pode ser regida pela necessidade lógica, que faz com que a afirmação de uma implique a afirmação de outra. Assim, só uma diferença de grau deverá ser achada entre o pensamento espontâneo e o pensamento reflexivo; e a única maneira de explicar uma sucessão incoerente de idéias será tentar encontrar, dentro dela, relações de implicação lógica. Não que tais relações posam ser consideradas como causas da aparição das idéias. Tem-se perfeitamente razão de dizer, por exemplo, que “a semelhança concebida como “causa produtora” não tem nenhum sentido, nem na ordem psicológica, nem na ordem fisiológica”8. Mas, toda a questão é justamente saber se o encadeamento das idéias deve se explicar por causas, segundo a ordem da necessidade lógica; ou, em outros termos, se as idéias devem ser consideradas como fenômenos que só se explicam pelas relações naturais que fazem com que sua existência dependa da de outros fenômenos, ou como afirmações que só se explicam pelas relações lógicas que fazem com que sua verdade dependa da verdade de outras afirmações. Neste último caso, a noção de um automatismo das idéias nada mais poderia significar senão a dialética em virtude do qual as idéias se condicionam umas as outras; de sorte que, o pensamento automático, em lugar de opor-se radicalmente ao pensamento lógico, deveria poder, de algum modo, reduzir-se a ele. Mas, se se duvidasse ainda da impossibilidade de tratar as idéias como fenômenos mentais, achar-se ia, entretanto, uma razão para rejeitar a teoria que superpõe a atividade do juízo ao desenrolar automático das idéias logo que se notasse que esta hipótese nos leva, no fim das contas, de volta à primeira, já examinada, e segundo a qual a intervenção da atenção suspenderia o automatismo mental e substituiria, no curso de nossas idéias, a legislação da

8 W. James, ibid; p.302

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natureza pela legislação da razão. A ordem de sucessão de nossas idéias, diz-se, sendo independente das relações que a reflexão pode, depois, estabelecer entre elas, é inteiramente determinada por um mecanismo, mental, ou cerebral; mesmo nos momentos de alta tensão intelectual, a reflexão em nada muda o desenrolar das idéias: ela se limita a escolher, entre as que lhe oferece o mecanismo, as que julga pertinentes. Mas, isto não é dizer, precisamente, que a reflexão muda alguma coisa no desenrolar das idéias? Se ela escolhe, se ela retém certas idéias, ela transtorna a ordem de aparição das idéias seguintes. Assim, escolhendo como exemplo, para fazer sobre ela incidir minha crítica, esta concepção das relações entre o automatismo e a reflexão, eu altero, seguramente, o curso ulterior de meus pensamentos: objeções me ocorreram, que jamais me ocorreriam, não tivesse eu retido esta hipótese para examiná-la. Em verdade, caso a reflexão em nada modificasse o desenrolar dos pensamentos, seria inútil dar-se o trabalho de refletir. E se ela de fato o modifica, deveremos, então, ou admitir que o mecanismo natural que rege a aparição das idéias pode ser suspenso, e recairemos, assim, nas dificuldades da primeira hipótese, ou convir que não há pensamento automático, e que o curso do pensamento anárquico requer o mesmo gênero de explicação que o do pensamento reflexivo. A distinção entre pensamento automático e pensamento reflexivo, designando uma diferença de natureza, por corrente que seja, carece, então, de todo fundamento. Sem dúvida, as idéias não se desenrolam do mesmo modo no distraído que deixa vagabundear seu pensamento e no matemático, absorto numa determinada pesquisa, e será preciso dar conta da diferença. Mas, ela não pode ser tão profunda quanto a que separa sucessões empíricas de fenômenos de sucessões inteligíveis de conceitos, pois a coexistência no espírito de duas ordens tão heterogêneas seria inconcebível. A consequência logo aparece. Se não é possível admitir uma dualidade fundamental no pensamento, e se, por outro lado, as mais altas operações intelectuais restam estranhas ao plano da existência objetiva constituída pela armadura das leis naturais, escapando, por isso mesmo, a uma “Física” do espírito, a mesma coisa deverá, então, ser dita das operações inferiores da inteligência: nenhuma sucessão de idéias pode ser tratada como um simples desenrolar de “fenômenos mentais”, comandado por um automatismo mental. Resta mostrar, com mais precisão, que, inserindo-as num determinismo mental, a Psicologia clássica fracassa, necessariamente, em seus esforços para explicar as mais humildes operações intelectuais, e que só se pode, ao contrário, esperar dar conta delas renunciando a decalcar sua explicação das explicações científicas dos fenômenos físicos e buscando o princípio de sua inteligibilidade na própria natureza do pensamento. Como o tipo dessas manifestações inferiores da inteligência nos é fornecido pela chamada associação de idéias, é a associação de idéias que será preciso agora examinar. Mas, a questão da

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associação está em conexão estreita com a da memória, o laço associativo sendo em geral invocado para explicar o retorno das lembranças à mente. Por outro lado, o problema da memória nos traz uma excelente ilustração das dificuldades nas quais nos embaraçamos quando seguimos o caminho do realismo psicológico. Assim, retomaremos esse problema em seu conjunto, para aí reencontrar, em seu devido lugar, a questão do retorno automático das idéias.

3. A Memória

O realismo psicológico considera a lembrança como uma existência psíquica, submetida, como fenômeno mental, a um determinismo natural. A própria definição que habitualmente se dá da memória manifesta já esta concepção: o poder de fazer reviver um estado mental passado, reconhecendo-o como passado. A lembrança é, então, essencialmente a reprodução, apercebida como tal, de um evento psíquico. É ainda a mesma concepção que implica a distinção tradicional das quatro operações da memória. A lembrança é certa coisa que, vista uma primeira vez pela mente, reapareceria após uma ausência mais ou menos longa, sendo então reconhecida e relacionada a certo momento do passado. Não se exageraria muito se se dissesse que após ter reduzido a lembrança a uma imagem revivescente, a Psicologia clássica se representa esta imagem mental à imitação de uma fotografia que primeiro contemplamos, depois conservamos na gaveta, para ir reencontrá-la mais tarde, reconhecendo-a e sabendo desde quando a possuímos9. Quando se tenta constituir uma “Física” do espírito e se toma a lembrança como um dos objetos desta ciência, é preciso tomá-la como nada mais do que uma coisa mental que deverá poder ser explicada pelo jogo de certas leis naturais. Tal concepção solicita, desde logo, uma primeira reserva. As quatro funções atribuídas à memória conservar, lembrar, reconhecer e localizar a lembrança não apresentam qualquer homogeneidade. Deveremos reparti-las em dois grupos, um dos quais vai já escapar à ciência dos fatos mentais. Pois, se a conservação e a lembrança podem ser concebidas como fenômenos naturais, não ocorre, seguramente, o mesmo com o reconhecimento e a localização, que são, evidentemente, operações intelectuais. Reconhecer e localizar (situar num momento do tempo) é afirmar, é julgar. Assim, não espanta que o realismo psicológico fracasse diante desses dois últimos problemas. Se restamos, com a ciência positiva, no plano da existência, com as lembranças como eventos psíquicos, jamais poderemos explicar que elas sejam reconhecidas nem, com mais forte razão, localizadas. Um evento passado, uma vez que passou, desapareceu; só os eventos do

9 Cf. James, ibid., p. 379: “Um homem que busca uma lembrança em sua memória assemelha-se a um homem que busca um objeto perdido em sua casa”.

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presente estão presentes. Sem dúvida, pode ocorrer que certos eventos se repitam, que o evento presente reproduza o evento passado. Mas, uma vez que o evento passado passou, como compará-lo com o evento presente para afirmar que eles se assemelham? Pouco importa que duas coisas se assemelhem, jamais nos daremos conta da semelhança se uma delas permanece absolutamente invisível. Compreender-se-ia, ainda, que eu possa reconhecer um objeto já visto comparando-o com a lembrança que guardei dele, mas não se compreende de modo nenhum como a lembrança seria, por sua vez, reconhecida. Com que, com efeito, a compararia eu? Não com a percepção passada, uma vez que ela não é mais presente, passou; nem com o traço que ela deixou em meu espírito, uma vez que este traço nada mais é do que a própria lembrança. Enfim, se a lembrança não passa de um fenômeno de revivescência, se se reduz à reprodução atual de um fato mental passado, ela nada mais será do que um fato mental presente, sem nada que lhe confira sobre os outros fatos mentais presentes o privilégio de ser uma lembrança. A lembrança, se dela se quer fazer uma realidade mental, aparece, então, como um verdadeiro monstro, devendo ser ao mesmo tempo presente (uma vez que se trata de um dado atual) e passada (uma vez que é de ser reconhecida como passada que ela tira sua natureza de lembrança). Eis porque o problema do reconhecimento, pelo qual o estado mental presente seria relacionado ao passado, é uma das pedras no caminho da Psicologia clássica. A verdade é que a impossibilidade de tratar os atos intelectuais como “dados mentais” leva a um primeiro deslocamento na teoria psicológica da memória: é preciso convir que, na operação total da memória, se sucedem duas fases bem distintas, a primeira delas apenas, comportando conservação e lembrança, se passaria sob a legislação da natureza e diria respeito às aventuras de certa realidade. Mas, esta primeira limitação é ainda insuficiente. Não somente a metade das operações mnemônicas escapa à competência de uma “Física” do espírito, mas também a redução da lembrança a um dado mental puro e simples dificilmente permite compreender como ela se conserva e dificilmente permite achar as leis naturais de sua evocação. Consideremos primeiramente a conservação. O realismo tem apenas duas maneiras de concebê-la. (1) Ele poderá atribuir à lembrança, realidade psíquica, uma conservação de natureza igualmente psíquica; dirá, então, que ela subsiste em estado inconsciente. Solução cômoda, mas cômoda demais, pois é claro que ela é puramente verbal; e mesmo a dificuldade de conceber um modo de conservação para uma coisa mental convidaria, por si só, a pôr em dúvida o postulado fundamental do realismo psicológico. (2) Ele dirá que o que se conserva não é a realidade mental, a lembrança, são as condições fisiológicas de sua reaparição. Mas, esta nova hipótese comporta duas interpretações. Se se pretende com ela explicar o que se passa na mente, recai-se nas dificuldades das teorias da interação psico-física, seja que se queira abrir a rede do determinismo

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biológico para introduzir, como efeitos de fenômenos cerebrais, certos fenômenos psíquicos, seja que se reduza os fenômenos mentais a simples epifenômenos. Uma teoria fisiológica da memória só será então legítima ser ela sustentar que não se pode estudar cientificamente a memória senão negligenciando o aspecto mental da lembrança para voltar-se na direção dos únicos fatos suscetíveis de cair sob a experiência objetiva; mas nesse caso, rejeita-se como estranha à ciência a concepção psicológica da lembrança. Assim, o realismo psicológico, se ele obriga a conceber a lembrança como uma realidade mental que se conservou, torna ininteligível o modo desta conservação. O psicólogo dirá talvez que, no fim das contas, ele pode desinteressar-se deste problema, que ele entende por conservação da lembrança simplesmente a possibilidade de recordá-la, e que assim basta-lhe pesquisar as condições de sua evocação. Seja. Quais são, então, para ele, essas condições? O dualismo psico-físico permite invocar duas espécies de condições: fisiológicas ou psicológicas. Se se apela para condições fisiológicas, cai-se no mesmo dilema de há pouco. São, então, leis propriamente psicológicas que seria preciso poder enunciar, e se pensará naturalmente na associação mecânica das representações. Ora, não é mais necessário criticar teorias que pretendam dar conta do retorno à mente de um estado passado mediante a invocação do laço associativo que o une ao estado atual, a força desse laço sendo função da vivacidade, da frequência, da recência, etc., das associações. Entretanto, os psicólogos não se decidem a abandonar uma concepção deste gênero. É que ela é a única compatível com uma Psicologia concebida como ciência natural dos fatos mentais e de suas “leis”. Assim, conservam geralmente as “leis” da associação, corrigindo apenas sua reconhecida insuficiência pelo acréscimo de uma nova “lei”, a do interesse: as preocupações atuais do espírito tornam-se um dos fatores da evocação das idéias, e mesmo o fator preponderante, uma vez que é ele que opera a escolha entre todas as associações. Mas, como não ver que se superpõe à antiga explicação uma nova explicação totalmente heterogênea, com a qual se abandona a atitude do cientista? Pois a pretensa lei do interesse é completamente estranha à legislação da natureza. Em lugar de explicar a aparição de uma idéia, considerada como fenômeno mental, pela necessidade natural que a une a outros fenômenos, explicam-na pelas relações lógicas e pelas conveniências racionais que ela apresenta com o sistema atual de idéias. Substitui-se a explicação de um fato segundo a ordem da existência pela explicação de um pensamento segundo a ordem da verdade. Assim, as respostas que os psicólogos são obrigados a dar ao problema da evocação envolvem uma confissão de impotência de resolvê-lo e mesmo de pô-lo nos termos do realismo psicológico, uma vez que não podem pô-lo a não ser cessando, seja de falar duma evocação de idéias, seja de considerar esta evocação como regida por leis naturais. Ou, com efeito, pô-lo-ão como um problema científico: as condições

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materiais da reprodução de certos atos, entre os quais poderão naturalmente figurar atos verbais, é, então, o que será estudado; a memória passando a meros hábitos corporais, as leis psicológicas, a casos particulares de leis fisiológicas extremamente gerais, e não estarão mais em questão estados mentais. Ou, é à lembrança, na medida em que manifestação da atividade mental, que o psicólogo se aplicará, e nesse caso será substituída a consideração da existência pela consideração do pensamento, a consideração de fenômenos naturais com suas relações de causa e efeito, pela consideração das idéias com suas relações de princípio e consequência. Esta nota nos leva a reconhecer, na teoria psicológica da memória, uma terceira lacuna, que nos ajudará a compreender as precedentes. A Psicologia clássica fala sempre como se a lembrança nada mais fosse do que uma imagem revivescente, o que testemunham os exemplos geralmente citados, o nome de lembrança-imagem frequentemente dado à lembrança e, enfim, a curiosa controvérsia sobre a memória afetiva, que não se conseguia conceber, para negar ou para afirmar sua existência, senão como um poder de fazer reviver “imagens afetivas”. Ora, esta assimilação da lembrança à revivescência de uma imagem é uma visão a priori comandada pelo postulado realista. E se é fácil confirmá-la invocando numerosos exemplos, esses mesmos exemplos poderiam voltar-se contra a teoria que deveriam de ilustrar. Suponhamos, com efeito, que a evocação de lembranças seja uma operação intelectual e não um fenômeno mecânico: deverá ocorrer, então, que, quando se tentar evocar artificialmente lembranças, a busca será guiada pela idéia que se terá feito previamente da lembrança-tipo, de sorte que as observações assim provocadas confirmariam sempre a teoria preconcebida da memória. Para evitar toda parcialidade, seria preciso, então, estudar a memória nos momentos em que, nos afazeres da vida, se faz realmente apelo a ela, ou mesmo, o que será mais fácil de notar, nos momentos em que se constata uma de suas falhas. Facilmente, então, nos daremos conta de que a lembrança que escapa nunca é uma imagem concreta que em vão se tenta fazer reviver: o esquecimento é muito menos uma ausência do que uma ignorância. Esqueci, por exemplo, a data de um encontro, a missão da qual me encarregaram, uma teoria científica, filosófica ou política, as regras do jogo de xadrez, o enredo de um romance lido no ano passado, se respondi a uma carta, em que época fiz certa viagem, qual o editor do livro de que tenho necessidade. Em todos esses casos, lembrar quer dizer saber. O que se chama a evocação de uma lembrança não consiste de modo nenhum na reprodução de um estado mental passado, mas numa afirmação atual em conformidade com uma afirmação feita outrora. A lembrança-tipo nos aparece sob traços bem diferentes dos que lhe empresta a Psicologia clássica: ela não é a revivescência de uma imagem, mas o conhecimento de uma verdade. Este defeito nos dá a chave das dificuldades com as quais se choca a teoria psicológica da memória. O realismo psicológico é inevitavelmente levado

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a pôr a imagem no primeiro plano da vida mental. Pois a atividade mental reduzindo-se, para ele, a um desenrolar de fenômenos, a um desfilar de dados, como só há dados sensíveis e o pensamento, entretanto, ultrapassa a sensação presente, será preciso inventar um sensível de segunda zona, um dado que não seja físico, mas exclusivamente mental. Assim, a realidade mental por excelência será a imagem, concebida como algo análogo a um desenho cujas cores e cujos traços tivessem sido empalidecidos e atenuados pelo tempo. A memória será, precisamente, esta conservação psicológica do sensível, a palavra conservação sendo tomada aqui no sentido realista. A memória será precisamente esta conservação psicológica do sensível, a palavra conservação sendo tomada aqui no sentido realista, e toda a atividade intelectual resultará das combinações automáticas desses subprodutos do mundo sensível. Ora, sobre esta questão a Psicologia atual está operando uma reviravolta completa, que equivale a uma verdadeira condenação do realismo. Em lugar de pôr no primeiro plano o estudo das imagens e a busca das leis segundo as quais elas se determinariam umas as outras, para assim explicar o pensamento, é a imagem que ela julga não poder ser explicada a não ser pela consideração da atividade intelectual. Explicar o pensamento por um desenrolar automático de imagens seria tão absurdo quanto querer explicar o sentido de uma frase pela sucessão da palavras. É o sentido da frase que explica a escolha das palavras, é o encadeamento dos pensamentos que explica o desenrolar das imagens. O que significa dizer que não há leis naturais que regeriam o curso das imagens. Nessas condições, a própria imagem vai mudar de natureza. Ela não será mais uma pintura muda, uma sensação enfraquecida: inteiramente penetrada de pensamento, ela será “visão intelectual”. É evidente que esta reversão de atitude quanto à questão da relação da imagem e do pensamento deve acarretar uma reversão análoga na teoria da memória, a imagem cedendo o lugar ao juízo: o estudo da lembrança não será mais o estudo de uma realidade mental, mas da atividade do pensamento. É exatamente a conclusão a que nos conduzem nossos próprios princípios. Esta mudança de perspectiva faz aparecer sob uma outra luz a questão da conservação da lembrança. Dissociam-se os dois sentidos da palavra conservação, que a Psicologia clássica tinha confundido forjando a noção de uma conservação psicológica, a única que foi possível atribuir a uma coisa mental. A mesma imaginação realista que convida a tomar a atividade do pensamento por um desenrolar automático de fenômenos psíquicos, convidava a pensar a conservação das idéias segundo o modelo da conservação das coisas. Ora, bem longe de que a conservação das idéias não passe de um caso particular da conservação da realidade, ela é, ao contrário, uma condição de toda conservação da realidade. Com efeito, só se pode falar de conservação se se trata da realidade objetiva, construída pelo pensamento, pois apenas a ela pode ser atribuída uma ordem temporal. A realidade bruta reduz-se ao dado, que é

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perpetuamente presente, excluindo toda sucessão, uma vez que o que não é mais ou não é ainda dado, não é de modo nenhum dado. A ordem de sucessão só ocorre no universo objetivo, na experiência organizada pelo trabalho do pensamento. Se então se pode conceber uma conservação do real, isto supõe, sem dúvida, que o próprio pensamento, num sentido, se conserva, mas também que a conservação do pensamento é de natureza bem diversa da conservação do real. A lembrança não pode ser um simples traço do passado, uma vez que o passado só existe pela lembrança. A análise da memória leva, então, uma vez mais, a distinguir a ordem da realidade ou da existência e a ordem do pensamento ou da verdade. Agora, a conservação não designa mais a manutenção da existência, uma vez que não se pode atribuir a existência à verdade, mas à manutenção do valor. Ora, é da própria natureza da verdade ser dotada de um valor eterno, nenhuma potência natural podendo fazer com que o verdadeiro cesse de ser verdadeiro. É por isso que os pensamentos se conservam por si mesmos, na exata medida em que são pensamentos. Suponhamos que um ser tenha concebido estabelecer entre todas as suas idéias uma coerência perfeita, de maneira que cada uma delas se ache, direta ou indiretamente, ligada necessariamente a todas as outras: é claro que nenhuma de suas idéias poderia mais lhe escapar, uma vez que cada uma estaria implicada em sua idéia presente, e que, assim sendo, ele poderia sempre reencontrá-la. Esse caso permanece puramente teórico, mas acharemos exemplos do mesmo gênero nos sistemas limitados de conhecimentos. Um filósofo não corre o risco de esquecer uma de suas próprias teorias, um geômetra o de perder a lembrança dos teoremas fundamentais da geometria. Observações análogas podem ser feitas sobre cada homem, do qual se diz, de ordinário, que só retém o que lhe interessa, entenda-se o que vem facilmente tomar lugar no seu sistema principal de idéias. E compreendemos também, imediatamente, como as lembranças se reforçam pela repetição, o que falsamente fez pensar em alguma marca que se gravaria cada vez mais profundamente. Em realidade, não é a repetição que desempenha um papel na conservação da lembrança. Somente, quando um mesmo juízo é afirmado em circunstâncias diferentes, ele se agrega cada vez a um conjunto diferente de juízos, o que lhe confere mais estabilidade. Não é o ato da repetição que assegura mecanicamente a perpetuidade da idéia, é a possibilidade que ele oferece ao espírito de ligá-la a outras idéias, variadas e numerosas, e assim de compreendê-la cada vez melhor. A faculdade que tem o espírito de conservar lembranças não é, então, outra que não a que ele tem de passar de certas idéias às que estão em relações lógicas com elas, isto é, a própria faculdade de pensar. É por isso que a evocação das lembranças, longe de ser um fenômeno regido pelo determinismo, não se distingue do exercício do pensamento. Ela não pode se fazer senão segundo as relações lógicas entre idéias, e de modo nenhum segundo as relações naturais entre fatos. Em outros termos, não basta dizer, com a maior parte dos psicólogos atuais, que o valor

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explicativo da associação mecânica de idéias é limitado, é preciso dizer que é nulo, e que não há jamais associação. Tomemos o caso aparentemente o mais favorável à explicação por um automatismo natural. “A existência de associações por contiguidade, escreve o psicólogo J. Dagnan, não é contestada por ninguém: todo mundo sabe que o mar faz pensar no navio, ou a carroça no burro, ou o verso que se recita no verso seguinte.” Que o mar faça pensar no navio, ninguém seguramente pode contestá-lo; tampouco se contestará o direito que tem o psicólogo de, se lhe agrada, nomear associação por contiguidade esse caso de evocação. Mas, o que está em questão é saber se a evocação da idéia de navio pela idéia de mar é regida ou não por um determinismo natural, totalmente diferente da implicação lógica das idéias. A esta questão, o simples fato da evocação da idéia de navio pela idéia de mar não traz, evidentemente, nenhuma resposta. Responder invocando a associação mecânica, é dar certa interpretação, pela qual as idéias são tratadas como realidades ligadas por leis naturais; e esta interpretação conduzirá, seja a admitir dois modos totalmente heterogêneos de encadeamentos de pensamentos, seja a reduzir todos os encadeamentos de pensamentos a sucessões de fenômenos naturais, duas hipóteses cujas dificuldades já foram apontadas. Ora, mesmo nos exemplos desse gênero (e com mais forte razão se se trata de outras espécies de “associações”) tal interpretação está longe de se impor. Nós não pensamos por justaposição de conceitos separados. Pensar um conceito, os psicólogos estão, hoje, de acordo, é afirmar alguma coisa, o que quer que seja, desse conceito, e assim ligá-lo a outros. Cada vez que eu posso afirmar uma coisa nova, o sentido dos conceitos que entram em meu juízo se acha, para mim, enriquecido e, por conseguinte, modificado. Quando pela primeira vez vi navios no mar, ao mesmo tempo que se formava, para mim, o conceito de navio, o de mar se enriquecia da afirmação de que o mar suporta navios. A idéia de navio entrou, doravante, para mim, na compreensão da idéia de mar. A relação que me faz agora passar da idéia de mar à de navio é, então, uma relação lógica entre idéias, e não uma relação natural entre fenômenos. E mesmo se tomamos como exemplo um encontro inteiramente fortuito, como ter revisto no verão passado um amigo à beira do mar, pelo fato mesmo de saber que lá o revi, afirmo certa relação entre o mar e este amigo. É verdadeiro que esta relação só se estabelece para mim, enquanto que a de mar a navio é válida para todo mundo. É por isso que quando você me diz que pretende passar as próximas férias no mar e me ouve subitamente falar de nosso amigo comum, parecerá a você que nenhuma relação lógica liga estes dois pensamentos. Não entendendo a razão, você imagina uma causa. É que você supõe falsamente que as idéias que tenho do mar e de nosso amigo têm exatamente o mesmo sentido para mim que para você ou para qualquer um. O que você chama sucessão automática de idéias é simplesmente uma sucessão de idéias cujo sentido lhe escapa. Estas notas se aplicam naturalmente ao caso do pensamento por imagens tanto quanto ao verbal, uma

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vez que também a imagem está carregada de significação; somente, será maior a dificuldade da interpretação, uma vez que aqui o signo perdeu quase todo valor social, não sendo, além disso, diretamente comunicável. Em resumo, a distinção entre pensamento automático e pensamento lógico só é legítima se ela exprime simplesmente a diferença que separa uma sucessão de pensamentos dotada de uma significação individual e uma sucessão de pensamentos dotada de uma significação universalmente válida. Estes dois casos extremos se ligam, aliás, por uma cadeia ininterrupta de casos intermediários, de modo que não há entre pensamento anárquico e pensamento disciplinado apenas uma diferença de grau. A explicação de uma sucessão qualquer de idéias, por incoerente que esta sucessão pareça, não pode ser senão da natureza de uma explicação lógica e jamais da natureza de uma explicação física, o que quer dizer que a evocação das lembranças é regida pelas regras comuns a todo exercício do pensamento. Podemos agora passar rapidamente sobre o reconhecimento e a localização, que cessam de levantar problemas novos. Evocar uma lembrança é julgar, é um ato de conhecimento, não um objeto a ser conhecido ou reconhecido. Quanto aos objetos sobre os quais incidem os juízos, é claro que perguntar como podemos reconhecê-los vem a ser o mesmo que perguntar como podemos conservar e evocar conhecimentos adquiridos outrora. Se a Psicologia clássica se acha embaraçada para explicar o reconhecimento, é precisamente porque o problema do reconhecimento reduz-se ao da memória intelectual, que não pode ser convenientemente posto devido à posição por ela dotada. É ainda à memória intelectual que remete a questão dita da localização das lembranças, a inexatidão resultando do erro inicial pelo qual se faz da lembrança uma coisa. A localização não incide sobre a lembrança, mas, graças à lembrança, sobre os acontecimentos. Não é minha lembrança de uma viagem que fiz que é datada, o datado é a viagem; e não posso atribuir-lhe uma data senão pelo conhecimento que tenho ou desta data ou de certo detalhe da viagem, cuja relação cronológica com outro evento, de data por mim conhecida, é conhecida por mim. Vê-se, claramente, com este exemplo, como o problema da localização leva logo a rejeitar a concepção realista da lembrança. Uma lembrança não é um evento psíquico atual reproduzindo um evento psíquico passado, é um juízo atual, conhecimento de um evento passado, e não é de modo algum localizada, mas localizante, uma vez que não é uma realidade mas um ato de pensamento sobre uma realidade. Assim, o exercício da memória só pode ser explicado se o reduzimos ao exercício do pensamento. Não há, então, razão para superpor dois modos totalmente heterogêneos de sucessão dos pensamentos, um deles, pelo menos, obedecendo ao determinismo natural, e podendo, assim, ser objeto de uma ciência positiva dos fatos mentais. Pensamentos, por humildes que sejam, e mesmo não se elevando acima do simbolismo concreto da imagem, atraem-se segundo seu sentido, e não segundo sua existência. E se é verdadeiro que a significação de uma sequência

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de idéias nos parece ora radicalmente ininteligível, ora facilmente compreensível para qualquer espírito, não devemos concluir daí que, no primeiro caso, o pensamento é joguete de forças naturais e obedece a um automatismo, mas apenas que, então, a sequência das idéias tinha para o sujeito uma significação diferente da significação impessoal dos símbolos pelos quais ela se exprimiu. Um pensamento não pode ser evocado por outro senão em virtude dos laços que são suscetíveis de unir pensamentos, isto é, laços lógicos. Em nenhum caso é legítimo assimilar o curso dos pensamentos a um encadeamento causal de fenômenos naturais.

IV – O Pensamento Individual A obrigação de excluir o juízo do plano dos fenômenos se fará sentir de uma outra maneira, se se examina o problema da relação dos juízos com o sujeito pensante. Esse problema não pôde ser evitado pela Psicologia clássica, que o encontrou no centro do problema da personalidade. Os primeiros psicólogos, fiéis a seu postulado realista, não podiam ver no Eu nada mais do que uma coleção de fatos mentais. Mas, tiveram logo que reconhecer10, com Mill, que esta concepção do Eu deixava escapar necessariamente o essencial, a saber o conhecimento desta coleção como tal, pois, fazer deste conhecimento mesmo um novo fato mental justaposto aos outros, era somente acrescentar à coleção uma unidade suplementar, e de modo nenhum explicar como esta coleção formava um indivíduo consciente de sua individualidade. Diante desta dificuldade, um psicólogo como Ribot tirou-se do embaraço com desenvoltura, decretando simplesmente que este conhecimento pelo sujeito de sua própria individualidade era algo de estranho ao “verdadeiro Eu”, algo de distinto da “personalidade concreta” da qual não passaria de um “esquema”, “quadro quase vazio de todo conteúdo”. A “idéia da personalidade” é assim separada, por ele, da “personalidade real”, e, por isso, posta fora de questão: como se a marca característica pela qual o indivíduo psicológico se distingue do indivíduo biológico não fosse precisamente o fato de ser um indivíduo para si, e como se, por outro lado, o psicólogo realista, pelo fato mesmo de dotar as idéias de uma existência mental e nelas ver fenômenos naturais, não se privasse, mais que qualquer outro, do direito de opor “uma representação abstrata a uma realidade” e de considerar a reflexão sobre o eu como uma “posição artificial ”. Assim, os psicólogos que, em lugar de escamotear o problema, tinham o cuidado de exprimir esta propriedade singular que tem o indivíduo pensante de conhecer-se como tal, foram levados a acrescentar ao Eu-objeto (Moi), coleção de estados mentais, o Eu-sujeito (Je), pensador desta coleção. Somente, eles se condenaram assim, seja a deixar o terreno da ciência, seja a logo apagar a 10 J. S. Mill, Examen de la Philosophie de Hamilton. p. 234/235

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distinção que vinham de estabelecer. Pois esse Eu-sujeito, se se faz sempre profissão de ciência positiva, será preciso situá-lo também no plano da existência mental e fazer dele um fenômeno acessível à observação psicológica. Desde então, a distinção do Eu-sujeito e do Eu-objeto perde toda significação, o primeiro Eu vindo simplesmente fundir-se no segundo. A atividade do sujeito pensante será um dado de consciência do mesmo tipo que os pensamentos, ou antes, não se distinguirá dos próprios pensamentos. Enfim, o esforço que se faz para evitar, pela distinção do Eu-sujeito e do Eu-objeto, o dilema enunciado por Mill, leva logo de novo a esse mesmo dilema. Ou restituímos ao Eu-sujeito seu caráter pensante, e então, uma vez que não é mais um fenômeno dado à observação psicológica, saímos da Psicologia concebida como ciência dos fatos mentais; ou o incluímos nos dados mentais, mas perdemos toda a vantagem que esperávamos obter com a distinção do Eu (Je) e do Eu (Moi), e caímos novamente na primeira dificuldade, não podendo compreender como o que não é nada mais que um conjunto de dados, mesmo que ligados pela unidade de uma mesma “corrente de consciência” pode aparecer-se ao mesmo tempo como a propriedade de um único possuidor. Em presença desta dificuldade, os psicólogos deviam confessar seu embaraço. A individualidade psíquica é chamada ora um postulado da Psicologia, ora um eterno enigma que marca um dos limites positivos da ciência, ora um dos dados últimos irredutíveis da Psicologia que seria preciso renunciar a explicar. O autor do capítulo sobre a personalidade no Tratado de Psicologia de Dumas, após ter lembrado alguns desses testemunhos, conclui de maneira análoga, e a origem da dificuldade reside sem dúvida nesta dualidade do Eu-sujeito e do Eu-objeto na qual ele vê um “mistério” comparável ao da Santíssima Trindade. Tal mistério nos convida a repor ainda em questão o postulado realista, ponto de partida da Psicologia clássica. Uma vez que este postulado comanda reduzir o Eu (Je) a uma realidade mental, e que esta redução impede a compreensão da dualidade do Eu-sujeito e do Eu-objeto, e, por conseguinte, a natureza da personalidade, é então que é preciso renunciar a situar esta dualidade no plano dos fenômenos de consciência para ao contrário fazê-la coincidir com a de um plano de fenômenos e de um plano estranho ao fenomenal. Precisemos que não está de modo nenhum em questão voltar a uma teoria substancialista. Se os psicólogos tiveram o grande mérito de nos desembaraçar de tal doutrina, eles cometem algumas vezes o erro de atribuí-la facilmente demais a quem quer que conteste o puro fenomenismo implicado na “ciência dos fatos mentais”. Ora, a alternativa pela qual se deveria escolher entre o fenomenismo e o substancialismo só se impõe se se admite previamente o postulado realista, que recusamos subscrever. A hipótese que encaramos não considera então, de modo nenhum, o Eu-sujeito como uma realidade estranha aos fenômenos, expressão que nos pareceria desprovida de sentido; ela consiste em ver no Eu-sujeito a própria atividade de pensar. Mas esta hipótese se

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subdivide por sua vez em duas outras, conforme se separe o pensamento da atividade pensante para atribuí-lo ao Eu-objeto e dele fazer assim um fenômeno mental ou, ao contrário, se subtraia o próprio pensamento à existência psíquica. A primeira hipótese permitiria justificar ainda um estudo puramente empírico das operações intelectuais. Sem dúvida, lançando o Eu-sujeito fora do plano dos fenômenos, lançá-lo-íamos fora do campo de investigação da Psicologia científica. Pelo menos restaria, no interior desse campo, a totalidade dos pensamentos, fenômenos mentais sob os quais poderiam incidir pesquisas estritamente experimentais. E assim seriam reconhecidos os limites, mas ao mesmo tempo a legitimidade, de uma Física do espírito. Em realidade, é preciso renunciar a defender tal hipótese. Com efeito, ou esses fenômenos psíquicos aos quais se reduzem assim os pensamentos são concebidos como rigorosamente determinados, segundo a ordem da necessidade natural, por outros fenômenos, psíquicos ou corporais, de nada, então, servindo a suposição de um sujeito, ou, ao contrário, os pensamentos resultam da atividade do sujeito pensante, mas escapam por isso mesmo ao determinismo dos fenômenos. Sem insistir sobre o que há de estranho na idéia de fenômenos indeterminados, basta notar que tal indeterminação torna impossível uma ciência natural das operações intelectuais. De modo que, chocando-nos uma vez mais com o mesmo dilema, nos é preciso mais uma vez sacrificar, seja a atividade do sujeito pensante, isto é, uma vez que ele é atividade e não realidade, esse sujeito mesmo, seja o estudo científico dos pensamentos como fenômenos psíquicos. Ora, como o confessa a maior parte dos psicólogos, não se tem o direito de sacrificar o sujeito pensante, pois seria negar a individualidade psíquica. Não resta então nada mais do que subtrair não somente o pensador, mas também os pensamentos do plano dos fenômenos. Os pensamentos não são eventos, mas verdades; e uma verdade não pode ser concebida como independente do sujeito que a pensa. Quando dizemos que o pensamento é obra do sujeito pensante, evitemos nos deixar enganar pela metáfora que usamos, que é aliás difícil dispensar. Somos, com efeito, tentados a separar o pensamento da atividade pensante, como separamos do escultor a estátua de que ele é o artífice. O pensamento nos aparece então como algo que subsistiria por si próprio, após ter sido produzido e como que fabricado, e ei-nos engajados na busca do modo e no procedimento desta fabricação. É preciso compreender, sem dúvida, que uma investigação dessa natureza seria inteiramente ilusória. Um pensamento, isto é, uma relação afirmada entre imagens, não é produzido pela atividade pensante, é apenas pensado. Uma relação não é suscetível de existência, mas de verdade. Somente, e precisamente porque ela é verdadeira, essa relação aparece ao sujeito dotada de um valor eterno; ela é algo com o quê ele deverá doravante contar, e que parecerá assim destacar-se dele. Entretanto, ela não é de modo nenhum uma realidade exterior à atividade pensante, independente dela, e que se imporia a ela de fora, por sua própria força. A verdade não subsiste senão

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enquanto é afirmada. E é por isso que, quando o sujeito afirma como verdadeira certa relação, ele afirma, por isso mesmo, implicitamente, que não pode mais cessar de afirmá-la, uma vez que sua afirmação consiste em obrigar-se a zelar constantemente para que nenhuma outra afirmação esteja em desacordo com a primeira. O constrangimento que pesa assim sobre a atividade pensante não é a de uma realidade estranha, é o constrangimento interior da necessidade lógica. A verdade não é então um produto inerte e capaz de subsistir por si como um fruto maduro destacado da árvore; ela só subsiste graças ao ato pelo qual é pensada. Em outros termos, os pensamentos, a atividade pensante e o sujeito pensante são inseparáveis, e igualmente estranhos ao plano dos fenômenos. Em resumo, quanto à relação dos pensamentos ao sujeito pensante temos que escolher entre três hipóteses: ou bem os pensamentos e o pensador pertencem igualmente à realidade fenomenal, ou bem somente os pensamentos, ou, enfim, nem um nem outro. As duas primeiras hipóteses significam suprimir o pensador. Uma vez que, nesse caso, o curso dos pensamentos não é senão uma sucessão de fenômenos, o determinismo da natureza deve regê-lo; cada pensamento deve ser levado necessariamente à existência por seus antecedentes ou concomitantes na cadeia causal; e, em conseqüência, a atividade pensante não é mais que uma vã palavra, destinada a mascarar nossa ignorância do determinismo psicológico. Mas — sem insistir na absurdidade fundamental dessa inclusão dos pensamentos no determinismo da natureza — suprimir assim o sujeito pensante é suprimir a personalidade, uma vez que é suprimir a existência para si. Resta então a hipótese que exclui os pensamentos do número dos fenômenos psíquicos. Somos devolvidos à distinção entre a ordem do pensamento e a ordem da existência, esta oscilando, segundo o grau de organização intelectual, entre os dois planos da existência bruta ou psíquica e da existência objetiva ou física. Livramo-nos assim da dificuldade que embaraçava o psicólogo. Uma vez que para ele os pensamentos são fenômenos mentais, o conhecimento que cada um tem de sua própria individualidade vai entrar ela própria, como parte constituinte, nesta individualidade: ela será ao mesmo tempo a idéia de um conjunto e um elemento interior a esse conjunto, ao mesmo tempo a visão do edifício total e uma das muitas pedras do edifício. Contradição intolerável, a que o psicólogo não pode subtrair-se a não ser caindo logo numa outra. Pois tentar sair do embaraço invocando uma atividade sintética distinta dos fenômenos mentais e que asseguraria a sua ligação, é agora não mais saber “onde situar esta atividade que deveria ser então, ao mesmo tempo, mental e exterior aos fenômenos mentais”: isto é, uma vez que se reduz todo o mental aos fenômenos mentais, ao mesmo tempo mental e não-mental. Mas, essas contradições se resolvem logo que, abandonando o postulado realista sobre o qual se funda a Psicologia tradicional, recusamo-nos a situar os conhecimentos no plano dos fenômenos, e distinguimos assim, no mental, o pensamento, dotado de verdade, e o dado, dotado de existência. O idealismo epistemológico,

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reduzindo a dualidade do Eu-objeto e do Eu-sujeito à dos fenômenos e do pensamento, permite assim levantar uma dificuldade à qual não pode escapar o realismo psicológico.