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LINGUAGEM, INTERAÇÃO E PROCESSOS DE APRENDIZAGEM
A NOÇÃO DE AUTORIA: CONTRAPOSIÇÕES LITERÁRIAS E JURÍDICAS
TAÍS CAROLINA LEVES PROCHNOW
Porto Alegre 2012
TAÍS CAROLINA LEVES PROCHNOW
A NOÇÃO DE AUTORIA: CONTRAPOSIÇÕES LITERÁRIAS E JURÍDICAS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Curso de Mestrado em Letras, do Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter – como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre.
Área de Concentração: Linguagem, Interação e Processos de Aprendizagem
Orientadora: Profª. Drª. Rejane Pivetta de Oliveira
Porto Alegre 2012
Ficha catalográfica
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Catalogação na Fonte: Bibliotecária Vanessa Borges Nunes - CRB 10/1556
P963n Prochnow, Taís Carolina Leves A noção de autoria: contraposições literárias e jurídicas / por Taís Carolina Leves Prochnow. – 2012. 76 f. : 30cm.
Dissertação (mestrado) — Centro Universitário Ritter dos Reis, Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Letras, 2012. Orientação: Profª. Drª. Rejane Pivetta de Oliveira.
Direitos autorais. 2. Autoria. 3. Autor. 4. Copyright. I. Título.
CDU 347.78�
TAÍS CAROLINA LEVES PROCHNOW
A NOÇÃO DE AUTORIA: CONTRAPOSIÇÕES LITERÁRIAS E JURÍDICAS
Dissertação apresentada e aprovada como requisito para obtenção do título de Mestre
em Letras, na área de concentração de Linguagem, Interação e Processos de Aprendizagem,
pela banca examinadora constituída por:
_____________________________________________ Profª. Drª. Rejane Pivetta de Oliveira
Orientadora LETRAS – UNIRITTER
_____________________________________________ Profª. Drª. Márcia Fernandes
LETRAS – UNIRITTER
_____________________________________________ Profª. Drª. Valéria Brisolara
LETRAS – UNIRITTER
Em Porto Alegre, ____ de _____________ de 2012.
RESUMO
Este estudo tem como foco a questão da autoria, tanto no âmbito literário quanto no jurídico. Ao longo do trabalho, investigam-se os conceitos de autor e de autoria nas construções históricas e culturais, buscando-se subsídios para a reflexão crítica acerca dos princípios que fundamentam as leis de proteção aos direitos autorais. Diante disso, as produções literárias contemporâneas tornam mais complexa a aplicação de normas jurídicas relativas aos direitos autorais, assentadas em definições rígidas. As noções de autoria e autenticidade sofrem modificações diante dos novos padrões de produção e disseminação de textos promovidos pela Internet, tais como blogs, live journals, etc. Da mesma forma, práticas de criação coletiva, de “pirataria criativa”, colagens, citações, etc. sinalizam para novas formas de escrita e de políticas estéticas com as quais o campo jurídico parece não estar aparelhado para lidar. O livro Cabeça de Porco, objeto de análise deste trabalho, se constrói polifonicamente, a partir das vozes de Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde, e ultrapassa a forma tradicional de obra escrita em parceria, constituindo-se, portanto, em mais um exemplo capaz de oferecer elementos para a problematização do conceito de autoria. A presente pesquisa pretende mostrar que a Literatura, ao inventar novas formas de narrar e incorporar à escrita uma multiplicidade de referências e vozes, questiona o conceito de autoria, desafiando o direito a redefinir os paradigmas que sustentam a formulação das leis, especialmente daquelas voltadas à preservação dos direitos autorais.
Palavras-chave: Autor. Autoria. Direitos autorais. Copyright.
ABSTRACT
This study� focuses on the� question of authorship�� �������� �� ���� literary,� as in� law.�Throughout the�paper investigates� the concepts�of copyright and�authorship in the�historical and�cultural�buildings��������grants�for critical reflection�about the principles�that underlie�the laws of� copyright protection �Thus,� the�contemporary literary�productions�become more complex� the application of� legal rules� relating to� copyright,� seated in� rigid definitions.�The notions of�authorship�and authenticity�are altered� in response to new�patterns of production�and dissemination of texts�promoted by the�Internet��such as�blogs�������journals��etc.�Similarly��practices�of collective creation�of�"���������hacking���collages������������ ��point to new�ways�of writing and�political�aesthetic��with which the�legal field�does not seem�equipped to�handle.�Books like�Pig�Head�����������is constructed�polyphonically��from�the voices of�Luiz�Eduardo�Soares,�MV�Bill�and Celso�Athaide�� is�an example that�goes beyond� the traditional form of�written work� in partnership�� ����� therefore�more�an example�can provide�elements� for the questioning�of the concept�of authorship.�This�research project�aims to show�that literature��by inventing new� ways to� incorporate� writing� and� narrating� a� multiplicity of� voices� and�references�� questions the concept� of authorship�� ���������� the right� to redefine� the paradigms� that underpin� the formulation of� laws�� especially those� aimed at� preservation of�copyright.�
Keywords: Author. Authorship. Copyright.
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, por ter me ajudado em todos os momentos e ter
me guiado nesta jornada;
A meus pais e marido, pelo amor, dedicação, paciência e apoio;
A minha amiga Maria Odete por todas as orações;
A minha amiga Rejane Cristina pelo apoio sempre presente;
A minha professora orientadora Drª. Rejane Pivetta de Oliveira pelo apoio e paciência
no desenvolvimento desta dissertação;
A todos os amigos que torceram por mim.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABDR – Associação Brasileira dos Direitos Reprográficos
ABPI – Associação Brasileira da Propriedade Intelectual
CNRS – Centre National de la Recherche Scientifique
CUFA – Central Única das Favelas
LDA – Lei dos Direitos Autorais
LDI – Lei dos Direitos Industriais
OMC – Organização Mundial do Comércio
OMPI – Organização Mundial da Propriedade Intelectual
UniRitter – Centro Universitário Ritter dos Reis
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................8
1 O CONCEITO DE AUTOR E AUTORIA NO ÂMBITO LITERÁRIO ............................ 111.1 PERCURSOS DA FORMAÇÃO DO CONCEITO DE AUTOR ..........................................11 1.2 PROBLEMATIZAÇÕES DO CONCEITO DE AUTOR.......................................................14 1.2.1 Roland Barthes e a morte do autor..................................................................................151.2.2 Michel Foucault e a assinatura.........................................................................................181.2.3 Mikhail Bakhtin e as posições do autor...........................................................................20
2 OS DIREITOS AUTORAIS NO ÂMBITO JURÍDICO ......................................................242.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ..............................................................................................24 2.2 HISTÓRIA DO DIREITO AUTORAL ..................................................................................25 2.2.1 Os dois regimes de direito autoral....................................................................................282.2.2 O desenvolvimento dos direitos autorais no Brasil.........................................................292.3 O CONCEITO DE AUTOR E DIREITO AUTORAL NO ÂMBITO JURÍDICO.................32 2.4 AUTOR E AUTORIA: CONTRAPONTOS LITERÁRIOS E JURÍDICOS .........................40
3 CABEÇA DE PORCO: NOVAS FORMAS DE ESCRITA...................................................443.2 A QUESTÃO DA AUTORIA NO LIVRO CABEÇA DE PORCO ........................................59 3.3 A QUESTÃO DA AUTORIA EM RELAÇÃO AO DIREITO BRASILEIRO NO LIVRO
CABEÇA DE PORCO ..........................................................................................................63
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................................66
REFERÊNCIAS ..........................................................................................................................70
INTRODUÇÃO
A presente dissertação coloca em tela o problema da autoria, tanto no âmbito literário
quanto no jurídico. Trata-se de investigar os conceitos de autor e de autoria como construções
históricas e culturais, buscando-se subsídios para a reflexão crítica acerca dos princípios que
fundamentam as leis de proteção aos direitos autorais. Pretende-se mostrar que a literatura, ao
inventar novas formas de narrar e incorporar à escrita uma multiplicidade de referências e
vozes, questiona o conceito de autoria, desafiando o direito a redefinir os paradigmas que
sustentam a formulação das leis, especialmente daquelas voltadas à preservação dos direitos
autorais.
As produções literárias contemporâneas tornam mais complexa a aplicação de normas
jurídicas relativas aos direitos autorais, pois são assentadas em definições rígidas. As noções
de autoria e autenticidade sofrem modificações diante dos novos padrões de produção e
disseminação de textos promovidos pela Internet, tais como blogs, live journals, funzines, etc.
Da mesma forma, práticas de criação coletiva, de “pirataria criativa”, colagens, citações, etc.
sinalizam para novas formas de escrita e de políticas estéticas com as quais o campo jurídico
parece não estar aparelhado para lidar. Um livro como Cabeça de Porco, cujo texto se
constrói polifonicamente a partir das vozes de Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso
Athayde, ultrapassa a forma tradicional de obra escrita em parceria, constituindo-se, portanto,
em mais um exemplo capaz de oferecer elementos para a problematização do conceito de
autoria.
Sabe-se que o termo Direito – assim como o termo Literatura – tem várias definições.
Neste estudo, considera-se a definição clássica de Direito como um sistema de normas de
conduta imposto por um conjunto de instituições para regular as relações sociais. Já a
Literatura está associada à produção e leitura de textos, segundo um registro estético da
linguagem. Como escreveu Ezra Pound (1999, p. 32), poeta e crítico literário, "Literatura é
linguagem carregada de significado", sem a intenção de oferecer uma interpretação única do
mundo, mas justamente pondo em evidência as múltiplas e complexas faces da realidade.
Mesmo a Literatura sendo um campo de conhecimento tão diferente do Direito, ela pode
acrescentar muito no que diz respeito à questão da autoria. O que a liberdade literária pode
trazer ao rigorismo jurídico na questão da autoria é um dos pontos fundamentais deste
trabalho. Para que isso aconteça, se irá analisar a constituição histórica da noção de autor,
tanto no campo da Literatura quanto no do Direito.
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A problematização das noções de autor e autoria, a partir da análise de produções
literárias contemporâneas, tendo em vista o questionamento dos princípios que sustentam a
formulação da lei de direitos autorais, será fundamental neste trabalho. A Internet e todas as
produções literárias nela envolvidas têm modificado também a questão autoral, que hoje não
mais se liga ao modelo tradicional legado pelo Romantismo, segundo uma concepção de
gênio criador, com uma subjetividade autocentrada.
No Brasil, o direito autoral é protegido pela lei nº 9.610/98, conhecida como Lei dos
Direitos Autorais (LDA); ela também regulamenta os direitos conexos1. É importante
salientar que os direitos de autor têm regulamentação legal nacional e internacional.
Propriedade Intelectual é o que a legislação estrangeira chama de direitos de autor, na esfera
patrimonial, os direitos que se referem a programas de computador e bases de dados. A
propriedade industrial, que tem a influência de legislação internacional, hoje é administrada
pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e Organização Mundial da Propriedade
Intelectual (OMPI).
A questão autoral, no âmbito literário, será analisada com base na teorização de
Foucault (1992), Bakhtin (2006) e Barthes (2003), além de outras contribuições relevantes
para refletirmos sobre a produção literária contemporânea, a qual põe em xeque os princípios
da autenticidade e da individualidade da escrita.
O estudo estrutura-se em três capítulos. No capítulo primeiro, discute-se o conceito de
autor e autoria no âmbito literário, discorrendo-se sobre os percursos do conceito de autor
desde a Antiguidade e sobre problematizações dessa noção em autores como Foucault (1992),
Bakhtin (2006) e Barthes (2003).
O segundo capítulo apresenta os direitos autorais no âmbito jurídico. Além de
considerações iniciais sobre o assunto, define Direito de Autor, apresenta a história do Direito
Autoral, os dois regimes de direito autoral, o desenvolvimento dos direitos autorais no Brasil
e o conceito de autor e direito autoral no âmbito jurídico. Na abordagem histórica, buscou-se
destacar os momentos mais significativos, de transformações mais relevantes em relação ao
tema da autoria.
___________________
1 São chamados de direitos conexos, vizinhos ou afins os direitos dos artistas, intérpretes e executantes vinculados aos sistemas de direito autoral de alguns países (principalmente os de tradição romano-germânica e de línguas latinas), sendo-lhes concedida proteção semelhante à dos direitos de autor propriamente ditos. O objeto desses direitos encontra-se associado a obras intelectuais previamente criadas, referindo-se à difusão criativa dessas obras. Um exemplo clássico é o do intérprete de uma canção, que incorpora à obra já criada um esforço criativo seu, no ato de interpretá-la (<http://pt.wikipedia.org/wiki/Direitos_conexos> Acesso em 29 ago. 2011).
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No capítulo terceiro, apresenta-se a análise de uma produção literária contemporânea,
o livro Cabeça de Porco, escrito por Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde. Essa
obra mostra-se bastante inovadora na questão da autoria e nos faz refletir a respeito do tema.
Por ser uma obra tão intrigante quanto inteligente, elaborada a partir de múltiplas vozes que
dela participam de maneira mais ou menos direta, esse livro foi escolhido exatamente por
instigar a análise tanto da questão da autoria quanto da questão do autor. Cabeça de Porco
consegue traçar um painel bem surpreendente a respeito de crianças e jovens que vivem a
rotina da violência em nove estados do nosso país.
Apesar de serem bem poucos ainda os estudos que envolvem Direito e Literatura no
Brasil, já existe uma parte de juristas e doutrinadores que tem dado a devida atenção a esse
assunto. Exemplos não faltam, como Ronald Dworkin e o belga François Ost; há projetos,
inclusive de programas de televisão, que envolvem a discussão de Direito e Literatura. A
questão de autoria há muito nos preocupa e é, sem dúvida, questão relevante nos dias atuais.
Na Literatura, Foucault, Mikhail Bakhtin e Roland Barthes, dentre outros, já trabalharam a
questão do autor. No Brasil, o direito autoral é protegido pela lei nº 9.610/98, conhecida como
LDA, que também regulamenta os direitos conexos, além de existir vasta doutrina que trata
do assunto.
Pode-se verificar que a relação entre Direito e Literatura deve ser aprofundada, e que a
Literatura pode beneficiar muito o Direito na superação de diversos problemas. O formalismo
e a construção formal lógica do Direito precisam da leveza, liberdade e humanismo da
Literatura.
O tema da autoria sempre esteve presente, tanto na Literatura quanto no âmbito
jurídico, de maneira mais ou menos definida e estável. Contudo, a partir da segunda metade
do século XX, com o desenvolvimento da sociedade de massa e, sobretudo,
contemporaneamente, na era digital, as noções de autor e autoria colocam-se no centro do
debate. Este trabalho pretende, modestamente, acrescentar alguns aportes a essa discussão.
1 O CONCEITO DE AUTOR E AUTORIA NO ÂMBITO LITERÁRIO
A questão da autoria é bastante controversa e polêmica nos dias de hoje. Há uma
diferença bastante notável entre o conceito literário e o conceito jurídico no que se refere à
autoria. Autoria é uma questão vista desde os Gregos, com Homero, passando por Platão,
Aristóteles, dentre muitos outros. As diversas transformações, principalmente por causa da
tecnologia, nos fizeram mudar a forma de ver a escrita e a leitura e, consequentemente,
transformaram a forma de ver a questão da autoria e a concepção de autor. Inicia-se, então,
este capítulo, com a discussão do conceito de autoria no âmbito literário desde que ela começa
a ter visibilidade, com o surgimento da Filosofia até os dias atuais.
1.1 PERCURSOS DA FORMAÇÃO DO CONCEITO DE AUTOR
A questão da autoria começa a ter certa visibilidade com o surgimento da Filosofia. De
acordo com Zilberman (2002), a escrita tem seu marco inicial no século VII a. C., mas obras
individuais só são registradas a partir do século IV a. C., período em que Platão escreveu seus
diálogos e aparecem os textos das epopeias e dramas dos períodos anteriores.
É interessante destacar que uma das influências mais importantes em relação à questão
de autoria esteja presente nos diálogos platônicos. De acordo com Jabouille (1988), Platão
afirma, em Ion2, que o poeta é movido pela divindade, que seu dom de falar não é uma arte,
mas, sim, um poder divino. Platão defende nesse diálogo que os poetas são irracionais quando
produzem seus poemas. Ele usa como exemplo um poeta lírico que, segundo ele, só é capaz
de compor quando está inspirado, ou seja, fora de si e sem nenhuma razão em si. Além disso,
para Platão, os poetas são intérpretes dos deuses, cada um possesso por uma divindade da
qual ele (o poeta) se torna escravo. Sendo assim, o poeta não é o criador do texto, mas um
porta-voz da divindade que ele (o autor) está representando, pois apenas repete o que os
deuses falam para ele. Ainda para Platão, os poetas têm uma espécie de “sorte divina”, pois
são movidos por uma musa que faz com que, além de eles terem a divindade consigo, haja
também inspiração. Em sua obra A República, Platão baniu todos os poetas, pois não há lugar
na cidade para produtores de simulacros, imagens enganosas do mundo que podem desvirtuar
a educação dos jovens.
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2 Esse diálogo mostra a conversa com Sócrates e Íon de Éfeso, um rapsodo muito conhecido em Éfeso.
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Em Fedro3, Platão vai mais longe no que se refere aos discursos da autoria. Ele afirma
que a identidade autoral não está vinculada à escrita do texto, mas sim ao pensamento
manifestado na situação de diálogo, de troca entre interlocutores. Dessa forma, não se
concebe a posse de um autor sobre o texto, visto que não pode haver autoridade sobre a
escrita, uma vez que esta não contém a afirmação da verdade, obtida apenas na conversa
dialética (BRISOLARA, 2005).
A partir do século IV a. C., começa a expansão da escola que adota a Retórica como
sua disciplina principal, juntamente com a Matemática. Ambas as matérias dependiam de
leitura e escrita, tanto para o conhecimento já existente quanto para novas descobertas. Por
exemplo, a Retórica agrupa poemas do passado, modelos a serem emulados, e, dessa forma,
essas criações passavam a ter a necessidade de uma identificação.
A adoção da escrita exigiu que não só os textos tivessem de ser identificados, mas
também o responsável por eles. Com a expansão do uso do pergaminho para o registro escrito,
organizado em forma de rolos, no alto deles, para facilitar a identificação, era colocada uma
tira que indicava o título e o nome do autor da obra. É bem provável que essa iniciativa de se
identificarem os autores de obras literárias produzidas no Ocidente não tenha vindo de seus
autores, mas, sim, dos próprios leitores, que tinham a necessidade de falar das obras que liam
e usavam os nomes dos autores para isso. Não se pode esquecer, também, que a expansão da
escola colaborou com essa prática (ZILBERMAN, 2002).
O século II a. C. foi marcado pela língua e literatura gregas, devido ao prestígio da
Biblioteca de Alexandria. Os bibliotecários cuidavam dos textos feitos pelos gregos letrados
e, de certa forma, mantinham sua conservação. Também organizavam o material, já que uma
organização era obviamente necessária para que se diferenciassem os rolos que continham
diferentes escritos (ZILBERMAN, 2002). Obviamente, a construção da autoria não é reduzida
apenas e tão somente a esse caminho histórico. Entretanto, nesse percurso, pode-se entender
melhor por que o autor se confunde com a obra que ele criou, mas de cuja produção é apenas
uma parte.
Os copistas tiveram um papel importante na moderna construção da autoria,
juntamente com os comerciantes que colocavam o material por eles reproduzido em diferentes
lugares espalhados pelo mundo antigo. Essas personagens, sem dúvida, deixaram marcas que
acabaram não sendo muito notadas nos textos, e esse pode ser o provável motivo do seu
desaparecimento da História.
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3 Fedro é um diálogo platônico que se ocupa com uma investigação acerca da retórica e do amor (sensual) (<http://pt.wikipedia.org/wiki/Fedro_(di%C3%A1logo>. Acesso em 19 jun. 2012).
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Conforme relata Zilberman (2002), no período medieval começaram a surgir algumas
modificações, e elas seriam responsáveis por práticas que se consolidariam na Modernidade e
por muitas concepções vigentes de autoria e obra literária. Na Idade Média, a manutenção e
transmissão da tradição foram transferidas para a Igreja, mais especificamente, para os frades.
A opção pelo Códice no lugar do rolo, nos séculos II e III d. C., foi responsável por mudanças
bastante notáveis. Primeiramente, porque foi permitida a supremacia do pergaminho sobre o
papiro. O pergaminho acabou se tornando o preferido para os textos escritos, e isso contribuiu
para a prática da leitura silenciosa, individual, já que as obras eram fáceis de manusear. O
Códice tinha um formato retangular, mas era um produto bem caro e de difícil circulação.
Então, no século XII, o papel, invenção chinesa datada do século II a. C., foi introduzido na
Europa. No ano de 1270, na Itália, surgiu o primeiro moinho para a fabricação de papel.
Até o século XIV, tanto o pergaminho quanto o papel eram materiais extremamente
caros e, além disso, o custo do copista era bem alto. Entretanto, a partir do século XV, a
produção de papel começou a baratear4. Gutenberg5 introduziu o uso de tipos móveis, o que
mais tarde foi copiado por outros tipógrafos, já que esse ofício acabou se expandindo na
Europa rapidamente, chegando à Península Ibérica entre 1485 e 1495.
Em termos de mercado, o livro se tornou um produto cada vez mais atraente. É
importante ressaltar que a expansão do ensino ajudou na sua difusão. Os intelectuais
renascentistas e reformistas como, por exemplo, Erasmo e Lutero, fizeram da escrita sua
máxima expressão e manifestação pública. E, claro, o público leitor acabou, com o seu
interesse, tornando-se consumidor dos primeiros best-sellers do Ocidente. Surgiram novos
sujeitos, como o tipógrafo, o revisor, o censor e o criador, que podia ser escritor e intérprete,
como no caso da poesia e do drama. Com o livro tornando-se, ao invés de um produto
artesanal, um produto industrial, modificou-se também o papel de quem estava inserido nesse
processo. Na Antiguidade e na Idade Média, as personagens eram o autor, o produtor da
matéria-prima (por exemplo, o artesão que transformava o couro do animal em pergaminho) e
o copista. Também havia o livreiro.
No século XVI, nasce um novo tipo de autor que é aquele sujeito responsável pela
elaboração de um texto e dele tem de se afastar, pois o novo intermediário não está colocado
no final da escala de produção, e sim no seu começo. Não se está falando do comerciante ou
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4 Mas a sua fabricação em alta escala só ocorreu no século XIX. 5 João (Johannes) Gutenberg – 1398-1468 – foi um inventor e gráfico alemão responsável pela forma moderna
de introdução de livros, a chamada prensa móvel, responsável pela divulgação e cópia muito mais rápida de livros e jornais. Sua invenção é considerada o evento mais importante do Período Moderno (<http://pt.wikipedia.org/wiki/Johannes_Gutenberg> Acesso em 15 set. 2011).
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do receptor, mas, sim, do industrial que o financia e dele espera o retorno do capital
financiado. Isso faz com que haja um ocultamento da subjetividade, na medida em que ocorre
uma alienação ao texto experimentada pelo autor.
Com o advento do Romantismo, o criador é dotado de trabalho literário e surge uma
figura externa que é chamada de inspiração, não mais divina, mas fruto da imaginação
criadora. Essa mudança reflete um rompimento com a tradição e o surgimento de duas
diferentes formas de autoria: uma autoria que se baseia na transmissão e uma autoria baseada
na produção original (BRISOLARA, 2005). Entretanto, foi a expansão do ensino e o
surgimento das primeiras Universidades, a partir do século XVIII, que fizeram surgir o texto
que começava a tomar a forma de livro. Passou-se, então, a discutir o conceito de autor, uma
problematização que atinge os tempos atuais.
O século XVIII viu o autor como um autor humano. Isso, sem dúvida, fez com que
ocorressem transformações e um crescente interesse no papel do autor e nas formas literárias.
Houve um interesse na individualidade do autor, coisa que não ocorria até então. Entretanto, a
concepção moderna de autor foi, ao longo dos séculos XVIII e XIX, um complexo produto
político e de negociações de acordos que variavam com o tempo e o local. Sendo assim,
conforme Zilberman (2002), o século XVIII trouxe uma nova instituição: o escritor
profissional, que poderia viver de sua escrita e que dependia de seu público.
1.2 PROBLEMATIZAÇÕES DO CONCEITO DE AUTOR
O mundo literário é o mundo do possível, é um mundo onde tudo é permitido, onde há
liberdade, ao qual o indivíduo não precisa se adequar, simplesmente pode viver, acreditar. O
que realmente acontece pertence à História, conforme já distinguia Aristóteles (1993) em
relação ao possível da Literatura. Mas, mesmo no mundo do possível, há um ponto
controvertido, e esse ponto é a análise dos conceitos que envolvem autor e autoria. Tais
conceitos, mesmo no âmbito literário, constituem tema bastante polêmico e controverso.
Superficialmente, parece um tema simples, mas, ao se analisarem várias posições de
pensadores como Bakhtin (2006), Barthes (2003) e Foucault (1992), dentre outros, percebe-se
que é algo bastante complexo, que comporta diferentes perspectivas.
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1.2.1 Roland Barthes e a morte do autor
Ao analisar a ideia de autor literário, Barthes vale-se do conceito de écrivain, através
do qual ele distingue o autor do escrevente. Para Barthes (apud REIS e LOPES, 2011, p. 39):
O escritor é aquele que trabalha a sua palavra e absorve-se funcionalmente neste trabalho. A atividade do escritor comporta dois tipos de normas: normas técnicas (de composição, de gênero, de escrita) e normas artesanais (de labor, de paciência, de correção, de perfeição); por sua vez, os escreventes são homens “transitivos”, postulam um fim (testemunhar, explicar, ensinar) para o qual a palavra suporta um meio, mas não o constitui. (Grifos dos autores)
De acordo com o Dicionário de Narratologia (REIS e LOPES, 2011), o termo autor
tem uma definição muito ampla, que envolve diversos aspectos, como, por exemplo, as
funções socias da Literatura, outro assunto bastante amplo e discutível.
Pode-se definir autor como uma categoria de escritor que coloca todo o seu ofício, seu
passado de informação literária, seus conhecimentos e suas ideias na obra que está
elaborando, ou seja, o autor coloca na obra o seu “eu”, e dentro desse “eu” está seu
conhecimento empírico, seu passado e presente, suas alegrias e frustrações, enfim, está um
pouco dele na obra. O autor empírico nada mais é do que um sujeito portador de uma
identidade biográfica e psicológica, ou seja, possuidor de uma história, de um passado e de
um presente, é um sujeito detentor de suas ideias e de como ele age e reage a tudo o que vive.
O Glossary of Literature Terms (apud BRISOLARA, 2005, p. 76) define autor como
“o indivíduo que, por seus dons intelectuais e imaginários, propositadamente cria de materiais
de suas experiências e leitura uma obra literária que é distintamente sua”. Antes do
Romantismo, os textos podiam circular mais livremente, porque as formas colaborativas de
escrita é que tinham prevalência, não havia praticamente nenhum cuidado com a questão do
plágio. No Romantismo, houve uma seguridade aos direitos individuais e criativos do artista.
Barthes (apud BRISOLARA, 2005) afirma que o autor é um produto da Modernidade,
e como tal tende a desaparecer, pois o autor é uma construção histórica, dando, assim, lugar a
uma figura diferente. Essa figura emergente é aqui o ponto central de toda a questão. De
acordo com o Pós-Modernismo, as palavras ou ideias não são propriedade de ninguém.
Para Silva (1983), o autor, como indivíduo empírico, é o primeiro e primordial
responsável pela enunciação literária. Entende-se enunciação literária como uma operação que
é individual e na qual o autor toma para si não somente a língua literária, mas também o
sistema semiótico literário, modernizando, assim, as virtualidades num enunciado, ou até em
uma sequência de enunciados, que ajustam o texto literário, encarregando-se, dessa maneira,
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da função de instância emissora, cuja existência pede, de forma explícita ou implícita, a
existência de uma instância receptora.
O que Silva (1983) menciona é basicamente o seguinte: no sentido apenas literário, o
autor é diretamente responsável por aquilo que escreve, mesmo que na obra não haja essa
relação direta. Pode ocorrer que, em uma obra, haja um narrador, que é uma personagem; num
primeiro momento, pode-se entender que não se trata do autor diretamente, mas de como o
autor está ligado diretamente ao que escreve, a voz é dele, colocada em outra pessoa, no caso
o narrador, mas não deixa de se tratar de um papel do autor. Da mesma forma pode ser feita a
referência aos personagens da obra.
Ainda para Silva (1983, p. 228), o autor textual é o próprio escritor:
O autor textual [...] é o emissor que assume imediata e especificamente a responsabilidade da enunciação de um dado texto literário e que se manifesta sob a forma e a função de um eu oculta ou explicitamente presente e atuante no enunciado, isto é, no próprio texto literário.
O autor normalmente escreve para um determinado público. Definir também qual o
lugar do autor no texto literário é muito importante, pois assim se saberá identificar o estilo,
características e aspectos sociais da obra. Na sua obra, o autor reflete experiências socias,
políticas, históricas, enfim, reflete o meio onde está inserido, reflete o que ele é, como ele
absorve tudo o que está vivenciando (REIS e LOPES, 2011). Nesse sentido, torna-se
importante analisar as ideias de Roland Barthes6, que escreveu, em 1968, um texto que leva o
título de “A morte do autor” (La mort de l’auteur)7 e seus argumentos refletem exatamente o
título do texto. Para Barthes (2003), a partir do momento em que um fato é contado, para fins
intransitivos, sem agir de forma direta sobre o real, ou seja, fora de qualquer função, apenas o
exercício do próprio símbolo, a voz perde sua origem e, então, nesse momento, o autor entra
em sua própria morte; assim, a escrita inicia. De uma forma mais clara, a morte do autor
significa que ele se afasta ao máximo do que escreve, apagando, anulando o máximo possível
as suas características individuais. Barthes (2003) acredita na morte do autor: a figura do autor
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6 Roland Barthes é um teórico que nasceu em Cherbourg, em 12 de novembro de 1915 e faleceu em 26 de março de 1980, em Paris. Foi escritor, crítico literário, sociólogo, semiólogo e também filósofo francês. Formou-se em Letras Clássicas no ano de 1939; já em 1943, formou-se em Gramática e Filosofia e fez parte da escola estruturalista, influenciado pelo linguista Ferdinand de Saussure. Crítico dos conceitos teóricos complexos que circularam dentro dos centros educativos franceses nos anos 1950, nos anos de 1952 a 1959 trabalhou no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) (<http://pt.wikipedia.org/wiki/Roland_ Barthes> Acesso em 7 jun. 2011).
7 Neste estudo, foi utilizada a obra traduzida, com ano 2003 (BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ________. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 2003. p. 49-53).
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precisa desaparecer para que aquilo que é escrito se torne importante? Mas e a subjetividade?
Onde ela se situa na teoria de Barthes?
Barthes (2003) defende que o autor é uma personagem moderna, produzida pela
sociedade. Para ele, é difícil saber de quem é a voz que escreve, pois a escrita destrói a
possibilidade de se saber isso, destrói a voz. Para ele não há escritor e texto, porque o escritor
nasce ao mesmo tempo em que o texto. Assim:
O scriptor moderno nasce ao mesmo tempo em que o seu texto, não está de modo algum provido de um ser que precederia ou excederia a sua escrita, não é de modo algum o sujeito de que o seu livro seria o predicado; não existe outro tempo para além da enunciação, e todo o texto é escrito eternamente aqui e agora. (BARTHES, 2003, p. 51)
Sendo assim, no lugar de autor, Barthes (2003) nos apresenta o Scriptor que, segundo
ele, tem o único poder de combinar textos que já existem e transformá-los em novas formas.
Para ele, toda escrita tem como fundamentação textos anteriores, reescrituras, normas e até
convenções e, se quisermos entender um texto, precisamos nos voltar para essas coisas.
Segundo Barthes (2003), o entendimento da obra não está diretamente ligado a quem a
produziu, mas ao leitor. O escritor nasce com o texto, pois é a linguagem que fala e não o
autor. Escrever, para Barthes, é um gesto de despersonalização. Na verdade, a unidade de um
texto não está na sua origem, mas sim em seu destino, o leitor. Esse leitor não possui história,
biografia ou psicologia, é simplesmente um alguém no qual estão reunidos todos os traços que
constituem o escrito. A crítica clássica jamais se preocupou com o leitor, apenas com aquele
que escreve. De acordo com Barthes (2003), para que ocorra o nascimento do leitor, tem de
necessariamente ocorrer a morte do autor; diminui-se assim o poder do autor e aumenta-se o
poder do leitor:
Começamos hoje a deixar de nos iludir com essa espécie de antífrases pelas quais a boa sociedade recrimina soberbamente em favor daquilo que precisamente põe de parte, ignora, sufoca ou destrói; sabemos que, para devolver a escrita ou seu devir, é preciso inverter o seu mito: o nascimento do leitor tem de pagar-se com a morte do autor. (BARTHES, 2003, p. 53)
Para Seán Burke (apud BRISOLARA, 2005) o conceito de autor nunca esteve tão vivo
desde que foi proclamada a sua morte. Esse texto de Barthes (2003), mesmo argumentando a
morte do autor, acabou trazendo-o para o centro do palco e para diversas discussões a respeito
do autor e da própria autoria.
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1.2.2 Michel Foucault e a assinatura
Em 1969, Michel Foucault, em seu texto O que é um autor?8, analisa, dentre outras
coisas, o problema do sujeito e a sua relação com a escrita, o desaparecimento do escritor ou
autor, o papel que o nome do autor toma na trama discursiva e suas características. É um texto
surpreendente, pelo que revela e também pelo que oculta. Uma das coisas que revela, por
exemplo, é a questão da subjetividade.
Foucault9 (1992) questiona o significado do termo autor e sua função, mas não nega o
autor, pois acredita que este (o autor) deva apagar-se ou ser apagado em proveito das formas
próprias ao discurso; é esse desaparecimento que vai fazer com que o autor possa exercer sua
função.
Foucault (1992) sempre atacou muito a biografia, há em suas críticas uma negação da
“bios”, vida. Essa crítica está limitada a reconhecer que a escrita (a grafia) é um gesto de vida,
e que, se podemos negá-la, destruí-la e banalizá-la, também podemos simplesmente salvá-la.
Para que isso seja possível, segundo Foucault (1992), o indivíduo, que neste caso é o autor,
que é o proprietário daquilo que escreve, tem de ser abalado.
Foucault (1992) faz duras críticas às categorias modernas:
� a natureza ficcional de categorias como, por exemplo, a biografia ou o autor põe em
causa a própria noção de referencialidade;
� há um impedimento absoluto no que se refere à totalização do singular pelo discurso,
o discurso se torna transgressor à medida que, na Antiguidade, havia circulação dele
(como contos, narrativas, tragédias, comédias, etc.) sem a preocupação com a
questão da autoria, não havia problema no anonimato, com exceção dos textos
científicos, que deveriam ser avalizados por um autor;
� o gesto biográfico é um ato discursivo, dessa forma, não há como não ocorrer uma
tensão entre o nome e a assinatura, a autoria ou a autoridade sobre o discurso.
Foucault (1992, p. 14) argumenta que “a partir da figura espetacular do autor, o leitor
torna-se juiz, o poder policial encarregado de verificar a autenticidade da assinatura e a
consistência do comportamento daquele que assina”. O autor tenta, então, mostrar a relação
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8 Neste estudo, utilizou-se a obra do autor traduzida, com ano de edição 1992. 9 Michel Foucault (15/10/1926-25/06/1984) foi um filósofo extremamente importante e foi também professor
no Collége de France entre 1970 e 1984. Seu trabalho foi desenvolvido em uma arqueologia do saber filosófico, da experiência literária e da análise do discurso. Também se concentrou na relação entre poder e governamentabilidade e nas práticas de subjetivação (http://pt.wikipedia.org/wiki/Michel_Foucault> Acesso em 25 ago. 2011).
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que há entre a escrita e a morte, o desaparecimento dos sinais de individualidade e o labor da
morte, como ocorre com a escrita:
O nome de autor não é um nome próprio como qualquer outro, mas antes um instrumento de classificação de textos e um protocolo de relação entre eles ou de diferenciação face a outros, que caracteriza um modo particular de existência do discurso, assinalando o respectivo estatuto numa cultura dada: a função de um autor é caracterizar a existência, a circulação e a operatividade de certos discursos numa dada sociedade. (FOUCAULT, 1992, p. 14)
O nome do autor é um nome próprio, mas é mais que uma simples indicação, é de fato
uma descrição. Um exemplo é o caso de Shakespeare: citar seu nome não evoca seu retrato,
mas o conjunto de sua obra – sonetos, peças de teatro e suas personagens, citações, etc. Já ao
citar o nome “João da Silva”, por exemplo, apenas a representação física é lembrada.
A função autor, segundo Foucault (1992), está diretamente ligada aos sistemas legais e
institucionais que delimitam, determinam e articulam o domínio dos discursos; para ele, há
uma variedade de egos. A função autor é distinguida pelo modo de existência, de circulação e
de funcionamento de determinados discursos que se encontram no interior de uma sociedade.
Há, para Foucault (idem), quatro características que distinguem a função autor, (entenda-se
aqui autor de livros ou textos):
� a função autor liga-se a objetos de apropriação – a necessidade de autoria de textos e
livros ocorreu quando se precisou punir textos transgressores, o que ocorreu entre os
séculos XVIII e XIX, mas é claro que havia também os benefícios da propriedade
dos textos;
� a função autor não é praticada de forma universal e contínua sobre todos os
discursos. Antigamente, os textos eram recebidos e colocados em circulação, não
interessava saber quem os escrevia, a questão da autoria não importava.
Diferentemente de hoje, quando a autoria é tão ou até mais importante que o próprio
texto, a primeira coisa que queremos saber é quem escreveu, quando escreveu, de
que forma, em quais cirscunstâncias, etc. O sentido e o valor que damos aos textos
dependerá, consequentemente, de como responderemos às questões acima
explicitadas. Para os dias atuais, o anonimato não é mais aceito;
� a função autor não se estabelece de forma espontânea, como ocorre na
imputabilidade de um discurso a um indivíduo. É, antes de tudo, a consequência de
uma operação complicada que constrói um ser racional que chamamos de autor. O
autor é como se fosse um foco de expressão, e ele acaba se manifestado da mesma
forma e com o mesmo valor em obras, rascunhos, cartas, fragmentos, etc.;
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� a função autor não é uma simples reconstrução de um texto tido como um material
sem vida. O texto sempre tem um certo número de signos que reenviam para o autor.
O que Foucault (1992) desejava era acabar com o que ele chamava de “monarquia do
autor”, que nada mais é do que uma restrição da liberdade de quem lê pelo autor que se
mostra como a lei de toda a leitura. Resumindo, Foucault historiciza a concepção de autoria e
nos mostra que o termo autor faz mais do que apenas descrever o papel do escritor na criação
do texto.
Para esse teórico, a noção de autor está ligada à noção de sujeito, em estreito vículo
com as instituições e o campo do poder. Assim, Foucault (1992) desconstitui evidência da
subjetividade, vinculando-a a formações discursivas, de modo que a noção de autor não se
limita à individualização, pois se trata sempre da constituição de sujeitos a partir de relações
com indivíduos e grupos, que agem de acordo com determinadas regras histórica e
socialmente estabelecidas. Para o autor citado, a escrita nada mais é do que um jogo ordenado
de signos, por isso, não basta apenas estudar a obra, pois seu estatuto é tão problemático
quanto a individualidade do autor. Nesse sentido, o autor assim se manifesta:
Retomemos, no entanto, a obra: os seus limites, tal como os limites de qualquer fato humano, definem-se pelo fato de a obra constituir uma estrutura significativa fundada na existência de uma estrutura mental coerente elaborada por um sujeito coletivo. (FOUCAULT, 1992, p. 76)
Os discursos que possuem a função autor apresentam uma pluralidade de “eus”.
Foucault (1992) jamais negou o autor, ele apenas achava que o autor deveria apagar-se ou ser
apagado em benefício das formas próprias aos discursos. É justamente esse desaparecimento
do autor que faz com que ele possa exercer a função autor.
1.2.3 Mikhail Bakhtin e as posições do autor
De uma forma ou de outra, o tema que se refere a autor e autoria está presente na
maior parte dos escritos de Bakhtin10. Desde o início, em O autor e o herói na atividade
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10 Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975) foi um linguista russo. Seu trabalho é considerado influente na área de teoria literária, crítica literária, sociolinguística, análise do discurso e semiótica. Bakhtin é um filósofo da linguagem e sua linguística é considerada uma "translinguística" porque ela ultrapassa a visão de língua como sistema. Isso ocorre porque, para Bakhtin, não se pode entender a língua isoladamente, mas qualquer análise linguística deve incluir fatores extralinguísticos como contexto de fala, a relação do falante com o ouvinte, momento histórico, etc. Os conceitos fundamentais associados à obra de Bakhtin incluem o dialogismo, a polifonia (linguística), a heteroglossia e o carnavalesco (<http://pt.wikipedia.org/wiki/Mikhail _Bakhtin> Acesso em 28 ago. 2011).
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estética (BAKHTIN, 1992), ele difere o autor-pessoa (o escritor, artista), do autor-criador (a
função estético-formal engendradora da obra).
O autor-criador é aquele que dá forma ao conteúdo: não faz apenas um registro dos
eventos da vida, mas, a partir de certa posição axiológica, ele os recorta e os reorganiza de
uma forma estética. Esse ato criativo, dessa forma, envolve um complicado processo de
transposições refratadas da vida para a arte. Isso ocorre primeiro porque quem compõe o
objeto estético é um autor-criador e não um autor-pessoa. O autor-criador é, então, uma
posição refratada e refratante. Inicialmente, é refratada porque se baseia na posição
axiológica, que são recortes através do viés valorativo do autor-pessoa. É refratante porque é a
partir dessa posição que se recortam e se reordenam esteticamente os eventos da vida. O
autor-pessoa é o escritor, o artista; já o autor-criador se refere à função estético-formal
constitutiva da obra. Segundo Faraco (2005), em seu artigo “Autor e autoria”, o autor-criador
se encontra numa posição estético-formal, cuja principal característica é a de se materializar
numa certa relação axiológica com o herói e seu mundo. Importante salientar que, para o
Círculo de Bakhtin11, os processos semióticos, sejam eles quais forem, tanto refletem quanto
refratam o mundo. Para Bakhtin, no estudo estético, no que se refere ao autor, não importam
os processos psicológicos envolvidos na criação ou o depoimento do autor-pessoa sobre seu
processo criador, importa apenas sua materialização na obra.
A distinção autor-pessoa/autor-criador, tratada de maneira geral em “Autor e herói na
atividade estética”, é retomada por Bakhtin (apud FARACO, 2005) em um manuscrito
inacabado: O problema do texto em linguística, filologia e nas ciências humanas – um
experimento em análise filosófica, que, provavelmente, deve ter sido escrito em 1960. A voz
criativa (o autor-criador como elemento estético-formal), de acordo com Bakhtin (apud
FARACO, 2005), é uma voz segunda, isso quer dizer que o discurso do autor-criador não é a
voz direta do escritor, mas é a refração de uma voz social qualquer de um modo que consiga
ordenar um todo estético.
Para Bakhtin (apud FARACO, 2005), o escritor nada mais é do que a pessoa que tem a
capacidade de trabalhar numa linguagem permanecendo fora dessa linguagem. Por exemplo,
se a voz do autor-criador for a voz do escritor como pessoa, só ocorrerá a criação estética se
houver deslocamento, ou seja, se o escritor conseguir trabalhar numa linguagem e permanecer
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11 O primeiro “Círculo de Bakhtin” iniciou quando ele começava sua vida de professor; a formação do grupo era de intelectuais com diversos interesses, mas todos tinham um mesmo objetivo e desejo, de discutir temas religiosos, literários e políticos. Faziam parte desse grupo Valentin Voloshinov e P. N. Medvedev, que se juntou ao grupo um pouco mais tarde (<http://translate.google.com.br/translate?hl=pt-BR& langpair=en%7Cpt&u=http://en.wikipedia.org/wiki/Mikhail_Bakhtin> Acesso em 28 ago. 2011).